Quando o poder constituinte original se manifesta, normalmente representaa ruptura com uma ordem política, social ou econômica até então vigente. Cuida-se não de um poder jurídico, sujeito ao Direito, mas de um poder de fato, extrajurídico, fundador, que emana das necessidades e anseios da sociedade daquele momento. A sua manifestação criará o novo ordenamento jurídico e determinará como o Estado doravante se organizará. Daí a doutrina caracterizá-lo como um poder inicial, soberano e incondicionado, dentre outros predicados.
É, pois, amplíssima a liberdade em que opera o constituinte originário. Em certos casos, é sentida a necessidade de se explicitar os valores e princípios que nortearam o movimento constitucional. Diante disso, algumas constituições optam por trazer em seu bojo um preâmbulo, que nada mais é que uma introdução ao texto constitucional.
Na lição de Kildare Gonçalves Carvalho,
O preâmbulo, do latim praeambulu, consiste numa declaração de propósitos que antecede o texto normativo da Constituição, revelando os fundamentos filosóficos, políticos, ideológicos, sociais e econômicos, dentre outros, informadores da nova ordem constitucional.
(...)
O preâmbulo confere legitimidade à Constituição, seja quanto à sua origem, seja quanto ao seu conteúdo, que será variável segundo as circunstâncias históricas e a ideologia que se verificaram durante a atividade dos constituintes originários. (CARVALHO, p. 507)”
O preâmbulo da Constituição da República de 1988 dispõe:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
O próprio modo como vazado o texto sinaliza que se trata de uma mensagem dos constituintes ao leitor da constituição, na qual são explicitados os valores e objetivos que nortearam os trabalhos de elaboração do texto. A redação, ademais, sugere não se tratar de normas de direito; não se vislumbram os preceitos primário e secundários da norma ou a estruturação típica em artigos, incisos, parágrafos e alíneas. Ao contrário, está-se diante de um texto redigido numa linguagem direta e acessível aos leigos.
Os valores – supremos – ressaltados no preâmbulo são: a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade, a justiça e o exercício dos direitos sociais e individuais. As características primordiais que os constituintes desejaram infundir à sociedade refundada em 1988 eram: a fraternidade, o pluralismo, a ausência de preconceitos, a harmonia social e o compromisso com a solução pacífica das controvérsias.
Avançando-se a leitura para o texto constitucional propriamente dito, percebe-se logo que esses desideratos são reiterados ao longo do texto constitucional, porém sob a forma de regras e princípios. Disso exsurge um natural questionamento: teria o preâmbulo força normativa? Em outras palavras: integraria ele o bloco de constitucionalidade? Em caso negativo, qual seria sua utilidade?
A doutrina se divide a respeito da natureza jurídica do preâmbulo.
Jorge Miranda aponta que existem três posições divergentes a respeito do valor jurídico do preâmbulo:
a) Tese da irrelevância jurídica: defende ser o preâmbulo juridicamente irrelevante, tratando-se de texto estranho ao direito e de interesse meramente histórico ou político;
b) Tese da eficácia idêntica: defende que o preâmbulo contém normas jurídicas de mesma hierarquia e qualidade que as demais normas constitucionais;
c) Tese da relevância indireta ou específica:para esta posição, intermediária, o preâmbulo careceria de força normativa. Porém, por advir do mesmo poder constituinte originário, o preâmbulo poderia servir de critério interpretativo do texto constitucional. Assim, o conteúdo do preâmbulo contribui para a integração, embora não possa ser invocado isoladamente como vetor interpretativo nem crie direitos ou deveres. Consequentemente, não haveria inconstitucionalidade por violação ao preâmbulo.
O Supremo Tribunal Federal perfilhou este último entendimento no quando do julgamento da ADI 2.076/AC no qual restou consignado que o preâmbulo da Constituição de 1988 não poderia por si só servir como parâmetro de controle da constitucionalidade de uma norma, mas poderá auxiliar na interpretação do texto constitucional. Destaca-se do voto do Ministro Relator, Carlos Veloso o seguinte trecho:
O preâmbulo, ressai das lições transcritas, não se situa no âmbito do Direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do constituinte. É claro que uma constituição que consagra princípios democráticos, liberais, não poderia conter preâmbulo que proclamasse princípios diversos. Não contém o preâmbulo, portanto, relevância jurídica. O preâmbulo não constitui norma central da Constituição, de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro. O que acontece é que o preâmbulo contém, de regra, proclamação ou exortação no sentido dos princípios inscritos na Carta: princípio do Estado Democrático de Direito, princípio republicano, princípio dos direitos e garantias, etc. Esses princípios, sim, inscritos na Constituição, constituem normas centrais de reprodução obrigatória, ou que não pode a Constituição do Estado-membro dispor de forma contrária, dado que reproduzidos ou não, na Constituição estadual, incidirão na ordem local. (ADI 2.076/AC. Relator Min. Carlos Veloso. 15/08/2002).
Ao acompanhar o Relator, o Ministro Marco Aurélio bem sintetizou a questão:
Acompanho também o eminente relator, assentando que o preâmbulo, o introito, não integra o corpo da própria Constituição. Portanto, não pode repercutir a ponto de adentrar no campo da simetria, exigindo-se que haja adoção uniforme em todas as unidades da Federação. (ADI 2.076/AC. Relator Min. Carlos Veloso. 15/08/2002).
Portanto, tendo em vista a palavra do Supremo Tribunal Federal, último intérprete da constituição, no direito pátrio o preâmbulo não integra o bloco de constitucionalidade, conjunto de normas e valores materialmente constitucionais, localizadas fora do texto formal da constituição, cujos princípios implícitos servem de parâmetro para a aferição da constitucionalidade de uma norma.
Pela mesma razão (não integrar a Constituição e não ser dotado de força normativa), o conteúdo do preâmbulo da Constituição de 1988 não é norma de repetição obrigatória pelas constituições dos Estados-membros.
Para a maioria da doutrina (Jorge Miranda, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, J.J. Gomes Canotilho, Pinto Ferreira), e também para o STF, o preâmbulo é, pois, uma proclamação de princípios não cogentes. Ele sinaliza as diretrizes políticas e ideológicas do novo Estado, e a indicação de objetivos, finalidade e justificativas servem para demonstrar o rompimento com a ordem jurídica anterior.
Em linha divergente, entendendo que o preâmbulo é formal e materialmente parte da Constituição, pois emana do mesmo poder constituinte originário e submete-se ao mesmo processo constituinte, pode-se citar o já mencionado Kildare Gonçalves Carvalho que pondera: “Reduzi-lo a mermo enunciado político ou ideológico é transformá-lo em fórmula vazia e sem conteúdo, ausente de qualquer eficácia, o que é inconcebível em se tratando de cláusula emanada do Poder Constituinte.” (CARVALHO, p. 514). O já mencionado autor traz ainda interessante linha de raciocínio de Robert Pelloux:
é no preâmbulo que se encontra, ou em todo caso deveria se encontrar a expressão da consciência coletiva de uma nação num determinado momento ou ao menos a expressão das idéias sobre as quais a maior parte dos espíritos estão de acordo: quer seja que o constituinte tenha pretendido somente reconhecer e proclamar os grandes princípios que comandam a evolução política e social, e consolidaros resultados já adquiridos na ordem legislativa, que que, mais ambicioso, ele tenha indicado os futuros progressos e ditar as palavras de ordem, ou mesmo prescrições diretas, juridicamente obrigatórias para o legislador futuro. (PELLOUX, 1947, apud, CARVALHO, 2007).
Em conclusão, verificamos que, a despeito da divergência doutrinaria, sempre existente no direito, é majoritário o entendimento de acordo com o qual o preâmbulo constitucional não cria direitos e deveres, não sendo, portanto, norma jurídica e tampouco integrando o texto constitucional. Cuida-se de um documento de intenções, prévio ao texto da constituição, destinado a revelar a ideologia, os sentimentos, objetivos e princípios que motivaram a elaboração do texto constitucional destituído de força cogente. Consequentemente, não há falar em inconstitucionalidade por ofensa ao preâmbulo e tampouco em obrigatoriedade de reprodução de seu conteúdo pelas constituições dos Estados-membro, sendo oportuno registrar que o Supremo Tribunal Federal já se posicionou neste sentido.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. Curso de direito constitucional. 1a ed. Rio de Janeiro? Ed. Ferreira, 2011.
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 13a ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 10a ed. São Paulo: Editora Método, 2006.
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-Graduada em Direito pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Procuradora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOLLERO, Barbara Tuyama. Da natureza do preâmbulo constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41875/da-natureza-do-preambulo-constitucional. Acesso em: 22 nov 2024.
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