Inicialmente associado à noção de limite ao poder real, o princípio do devido processo legal tem sua origem na Inglaterra do século XIII. Serviu como estatuto de convivência pacífica entre as elites dominantes da época, estabelecendo a supremacia da lei sobre o poder da monarquia absoluta e a prevalência do Estado de Direito (SANGUINÉ, 1989, p. 131).
Sua concepção vincula-se, portanto, à ideia central do constitucionalismo, que é a de um governo limitado pelo Direito, munindo os indivíduos de instrumentos de resistência contra o arbítrio dos governantes.
O artigo 39 da Magna Carta de 1215, ao prescrever que todo e qualquer julgamento envolvendo privação de liberdade ou de bens deveria ser realizado conforme a lei da terra (“law of the land”), trouxe a garantia formal de existência do processo. O devido processo legal nasce, assim, como imposição de processamento formal dos litígios, segundo a lei existente (“law of the land”).
Com o tempo, avança-se para a ideia de que não bastaria a garantia do processo, de forma que ele passa a ser dotado de requisitos procedimentais basilares. Nesse sentido, tem-se o devido processo de direito, calcado na razoabilidade e trazendo um patamar mínimo de juridicidade como conjunto de exigências para sua aceitação.
Posteriormente, tal garantia foi transplantada para as colônias da América do Norte, onde passa a constituir regra aplicável a todo e qualquer detentor de poder estatal, ou seja, não apenas ao Judiciário como também ao Executivo e ao Legislativo.
Na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a cláusula do devido processo legal foi prevista no artigo XI, número 1, que assegura que “todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.
O Brasil, assim como a maioria dos países do mundo ocidental, também incorporou a cláusula do devido processo legal em seu sistema jurídico. Esta é adotada expressamente, pela primeira vez, na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso LIV, ao estatuir que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Tal dispositivo abrange, pois, todo processo em que haja ameaça a algum direito ou ao patrimônio jurídico do cidadão, sintetizando as garantias constitucionais processuais.
Nesse diapasão, o princípio do devido processo legal equivale à garantia de liberdades do indivíduo frente ao Estado, tendo por base o primado da legalidade. Oportuniza às partes o direito de se defenderem e fazerem valer suas razões, assegurando não só um juiz natural, investido na forma da lei, incompetente e imparcial, mas também o contraditório, a ampla defesa e a isonomia entre as partes. Como ressaltado por Carlos Ari Sundfeld (2011, p. 173), “não é qualquer processo que serve à produção de atos estatais, mas unicamente o que se convencionou chamar de devido processo, dotado de um complexo de características fundamentais”.
Em linhas gerais, Nelson Nery Junior (2013, p. 94) aduz que o instituto do devido processo legal se distingue pelo trinômio “vida-liberdade-propriedade”, sendo esse o sentido a ser deduzido da locução inserta na Constituição Federal. Assim, tudo o que diga respeito a esses três bens da vida estaria sob a égide do aludido princípio.
Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (1997, p. 86), a seu turno, assevera que o devido processo legal representa “o limite entre o informalismo excessivo, em que as partes ficam subjugadas ao arbítrio e ao poder do Estado, e o excesso de formalismo, em que o direito material e, até mesmo, a justiça correm o risco de sucumbir por razões de cunho formal”.
A par disso, é frequente a distinção na seara doutrinária entre duas dimensões do devido processo legal. Nelson Nery Junior (2013, pp. 96-100), nesse tocante, diferencia uma dimensão procedimental e outra substantiva. A dimensão procedimental, ou “procedural due process”, segundo ele, alcança um significado mais restrito e abrange um conjunto mínimo de regras aplicáveis ao juiz, garantindo, por exemplo, o direito à citação e à ampla defesa do réu. Já a dimensão material, ou “substantive due process”, para esse autor, refere-se à razoabilidade das leis, significando que toda norma não razoável atenta contra o devido processo legal.
A dualidade desse princípio é apontada, ainda, por Paulo Fernando Silveira:
Basicamente, pela dimensão processual, afere-se a aplicação do princípio da igualdade dentro de uma ação em curso, notadamente pela garantia da prévia defesa, com iguais oportunidades para a prática de todos os atos processuais, o que inclui o contraditório, falando o réu por último.
Já no que tange à dimensão substantiva, o Judiciário, no exercício de seu poder político constitucional, controla a própria essência da lei, ou seja, a sua justiça, pois a Constituição é ontologicamente justa (logo, a lei injusta é inconstitucional), basicamente tomando por critério a razoabilidade do senso comum e sua necessidade, esta quando agride direitos individuais fundamentais (...). (2001, pp. 240-241)
Tal distinção foi também sublinhada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal ao decidir o pedido cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.511-7/DF, em voto do então Ministro Carlos Velloso, do qual se extrai o seguinte excerto[1]:
Due process of law, com conteúdo substantivo – substantive due process – constitui limite ao Legislativo, no sentido de que as leis devem ser elaboradas com justiça, devem ser dotadas de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (rationality), devem guardar, segundo W. Holmes, um real e substantivo nexo com o objetivo que se quer atingir. Paralelamente, due process of law, com caráter processual – procedural due process – garante às pessoas um procedimento judicial justo, com direito de defesa.
A Corte Suprema também assentou posicionamento de que a dimensão substantiva do devido processo legal consubstancia o princípio da proporcionalidade. A propósito[2]:
O Poder Público, especialmente em sede penal, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal, ainda mais em tema de liberdade individual, acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade, que traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo. - O exame da adequação de determinado ato estatal ao princípio da proporcionalidade, exatamente por viabilizar o controle de sua razoabilidade, com fundamento no art. 5º, LV, da Carta Política, inclui-se no âmbito da própria fiscalização de constitucionalidade das prescrições normativas emanadas do Poder Público. - O princípio da proporcionalidade, essencial à racionalidade do Estado Democrático de Direito e imprescindível à tutela mesma das liberdades fundamentais, proíbe o excesso e veda o arbítrio do Poder, extraindo a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula, em sua dimensão substantiva ou material, a garantia do “due process of law”
Por conseguinte, o Poder Judiciário pode exercer o controle de constitucionalidade das leis com base no princípio da proporcionalidade, a face material do “due processo of law”. Nessa linha, mais uma manifestação do Pretório Excelso ilustra essa compreensão[3]:
O Estado não pode legislar abusivamente, eis que todas as normas emanadas do Poder Público - tratando-se, ou não, de matéria tributária - devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do "substantive due process of law" (CF, art. 5º, LIV). O postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais.
Não obstante, assevera Vivian Josete Pantaleão Caminha (1997, p. 54) que ainda hoje se percebe certa resistência do Direito brasileiro em visualizar o devido processo legal em sua acepção substantiva. Trata-se, de fato, de cláusula aberta, já que a Constituição Federal não a define nem indica quais os princípios informadores da mesma.
A esse propósito, leciona Odone Sanguiné:
O princípio do due processo of law é uma cláusula aberta. A Constituição não contém definição alguma do que seja devido processo legal. Tampouco esclarece quais sejam os princípios que devam ser respeitados para que se possa reconhecer se foi observado o devido processo. Assim, é uma cláusula em larga medida indeterminada, não, porém, vazia de conteúdo. Dela defluem diversos princípios que a jurisprudência, atendendo à sua origem, evolução e finalidade, vai reconhecendo e aplicando aos casos concretos (...). (1989, p. 134)
Apesar da imprecisão de seu enunciado, no entanto, é consabido que, para a definição do devido processo legal, deve ser considerada a realidade histórica, política, econômica e social a que se refere, de modo a se tornar, além de garantia de regularidade do processo, parâmetro de justiça a reger as relações entre o Estado e a sociedade. Dessa forma, no processo de interpretação da cláusula, não há uma solução definitiva, uma vez que seu conteúdo objetivo é determinado dentro de um panorama histórico.
Segundo Vivian Josete Pantaleão Caminha (1997, p. 79), o princípio do devido processo legal “insere-se em um contexto normativo genérico (em nível constitucional) e enseja a cristalização de ideias e valores mutáveis, identificáveis com realidades também mutáveis, que exigem do intérprete uma consciência evolutiva”.
Nesse cenário, o instituto do devido processo legal representa, nos dias atuais, o princípio constitucional medular que informa o Direito Processual Civil e Penal e do qual decorrem todos os demais imprescindíveis para a afirmação de uma ordem jurídica justa e legítima. Nelson Nery Junior (2013, p. 92) chega a asseverar, inclusive, que tal princípio “é, por assim dizer, o gênero do qual todos os demais princípios e regras constitucionais são espécies”.
rEFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BRASIL. Supremo Tribunal Federal.Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.511, proferida pelo Tribunal Pleno. Relator: Ministro Carlos Velloso. Brasília, 16out. 1996. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia. asp >. Acesso em: 10 nov. 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal.Habeas Corpus nº 99.832, proferida pela Segunda Turma. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 17nov. 2009. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia. asp >. Acesso em: 10 nov. 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 200.844, proferida pela Segunda Turma. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 25 jun. 2002. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia. asp >. Acesso em: 10 nov. 2014.
CAMINHA, Vivian Josete Pantaleão. A garantia do devido processo legal. In: PAULSEN, Leandro (Org.). Desapropriação e reforma agrária. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, 1997.
SANGUINÉ, Odone. Devido processo legal e Constituição. Fascículos de Ciências Penais, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris, vol. 2, n. 9, setembro 1989.
SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
[1]ADI 1511 MC, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 16/10/1996, DJ 06-06-2003 PP-00029 EMENT VOL-02113-01 PP-00071.
[2]HC 99832, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 17/11/2009, DJe-172 DIVULG 30-08-2012 PUBLIC 31-08-2012 EMENT VOL-02658-01 PP-00001.
[3]RE 200844 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 25/06/2002, DJ 16-08-2002 PP-00092 EMENT VOL-02078-02 PP-00234 RTJ VOL-00195-02 PP-00635.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MEZZOMO, Renato Ismael Ferreira. Cláusula do devido processo legal: origem histórica e perfil constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 nov 2014, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41900/clausula-do-devido-processo-legal-origem-historica-e-perfil-constitucional. Acesso em: 22 nov 2024.
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