RESUMO: O artigo destina-se a descrever o procedimento de demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas.
Palavras-chave: Terras tradicionalmente ocupadas. Demarcação. Procedimento.
A demarcação de terras indígenas tradicionalmente ocupadas é de competência da União, nos termos do final do caput do art. 231 da Constituição Federal, embora muitos acreditem ser atribuição da Fundação Nacional do Índio - FUNAI:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
A confusão comum é causada pela desinformação da população em geral que, além de desconhecer a organização administrativa do Executivo Federal, credita todos os assuntos indígenas à entidade indigenista oficial, aliada ao fato de que durante décadas a demarcação, de fato foi conduzida inicialmente pelo Serviço de Proteção ao Índio e, posteriormente, à FUNAI, como aponta Villares:
A tarefa de demarcar as terras indígenas foi historicamente uma atribuição do órgão de proteção aos índios, seja ele o Serviço de Proteção ao Índio – SPI, ou a Fundação Nacional do Índio – FUNAI. Na ditadura militar (1964-1985) essa atribuição foi, algumas vezes, desviada para instâncias que dificultavam e faziam um juízo político das demarcações. Atualmente, as terras indígenas tradicionalmente ocupadas são demarcadas por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio – Funai –, mas o ato administrativo de demarcação é atribuição exclusiva do Presidente da República[1].
Portanto, para a compreensão do processo de demarcação de terras indígenas, devemos compreender a competência de cada órgão e entidade nesse iter procedimental.
No contexto da descentralização administrativa, criam-se entidades dotadas de personalidade jurídica própria que possam tocar os projetos de Estado, sob a supervisão ministerial da pasta a que se vincula. A essas entidades – autarquias e fundações de direito público – é atribuída maior liberdade com o objetivo de conferir maior eficácia à consecução dos fins colimados pelo Estado.
No caso de demarcação de terras indígenas, a pasta responsável por tocá-la é o Ministério da Justiça, nos termos da Lei nº 10.683/2003:
Art. 27. Os assuntos que constituem áreas de competência de cada Ministério são os seguintes:
IV - Ministério da Justiça:
a) defesa da ordem jurídica, dos direitos políticos e das garantias constitucionais;
(...)
c) direitos dos índios;
(...)
h) ouvidoria-geral dos índios e do consumidor;
(...)
l) defesa dos bens e dos próprios da União e das entidades integrantes da Administração Pública Federal indireta;
Ao Ministério da Justiça, vincula-se a FUNAI, nos termos do Decreto nº 6.061/2007 que aprova a Estrutura do Ministério da Justiça:
Art. 2º O Ministério da Justiça tem a seguinte estrutura organizacional:
IV - entidades vinculadas:
(...)
b) fundação pública: Fundação Nacional do Índio.
A FUNAI, por sua vez, teve sua instituição autorizada pela Lei nº 5.371/1967. Dentre as competências instituídas em seu Estatuto aprovado pelo Decreto nº 7.778/2012,inserem-se:
Art. 2º A FUNAI tem por finalidade:
I – proteger e promover os direitos dos povos indígenas, em nome da União;
II - formular, coordenar, articular, monitorar e garantir o cumprimento da política indigenista do Estado brasileiro, baseada nos seguintes princípios:
a) reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas;
b) respeito ao cidadão indígena, suas comunidades e organizações;
c) garantia ao direito originário, à inalienabilidade e à indisponibilidade das terras que tradicionalmente ocupam e ao usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes;
d) garantia aos povos indígenas isolados do exercício de sua liberdade e de suas atividades tradicionais sem a obrigatoriedade de contatá-los;
e) garantia da proteção e conservação do meio ambiente nas terras indígenas;
f) garantia de promoção de direitos sociais, econômicos e culturais aos povos indígenas; e
g) garantia de participação dos povos indígenas e suas organizações em instâncias do Estado que definam políticas públicas que lhes digam respeito;
(...)
Art. 4º A FUNAI promoverá estudos de identificação e delimitação, demarcação, regularização fundiária e registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas.
Parágrafo único. As atividades de medição e demarcação poderão ser realizadas por entidades públicas ou privadas, mediante convênios ou contratos desde que o órgão indigenista não tenha condições de realizá-las diretamente.
O procedimento de demarcação de terras indígenas é atualmente regulamentado pela Lei nº 6.001/73 (Estatuto do Índio) e pelo Decreto nº 1.775/96. Trata-se de procedimento de natureza técnica, não política, fundamentado em fartos estudos de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, fundiária e ambiental.
Especificamente sobre esse procedimento, o Estatuto do Índio dispõe:
Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo.
§ 1º A demarcação promovida nos termos deste artigo, homologada pelo Presidente da República, será registrada em livro próprio do Serviço do Patrimônio da União (SPU) e do registro imobiliário da comarca da situação das terras.
Art. 25. O reconhecimento do direito dos índios e grupos tribais à posse permanente das terras por eles habitadas, nos termos do artigo 198, da Constituição Federal, independerá de sua demarcação, e será assegurado pelo órgão federal de assistência aos silvícolas, atendendo à situação atual e ao consenso histórico sobre a antigüidade da ocupação, sem prejuízo das medidas cabíveis que, na omissão ou erro do referido órgão, tomar qualquer dos Poderes da República.
Regulamentando o disposto no Estatuto do Índio, o procedimento da demarcação é descrito passo a passo no Decreto nº 1.775/96:
Art. 1º As terras indígenas, de que tratam o art. 17, I, da Lei n° 6001, de 19 de dezembro de 1973, e o art. 231 da Constituição, serão administrativamente demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio, de acordo com o disposto neste Decreto.
Art. 2° A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação.
§ 1° O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional, coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação.
§ 2º O levantamento fundiário de que trata o parágrafo anterior, será realizado, quando necessário, conjuntamente com o órgão federal ou estadual específico, cujos técnicos serão designados no prazo de vinte dias contados da data do recebimento da solicitação do órgão federal de assistência ao índio.
§ 3° O grupo indígena envolvido, representado segundo suas formas próprias, participará do procedimento em todas as suas fases.
§ 4° O grupo técnico solicitará, quando for o caso, a colaboração de membros da comunidade científica ou de outros órgãos públicos para embasar os estudos de que trata este artigo.
§ 5º No prazo de trinta dias contados da data da publicação do ato que constituir o grupo técnico, os órgãos públicos devem, no âmbito de suas competências, e às entidades civis é facultado, prestar-lhe informações sobre a área objeto da identificação.
§ 6° Concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada.
§ 7° Aprovado o relatório pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, este fará publicar, no prazo de quinze dias contados da data que o receber, resumo do mesmo no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área sob demarcação, acompanhado de memorial descritivo e mapa da área, devendo a publicação ser afixada na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel.
§ 8° Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e municípios em que se localize a área sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior.
§ 9° Nos sessenta dias subseqüentes ao encerramento do prazo de que trata o parágrafo anterior, o órgão federal de assistência ao índio encaminhará o respectivo procedimento ao Ministro de Estado da Justiça, juntamente com pareceres relativos às razões e provas apresentadas.
§ 10. Em até trinta dias após o recebimento do procedimento, o Ministro de Estado da Justiça decidirá:
I - declarando, mediante portaria, os limites da terra indígena e
II - prescrevendo todas as diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser cumpridas no prazo de noventa dias;
III - desaprovando a identificação e retornando os autos ao órgão federal de assistência ao índio, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto no § 1º do art. 231 da Constituição e demais disposições pertinentes.
Art. 3° Os trabalhos de identificação e delimitação de terras indígenas realizados anteriormente poderão ser considerados pelo órgão federal de assistência ao índio para efeito de demarcação, desde que compatíveis com os princípios estabelecidos neste Decreto.
Art. 4° Verificada a presença de ocupantes não índios na área sob demarcação, o órgão fundiário federal dará prioridade ao respectivo reassentamento, segundo o levantamento efetuado pelo grupo técnico, observada a legislação pertinente.
Art. 5° A demarcação das terras indígenas, obedecido o procedimento administrativo deste Decreto, será homologada mediante decreto.
Art. 6° Em até trinta dias após a publicação do decreto de homologação, o órgão federal de assistência ao índio promoverá o respectivo registro em cartório imobiliário da comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda.
Art. 7° O órgão federal de assistência ao índio poderá, no exercício do poder de polícia previsto no inciso VII do art. 1° da Lei n° 5.371, de 5 de dezembro de 1967, disciplinar o ingresso e trânsito de terceiros em áreas em que se constate a presença de índios isolados, bem como tomar as providências necessárias à proteção aos índios.
Art. 8° O Ministro de Estado da Justiça expedirá as instruções necessárias à execução do disposto neste Decreto.
De pronto, em uma simples leitura da norma, vislumbramos a existência de um ato complexo para o qual concorrem a vontade da FUNAI (realização e aprovação dos estudos técnicos, posterior demarcação física e registro em cartório) e da União (declaração e homologação), representados pelo Ministro de Estado da Justiça (portaria declaratória) e Presidente da República (decreto homologatório).
No mais, a constituição e legislação infraconstitucional deixa claro que se trata de direito originário, ou seja a demarcação é um ato meramente declaratório. Houve o acolhimento da chamada teoria do indigenato, na qual a relação estabelecida entre a terra e o indígena é congênita e, por conseguinte, originária. De fato, a Carta Magna, reconhece os direitos originários dos índios sobre as terras que ocupam independente de título ou reconhecimento formal sobre essas terras. Nesse contexto, o processo de demarcação das terras indígenas em si, não possui natureza constitutiva, mas declaratória, com o desiderato de delimitar espacialmente os referidos territórios, possibilitando o exercício das prerrogativas constitucionais conferidas aos índios. Na lição de Kayser:
O “reconhecimento dos direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, pela Constituição vigente do Brasil, representa a reafirmação constitucional do chamado indigenato, de maneira modificada (...). O indigenato inclui o reconhecimento da propriedade dos indígenas à terra que se encontra em sua posse. De acordo com essa noção jurídica, os direitos dos índios à terra que eles tradicionalmente habitam são fundamentados pelo fato de que os índios são os “senhores originários e naturais da terra”. Seus direitos à terra são direitos “inatos”, enquanto que os direitos de outros são simplesmente direitos “adquiridos”. Como os direitos congênitos dos índios já existiam quando o Estado ainda não existia, o Estado não pode “conceder” aos índiosesses direitos, mas apenas “reconhecer” sua existência. A Constituição adotou o indigenato de forma apenas modificada, já que ela não reconhece o direito de propriedade dos indígenas, mas apenas seu direito de posse permanente à terra, vinculando, ao mesmo tempo, a propriedade à União (...) O indigenato foi confirmado a partir de 1609 na legislação para o Brasil[2].
A confirmar tal entendimento, o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou:
3.3. A demarcação administrativa, homologada pelo Presidente da República, é “ato estatal que se reveste da presunção juris tantum de legitimidade e de veracidade” (RE 183.188, da relatoria do ministro Celso de Mello), além de se revestir de natureza declaratória e força auto-executória. (pet 3388/RR)
(...)
12. DIREITOS ‘ORIGINÁRIOS’. Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente ‘reconhecidos’, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta magna havê-los chamado de ‘originários’, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como ‘nulos e extintos’ (§ 6º do art. 231 da CF). (EDCL na PET 3388/RR).
Ainda, registre-se que o tratamento conferido pela Carta Constitucional aos índios deu-se no inequívoco desiderato de favorecê-los. Reafirma-se o constitucionalismo fraternal, voltado à efetivação da igualdade civil-moral dos indígenas:
9. A DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relação interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica. (PET 3388).
Quanto à constitucionalidade do Decreto nº 1.775/96, comumente atacado pelos interessados que protocolam manifestações administrativas contrárias à demarcação, não nos cabe enveredar por essa seara. É que a questão já está devidamente pacificada:
AGRAVO REGIMENTAL. MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO. DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. ATO “EM VIAS DE SER PRATICADO” PELA PRESIDENTE DA REPÚBLICA. PORTARIA DO MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA. DECRETO 1.775/1996. CONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I - O exame de todas as alegações expostas na exordial da impetração, em face da complexidade da discussão que a permeia, não se revela possível sem apreciação adequada do contexto fático-probatório que envolve a controvérsia, inexequível, todavia, nos estreitos limites do mandamus . Precedentes. II - O processo administrativo visando à demarcação de terras indígenas é regulamentado por legislação própria - Lei 6.001/1973 e Decreto 1.775/1996 -, cujas regras já foram declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. Precedentes. III - Não há qualquer ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa, pois, conforme se verifica nos autos, a recorrente teve oportunidade de se manifestar no processo administrativo e apresentar suas razões, que foram devidamente refutadas pela FUNAI. IV - O Plenário deste Tribunal, quanto ao alcance da decisão proferida na Pet 3.388/RR e a aplicação das condicionantes ali fixadas, firmou o entendimento no sentido de que “A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar”. V - Agravo regimental a que se nega provimento. (MS 31100 AgR, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 13/08/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-169 DIVULG 01-09-2014 PUBLIC 02-09-2014)
Nesse sentido, em atenção ao escopo deste artigo, passemos à análise do procedimento de demarcação da terra indígena o qual, por expressa dicção do caput do art. 2º do Decreto, fundamenta-se em trabalho desenvolvido por antropólogo de qualificação reconhecida que elaborará o estudo antropológico de identificação.
O processo de identificação pode iniciar-se de duas formas. Através de uma reivindicação pela demarcação de uma terra para um determinado povo indígena, ou de ofício, pela FUNAI, no caso de índios isolados. Em ambos os casos a FUNAI faz uma análise mínima de plausibilidade e viabilidade do pleito de reconhecimento. Havendo elementos mínimos para tanto, constitui-se, através de Portaria, um grupo técnico multidisciplinar pelo Presidente da FUNAI, coordenado por antropólogo de qualificação reconhecida e com a finalidade de realizar estudos de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessário à delimitação, conforme exemplo abaixo:
PORTARIA Nº 194, 26 DE MARÇO DE 2003[3]
O PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI, no usodas atribuições, conferidas pelo art 21 do Estatuto aprovado pelo Decreto nº 564, de 8 dejunho de 1992, de conformidade com o art. 19 da Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de1973, e com o Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996,RESOLV E:
Art. 1º Constituir Grupo Técnico com o objetivo de realizar os trabalhos deIdentificação e Delimitação da Terra Indígena Sombrerito, localizada no município deSete Quedas, Estado de Mato Grosso do Sul, composto por:
1. Roberto Salviani - Antropólogo Coordenador – Consultor/UNESCO
2. Ruth Henrique da Silva - Antropóloga Colaboradora -
DEID/FUNAI/UNESCO
3. José Carlos de Azevedo Júnior - Biólogo/Ambientalista – Consultor/UNESCO
4. Doralício Dornelas da Costa – Técnico em Agrimensura – AER Gurupi - TO
5. Dalva Furtado Saunders - Técnica Agrícola - DEF/FUNAI/UNESCO
6. Francisco Peixoto da Silva - Motorista - AER Amambai - MS
7. Fátima Sonia Chelis - Engenheira Agrimensora - IDATERRA/MS
8. Dorival Canavarros dos Santos - Topógrafo - INCRA/MS
Art. 2º Determinar o deslocamento do Grupo Técnico ao município de SeteQuedas, concedendo o prazo de quarenta e quatro dias para a realização dos trabalhos doAntropólogo Coordenador, nove dias para a Antropóloga Colaboradora e trinta dias paraos demais componentes do grupo técnico, a contar da data dos respectivosdeslocamentos.
Art. 3º Estabelecer o prazo de sessenta dias para a entrega do RelatórioFundiário; noventa dias para a entrega do relatório ambiental e cento e cinqüenta diaspara a entrega do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação, a contar doretorno de campo dos respectivos técnicos responsáveis.
Art. 4º As despesas com o Grupo Técnico e seus deslocamentos correrão à contado Programa Território e Cultura Indígenas, Ação Identificação e Revisão de TerrasIndígenas.
Nesta etapa de estudos, permite-se a participação do grupo indígena interessado, bem como dos entes federados (nos termos da Portaria MJ nº 2498/2011), sem prejuízo da participação dos demais interessados, já que o §8º do art. 2º do decreto garante a participação “desde o início do procedimento demarcatório”. Evidentemente, essa participação não pode implicar em óbices ao trabalho do grupo.
Ao final dessa fase, elabora-se o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação – RCIDnos termos da Portaria nº 14/96 do Ministério da Justiça, o qual impõe a elaboração de sete tópicos:
I - PRIMEIRA PARTE
Dados gerais:
a) informações gerais sobre o(s) grupos(s) indígena(s) envolvido(s), tais como filiação cultural e linguística,eventuais migrações, censo demográfico, distribuição espacial da população e identificação dos critériosdeterminantes desta distribuição;
b) pesquisa sobre o histórico de ocupação de terra indígena de acordo com a memória do grupo étnicoenvolvido;
c) identificação das práticas de secessão eventualmente praticadas pelo grupo e dos respectivos critérioscausais, temporais e espaciais;
II - SEGUNDA PARTE
Habitação permanente:
a) descrição da distribuição da(s) aldeia(s), com respectiva população e localização;
b) explicitação dos critérios do grupo para localização, construção e permanência da(s) aldeia(s), a área porela(s) ocupada(s) e o tempo em que se encontra(m) as atual(ais) localização(ções);
III - TERCEIRA PARTE
Atividades Produtivas:
a) descrição das atividades produtivas desenvolvidas pelo grupo com a identificação, localização e dimensãodas áreas utilizadas para esse fim;
b) descrição das características da economia desenvolvida pelo(s) grupo(s), das alterações eventualmenteocorridas na economia tradicional a partir do contato com a sociedade envolvente e do modo como seprocessaram tais alterações;
c) descrição das relações sócio-econômico-culturais com outros grupos indígenas e com a sociedadeenvolvente;
IV - QUARTA PARTE
Meio Ambiente:
a) identificação e descrição das áreas imprescindíveis à preservação dos recursos necessários ao bem estareconômico e cultural do grupo indígena;
b) explicitação das razões pelas quais tais áreas são imprescindíveis e necessárias;
V - QUINTA PARTE
Reprodução Física e Cultural:
a) dados sobre as taxas de natalidade e mortalidade do grupo nos últimos anos, com indicação das causas, nahipótese de identificação de fatores de desequilíbrio de tais taxas, e projeção relativa ao crescimentopopulacional do grupo;
b) descrição dos aspectos cosmológicos do grupo, das áreas de usos rituais, cemitérios, lugares sagrados,sítios arqueológicos, etc., explicitando a relação de tais áreas com a situação atual e como se objetiva essarelação no caso concreto;
c) identificação e descrição das áreas necessárias à reprodução física e cultural do grupo indígena, explicandoas razões pelas quais são elas necessárias ao referido fim;
VI - SEXTA PARTE
Levantamento Fundiário:
a) identificação e censo de eventuais ocupantes não índios;
b) descrição da(s) área(s) por ele(s) ocupada(s), com a respectiva extensão, a(s) data(s) dessa(s)ocupação(ções) e a descrição da(s) benfeitoria(s) realizada(s);
c) informações sobre a natureza dessa ocupação, com a identificação dos títulos de posse e/ou domínioeventualmente existentes, descrevendo sua qualificação e origem;
d) informações, na hipótese de algum ocupante dispor de documento oriundo de órgão público, sobre a formae fundamentos relativos à expedição do documento que deverão ser obtidas junto ao órgão expedidor.
VII - SÉTIMA PARTE
Conclusão e delimitação, contendo a proposta de limites da área demarcada.
Em síntese, o relatório aborda os parâmetros definidos na Constituição Federal para a caracterização da tradicionalidade da ocupação indígena: habitação permanente,atividadeprodutiva (usufruto), meio ambiente (preservação dos recursos naturais necessários ao bem estar indígena), reprodução física e cultural, sempre orientado pelos usos, costumes e tradições da etnia em estudo.
Posteriormente, o relatório circunstanciado é submetido à avaliação e aprovação da FUNAI.Atualmente, na estrutura interna da FUNAI, esse estudo é conduzido sob supervisão da Coordenação-Geral de Identificação e Delimitação da Diretoria de Proteção Territorial, a quem compete a revisão do trabalho do grupo visando a adequação aos parâmetros da Portaria MJ nº 14/96.
O relatório, uma vez formal e materialmente adequado, segue para aprovação do Presidente da FUNAI, cujo despacho é publicado, devidamente acompanhado do resumo do Relatório Circunstanciado, memorial descritivo e mapa da área delimitada,no Diário Oficial da União, no Diário Oficial do Estado-membro na qual a terra indígena está inserida,e afixado na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel (pode haver mais de um Município afetado). Dá-se, então, o início ao contraditório propriamente dito. O despacho que aprova os estudos dá-se nos seguintes termos:
DESPACHO Nº 63, DE 4 DE JULHO DE 2006[4]
O PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI, tendo emvista o que consta no Processo FUNAI/BSB/1258/06, e considerando o Resumo doRelatório de Identificação, de autoria dos antropólogos ROBERTO SALVIANI e RUTHHENRIQUE DA SILVA que acolhe, face as razões e justificativas apresentadas, decide:
1. Aprovar as conclusões objeto do citado resumo para afinal, reconhecer osestudos de identificação da Terra Indígena SOMBRERITO de ocupação do grupo tribalNhandéva, localizada no município de Sete Quedas, Estado do Mato Grosso do Sul.
2. Determinar a publicação no Diário Oficial da União e Diário Oficial do Estadodo Mato Grosso do Sul, do Resumo do Relatório Circunstanciado, Memorial Descritivo,Mapa e Despacho, na conformidade do § 7º do art. 2º do Decreto nº 1.775/96.
3. Determinar que a publicação referida no item acima, seja afixada na sede daPrefeitura Municipal da situação do imóvel.
A partir da publicação, conta-se o prazo de 90 dias para que os interessados apresentem manifestações ou contestações ao relatório circunstanciado já aprovado. Lembre-se que a possibilidade de participação já era garantida desde o início do procedimento. Essas razões são apreciadas pelo órgão técnico da FUNAI(CGID) e jurídico (Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI, órgão da Procuradoria-Geral Federal), sendo elaborado um parecer para cada contestação ou manifestação apresentada.
Uma vez rechaçadas todas as manifestações contrárias à proposta de demarcação no âmbito da FUNAI, o processo administrativo é remetido ao Ministro da Justiça, juntamente com pareceres relativos às razões e provas apresentadas, para que o Ministro da Justiça exerça uma das seguintes faculdades: a) declarar, mediante portaria, os limites da terra indígena; b) prescrever as diligências complementares, as quais deverão ser cumpridas no prazo de noventa dias; e c) desaprovar a identificação e retornar os autos à FUNAI, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto no § 1º do art. 231 da Constituição e demais disposições pertinentes.Abaixo segue exemplo de Portaria Declaratória:
PORTARIA Nº 497, DE20 DE MARÇO DE 2009[5]
O MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA, no uso de suas atribuições legais etendo em vista o disposto no Decreto nº 1.775, de 08 de janeiro de 1996, e diante daproposta apresentada pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI, objetivando adefinição de limites da Terra Indígena UIRAPURU, constante do Processo FUNAI/BSBNº 08620.002.112/ 2006.
CONSIDERANDO que a Terra Indígena localizada nos municípios de Camposde Julio e Nova Lacerda, Estado do Mato Grosso, ficou identificada nos termos do § 1º do art. 231 da Constituição Federal e inciso I do art. 17 da Lei no 6.001, de 19 dedezembro de 1973, como sendo tradicionalmente ocupada pelo grupo indígena Paresi;CONSIDERANDO os termos do Despacho nº 023/PRES, de 21 de março de2007, do Presidente da FUNAI, publicado no Diário Oficial da União Nº 56, Seção 1, de22 seguinte, pp. 53/55, e no Diário Oficial do Estado de Mato Grosso de 21 de maio de2007, pp. 25/28.
CONSIDERANDO os termos dos pareceres da FUNAI, ora aprovados, queconcluíram pela improcedência das contestações opostas à identificação e delimitaçãoda terra indígena, resolve:
Art. 1º Declarar de posse permanente do grupo indígena Paresi a Terra IndígenaUIRAPURU com superfície aproximada de 21.680 ha (vinte e um mil e seiscentos eoitenta hectares) e perímetro também aproximado de 97 km (noventa e setequilômetros), assim delimitada: (...)
Art. 2º Declarar que a Terra Indígena de que trata esta Portaria, situada na faixade fronteira, submete-se ao disposto no art.20, § 2º, da Constituição.
Art. 3º A FUNAI promoverá a demarcação administrativa da Terra Indígena oradeclarada, para posterior homologação pelo Presidente da República, nos termos do art.19, § 1º, da Lei no 6.001/73 e do art. 5º do Decreto nº 1.775/96.
Perceba-se que ao final da Portaria Declaratória, surge um comando para a FUNAI no sentido de que promova a demarcação administrativa, em verdade, a demarcação física, momento no qual os marcos de delimitação serão colocados no perímetro indicado na portaria ministerial, sinalizando os limites físicos da área.
Nesse momento também se ultima o levantamento fundiário e inicia-se o pagamento das indenizações decorrentes das benfeitorias erigidas de boa-fé, nos termos do art. 231, § 6º da Constituição Federal. No âmbito da FUNAI, esse procedimento é conduzido pela Coordenação-Geral de Assuntos Fundiários – CGAF, cujo trabalho, nos termos da Instrução Normativa FUNAI nº 02/2012, é dirigido à Comissão Permanente de Análise de Benfeitorias, que deliberará sobreo caráter da ocupação (de boa-fé ou de má-fé), bem como quais benfeitorias serão indenizadas.
Após a demarcação física e o início do pagamento das benfeitorias, o processo é remetido ao Presidente da República para homologação. Na dicção do Decreto: “a demarcação das terras indígenas, obedecido o procedimento administrativo deste Decreto, será homologada mediante decreto”. A seguir, um exemplar desse Decreto:
DECRETO DE 8 DE SETEMBRO DE 1998[6]
Homologa a demarcação administrativa daTerra Indígena Urubu Branco, localizada nosMunicípios de Santa Terezinha, Confresa ePorto Alegre do Norte, Estado de Mato Grosso.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA , no uso da atribuição que lhe confere o art.84, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 19, § 1º, da Lei nº6.001, de 19 de dezembro de 1973, e no art. 5º do Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de1996,
DECRETA:
Art 1º Fica homologada a demarcação administrativa, promovida pela FundaçãoNacional do Índio – FUNAI, da terra indígena destinada à posse permanente do grupoindígena Tapirapé, a seguir descrita: a Terra Indígena denominada URUBU BRANCO,com superfície de cento e sessenta e sete mil, quinhentos e trinta e três hectares, trinta e
dois ares e setenta e um centiares e perímetro de duzentos e oito mil, noventa e quatrometros e vinte centímetros, situada nos Municípios de Santa Terezinha, Confresa e PortoAlegre do Norte, Estado de Mato Grosso, (...).
Art 2º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Uma vez homologada a demarcação, a FUNAI, em até trinta dias, promoverá o respectivo registro em cartório imobiliário da comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda. Tal ato tem por fim conferir publicidade a terceiros e promover a segurança jurídica dos negócios imobiliários na circunscrição da terra indígena. Além disso, tal previsão está estampada no §2º do art. 246 da Lei nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos):
§ 2º Tratando-se de terra indígena com demarcação homologada, a União promoverá o registro da área em seu nome. (Incluído pela Lei nº 10.267, de 2001).
Importante ressaltar que, também em nome da segurança jurídica, a Lei de Registros Públicos possibilita à União a averbação da incidência do imóvel nos limites da terra indígena durante o processo demarcatório:
Art. 246. (...)
§ 3º Constatada, durante o processo demarcatório, a existência de domínio privado nos limites da terra indígena, a União requererá ao Oficial de Registro a averbação, na respectiva matrícula, dessa circunstância. (Incluído pela Lei nº 10.267, de 2001)
Em relação àqueles que foram atingidos pelo processo de demarcação de terra indígena, o Decreto determina a prioridadeno reassentamento dos mesmos,observada a legislação pertinente. Trata-se de inegável tentativa de minimizar os impactos sociais decorrentes da demarcação. Tal incumbência fica sob responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.
Por fim, em relação aos índios isolados, população considerada em especial estado de vulnerabilidade, o Decreto determina que a FUNAI, no exercício de seu poder de Polícia, discipline o ingresso e trânsito de terceiros em áreas em que se constate a presença de índios isolados, bem como adote as providências necessárias à proteção aos índios. Na prática, a FUNAI tem atuado por meio da Portaria de Restrição de Ingresso, de Locomoção, de Permanência e de Uso por pessoas estranhas aos quadros da fundação.
Essas são as considerações tecidas sobre o processo administrativo de terras indígenas, o qual é regulado inteiramente pela legislação já citada, Lei 6.001/73 e Decreto 1.775/96, não se aplicando as disposições da Lei nº 9.784/99, consoante art. 69[7] desse mesmo normativo, e em acordo com reiterada jurisprudência sobre o tema.
Ementa: RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA. ILEGITIMIDADE PASSIVA. DECRETO 1.775/1996. CONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. RECURSO DESPROVIDO. I – O Superior Tribunal de Justiça, ao analisar originariamente a impetração, entendeu inexistir ato coator concreto imputável à autoridade indicada como coatora ou o justo receio de sua prática. As razões expostas no recurso não tiveram o condão de afastar as conclusões assentadas no aresto combatido. II – O exame de todas as alegações expostas na exordial da impetração, bem como nas razões recursais, em face da complexidade da discussão que a permeia, não se revela possível sem apreciação adequada do contexto fático-probatório que envolve a controvérsia, inexequível, todavia, nos estreitos limites do mandamus. Precedentes. III - O processo administrativo visando à demarcação de terras indígenas é regulamentado por legislação própria - Lei 6.001/1973 e Decreto 1.775/1996 -, cujas regras já foram declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. Precedentes. IV – Não há qualquer ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa, pois, conforme se verifica nos autos, o recorrente teve oportunidade de se manifestar no processo administrativo e apresentar suas razões, que foram devidamente refutadas pela FUNAI. V – Recurso a que se nega provimento.(RMS 27828, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 19/11/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-200 DIVULG 13-10-2014 PUBLIC 14-10-2014)
A demarcação das terras indígenas nada mais é do que a efetivação do direito originário que lhes foi reiteradamente reconhecido pelas sucessivas normas que trataram do tema, com origem no alvará régio de 30 de julho de 1609 até a Constituição Federal de 1988.
Trata-se de evidente direito fundamental, afinal a Constituição Federal sedimentada no pluralismo político e dignidade da pessoa humana reconheceu expressamente a existência de um Estado Pluriétnico, ao mesmo tempo em que destinou um capítulo inteiro à temática indígena, com especial destaque para a terra tradicionalmente ocupada. Destaco que tal direito à terra das comunidades indígenas também tem alicerce em normas internacionais sobre direitos humanos, a exemplo da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, incorporada em nosso ordenamento jurídico pelo decreto nº 5.051/2004, com status de norma supralegal.
A lição de Kayser, abaixo transcrita, ao tempo em que encerra este trabalho, convida à reflexão:
A terra não tem apenas significado especial para a sobrevivência física, mas também para a sobrevivência cultural dos índios. Elas têm relevância não somente para a garantia de existência no quadro da questão indígena. Ao contrário, existe uma ligação direta da questão da terra com a fé indígena eos conhecimentos indígenas. A concepção do território encontra-se em uma ligação tão estreita com a história cultural das etnias, sua mitologia, as ligações familiares e o conjunto dos sistemas sociais, políticos e econômicos das populações indígenas, que a questão da terra recebe significado essencial para a garantia da sobrevivência dos índios como grupos populacionais etnicamente diferentes. É de especial importância, nesse contexto, principalmente, porém, a verdadeira extensão do extermínio físico dos índios, pela falta de uma garantia suficiente de seus espaços vitais. Com o avanço da fronteira nos territórios indígenas, extinguiram-se, apenas entre 1900 e 1957, oitenta e sete etnias indígenas. Inexistem levantamentos para o período da ditadura militar. No início dos anos 1990, um dos mais notáveis comentários sobre a Constituição Brasileira de 1988 resumiu a situação ao referir-se a uma “constante ameaça à terra das nações indígenas pelos grandes projetos do governo brasileiro, empresários e consórcios multinacionais”, que, na concretização de uma “visão de desenvolvimento”, desmatam as florestas, envenenam os rios e não concedem aos homens nenhum valor[8].
[1] VILLARES, Luiz Fernando. Direitos e Povos Indígenas. Curitiba: Juruá, 2009, p. 127.
[2] KAYSER, Hartmut-Emanuel. Os Direitos dos Povos Indígenas do Brasil: desenvolvimento histórico ao estágio atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editora, 2010, p. 236.
[3] Publicado no DOU de 28/03/2003
[4] Publicado no DOU de 05/07/06.
[5] Publicada no DOU de 23/03/09.
[6] Publicado no DOU de 09/09/1998
[7]“Os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei”.
[8] KAYSER, Hartmut-Emanuel. Os Direitos dos Povos Indígenas do Brasil: desenvolvimento histórico ao estágio atual. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editora, 2010, p. 232.
Procurador Federal e Coordenador de Assuntos Contenciosos da Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI. Ex-Procurador do Estado da Paraíba. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Lívio Coêlho. Demarcação de terras tradicionalmente ocupadas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42003/demarcacao-de-terras-tradicionalmente-ocupadas. Acesso em: 22 nov 2024.
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