O brocado de origem latina “pro iurequamvis contra legem”, em uma tradução livre, pode ser entendido como algo no sentido de “pela justiça ainda que contra a lei”. Em que pese a remota origem do dito popular, a atual atuação do Poder Judiciário Brasileiro tem tornado a expressão cada vez mais presente no cotidiano jurídico.
O presente trabalho tem por objetivo discorrer suscintamente sobre a evolução da teoria do Positivismo Jurídico, avançando para o Pós-Positivismo Jurídico e culminando no ativismo judicial, hoje já enraizado em nosso ordenamento jurídico, e a verdadeira materialização da expressão pro iurequamvis contra legem.
O Positivismo Jurídico (iuspositivum) pode ser entendido com uma corrente da teoria do direito que visa compreender e explicar o fenômeno jurídico tendo como marco inicial a análise das normas positivas, ou seja, as normas fixadas pelas autoridades competentes dentro de cada sociedade. Em outras palavras, o positivismo tem como premissa o fato de que o conceito de direito está diretamente relacionado com o direito posto pelas autoridades legitimadas - que possuem o poder político - para impor normas.
Sobre o tema, embora esteja espcificamente se referindo a Escola Francesa da Exegese, cabe transcrever trecho da obra irretocável lição do grande mestre italiano Norberto Bobbio[1], citando Bonnecase:
“Para o jurisconsulto, para o advogado, para o juiz existe um só direito, o direito positivo [...] que define: o conjunto de leis que o legislador promulgou para regular as relações dos homens entre si [...] As leis naturais ou morais não são, com efeito, obrigatórias enquanto não forem sancionadas pela lei escrita... Ao legislador só cabe o direito de determinar, entre regras tão numerosas e, às vezes, tão controvertidas do direito natural, aquelas que são igualmente obrigatórias [...] Dura lex, sed Lex; um bom magistrado humilha sua razão diante da razão da lei: pois ele é instituído para julgar segundo ela e não para julgá-la. Nada está acima da lei, e eludir suas disposições, sob o pretexto de que equidade natural a contraria, nada mais é do que prevaricar. Em jurisprudência não há, não pode haver razão mais razoável, equidade mais equitativa do que a razão ou equidade da lei”(BONNECASE apud BOBBIO, 1995, p. 86).
Em outras palavras, a Teoria do Positivismo Jurídico representava uma total superveniência à vontade do legislador, considerando que não cabia ao intérprete da Lei inovar a norma ou ir além da vontade da autoridade competente para impô-la.
Obviamente tal teoria sofreu duras críticas ao longo da história, sobretudo em razão dos problemas enfrentados pelo intérprete no quando da análise de um caso concreto e a necessidade da mitigação da norma legal em razão de outros princípios fundamentais diante de um caso real, sob pena de esvaziamento do papeldo julgador e do cometimento de graves injustiças, como em sua aplicação irrestrita pelo Estado Alemão Nazista.
A ideia de supremacia absoluta da norma vigente em detrimento a valores éticos e morais serviu como base de sustentação para o regime Nazista na Alemanha, no qual as barbáries praticadas, por mais repugnantes e imorais, estiveram sempre devidamente positivadas na Lei.
Sobre o tema:
“Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro delegalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados deNuremberg invocaram o cumprimento da lei e da obediência a ordens emanadas da autoridade competente”(BARROSO e BARCELLOS, 2008, p.336-337).[2]
Sobrea decadência do Positivismo Jurídico, assim discorreu Luis Roberto Barroso[3]:
O positivismo pretendeu ser uma teoria do Direito, na qual o estudioso assumisse uma atitude cognoscitiva (de conhecimento), fundada em juízos de fato. Mas resultou sendo uma ideologia, movida por juízos de valor, por ter se tornado não apenas um modo de entender o Direito, como também de querer o Direito. O fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados. A idéia de que o debate acerca da justiça se encerrava quando da positivação da norma tinha um caráter legitimador da ordem estabelecida. Qualquer ordem. [...] a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. [...] Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a idéia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como um estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido.
É justamente nesse contexto de final de Segunda Guerra Mundial que surge o Pós-Positivismo Jurídico, como alternativa para se evitar que novos regimes Nazistas e Fascistas se estabeleçam e que utilizem a norma como álibi para seus crimes.
Até mesmo em razão dos graves acontecimentos históricos ocorridos no período, o Pós-Positivismo visa estabelecer uma relação visceral entre direito e ética, objetivando materializar a afinidade entre princípios, valores, regras e teorias dos direitos fundamentais.
Sobre a questão, cabe trazer a baila a irretocável definição do Ministro de Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso:
“O Direito, a partir da segunda metade do século XX, já não cabia no positivismo jurídico. A aproximação quase absoluta entre Direito e norma e sua rígida separação da ética não correspondiam ao estágio do processo civilizatório e às ambições dos que patrocinavam a causa da humanidade. Por outro lado, o discurso científico impregnara o Direito. Seus operadores não desejavam o retorno puro e simples ao jusnaturalismo, aos fundamentos vagos, abstratos ou metafísicos de uma razão subjetiva. Nesse contexto, o pós-positivismo não surge com o ímpeto da desconstrução, mas como uma superação do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as idéias de justiça e legitimidade. O constitucionalismo moderno promove, assim, uma volta aos valores, uma reaproximação entre ética e Direito. Para poderem beneficiar-se do amplo instrumental do Direito, migrando da filosofia para o mundo jurídico, esses valores compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição, explícita ou implicitamente. Alguns nela já se inscreviam de longa data, como aliberdade e a igualdade, sem embargo da evolução de seus significados. Outros, conquanto
clássicos, sofreram releituras e revelaram novas sutilezas, como a separação dos Poderes e o Estado democrático de direito. Houve, ainda, princípios que se incorporaram mais recentemente ou,ao menos, passaram a ter uma nova dimensão, como o da dignidade da pessoa humana, darazoabilidade, da solidariedade e da reserva de justiça. A novidade das últimas décadas não está,
propriamente, na existência de princípios e no seu eventual reconhecimento pela ordem jurídica(...).O que há de singular na dogmática jurídica da quadra histórica atual é o reconhecimento de suanormatividade”.[4]
Em outros termos, a análise do direito passa a ir além da letra da norma, o papel do julgador ganha maior destaque, podendo o mesmo se valer de outros elementos constantes no universo jurídico para a tomada de sua decisão, sobretudo levando-se em conta a positivação dos princípios.
Amparado nessas novas ideias advindas do Pós-Positivismo Jurídico e na ascensão do Poder Judiciário em virtude do modelo constitucional consagrado pela Constituição Federal de 1988, o ativismo judicial passa a ter grande destaque no mundo jurídico brasileiro - embora tal expressão tenha sido utilizada pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1947.
“O ativismo judicial foi mencionado pela primeira vez em 1947, pelo jornalista norte-americano Arthur Schlesinger, numa interessante reportagem sobre a Suprema Corte dos Estados Unidos. Para o jornalista, caracteriza-se ativismo judicial quando o juiz se considera no dever de interpretar a Constituição no sentido de garantir direitos que ela já prevê, como, por exemplo, direitos sociais ou econômicos”[5]
Em apertada síntese, podemos definir o ativismo judicial como sendo uma postura proativa do Poder Judiciário que, se valendo de lacunas legislativas, em certas oportunidades até mesmo de supostas lacunas, e invocando uma série de princípios e valores éticos, acaba por interferir em opções políticas dos demais poderes, muitas vezes até mesmo assumindo os papéis do Poder Legislativo e do Poder Executivo.
Obviamente essa atividade se mostra extremamente relevante para o desenvolvimento da sociedade, sobretudo em um momento em que o velho conceito da extremada divisão de poderes encontra-se cada vez mais mitigado, não comportando mais as modernas e instantâneas relações e anseios sociais existente neste momento histórico.
Entretanto, não há como se perder de vista o fato de que em algumas ocasiões o Poder Judiciário, sob o pretexto de estar interpretando a norma vigente ou dando a devida relevância aos princípios, acaba por materializar o antigo brocado pro iurequamvis contra legem, o que se revela deveras perigoso, eis que o conceito de justiça é extremamente subjetivo e, além de usurpar a função do legislador, pode representar uma grave ofensa à segurança jurídica.
Sobre o tema, pedimos novamente vênia para nos valermos da lição de Luiz Flávio Gomes:
Qual é o problema de todo ativismo judicial legislativo ou proativismo? Está no risco de o Poder Judiciário perder sua legitimidade democrática, que é indireta. Em que sentido? As decisões dos juízes são democráticas na medida em que seguem, nas decisões judiciais, aquilo que foi aprovado pelo legislador. Sempre que o Poder Judiciário inova o ordenamento jurídico, criando regras antes desconhecidas, invade a tarefa do Poder Legislativo, ou seja, intromete-se na função legislativa. Disso emerge um outro risco: o da aristocratização do Estado e do Direito, que, certamente, ninguém no século 21 está disposto a aceitar.
Há outros riscos: se os magistrados do STF, um dia, só por hipótese, se engajarem nas ondas involutivas do Estado de polícia, surge também a ameaça de "hitlerização do Direito" (direito nazista). Se conferirem primazia a uma determinada religião, em detrimento das regras jurídicas, há o risco da "fundamentalização do Direito" (direito fundamentalista). Se não observarem nenhuma regra vigente no momento das decisões, pode-se chegar à "alternativização do Direito" (direito alternativo). O Direito construído pelo STF, de outro lado, pode resultar absurdamente "antigarantista" - aliás, essa é a censura que muitos já estão fazendo em relação à Súmula Vinculante nº 5, que dispensa a presença de advogado nos processos disciplinares.[6]
CONCLUSÃO
Diante do exposto, uma vez constatado que o ativismo judicial já se encontrairremediavelmente enraizado em nossa sociedade, e que seu surgimento é oriundo de um complexo processo de avanço de teorias do direito, o que se almeja, além da prudência dos membros do Judiciário,é o fortalecimento dos demais Poderes da República, com um aprofundamento no estudo e compreensão das questões constitucionais, a fim de que o Estado Democrático de Direito se realize em sua plenitude, com cada Poder sendo protagonista em sua respectiva seara devidamente delimitada pela Constituição Federal.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: EditoraSaraiva, 2003, 5ª edição, pp. 325-327
BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. A nova interpretaçãoconstitucional: ponderação, argumentação e papel dos princípios. In: LEITE, GeorgeSalomão (coord.). Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normasprincipiológicas da Constituição. São Paulo: Método, 2008.
BOBBIO, Norberto.O positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito.compiladas por Nello Morra; tradução e notas Marcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. – São Paulo: Ícone, 1995. ISBN 85-274-0328-5
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. DOU 05.10.1988.
GOMES, Luiz Flávio. STF – ativismo sem precedentes? Fonte: O Estado de São Paulo, 2009, espaço aberto, p.A2. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/339868/noticia.htm?sequence=1>. Acesso em: 28/10/2014.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, disponível em www.stj.jus.br, acesso em 05/11/2014.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, disponível em www.stf.jus.br, acesso em 05/11/2014.
[1]BOBBIO, Norberto.O positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito.compiladas por Nello Morra; tradução e notas Marcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. – São Paulo: Ícone, 1995. ISBN 85-274-0328-5.
[2] BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. A nova interpretaçãoconstitucional: ponderação, argumentação e papel dos princípios. In: LEITE, GeorgeSalomão (coord.). Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normasprincipiológicas da Constituição. São Paulo: Método, 2008.
[3]BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
[4]BARROSO, Luís Roberto.Op. Cit., pp. 325-327
[5] GOMES, Luiz Flávio. STF – ativismo sem precedentes? Fonte: O Estado de São Paulo, 2009, espaço aberto, p.A2. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/339868/noticia.htm?sequence=1>. Acesso em: 28/10/2014.
[6] GOMES, Luiz Flávio. Op. cit.
Procurador Federal, lotado na Procuradoria Federal no Estado de Minas Gerais. Ex-Procurador-Chefe da Procuradoria Federal no Estado de Rondônia. Ex-Procurador-Chefe da Procuradoria Federal junto ao Instituto Federal de Rondônia - IFRO.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Gustavo Rosa da. Pro iure quamvis contra legem e os riscos da supervalorizacao do ativismo judicial no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41957/pro-iure-quamvis-contra-legem-e-os-riscos-da-supervalorizacao-do-ativismo-judicial-no-brasil. Acesso em: 22 nov 2024.
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