INTRODUÇÃO
A República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito, e, assim, todos os assuntos relacionados ao país devem obediência à lei (lato sensu) e à vontade do povo, que se expressa através de representantes eleitos, como regra geral, ou, ainda, diretamente, em casos e sob condições excepcionais (artigos 1º e 14 da Constituição Federal de 1988).
Alexandre de Moraes (2006, página 17) traz o seguinte ensinamento sobre o Estado Democrático de Direito:
“significa a exigência de reger-se por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais”
Como visto acima, o Brasil adotou o sistema representativo como regra geral, situação em que os cidadãos escolhem seus representantes e estes produzem leis aplicáveis a todos, exercem a fiscalização do funcionamento da Administração Pública (Poder Legislativo) e administram a máquina estatal, promovendo a prestação de serviços públicos.
Em casos e sob condições específicas, admite-se no Brasil a chamada democracia direta, que permite e prestigia a participação direta do povo nas decisões sobre os rumos da nação.
A origem da democracia direta remonta a antiga Grécia e as cidades-Estado. Naquele tempo, aqueles que tinham o direito de voto (e não eram todos, como é cediço) reuniam-se em locais públicos e votavam sobre todos os assuntos que diziam respeito à cidade. Porém, deve-se reconhecer que com o desenvolvimento da humanidade e a criação de Estados de grandes dimensões geográficas e populacionais, tornou-se praticamente impossível tal prática, ao menos nos termos em que era exercida nos seus primórdios.
Mesmo que de difícil aplicação prática, é inegável a importância da participação direta dos cidadãos nas discussões e decisões do Estado a que pertencem. ROUSSEAU (1952, página 111) em conclusão extrema chegou a afirmar que “toda lei que o povo pessoalmente não ratifica é nula e não é lei”.
Conciliando as duas formas de expressão, a República Federativa do Brasil adotou a chamada democracia semi-direta, sendo as deliberações de interesse coletivo tomadas pelos representantes eleitos pelos cidadãos, havendo, contudo, a possibilidade de sobre alguns pontos ocorrer pronunciamento direto pelo próprio povo, de acordo com os instrumentos e regras estabelecidas pela ordem jurídica brasileira.
Nesse sentido, veja-se o que diz a doutrina de Pedro Lenza (2007, página 45):
“Além de desempenhar o poder de maneira indireta (democracia representativa), por intermédio de representantes, o povo também o realiza diretamente (democracia direta), concretizando a soberania popular, que, segundo o art. 1.º da lei n. 9.709, de 18.11.98 (que regulamentou o art. 14, I, II e III, da CF/88), ‘é exercida por sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, nos termos desta Lei e das normas constitucionais pertinentes, mediante: plebiscito; referendo e iniciativa popular’.
Podemos falar, então, que a CF/88 consagra a idéia de democracia semidireta ou participativa, verdadeiro sistema híbrido.”
destaques no original
Nessa toada, a carta magna abriu canais para o exercício da manifestação popular direta, colocando mecanismos à sua disposição. Com efeito, foram adotados no Brasil diversos institutos que possibilitam ao povo expressar diretamente sua opinião sobre leis e atos do poder público em geral.
Ao redor do mundo, foram criados vários mecanismos que permitem a participação popular direta, merecendo ser elencados os seguintes: referendo, plebiscito, iniciativa popular, veto popular e direito de revogação.
Da análise da Constituição Federal de 1988, percebe-se que apenas os três primeiros foram adotados pela República Federativa do Brasil.
Em rápidas palavras, pode-se dizer que no veto popular os cidadãos se manifestam sobre uma lei criada pelos representantes eleitos sem terem sido convocados para tanto. Portanto, mediante ação voluntária, uma parcela da população que não esteja satisfeita com lei elaborada por seus representantes, tem o direito de pedir que esta seja levada ao crivo popular, que se manifestará diretamente sobre a manutenção ou revogação da lei impugnada.
Outro mecanismo existente em outros pontos do globo terrestre, mas não acolhido no ordenamento jurídico pátrio, é o chamado direito de revogação, que consiste na possibilidade ser anulada a escolha de uma pessoa para exercício de cargo ou função pública eletiva, mediante manifestação direta dos cidadãos. Clóvis de Souto Goulart (1995, página 110) traz conceito preciso sobre referido instituto:
Trata-se de mecanismo previsto em certos sistemas de governo e que tem, por objetivo, a possibilidade de interromper mandato político de parlamentares ou de funcionários titulares de cargos eletivos, afastando-os de suas atividades funcionais antes de encerrar-se o prazo de mandato.
Nos Estados Unidos tal mecanismo é admitido e tem o nome de “recall”. Porém, no Brasil o mesmo não é admitido, assim como acontece com o veto popular.
Como já se pode afirmar anteriormente, no Brasil foram adotados apenas os seguintes mecanismos para exercício direto da democracia: referendo, plebiscito e iniciativa popular.
REFERENDO, PLEBISCITO E INICIATIVA POPULAR
O artigo 14 da CF/88 traz as formas pelas quais é possível a participação popular direta sobre decisões políticas da nação. Pela importância pede-se vênia para transcrever o dispositivo constitucional:
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I - plebiscito;
II - referendo;
III - iniciativa popular.
A iniciativa popular legislativa é uma forma extraordinária de manifestação direta pelo povo sobre suas vontades. Com efeito, através dela um projeto de lei pode ser proposto, contando, desde sua propositura, com amplo apoio popular, o que certamente influencia no ânimo dos representantes eleitos, que naturalmente se mostrarão mais abertos à idéia que nasceu voluntariamente no seio da sociedade, sendo possível afirmar que a tendência natural é que propostas desse jaez têm grandes chances de serem aprovadas.
Para ser admitida, a proposta de lei calcada em iniciativa popular deve cumprir os requisitos previstos no artigo 61, §2º, da Constituição Federal de 1988, verbis:
§ 2º - A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
Da leitura do dispositivo acima transcrito, pode-se concluir que existem dois requisitos a serem atendidos: 1º) apoio, mediante assinatura, de pelo menos um por cento do eleitorado nacional; 2º) participação de não menos que três décimos por cento de eleitores de, no mínimo, cinco estados-membros.
Andou bem o legislador constituinte ao fixar tais requisitos, pois se conciliou a necessidade de grande apoio numérico quanto um mínimo de repercussão geográfica nacional, para que a proposta seja levada à apreciação dos representantes eleitos. Caso tais requisitos sejam cumpridos, o projeto de lei terá o trâmite de um projeto de lei como qualquer outro, nos termos dos artigos 64 a 67 da Constituição Federal de 1988.
Como grande e excelente exemplo do sucesso dessa forma de participação popular, pode-se citar a chamada “Lei da Ficha Limpa” (Lei Complementar nº 135/10), que torna inelegível por oito anos o candidato que tiver o mandato cassado, renunciar para evitar a cassação ou for condenado por decisão de órgão judicial colegiado, mesmo que ainda exista a possibilidade de recursos.
Inegável, assim, a importância deste instrumento para a manifestação dos anseios populares.
Além da iniciativa popular, a ordem constitucional brasileira prevê ainda outros dois institutos, a saber, o referendo e o plebiscito.
Apenas para registro, deve-se destacar que em outros países não é unânime a diferenciação feita no Brasil a respeito da conceituação e diferenciação entre os institutos. Com efeito, é comum encontrar-se somente uma das expressões, “referendo” ou “plebiscito”, abrangendo tanto a consulta popular anterior quanto posterior ao ato público submetido à apreciação.
Porém, uma análise mais profunda encontra ligeira diferença entre os mecanismos ora em análise, que tiveram origem sobretudo na evolução da participação popular conforme o decurso do tempo. Maria Victoria Benevides (2006) traz com maestria uma breve e importante contextualização:
Plebiscito vem do latim (plebis + scitum), e originariamente designava, na Roma antiga, a decisão soberana da plebe, expressa em votos. Mais tarde o plebiscito tornar-se-ia uma simples formalidade para “legitimar” os cônsules investidos de poder supremo – como Pompeu e César – vindo daí a expressão “cesarismo plebiscitário”. Referendo vem de ad referendum e origina-se da prática, em certas localidades suíças, desde o século XV – como os cantões de Valais e Grisons -, de consultas à população para que se tornassem válidas as votações nas Assembléias cantonais.
No sistema constitucional brasileiro adotou-se a diferenciação entre os dois institutos, como será mais bem demonstrado adiante.
Com efeito, para a ordem jurídica brasileira, plebiscito é consulta prévia à população a respeito de determinado assunto, seja ele legislativo ou político. Por outro lado, o referendo consubstancia-se em deliberação do povo posterior à prática de um ato estatal. Em um outro caso, objetivam validar ou não o ato público (legislativo ou político) que é colocado à apreciação.
Trata-se, portanto, de consultas cuja distinção reside no aspecto temporal da participação popular, não havendo distinção material entre os dois mecanismos.
A Lei 9.709/98 disciplina no âmbito infraconstitucional a matéria, não fazendo qualquer distinção material. Por pertinente, confira-se o que disposto no artigo 2º, verbis:
Art. 2º Plebiscito e referendo são consultas formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa.
§ 1º O plebiscito é convocado com anterioridade a ato legislativo ou administrativo, cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido.
§ 2º O referendo é convocado com posterioridade a ato legislativo ou administrativo, cumprindo ao povo a respectiva ratificação ou rejeição.
Em um ou outro caso, tem-se uma consulta popular pela qual se busca do povo uma manifestação sobre atos a serem praticados pelo Estado, sejam eles já ocorridos ou ainda pendentes de realização.
Importante frisar que a decisão da maioria dos cidadãos consultados não vincula necessariamente o Poder Público. De fato, o texto legal acima usa a expressão “consulta” e, ainda, se encontra na doutrina (SGARBOSSA e JENSEN, 2007 – Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1625) o ensino de que existe tanto o plebiscito ou referendo “consultivo” ou “deliberativo”. No mesmo trabalho, os autores referidos ponderam que o uso do plebiscito e do referendo pode ser (e vem sendo) desvirtuado por governos autoritários).
Por fim, a competência para autorizar referendo e convocar plebiscito é do Congresso Nacional, nos termos do artigo 49, XV, da Constituição Federal de 1988.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, conclui-se que a República Federativa do Brasil adotou o sistema da democracia semi-direta, em que a regra é a manifestação da vontade dos cidadãos através de representantes (sistema representativo – democracia indireta), havendo, contudo, a possibilidade de participação direta, que é veiculada essencialmente através de três institutos jurídicos: referendo, plebiscito e iniciativa popular.
Trata-se de importante canal de expressão dos anseios do povo, sobretudo na atualidade, em que a democracia brasileira passa por uma séria crise de representatividade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENEVIDES, Maria Victoria. Educação para a Democracia. São Paulo: 1996. Disponível em http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/mariavictoria/mariavitoria_educademocracia.html. Acesso em: 19/11/2014
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 11ª Edição. São Paulo: Editora Método. 2007.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 20ª Edição. São Paulo: Atlas. 2006.
ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Edições e Publicações Brasil Editora S. A., 1952.
SGARBOSSA, Luís Fernando; JENSEN, Geziela. Referendo e plebiscito: um estudo sobre os institutos de democracia semidireta e o risco de seu desvirtuamento na contemporaneidade. Estudo comparativo dos casos italiano, venezuelano e outros. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1625, 13 dez. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10757>. Acesso em: 19 nov. 2014.
Procurador Federal atuante na cidade de Umuarama - PR. Aluno do curso de Especialização em Direito do Estado da Universidade Estadual de Londrina.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Menahem David Dansiger de. A democracia semi-direta e os mecanismos previstos na Constituição Federal de 1988 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41946/a-democracia-semi-direta-e-os-mecanismos-previstos-na-constituicao-federal-de-1988. Acesso em: 22 nov 2024.
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