RESUMO: Cinge-se o presente trabalho a expor breves considerações acerca da problemática existente no que tange aos limites da liberdade de expressão no âmbito relações sociais. Em uma perspectiva pós-positivista de valorização dos princípios constitucionais, sobretudo o da liberdade de expressão e dignidade da pessoa humana, aborda-se, com base na doutrina e jurisprudência pátria, o tema do discurso do ódio (hate speech).
PALAVRAS-CHAVE: Direito Constitucional. Direitos fundamentais. Liberdade de expressão.
I. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Verificou-se de forma reiterada, no período em que o Brasil foi governado por militares, a ocorrência de atos de censura. Foram anos em que a liberdade de expressão recebia severa e repugnante limitação. Com a redemocratização e constitucionalização do país a censura, do ponto de vista formal (institucionalizada), deixou de existir. Na prática, a possível ocorrência de atos dessa natureza demanda resposta imediata do poder judiciário, que pode agir com a devida independência garantida pela Carta Magna de 1988. Ressalte-se, ainda, que a imprensa brasileira trabalha com liberdade, exercendo o seu legítimo papel de controle sobre os atos do Estado.
Entretanto, surgem questões complexas relacionadas à liberdade de expressão, envolvendo a imposição de limites a este direito fundamental, necessários à proteção de outros direitos igualmente importantes como dignidade da pessoa humana, igualdade, privacidade, honra e devido processo legal.
O contexto atual não é o mesmo de outrora. Não se trata de um governo ditatorial tentando calar os críticos e opositores. Observa-se, sim, é o trabalho de juízes e legisladores buscando equacionar princípios constitucionais colidentes. Nesse ponto reside a importância de se debater um dos temas ligados à fixação de limites à liberdade de expressão, que é o relacionado à proteção, ou não, de manifestações de ódio, desprezo ou intolerância contra determinados grupos, motivadas por preconceitos ligados à etnia, religião, gênero, deficiência física ou mental e orientação sexual, dentre outros fatores. O referido tema, no Direito Comparado, é estudado sob o rótulo de “hate speech”.
No Brasil, o assunto foi objeto de uma importante decisão do Supremo Tribunal Federal, ainda em 2003, no caso Ellwanger. Restou decidido, naquele julgamento, que a liberdade de expressão não protege manifestações de cunho anti-semita, que podem ser objeto de persecução penal pela prática do crime de racismo. Note-se que ainda podem ser encontrados vários outros casos em cortes inferiores apontando na mesma direção.
II- LIBERDADE DE EXPRESSÃO
O direito à liberdade de expressão, consagrado da Constituição Federal de 1988, e pressuposto básico de qualquer regime democrático, possui duas dimensões: a substantiva (em que se considera tal liberdade como um valor em si mesmo, isto é, uma garantia relacionada à própria dignidade da pessoa humana, já que a capacidade de dizer o que pensa e de ouvir o que quiser é um dos valores mais marcantes da condição humana, ligada ao próprio desenvolvimento da personalidade do indivíduo) e a instrumental (em que se considera a liberdade de expressão como um meio, um instrumento para a promoção de outros valores constitucionalmente consagrados, como a democracia, a opinião pública independente e o pluralismo político). O art. 5º, IV e IX, da CRFB, protege fundamentalmente a liberdade de expressão em sua dimensão substantiva. Já os arts. 220 e seguintes voltam-se à dimensão instrumental, como meio de promoção de outros direitos fundamentais.
É possível fracionar o conteúdo da liberdade de expressão em “liberdade em sentido estrito”, que engloba o direito individual de manifestação do pensamento, sentimentos e etc; a liberdade de informação, que engloba o direito de informar e de receber informações verdadeiras; e a liberdade de imprensa, que engloba o direito-dever de os meios de comunicação social divulgarem fatos e opiniões.
Frequentemente ocorrem choques entre diferentes princípios constitucionalmente protegidos, e a solução para a colisão entre princípios, segundo Robert Alexy, deve passar pela técnica da ponderação, com a aplicação dos postulados da proporcionalidade e da razoabilidade. A ponderação estabeleceria uma relação de precedência condicionada entre os princípios em conflito, sendo que a aplicação do princípio dependeria das condições fáticas de cada caso concreto.
No entanto, a doutrina vem desenvolvendo a teoria de que as liberdades de expressão e de imprensa situam-se numa posição privilegiada dentro da Constituição, por permitirem o desenvolvimento de atributos inerentes à pessoa humana e servirem de instrumento para o exercício de outros direitos fundamentais. Assim, a liberdade de expressão ocuparia uma posição preferencial (prioridade "prima facie”) e, na solução dos conflitos envolvendo, de um lado, a liberdades de expressão, e de outro, outros princípios constitucionais, deve ser resolvido, via de regra, privilegiando-se aquela liberdade.
Nessa mesma linha se posicionam Luís Roberto Barroso e Luís Guilherme Marinoni. Segundo Marinoni: "Alexy argumenta em favor de uma teoria que considera vários princípios que, embora não possam ser rigidamente hierarquizados, podem ser colocados em ordem mediante uma relação de prioridade "prima facie". Ou seja, não é possível hierarquizar os princípios de modo a permitir a que se chegue a um único resultado - ou se ter uma "ordem dura"-, mas é viável uma "ordem mole" [...] Admite-se, assim, que os princípios da liberdade e da igualdade jurídicas têm uma prioridade prima facie". É por este motivo que, "quando, por exemplo, o direito de liberdade de expressão colide com o direito à honra, já existe em favor do direito da liberdade uma carga argumentativa implícita. Assim, caso a argumentação em favor do direito da personalidade não seja capaz de demonstrar que o direito de liberdade deva ceder, isso não ocorrerá. Para que um princípio possa se sobrepor ao princípio da liberdade é preciso uma argumentação mais forte do que a necessária para sustentá-lo" (Marinoni: 2010, p. 72 e 130). Porém, o STF não tem aplicado a liberdade de expressão como um valor significativo relevante, de maneira prima facie.
Note-se ainda, que a liberdade de expressão depende necessariamente da garantia de liberdade de empresa jornalística, tutelada pela liberdade de associação. Porém, a própria CF limita esta liberdade ao dispor que a empresa jornalística e de radiodifusão sonora ou audiovisual compete privativamente aos brasileiros natos, ou aos naturalizados há mais de dez anos, ou às pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras com "pelo menos setenta por cento do capital total e do capital votante das empresas jornalísticas e de radiodifusão [...] deverá pertencer, direta ou indiretamente, a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos" (art. 222, § 1º, da CF).
Algumas relevantes decisões sobre o tema podem ser destacadas:
ADI 869/99: é inconstitucional a expressão do art. 247, § 2º, do ECA, que autorizava a suspensão da programação da emissora por até 02 dias, ou da publicação de periódico por até 02 números, caso divulgassem nome, ato ou documento de procedimento instaurado contra criança ou adolescente, a que se atribua ato infracional (violação ao art. 5º, XLV, da CF);
ADI 2.566-MC: o STF indeferiu medida cautelar e manteve a vedação à prática de proselitismo de qualquer natureza na programação das emissoras de radiodifusão comunitárias (art 4º, § 1º, da Lei 9.612/98);
ADI 956/94: é constitucional a proibição de utilização de gravações externas, montagens ou trucagens, na propaganda eleitoral gratuita (art. 76, §1º, Lei 8.713/93);
ADI 2.677-MC: o STF indeferiu medida cautelar e manteve a proibição de participação, em propaganda eleitoral, de pessoas filiadas a outros partidos que não o responsável pelo programa político (art. 45, § 1º, I, Lei 9.096/95);
ADI 3.741/2006: é inconstitucional vedar a divulgação de pesquisas eleitorais 15 dias antes do pleito, por violar a liberdade de informação (art. 35-A, da Lei 9.504/97);
ADI 4.451/2010: é inconstitucional a proibição de veiculação de charges, sátiras ou programas humorísticos, envolvendo questões ou personagens políticos, durante o período eleitoral, por corresponder a inaceitável censura legislativa prévia e restrição desproporcional ao direito de crítica (suspensão integral da eficácia do inciso II e de parte do inciso III, do art. 45, da Lei 9.504/97, e por arrastamento dos §§4º e 5º desse artigo);
ADI 2.815/03: os Estados da federação não possuem competência para proibir a publicação de fotos eróticas ou pornográficas em anúncios e comerciais, porque cabe à União legislar sobre propaganda comercial;
ADPF 130/2009: a Lei de Imprensa, como um todo, foi considerada incompatível com a CF/88, por ser considerada um instrumento legal que limitava de maneira irrazoada a liberdade de imprensa; consignada a plenitude do exercício da liberdade de expressão como decorrência da dignidade da pessoa humana e como meio de reafirmação de outras liberdades constitucionais.
RE 511.961/2009: considerou-se incompatível com a CF/88 a exigência de apresentação de diploma universitário de jornalismo, prevista no art. 4º, V, do Decreto-lei 972/69, como condição para a obtenção do registro profissional de jornalista, no Ministério do Trabalho; segundo o Min. Gilmar Mendes: "a formação específica em curso de graduação em jornalismo não é meio idôneo para evitar riscos à coletividade", "o jornalismo é uma profissão diferenciada por sua estreita vinculação ao pleno exercício das liberdades de expressão e informação", "a reserva legal estabelecida no art. 5º, XIII, não confere ao legislador o poder de restringir o exercício da liberdade a ponto de atingir o seu próprio núcleo essencial";
ADPF 183/2009: o MPF pleiteou fosse declarada incompatível com a CF/88 a Lei 3.857/60, que criou a Ordem dos Músicos do Brasil, por restringir o exercício da profissão de músico e a liberdade de expressão, em violação ao art. 5º, IV, IX e XIII, da CF/88 (pendente de julgamento, mas no RE 414426, o STF declarou que a atividade de músico prescinde de controle, já que não há potencial lesivo, para que se exija inscrição em conselho profissional, sendo manifestação artística protegida pela garantia da liberdade de expressão);
ADPF 187 e ADI 4274-2: conferiu-se interpretação conforme ao art. 287, do CP, e ao art. 33, §3º, da Lei 11.343/06, respectivamente, de forma a excluir qualquer exegese que permita a criminalização da defesa da legalização das drogas ou de qualquer substância entorpecente, inclusive através de manifestações e eventos públicos;
ADI 1969: é inconstitucional decreto autônomo editado pelo Governador do DF, que, a pretexto de assegurar o direito ao trabalho em ambiente de tranquilidade, impunha restrições à liberdade de reunião e de expressão, proibindo a utilização de carros, aparelhos e objetos sonoros nas manifestações públicas realizadas na Praça dos Três Poderes, na Esplanada dos Ministérios e na Praça do Buriti;
HC 82.424/2003 (Caso Ellwanger e os discursos de incitação ao ódio ou hate speech): o STF, por maioria, denegou a ordem postulada, reconhecendo como crime de racismo a publicação de livros próprios e de terceiros, com conteúdo antissemita, bem como sua imprescritibilidade;
HC 83.996/2004 (Caso Gerald Thomas): a ordem foi concedida em favor de diretor teatral que, diante de vaias e xingamentos do público, simulou ato de masturbação e abaixou as calças, mostrando as nádegas para a plateia; o STF consignou que o art. 233, do CP, deve ser interpretado de forma a excluir qualquer exegese que viole a liberdade de expressão artística e cultural;
No tocante à liberdade religiosa, ela compreende três formas de expressão: (a) liberdade de crença, mas também a liberdade de não aderir a religião alguma; (b) liberdade de culto, prática dos ritos, com suas cerimônias e manifestações, na forma indicada pela religião escolhida; (c) Liberdade de organização religiosa, que diz respeito à possibilidade de estabelecimento e organização das igrejas e suas relações com o Estado. A proteção constitucional à liberdade religiosa, portanto, não se refere à tutela a uma corrente de ideias ou pensamentos, mas à compreensão de um direito mais amplo de liberdade de consciência, que assegura a autodeterminação existencial e ética dos indivíduos, que se desdobra em diversos campos, como o filosófico, o ideológico e o religioso. Destacam-se, aqui, as seguintes decisões:
ADI 2.076-5: não há inconstitucionalidade na ausência de invocação a Deus na Constituição estadual do Acre, diante da ausência de força normativa do Preâmbulo da Constituição Federal;
RE 325.822-2: reconheceu-se a imunidade tributária de templos de qualquer culto, vedada a instituição de impostos sobre o patrimônio, renda e serviços relacionados com as finalidades essenciais das entidades religiosas (interpretação extensiva conferida pelo STF, permitindo a imunidade tributária ao exercício de atividades não religiosas, por parte das igrejas);
STA 389 AgRg: considerou-se razoável medida adotada pelo MEC, no sentido de admitir que certos grupos religiosos realizem as provas do ENEM durante o sábado, após o pôr-do-sol, por representar providência mais condizente com o dever de neutralidade religiosa do Estado, diante dos problemas decorrentes da designação de dia alternativo.
Em sede de liberdade de associação, objeto do art. 5º, XVII até XXI, da CF, ela compreende toda coligação voluntária de algumas ou de muitas pessoas físicas, por tempo longo, com o intuito de alcançar algum fim (lícito), sob direção unificante. Seus elementos são: base contratual, permanência (ao contrário da reunião) e fim lícito. inclui tanto as associações em sentido estrito (de fim não lucrativo) e as sociedades. Veda-se a interferência estatal no funcionamento. As associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, trânsito em julgado. Há duas restrições expressas: não seja para fins lícitos ou de caráter militar. E é aí que autoriza a dissolução por via judicial. A Constituição Federal assegura a plena liberdade de associação para fins lícitos, sendo vedada, contudo, a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregado interessados, não podendo ser inferior à área de um Município. Ninguém é obrigado a filiar-se ou manter-se filiado a sindicato - Art. 8º, V da CF/88. Nesse âmbito, pode-se elencar as seguintes decisões:
Súmula 629: A impetração de mandado de segurança coletivo por entidade de classe em favor dos associados independe da autorização destes;
ADI 1.194: a obrigatoriedade do visto de advogado para o registro de atos constitutivos de pessoas jurídicas (art. 1º, §2º, Lei 8.906/94) não ofende os princípios constitucionais da isonomia e da liberdade associativa;
ADI 3.045: atos emanados do Executivo ou Legislativo, que provoquem a compulsória
suspensão ou dissolução de associações, mesmo as que possuam fins ilícitos, são inconstitucionais;
RE 432.106: não se deve confundir associação de moradores com a figura do condomínio, razão pela qual é indevido impor mensalidade a morador ou proprietário de imóvel, que a ela não tenha aderido;
ADI 3.464: viola os princípios constitucionais da liberdade de associação e da liberdade sindical, em sua dimensão negativa, a norma legal que condiciona, ainda que indiretamente, o recebimento do benefício do seguro-desemprego à filiação do interessado à colônia de pescadores de sua região;
RE 437.971-AgRg e RE 520.629-ED-AgR: a legitimação das organizações sindicais, entidades de classes ou associações, para o mandado de segurança coletivo, é extraordinária, ocorrendo nesse caso substituição processual, não se exigindo autorização expressa dos filiados (art. 5º, LXX, CF); diferente é o caso previsto no art. 5º, XXI, CF, que trata de representação processual, em que se exige autorização expressa dos filiados.
RE 432.106: a 1ª Turma proveu recurso para vedar a cobrança compulsória de mensalidade por associação de moradores a qual não está vinculado porque fere a regra de que ninguém pode ser compelido a associar-se ou a permanecer associado, tanto pelo ângulo formal como tudo que resultasse desse fenômeno. A mensalidade pressupõe vontade livre e espontânea do cidadão em associar-se.
AgRg na Rcl 5.215: associação para atuar em juízo na defesa de direito de seus filiados necessita de autorização no estatuto e de autorização específica da Assembleia Geral.
REsp 1.189.273: centro acadêmico de direito tem legitimidade para propor ACP caso tenha autorização em assembleia convocada especificamente para isso.
RMS 34.270: entidades associativas em geral não têm legitimidade para a tutela em juízo dos direitos e interesses das pessoas jurídicas de direito público que tem regime próprio, revestido de garantias e privilégios de direito material e processual em virtude de se tratar de tutela de patrimônio público.
III- O TRATAMENTO JURÍDICO DO DISCURSO DO ÓDIO (HATE SPEECH) NO BRASIL
No contexto brasileiro, a liberdade de expressão é um direito fundamental do cidadão e da coletividade expressamente previsto no artigo 5º, IV, da Constituição Federal, cujo teor indica que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. O discurso do ódio, por sua vez, consiste na manifestação de ideias eivadas de sentido discriminatório, violento e perturbador, cujo objetivo é diminuir, eliminar ou efetivamente segregar indivíduos ou coletividades étnicas, raciais, sociais ou nacionais.
Uma vez veiculado a referida manifestação de pensamento, surge, então, o conflito entre a liberdade de expressão e à proteção da dignidade da pessoa humana. Essa contenda é resolvida, nos Estados Unidos da América, com a prevalência da livre manifestação de opinião, sendo restringida apenas quando houver receio de instabilização social através de discursos violentos. Na Alemanha, por sua vez, dá-se mais valor à proteção da dignidade humana, vedando-se, inclusive, a possibilidade da negação da existência de fatos notórios, como o holocausto. Portanto, sob a ótica do direito comparado, pode-se identificar uma corrente mais liberal (capitaneada pelos Estados Unidos), e outra mais conservadora quanto aos limites da liberdade de expressão (tendo como expoente a Alemanha).
No Brasil, o leading case da matéria foi o caso Ellwanger, no qual o STF proibiu a manifestação de opinião anti-semita numa obra literária do referido autor, fundamentando sua decisão na proibição do “hate speech”. Para o STF, então, a livre manifestação de pensamento não é absoluta, devendo ser restringida em nome da proteção de outros direitos fundamentais, como a honra e a dignidade da pessoa humana.
O Supremo Tribunal Federal manteve a condenação do editor Siegfried Ellwanger imposta a ele pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por crime de racismo. Por maioria de sete a três, o Plenário negou o recurso, vencidos os ministros Moreira Alves, Marco Aurélio e Carlos Ayres Britto. Os dois primeiros consideraram o crime prescrito. Ayres Britto concedia o recurso de ofício para absolver o livreiro por falta de provas.
A discussão foi retomada com o voto-vista do ministro Marco Aurélio. Ele concedeu o Habeas Corpus ao julgar que o editor gaúcho não cometeu crime de racismo. Considerou, também, que sua punição estaria prescrita acompanhando, nesse ponto, o voto do relator, ministro Moreira Alves. O ministro Marco Aurélio defendeu o direito à liberdade de expressão, justificando do ponto de vista de proteção à manifestação individual de pensamento, por entender que o livreiro quis fazer uma revisão histórica.
De acordo com o ministro, a Constituição Federal não se referiu ao povo judeu, mas ao preconceito contra os negros, ao tratar da prática do crime de racismo, que considera imprescritível, no inciso XLII, artigo 5º. Isto porque, segundo Marco Aurélio, a Constituição de 1988 se aplica ao povo brasileiro. Ele ainda considerou que a não prescrição de crimes iria contra a garantia constitucional dos direitos fundamentais.
Nas palavra do Min. Marco Aurélio: "O instituto da imprescritibilidade de crime conflita com a corrente das garantias fundamentais do cidadão, pois o torna refém, eternamente, de atos ou manifestações - como se não fosse possível e desejável a evolução, a mudança de opiniões e de atitudes, alijando-se a esperança, essa força motriz da humanidade -, gerando um ambiente de total insegurança jurídica, porquanto permite ao Estado condená-lo décadas e décadas após a prática do ato".
Marco Aurélio ainda rememorou voto do colega Carlos Ayres Britto; historiou sobre censura e liberdade de expressão; falou sobre tolerância; distinguiu entre preconceito e discriminação e defendeu o ponto de vista de que o livreiro quis fazer uma revisão histórica. Sua defesa da liberdade individual de manifestação do pensamento foi reiterada em todo o voto. Cabe citar outros trechos importantes da decisão:
"Há de se proclamar a autonomia do pensamento individual como uma forma de proteção à tirania imposta pela necessidade de adotar-se sempre o pensamento politicamente correto. As pessoas simplesmente não são obrigadas a pensar da mesma maneira".
"Por exemplo, estaria configurado o crime de racismo se o paciente, em vez de publicar um livro no qual expostas suas idéias acerca da relação entre os judeus e os alemães na Segunda Guerra Mundial, como na espécie, distribuísse panfletos nas ruas de Porto Alegre com dizeres do tipo "morte aos judeus", "vamos expulsar estes judeus do País", "peguem as armas e vamos exterminá-los". Mas nada disso aconteceu no caso em julgamento. O paciente restringiu-se a escrever e a difundir a versão da história vista com os próprios olhos".
"A questão de fundo neste habeas corpus diz respeito à possibilidade de publicação de livro cujo conteúdo revele idéias preconceituosas e anti-semitas. Em outras palavras, a pergunta a ser feita é a seguinte: o paciente, por meio do livro, instigou ou incitou a prática do racismo? Existem dados concretos que demonstrem, com segurança, esse alcance? A resposta, para mim, é desenganadamente negativa".
Em seguida, os ministros Celso de Mello, Carlos Velloso e Gilmar Mendes, Nelson Jobim e Ayres Britto ratificaram votos já proferidos sobre a matéria e, à exceção de Britto, indeferiram o pedido feito pela defesa do livreiro. Último a concluir voto, o ministro Sepúlveda Pertence acompanhou a corrente majoritária que negou o Habeas Corpus, nas palavras do Ministro: "A discussão me convenceu de que o livro pode ser instrumento da prática de racismo. Eu não posso entender isso como tentativa subjetivamente séria de revisão histórica de coisa nenhuma".
Eis a decisão do Supremo Tribunal Federal:
HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros “fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias” contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). 2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa. 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pelos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. 5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País. 6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, “negrofobia”, “islamafobia” e o anti-semitismo. 7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática. 8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma. 9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com grupos humanos que simbolizem a prática de racismo. 10. A edição e publicação de obras escritas veiculando ideias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas consequências históricas dos atos em que se baseiam. 11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as consequências gravosas que o acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. 15. “Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento”. No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada.” (HC 82424, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524).
Em outras oportunidades o Tribunal também enfrentou o tema. Em 2014, a Primeira Turma do STF, por unanimidade, decidiu pelo não recebimento de denúncia oferecida contra parlamentar federal em que lhe era atribuída suposta prática do crime previsto no artigo 20 da Lei 7.716/89 (racismo), pelo fato de ter postado no twitter a seguinte frase: “A podridão dos sentimentos dos homoafetivos levam (sic) ao ódio, ao crime, a (sic) rejeição".
O Min. Marco Aurélio, relator do caso, no que foi seguido pelos seus pares, concluiu pela atipicidade da conduta, considerando que o dispositivo da Lei 7.716/89 não contempla a discriminação ou o preconceito decorrente da opção sexual do cidadão. O Min. Roberto Barroso, na ocasião do seu voto, afirmou que “consideraria razoável que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana impusesse um mandamento ao legislador para que tipificasse condutas que envolvam manifestações de ódio, de ‘hate speech’, mas a verdade é que essa lei não existe, de modo que vulneraria princípios considerados importantes se a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal punisse criminalmente alguém sem que uma lei claramente defina essa conduta como ilícita.” (Inq 3590/DF, noticiado no Informativo 754).
No plano internacional, diversos tratados sobre direitos humanos editados após a 2ª Guerra Mundial obrigam os Estados signatários a proibirem e coibirem o hate speech. Embora a liberdade de expressão seja altamente valorizada no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos – foi garantida na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 19), no Pacto dos Direitos Civis e Políticos (art. 19), na Convenção Européia de Direitos Humanos (art. 10), na Convenção Interamericana de Direitos Humanos (art. 13) e na Carta Africana de Direitos Humanos (art. 9º), dentre outros documentos internacionais – é explícito o posicionamento adotado pelas organizações internacionais de direitos humanos contra a proteção ao exercício abusivo deste direito, voltado ao ataque contra minorias estigmatizadas. Neste sentido, é muito claro o art. 4º do Pacto Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial
IV - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não restam dúvidas de que nenhum direito fundamental é absoluto, e a admissibilidade ou não do discurso do ódio diz respeito exatamente aos limites da liberdade de expressão e à criminalização da opinião. Diversos casos emblemáticos a respeito do tema - tais como de racismo, discriminação, preconceito e a marcha da maconha – reascendem as discussões acerca dos limites da liberdade de expressão, bem como da ponderação de valores expressos na Carta política.
Entretanto, mister se faz empreender esforços para evitar que este direito fundamental tão importante à manutenção da democracia torne-se refém das doutrinas morais majoritárias, bem como das concepções sobre o “politicamente correto”, vigentes em cada momento histórico. Isso porque a liberdade de expressão não se presta somente a proteger as opiniões que estão de acordo com os valores nutridos pela maioria, mas também as que delas divergem.
NOTAS:
Barroso, Luis Roberto. “A proteção coletiva dos direitos no Brasil e alguns aspectos da class action norte-americana”. In Revista de Processo. Ano 30, n. 130, dez/2005.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. São paulo: Editora Saraiva, 2009.
NERY JÚNIOR, Nélson. “O Ministério Público e as ações coletivas”. São Paulo: RT, 2005.
SARMENTO, Daniel e outros. Direito Constitucional, teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013.
___________. A liberdade de expressão e o problema do “hate speech”. In www.pgr.mpf.mp.br.
Procurador Federal. Pós-graduado em Direito Público. Especialista em Direito Tributário. Bacharel em Direito pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande, RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CONSTANTINO, Giuseppe Luigi Pantoja. Aspectos relativos ao princípio constitucional da liberdade de expressão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42308/aspectos-relativos-ao-principio-constitucional-da-liberdade-de-expressao. Acesso em: 22 nov 2024.
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