1.0 Introdução
Os direitos sociais, ou de segunda dimensão, são direitos através do Estado, por outorgarem ao indivíduo direito a prestações materiais estatais, como assistência social, saúde, educação, trabalho, liberdades sociais, entre outros, marcando a transição das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas. Daí serem apresentados como direitos de cunho positivo.
Diversos fatores contribuem para distanciamento da pretensão normativa da atual Constituição brasileira acerca dos direitos prestacionais e a transformação operada efetivamente na vida daqueles que se encontram sobre o seu manto protetor.
De um lado, os poderes públicos (Executivo e Legislativo) não se preocupam ou não conseguem implementar as políticas públicas referentes aos direitos fundamentais sociais de maneira satisfatória. Os motivos para tal dissídia vão desde os objetivos eleitoreiros até a incapacidade técnica. Afinal, uma sociedade desprovida de serviços públicos essenciais, como educação e saúde, facilita sobremaneira a perpetuação do poder.
De outra banda, a sociedade, carente de tais prestações, não conseguirá exercer plenamente uma cidadania democrática e participativa. Ora, de nada adianta assegurar formalmente a participação efetiva do cidadão se ele não dispõe da educação mínima necessária para percepção da conjuntura política do local onde vive nem para a manifestação de suas idéias no seio da comunidade da qual faz parte.
Observa-se que, afora todos os limites jurídicos impostos a efetividade dos direitos de segunda dimensão outros elementos, não propriamente jurídicos, poderão exercer considerável influência sobre a construção da eficácia jurídica das normas de direito fundamental veiculadoras dos direitos sociais.
2.0 A chamada "reserva do possível"
Canotilho coloca a efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais dentro de uma "reserva do possível" e aponta a sua dependência dos recursos econômicos.[1]
Verificam-se que as normas constitucionais, por serem normas de direito público, no mais das vezes, exigem dispêndio de dinheiro. A existência de recursos configura uma limitação econômica e real à eficácia jurídica dessas normas.
Observe que se fala em normas constitucionais em geral e não apenas normas de direitos sociais. Os direitos sociais não são os únicos a custar dinheiro, como comumente se apregoa. Também os direitos individuais e os políticos demandam gastos por parte do Poder Público. A diferença entre essas categorias de direitos, portanto, não é de natureza, mais de grau.
A doutrina registra, em geral, que os direitos sociais, diferentemente dos individuais e políticos, dependem de prestações positivas do Estado para sua implementação, enfrentando assim o problema da escassez dos recursos públicos, sempre menores que as necessidades.[2]
Tal afirmação não procede.Inicialmente, cumpre atentar que a realização dos direitos individuais e políticos também demandam prestações estatais e não apenas omissões, ainda que em nível menor que os direitos sociais. Também a garantia dos direitos individuais exige prestações positivas do Estado, ao menos porque é necessário que esse crie e mantenha uma estrutura - o Poder Judiciário e seus serviços auxiliares - apta a assegurar coativamente o respeito a tais direitos.
Como conseqüência disso, afirma-se, grosso modo, que as normas que prevêem tais direitos não têm a capacidade de torná-los exigíveis diante do Estado, seja porque o Judiciário não teria competência para dispor a respeito do orçamento público, seja porque tal atribuição caberia apenas ao legislador por força do argumento democrático. Tais direitos não seriam direitos subjetivos.[3]
Ressalte-se, por oportuno, que a competência reservada ao legislador para elaboração da lei orçamentária não é absoluta, estando sujeita a normas constitucionais e, em conseqüência, ao controle judicial.
Na verdade, a dificuldade em aplicar a "reserva do possível" em solo nacional, como adverte Krell[4], deve-se à adaptação mal-feita implementada pelos intérpretes brasileiros de um tópos da jurisprudência constitucional alemã, que entende que a construção de direitos subjetivos à prestação material de serviços públicos pelo Estado está sujeita à condição de disponibilidade dos respectivos recursos. De acordo com a teoria alemã, a decisão sobre a disponibilidade dos recursos caberia aos órgãos governamentais, nos limites de sua discricionariedade, e dos parlamentos, através da composição dos orçamentos públicos.
Atento às disparidades sociais existentes entre a Alemanha e os demais países periféricos, assim como o Brasil, o referido autor ressalta que, condicionar a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais à existência de recursos "disponíveis" no contexto brasileiro, significa reduzir a eficácia destes direitos à zero, relativizar sua universalidade, condenando-os a serem considerados direitos de menor importância.
Por outro lado, é preciso ter em mente que o Direito tem por escopo alterar a realidade, eis que não faria sentido, nem teria utilidade alguma regular por normas a realidade social tal qual ela se apresenta.[5]
Daí que não pode prevalecer a justificativa, geralmente utilizada, sobre a impossibilidade material de angariar recursos, com o propósito de impedir a mudança social a ser promovida pelo Direito. Na maioria das vezes, o problema reside na escolha de prioridades na aplicação dos recursos ou até mesmo na violação de outras normas, cujo propósito seria exatamente a criação de condições para o avanço.
A incoerência da tese da reserva do possível como obstáculo intransponível à efetivação dos direitos sociais se torna ainda mais patente, quando se tem notícia que o Brasil figura entre os dez países com maior economia do mundo, apesar de dados do IBGE mostrarem que, em 1998, 21 milhões da população brasileira são famílias com renda inferior à linha de indigência e 50 milhões à linha de pobreza.[6]
Ora, a aplicação da tese da impossibilidade material (reserva do possível fática) deve se restringir a situações extremas e excepcionais, como é próprio, sob pena da Constituição brasileira avançada em seu texto, transformar-se em mera folha de papel, na expressão conhecida de Lassale.[7]
Outro aspecto do problema envolve a relação entre a escassez relativa de recursos e as escolhas que deverão ser feitas. Isto porque decidir investir os recursos em determinadas áreas significa, no mais das vezes, deixar de atender outras necessidades. A questão exige o estabelecimento de prioridades e critérios de escolha em cada caso concreto, que poderão variar no tempo e no espaço, de acordo com as necessidades sociais mais urgentes.[8]
Uma alternativa seria o remanejamento dos recursos aplicados em áreas não tão essenciais, como transporte, fomento econômico, para áreas de essencialidade incontroversa e necessidade premente, como as relacionadas à vida, à integridade física e à saúde do ser humano.[9]
Quanto ao impacto no orçamento público (reserva do possível jurídica), a razoabilidade deve ser demonstrada à luz do caso concretamente analisado, podendo ser adotadas saídas criativas, como a fixação de prazos flexíveis e compatíveis com o processo de elaboração orçamentária.[10]
Sobre este ponto, Flávio Galdino traz contribuição bastante interessante, ao afirmar que os custos não devem ser encarados como meros óbices à consecução dos direitos fundamentais - devem ser vistos como meios. Em suas palavras,
"(...) dizer que o orçamento não pode suportar determinada despesa, in casu, destinada à efetivação de direitos fundamentais, e tendo como parâmetro a noção de custos como óbices, quer-se necessariamente designar um orçamento determinado". Em outro trecho, "O que verdadeiramente frustra a efetivação de tal ou qual direito reconhecido como fundamental não é a exaustão de determinado orçamento, é a opção política de não se gastar dinheiro com aquele mesmo direito". [11]
Se os meios financeiros não são ilimitados, deve-se privilegiar o atendimento dos fins considerados essenciais pela Constituição, ou seja, aqueles decorrentes da dignidade da pessoa humana (mínimo existencial), até que eles sejam realizados. Se ainda houver recursos remanescentes, estes serão destinados de acordo com as opções políticas que o pluralismo democrático reputar adequadas em cada momento.
Os noticiários brasileiros, diariamente, apresentam exemplos de má utilização ou de escolhas inadequadas na alocação dos recursos públicos. Não vamos questionar os critérios nem a qualidade de nossos representantes, pois o problema é histórico e cultural. Cada vez mais, fica patente que o problema brasileiro é de gestão e não de insuficiência de erário.
Ciente de que os limites da "reserva do possível" não se afiguram instransponíveis, Moro[12] sugere algumas situações em que este não prevalecerá, quais sejam, (a) quando estiver envolvido direito a prestações materiais mínimas (dignidade da pessoa humana); (b) quando o tratamento diferenciado se fizer em detrimento de grupo que mereça especial proteção em regime democrático (justificando posição incisiva do Judiciário); (c) quando se estiver diante de violação "clara e insuportável" do princípio da isonomia.
Resguardado o "mínimo existencial" das contingências impostas pela "reserva do possível", mister se faz acrescentar algumas informações acerca de seu conteúdo.
3.0 O mínimo existencial
O mínimo existencial corresponde ao conjunto de situações materiais indispensáveis à existência humana digna; existência aí considerada não apenas como experiência física - a sobrevivência e manutenção do corpo - mas também espiritual e intelectual, aspectos fundamentais em um Estado que se pretende, de um lado, democrático, demandando a participação dos indivíduos nas deliberações públicas, e, de outro, liberal, deixando a cargo de cada um seu próprio desenvolvimento.[13]
A idéia do mínimo existencial ou do núcleo da dignidade da pessoa humana procura representar um subconjunto, dentro dos direitos sociais, econômicos e culturais, menor (minimizando o problema dos custos), mais preciso (procurando superar a imprecisão dos princípios) e, o mais importante, que seja efetivamente exigível do Estado.[14]
O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.
Deste modo, a não realização dos efeitos compreendidos nesse mínimo constitui violação ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, podendo-se sindicar judicialmente a prestação equivalente. Ora, não é possível ponderar um princípio, especialmente o da dignidade da pessoa humana, de forma irrestrita, a ponto de esvaziar todo o seu conteúdo.
Diante dessas considerações, a conclusão a que se chega, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, é a de que o Estado deve garantir as condições mínimas para que as pessoas possam se desenvolver e tenham chances reais de assegurar por si próprias sua dignidade. Esta é a idéia corrente de igualdade de chances ou igualdade de oportunidades.
Não se pretende defender que a Constituição de 1988 inaugurou um Estado paternalista que determine uma igualdade de resultados para todos, fixando e assegurando o padrão de vida final dos indivíduos independentemente de sua ação pessoal. Apenas se defende que a Carta Maior inaugurou um limite de dignidade, do qual ninguém deve temer ficar aquém.
O prof. Ricardo Lobo Torres é um dos poucos a cuidar do tema na doutrina brasileira. Em sua visão, o mínimo existencial representa um conjunto imprescindível de condições iniciais para o exercício da liberdade, que ele assim especifica: "os direitos à alimentação, saúde e educação, embora não sejam originariamente fundamentais, adquirem o status daqueles no que concerne à parcela mínima sem a qual o homem não sobrevive".[15]
Ora, a garantia do mínimo existencial é bem mais ampla do que a garantia da mera sobrevivência física, não podendo ser reduzida à noção de um mínimo vital suficiente para assegurar o exercício das liberdades fundamentais, como sugere Lobo Torres.
Segundo o autor, extremam-se da problemática do mínimo existencial os direitos econômicos e sociais, que se distinguem dos fundamentais porque dependem da concessão do legislador, estão despojados do status negativus, não geram por si sós a pretensão às prestações positivas do Estado, carecem de eficácia erga omnes e se subordinam à idéia de justiça social.[16]
E noutro ponto, esboça posicionamento compreensível, haja vista o insuficiente debate existente em solo nacional à época em que o artigo foi escrito "Os direitos econômicos e sociais existem, como já vimos, sob a 'reserva do possível' ou da 'soberania orçamentária do legislador'(...) Mas há juristas (referindo-se à Canotilho), de posições extremadas, que advogam a eficácia dos direitos sociais independentemente de lei".[17]
Com efeito, Canotilho afirma,
"Das várias normas sociais, econômicas e culturais é possível deduzir-se um princípio jurídico estruturante de toda ordem econômico-social portuguesa: todos (princípio da universalidade) têm um direito fundamental a um núcleo básico de direitos sociais (minimum core of economic and social rights), na ausência do qual o estado português se deve considerar infractor das obrigações jurídico-sociais constitucional e internacionalmente impostas". [18]
Por fim, observa-se que em sede jurisprudencial, mais especificamente, no Supremo Tribunal Federal, já vem sendo adotado posicionamento alinhado com o que foi até então exposto. Segundo o Ministro Celso de Mello,
"(...) não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa, criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições mínimas de existência (...) a claúsula da reserva do possível, ressalvada a ocorrência de justo motivo, não poderá ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade". [19]
4.0 Conclusão
É certo que a efetividade dos direitos prestacionais está sujeita a diversas condicionantes impostas ora como solução conveniente, ora como reflexo do incipiente processo de concretização constitucional que ainda encontra defensores na doutrina e na jurisprudência pátrias.
Inquestionável, porém, que a atuação dos juízes assuma papel de especial relevância. Isto porque, na condição de intérpretes e aplicadores últimos do direito, a eles compete assegurar o máximo de efetividade às normas constitucionais.[20]
É incompreensível acreditar que a efetividade dos direitos fundamentais esteja a cargo exclusivo da Administração Pública e do Legislativo, descomprometendo o Poder Judiciário.
A realização do Estado Social e Democrático de Direito e, conseqüentemente, a concretização ou efetivação dos direitos fundamentais na sociedade é obrigação comum de todos os Poderes do Estado, indistintamente.[21]
Se algum dos poderes constituídos não desempenhar a contento seu mister constitucional, cumpre aos demais suprir tal deficiência, de modo que a sociedade brasileira usufrua, de todos os direitos sociais resultantes do texto constitucional. Deste modo, será construído um processo sólido de aperfeiçoamento democrático.
Sendo assim, a concretização dos direitos prestacionais exige a superação do obstáculo, por vezes falacioso e conveniente, da insuficiência de recursos públicos. Cumprirá ao juiz, no caso concreto, avaliar a consistência de tal argumento e os limites da reserva do possível, sob pena de comprometer desnecessariamente a efetividade dos direitos sociais.
NOTAS: