Resumo: Breve análise acerca do princípio da autonomia da vontade no âmbito do direito de família.
Palavras chaves: Direito Civil. Direito de família. Direito Constitucional. Princípio daAutonomia da vontade.
O princípio da autonomia da vontade no direito de família.
As bases da noção de indivíduo remontam aos séculos XVII e XVIII, por meio de Kant e dos teóricos da Revolução Francesa, que, para fundamentar o direito às liberdades de contrato de propriedade, retomam da filosofia antiga a noção de autonomia, na qualidade de autodeterminação.
Dentre as diversas teorias que explicam a autonomia da vontade, destaca-se o pensamento de Kant, segundo o qual esta seria “a faculdade de dar a si mesmo sua própria lei”.
Das teorias que contemplam a “autonomia da vontade” surgiu a noção de individualidade do direito contemporâneo.
A valorização das características de cada ser humano, que passa a ser visto de forma singular, lançada a base para o surgimento de uma nova ordem jurídica.
Assim, o indivíduo passou a ter importância para o direito, inclusive com a valorização dos direitos fundamentais, que incidem sobre os direitos individuais.
Nesse contexto, cumpre asseverar o disposto no Art. 5° da Constituição Federal, que versa sobre as garantiasindividuais, dentre as quais, o direito à liberdade, senão veja-se:
Art.5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Consubstanciado no citado direito, a autonomia privada está assentada no poder que possui o indivíduo de comporta-se da maneira que melhor lhe convier, inclusive o modo de gerir os seus interesses pessoais e patrimoniais, consoante Otavio Luiz Rodrigues Junior, no artigo “Autonomia da vontade, autonomia privada e autodeterminação”, parcialmente transcrito a seguir, traduz o sentido deste princípio constitucional:
4. Autonomia da vontade e autonomia privada
Nesse item, de modo mais específico, buscar-se-á a resposta ao problema: “como definir autonomia da vontade e autonomia privada?”
A título de preliminar epistêmica, é preciso reconhecer que não há uma autonomia da vontade, mas, verdadeiramente, diversas autonomias, conforme a visão de cada época sobre referido conceito. Dir-se-ia que o Oitocentos e o Novecentos construíram uma concepção de autonomia, o que veio a ser subvertido totalmente no século XX, como bem assertou Federico Castro Y Bravo (1985, p. 11).
Procedida a essa ressalva, cumpre identificar o surgimento próprio da expressão autonomia da vontade nos tempos modernos.
Há duas visões a respeito.
Tradicionalmente, invoca-se Immanuel Kant (1997, p. 85) como o precursor da expressão autonomia da vontade, a partir de sua Fundamentação da metafísica dos costumes.
O Filósofo de Köenigsberg irá assim defini-la:
“Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objectos do querer). O princípio da autonomia é portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal. Que esta regra prática seja um imperativo, quer dizer que a vontade de todo o ser racional esteja necessariamente ligada a ela como condição, é coisa que não pode demonstrar-se pela simples análise dos conceitos nela contidos, pois se trata de uma proposição sintética; teria que passar-se além do conhecimento dos objectos e entrar numa crítica do sujeito, isto é da razão prática pura; pois esta proposição sintética, que ordena apodicticamente, tem que poder reconhecer-se inteiramente a priori.”
Marcel Waline (1945, p. 169-170) também invoca a autoridade kantiana como suporte da autonomia da vontade.
Anote-se, contudo, a posição de VéroniqueRanouil (1980, p. 55), fortemente lastreada, no sentido de que a expressão ingressou no direito interno a partir de contribuições dos internacionalistas no século XIX, ao estilo de Brocher e Weiss4. Nadia de Araujo (2000, p. 50), ainda que de modo indireto, também reconhece que os autores de Direito Internacional, no Oitocentos, desenvolveram o conceito de autonomia da vontade, fazendo-o a partir das posições de Charles Dumoulin no século XVI5.
Não há, entretanto, como discordar da influência francesa na difusão desse conceito, seja pela tradução mais famosa da Metafísica dos costumes, tendo como fonte a versão gaulesa Fondements de lamétaphysiquedesmoeurs, seja pelos autores de Direito Internacional. Outrossim, é indiscutível o sentido de autonomia da vontade no século XIX, ainda persistente em boa parte da doutrina civilista, tal como anota Antonio Junqueira de Azevedo (1989, p. 14).
Estar-se-ia diante da primeira concepção da autonomia da vontade, de caráter subjetivo ou individualista.
Após os sucessos da Revolução em França e a prevalência do dístico da igualdade, fraternidade e liberdade, nada mais natural que se desse uma hipérbole na posição humana na sociedade. A homens nascidos livres e iguais, indispensável reconhecer-lhes a liberdade de criar ou produzir direito.
A autonomia da vontade elevou-se à categoria de princípio do Direito e de fonte das relações jurídicas. Essa concepção, como visto, é o resultado de um constante evoluir do pensamento jusfilosófico, em que ocupam posições destacadas a doutrina da Igreja, o Direito Natural e o individualismo decorrente das idéias liberais da Ilustração (RIPERT, 2000, p. 52).
É assim que juristas como LAURENT (apud RANOUIL, 1980, p. 35) vão oferecer justificações filosóficas e positivas à autonomia da vontade. As primeiras fundam-se na idéia de que “laliberté est l’essence dês contrats et laliberté de contracter est ellemêmeundroitnaturel de l’homme (73.) Les formules utilliséessonttrèssignificatives: ‘...l’homme ne vitpasuniquement de pain; lecorps n’est que l’instrument de l’âme; (...) ‘La liberté de contracter a toujoursétéconsidéréecomme une dépendancedudroitdesgens, elleappartientà tourhommecommetel”.
Antonio Junqueira de Azevedo (2002a,p. 13) identifica o período em que se forjou essa concepção de autonomia da vontade com uma óptica insular da dignidade humana, de caráter dualista, separando homem e natureza em níveis distintos. E, prosseguindo, vale-se de uma figura metafórica das mais elegantes: “O racionalismo iluminista, que deu origem à concepção insular, corresponde visualmente à figura do homem europeu: o terno que veste deixa-lhe à mostra somente a cabeça e as mãos (= razão + ação, ou vontade); o resto do corpo é a parte oculta do iceberg – a natureza física, cuja essência, no homem, aquela filosofia ignora”6.
Percebe-se que essa visão da autonomia da vontade, denominada “francesa” por Antonio Junqueira de Azevedo (1986, p. 77), corresponde a uma certa noção de liberdade ou de possibilidade conferida a cada pessoa para agir ou não agir, de um modo ou de outro. Seria “uma esfera de autodeterminação individual que pode, ou deve, ser maior ou menor, segundo a maneira de ver dos vários autores”.
Absolutamente emblemática sobre essa autonomia da vontade à francesa, fortemente contaminada por influxos jusnaturalistas, é a interessante passagem do Marquês de São Vicente (apud RODRIGUES JUNIOR, 2002, p. 40-41), abaixo transcrita:
“O direito ou liberdade de contratar é de tal modo evidente que ninguém jamais dirigiu-se a impugná-lo; seria para isso necessário pretender que o homem não pode dispor de sua inteligência, vontade, faculdade ou propriedade.
Não basta porém reconhecer este direito como inconcusso, é demais necessário saber respeitá-lo em toda a sua latitude e suas lógicas conseqüências, senão o princípio, posto que consagrado, será mais ou menos inutilizado com grave ofensa dos direitos do homem; entraremos pois em resumida análise do mesmo.
O contrato não é uma invenção ou criação da lei, sim uma expressão da natureza e razão humana, é uma convenção ou mútuo acordo, pela qual duas ou mais pessoas se obrigam para com uma outra, ou mais de uma, a prestar, fazer ou não fazer alguma coisa. É um ato natural e voluntário constituído pela inteligência e arbítrio do homem, é o exercício da faculdade que ele tem de dispor dos diversos meios que possui de desenvolver o seu ser e preencher os fins de sua natureza, de sua existência intelectual, moral e física.
O contrato não é mais do que um expediente, uma forma que o homem emprega para dispor do que é seu, dos seus direitos privados, segundo sua vontade e condições do seu gosto, segundo suas necessidades e interesses; é o meio de estipular suas relações recíprocas; é em suma a constituição espontânea, livremente modificada, que cria ou transporta seus direitos ou obrigações particulares, de que pode dispor como lhe aprouver.
Inibir ou empecer direta ou indiretamente esta faculdade, o livre direito de contratar, é não só menosprezar essa liberdade, mas atacar simultaneamente o direito que o homem tem de dispor de seus meios e recursos, como de sua propriedade. Uma das primeiras garantias, sem a qual não há plenitude de propriedade, é a da livre disposição dela; ora, proibir ou restringir a liberdade de contratar é evidentemente proibir ou restringir o livre uso e disposição da propriedade”.
Embora seja cediço que a autonomia privada possa encontrar limites traçados por leis, não pode o Estado oprimir o individualismo, ainda que deva adequá-lo aos interesses sociais.
O entendimento acima torna-se muito evidente quando os interesses individuais estão inseridos no âmbito do direito de família.
Esta é a ilação da lição do professor João Baptista Villela:
Ao Estado, assim como à Igreja, compete em grau a um só tempo eminente e inabdicável reconhecer a família. Reconhecer a família, contudo, não é apenas abrir-lhe espaço nas constituições e nos códigos, para, depois, sujeitá-la a regras de organização e funcionamento. É, antes, assegurar sua faculdade de autonomia e, portanto, de auto-regramento. O casamento e a família só serão o espaço do sonho, da liberdade e do amor à condição de que os construam os partícipes mesmos da relação de afeto.
Mas falar de sonho, de liberdade e de afeto soa quase estranho a quem tenha sob os olhos as leis, a literatura e a jurisprudência de direito de família. Já notaram os senhores o quão pouco se fala de amor em sede de direito de família, como se este não fosse seu ingrediente fundamental? O amor está para o direito de família assim como o acordo de vontades está para o direito dos contratos. Curiosamente, contudo, enquanto o acordo de vontades constitui a figura central da teoria dos contratos, em torno da qual tudo pivota e tudo se esclarece, parece haver, em direito de família, no mínimo, um bem disfarçado pudor de explicitar a matéria de que ele é feito e sem a qual sua razão de ser não se sustenta e se esboroa. Certo, o discurso do direito de família não deve fazer concessões à pieguice, mas não tem por que ser árido, asséptico, frio e insensível. Quando fazemos direito de família, o fazemos para quem está buscando a realização de seus mais inefáveis anelos de felicidade ou, ao contrário, para quem se vê, no comum das vezes, submergido nos obscuros poços do desespero.
Casamento, quando não o assola o vírus do tédio e da indiferença, é sempre algo que oscila entre o êxtase e a tragédia. Em qualquer das três hipóteses, lidamos com valores graves e complexos da alma humana. Do êxtase não cuida o direito, propriamente, mas deve concorrer para que os parceiros de uma união o possam encontrar. E, se não os pode vacinar contra os riscos da tragédia que nos espreitam dissimulados em cada esquina da vida, pode muito bem oferecer-lhes os caminhos de uma reconstituição. Que dizer, enfim, do tédio e da indiferença? Mal insidioso e sorrateiro, câncer invisível e indolor, refoge â prevenção do direito e se instala sem que os mesmos parceiros tomem consciência. Poucos o terão descrito com o rigor poético e o desnudamento incomplacente de um Mia Couto:
"Entre marido e mulher o tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos. Sobrara o pasto dos cansaços, desnamoros, ramerrames.
O amor, afinal, que utilidade tem?"13
Que utilidade tenha cabe aos amantes mesmos descobrir ou redescobrir. Certo é, porém, que o colapso do encantamento há de poder encontrar remédio também no direito e não apenas quando ateste a falência definitiva de um empreendimento amoroso. Não se pretende que o direito de família substitua-se à psicoterapia, mas seria redução imperdoável de suas virtualidades concebê-lo ou praticá-lo com exclusão do aconselhamento preventivo e reparatório, assim como da mediação extrajudicial. Merece, no mínimo, observação e estudos um movimento que nos Estados Unidos levaria â criação da ativíssima Academyof Family Mediators e que, na Inglaterra, associou juristas na experiência conhecida por Solicitors in Mediation, a qual, por sua vez, desembocaria, em 1988, na Family MediatorsAssociation. A avaliação crítica da experiência de mediação tem mostrado seus limites. E é natural que ela os tenha.
Contudo, parece definitivo o seu espaço enquanto ela se revelar fiel à divisa que lhe propôs IrèneThéry:
"A Justiça se ocupa do passado e do presente, a mediação se ocupa do futuro".14
Perder, assim e em resumo, esta perspectiva - a de que o direito de família está preordenado ao bem-estar pessoal - é fazer do homem instrumento, e não fim, do ordenamento jurídico.
Mas o discurso envergonhado e distante não é tudo e pode bem se explicar, em parte, pelas erráticas orientações do conjunto normativo de que se entretece o direito positivo na matéria.
Uma análise ainda que perfunctória de nossa produção em direito de família irá mostrar, com efeito, que o parasitam traços de marcada hostilidade à nossa capacidade de nos exprimirmos a nós mesmos, no espaço das relações amorosas.
Não creio laborar em equívoco ou exagero, se disser que o direito de família brasileiro é procriacionista, autoritário, determinista, substitutivista, invasivo e extremamente guloso.
Abstenho-me de descrever em pormenores as configurações que revelem cada um desses desvios aberrantes de uma ordem familial saudável.
Evoco, porém, a título de exemplo, alguns nichos em que, decididamente, a dogmática, a interpretação ou a aplicação se põem ao desserviço das pessoas nas situações de família, seja esta de direito ou de fato.
Prossegue o professor, asseverando sobre os equívocos decorrentes da exacerbada regulamentação do direito de família:
Não posso, aqui e agora, senão confirmar o que, de outra feita, assinalei quanto ao patológico pendor nacional para a regulamentação: "Em sua crônica obstinação de navegar na contracorrente da história, o Brasil insiste em impor normas para tudo, quando a consciência dos novos tempos e a superação de paradigmas positivistas apontam para a desregulamentação. A bulimia normativa constitui um dos traços mais persistentes e autoritários de nossa cultura: legisla-se sempre, e, cada vez mais, sobre o imaginável e o inimaginável, como se a regra do Estado apusesse aos assuntos uma espécie de selo de qualidade".18
Disse "patológico pendor nacional"? Patológico, sim, sempre. Nacional, nem tanto. Ou, pelo menos, não só nacional. Pode-nos servir de consolo ou de alívio ao sentimento de auto-estima saber que do mesmo mal se queixa também fora do Brasil. E não apenas juristas. Muito explicável, de resto, pois não somos os únicos a experimentar as perturbações provocadas pelo fenômeno. Dirse-á até que os juristas temos como melhor nos proteger da incontinência legislativa. Em entrevista sobre temas variados, o cientista Reinhard Kurth, que dirige o Instituto Robert Koch, em Berlim - uma organização no ramo das doenças infecciosas -, perguntado o que faria em primeiro lugar, se lhe fosse dado governar por um dia a Alemanha, respondeu:
"Uma lei contra a fúria regulamentatória".19
Os custos da contínua e crescente usurpação de nossa liberdade de auto-regramento por parte do Estado são múltiplos e elevados. Ela começa por nos desqualificar como sujeitos. Depois "alimenta a infantilização das pessoas individualmente consideradas e a castração da sociedade civil. É como se umas e outra fossem incapazes de adotar, por si mesmas, regras de convivência e de composição dos seus interesses. E, portanto, devessem estar sob a permanente tutela de uma super organização, o Estado, supostamente tão sábio, arguto, sensível e prudente, que lhes devesse ditar até mesmo como viver uma experiência amorosa. Na verdade, o casamento ou qualquer outra forma de associação íntima entre pessoas só interessa ao Estado sob dois estritos aspectos: a proteção dos filhos menores e a adequada liquidação de um eventual patrimônio promíscuo que se tenha formado. E, quanto a isso, seja dito de passagem em favor de nossos tribunais, as questões suscitadas pelo concubinato vinham encontrando soluções armadas com habilidade, imaginação e arte. Tudo o mais, isto é, fora as questões de menores e divisão de patrimônio, depende antes das pessoas em cada caso envolvidas. Mais precisamente de seus sonhos, de seus gostos, de suas inclinações e até mesmo de seus caprichos e idiossincrasias.
Para resumir: o par que opta por não se casar (podendo fazê-lo gratuitamente quantas vezes queira) e escolhe outra forma de união, o faz porque, definitivamente, não se quer pôr sob o regime que a lei estabelece. Portanto, haveria que deixá-lo em paz, vivendo seu próprio e personalíssimo projeto de vida amorosa. Mas nas estruturas autoritárias de poder isso é impensável: há que regulamentar, regulamentar, regulamentar. Na hipótese concreta, o delírio normativista do Estado traduz-se, por assim dizer, em casar exofficioquem não quis casar motu proprio. Ou seja, submeter compulsoriamente ao regime legal do casamento, tanto quanto possível, aqueles que deliberadamente fizeram a opção pelo não casamento. Tanto a Lei n° 8.971, de 29 de dezembro de 1994", quanto a mais recente "Lei n° 9.278, de 10 de maio de 1996 aplicaram o quanto puderam de casamento a todas as formas de convivência".20
Por fim, assinala o doutrinador os efeitos da exaustiva regulamentação, qual seja, a interferência do legislador na capacidade e autonomia negocial dos indivíduos, e, assim, da dissociação do direito de família com as relações que por ele devem ser tuteladas.
A Justiça de Família, tal qual a própria família, só pode ganhar em concentrar-se no que constitui o seu fazer específico. Se Maclver pôde dizer, com luminoso acerto, que a família, abdicando sucessivamente de outras funções, acabou por encontrar a sua mesma, não há erro em antecipar que a aplicação das varas de família às questões de seu específico interesse institucional importará em tratamento mais adequado dos problemas submetidos à sua jurisdição.
Competindo ao juiz sempre ouvir as partes com atenção e equanimidade, situações há, contudo, em que este dever assume um caráter de todo fundamental para a sorte dos feitos e a crença no poder da Justiça. Elas estão implicadas sempre que o processo envolve a privação da liberdade ou a restrição ao convívio - perdas que cortam na alma, ainda quando deixam intacto o patrimônio. A crise do processo penal e a crise do processo de família são, sobretudo, uma crise de escuta. O acusado quer ser ouvido. E não só sobre as circunstâncias próximas da conduta incriminada, sendo certo que seu eventual desvio de comportamento não o faz perder o direito à interlocução. As crianças e os adolescentes, cujos conflitos os tenham levado à presença do juiz, têm o sagrado direito de encontrar na pessoa do magistrado o pai ou a mãe que não puderam ter ou que, se tiveram, não souberam ou não puderam bem exercer as suas funções. Ora, ser pai ou ser mãe é, em larga medida, saber ouvir.
Finalmente, quanto aos cônjuges desavindos: se há algum sentido em que compareçam perante a autoridade judiciária, só pode ser o de que nela identifiquem os ouvidos atentos da empatia e a voz serena do bom conselho.
Como se chegar, porém, a esse ideal de escuta e de expressão, se o magistrado não dispõe de tempo, porque os autos se empilham sobre sua mesa e as partes se acotovelam na ante-sala das audiências?
Não serve, pois, à Justiça de Família uma política expansionista.
De resto, também nisto vale o símile da gula: o guloso é basicamente alguém que perdeu o sentido do gosto e que, portanto, sacrifica o bom em favor do muito, vale dizer, sobrepõe a quantidade à qual idade.
O que nos faz a nós - e especialmente o que nos faz nas relações de família - é a nossa capacidade de dar e receber amor. Não a matéria de que nossos corpos são feitos ou o sangue que por ela circula. Foi precisamente quando punha a nu os equívocos na família assentada na consangüinidade que David Cooper deixou escapar uma afirmação forte, dura mesmo - direi - mas, quem sabe, tornada necessária pelos equívocos que culminariam na cultura do DNA. "O sangue" - disse Cooper - "é mais espesso do que a água apenas porque se constitui na corrente energizadora de uma certa estupidez social".26
Chamei de guloso o direito de família. De que outra forma poderia qualificar a tendência de reconduzir às varas de família questões que de família nada têm? A liquidação de um patrimônio comum entre conviventes, em que não estejam envolvidos incapazes, nada tem de específico que imponha o especial apetrechamento do juízo de família. Trata-se de pura questão patrimonial para cuja solução é mesmo de se supor que estejam mais bem aparelhadas as varas cíveis comuns, às quais deve ser levada. Isto, claro, quando não a possam resolver extrajudicialmente os próprios sócios ou condôminos. Condôminos, sim, Senhoras e Senhores:
O grande movimento que Sir Henry Maine descreveu no seu clássico AncientLaw como a passagem de uma ordem fundada no regulamento para uma ordem fundada no contrato, e que caracteriza a transformação das sociedades que evoluem27, encontraria, um século depois, em Michel Vasseur, curiosa e feliz replicação. Para Vasseur, assistimos hoje ao deslocamento progressivo de uma sociedade fundada no unilateral imposto para uma sociedade que se inspira no bilateral negociado.28
Quem fala bilateral negociado, fala em espaço para a expressão das individualidades e, portanto, em recuo dos atos de autoridade. E em "Direito de Família" quero ver o direito que se impõe à família e não ò direito que a família se autoconfere, e, se na família está o dinamismo criador de nossos sonhos, diria que a aplicação das geniais formulações de Maine e Vasseur está em diminuir o coeficiente de direito - leia-se: de autoridade, invasão e arbítrio - e elevar o de família - leia-se: de liberdade e de criação. Se assim for, penso que continuará sendo uma santa receita que ao homem (assim como à mulher) não é bom viver só.
Das lições acima, verifica-se que a vasta normatização do direito de família, por vezes, acaba retirando do sujeito o seu direito de autodeterminar-se, o que implica ofensa ao princípio da autonomia da vontade esculpido na Constituição Federal.
Bibliografia.
RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz. Autonomia da vontade, autonomia privada e autodeterminação. Data artigo: 2004. Data acesso: 20/05/2014. Disponível em http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/982/R163-08.pdf?sequence=4.
VILLELA, João Baptista. Repensando o direito de família. Data do acesso: 22/01/14. Disponível em http://jfgontijo.com.br/2008/artigos_pdf/Joao_Baptista_Villela/RepensandoDireito.pdf.
Procuradora Federal - membro da Advocacia-Geral da União, em exercício na Procuradoria Federal Especializada Junto à Universidade Federal do Sul da Bahia. Graduação em Direito pela Universidade Católica de Salvador (2005), especialização em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia (2008) e especialização em Direito Público pela Universidade de Brasília (2013).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Roberta Rabelo Maia Costa. A autonomia da vontade no direito de família Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41971/a-autonomia-da-vontade-no-direito-de-familia. Acesso em: 22 nov 2024.
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