Resumo: Este trabalho visa realizar uma breve análise sobre a doutrina do neoconstitucionalismo, situando-o como uma forma de pensamento pluralista acerca da ontologia do Direito, apresentando suas linhas gerais e analisando, ao fim, três das principais críticas que lhe são dirigidas: a da suposta superação das regras pelos princípios, a da suposta prevalência do critério de ponderação ante o método de subsunção nas decisões jurídicas, e a referente aos riscos de um ativismo judicial sem controle.
Palavras-chave: neoconstitucionalismo – pluralismo jurídico – ativismo judicial
Sumário: 1 Introdução; 2 Uma análise ontológica do direito: monismo e pluralismo jurídico; 3 O pós-positivismo; 4 Neoconstitucionalismo, linhas gerais; 5 Críticas: ponto e contraponto 6 Conclusão; Referências.
1 INTRODUção
Apesar da designação “neoconstitucionalismo”, ainda se discute o que essa doutrina tem de novo (neo) em relação ao seu antecessor “constitucionalismo” – não há consenso se é simples reinvenção do que já existia ou se é uma busca efetiva de se afastar as suspeitas que recaíam sobre um Direito Constitucional simbólico, de perfumaria, que não demandava efetivo cumprimento.
Esse brevíssimo estudo, sem qualquer pretensão de esgotamento, tem por objetivo analisar o pensamento neoconstitucionalista, situando-o dentro da Ontologia do Direito, contextualizando seu surgimento, apresentando suas linhas gerais e, por fim, expondo as principais críticas que lhe são dirigidas.
2 UMA ANáLISE ONTOLóGICA DO DIREITO – MONISMO E PLURALISMO JURíDICO
Uma análise ontológica do direito permite divisar duas grandes correntes de pensamento acerca do ser do Direito[1]: o pluralismo e o monismo jurídico.
Seguindo de perto as lições de Paulo Ferreira da Cunha, toma-se, para fins deste estudo, o termo pluralismo jurídico para designar o entendimento do Direito a partir de uma normogênese não exclusivamente positiva, isto é, uma forma de enxergar a essência do Direito em dois planos ou duas dimensões[2]: um direito superior e fundante (ás vezes direito vital, quiçá natureza das coisas, talvez direito natural, porventura a razão ou, acaso, direito divino, enfim...) e um direito concreto, positivado pelos homens, que pode ou não ser espelho totalmente fiel daquela ordem superior, mas que será sempre regido por ela. Em outras palavras, os adeptos do pluralismo jurídico admitem que por detrás do direito posto (como resultado da soberania popular ou de imposição do poder) existe um direto mais profundo e basilar.
Noutra ponta, encontram-se os os defensores do monismo jurídico, entendidos como aqueles que confiam apenas na existência do Direito positivado, entendendo que tudo mais, fora isso, possa ser êtica, Moral, Filosofia etc, mas não Direito[3].
Dentre as correntes do monismo jurídico, destaca-se o juspositivismo legalista, que inundou o pensamento jurídico, pelo menos atê a II Guerra Mundial. Trata-se de doutrina cujo principal particularidade consistiu na atribuição à lei de ares de absoluto (dura lex, sed lex): apenas pela lei o Direito se manifestava e vinha á vida, apenas era Direito o que dizia a lei. Pregava-se o cumprimento da lei; não da vontade da lei ou da vontade do legislador, mas quase sempre a literalidade dura e fria das palavras da lei. A interpretação que se devia fazer era esta: diga-me exatamente o que diz a lei, este é o Direito.
Noberto Bobbio aponta como características fundamentais do positivismo jurídico: (i) a forma de encarar o Direito como fato (e não como valor), donde se extrai a ideia de que sua validade fosse aferida por critêrios puramente formais; (ii) a definição do Direito a partir de elementos de coação, como consequência de citada ótica fenomênica (Direito ê fato); (iii) a preponderáncia da lei como fonte do Direito; (iv) a imperatividade do Direito (norma como comando); (v) a ideia de coerência e completude do ordenamento jurídico; (vi) a forma de interpretação mecanicista, na qual o elemento declarativo prevalece sobre o elemento criador do direito; e (vii) a obediência absoluta à lei (elemento de ideologia do Direito presente no positivismo)[4].
3 O PóS-POSITIVISMO
As barbáries ocorridas na II Guerra Mundial desacobertaram a aridez filosófica e material do positivismo, de um jurídico desverdeado. Ficou claro que a simples legitimação formal do Direito era, sobretudo, perigosa. Haveria que se cuidar tambêm da substáncia, da essência, do aspecto material das normas, garantindo-se, se não normas justas, no mínimo o afastamento de normas que, embora formalmente válidas, estivessem encharcadas de arbitrariedade.
O pós-positivismo pode ser considerado como o movimento ou a forma de pensar o Direito em reação à esterilidade jurídica do positivismo, reintegrando as ideias de justiça e legitimidade, resgatando princípios éticos e morais e reorientando o Direito aos valores jurídicos fundamentais, especialmente os de proteção do homem. De acordo com Luís Roberto Barroso, o pós-positivismo estaria situado entre as duas principais (e opostas) correntes do pensamento jurídico – o positivismo e o naturalismo –, em um contexto de superação dos modelos puros por um conjunto difuso e abrangente de ideias[5].
Não se pode deixar de mencionar que essa reivindicada mudança de eras é – ainda –, no mínimo, questionável, especialmente porque sequer é confiável que o homem defina os cortes históricos de seu próprio tempo, vez que não tem nem mesmo o distanciamento necessário para tal, quiçá antevisão das consequências de uma suposta mudança de paradigmas[6].
Mas, fato que não se pode negar é que diversas mudanças ocorreram no Direito, especialmente no Direito Constitucional, após a II Guerra Mundial na Europa e, algumas décadas mais tarde, no Brasil. é nesse terreno fecundo que o neoconstitucionalismo apareceu à procura de sol.
4 NEOCONSTITUCIONALISMO, LINHAS GERAIS
O neoconstitucionalismo pode ser caracterizado como uma forma de pluralismo jurídico (embora suas principais vertentes não se assumam jusnaturalistas) especialmente pela confiança na normatividade jurídica de normas basilares do ordenamento, não necessariamente positivadas (princípios fundantes, megaprincípios, princípios implícitos). Acredita-se, enfim, em uma normogênese além da legal positiva, criticando o dogmático, o literal, o hierárquico, a prática bitolada de subsunções do juspositivismo.
Passa-se a narrar como veio a prumo.
Das transformações do Direito já citadas, talvez a principal seja a que ocorreu na Alemanha e na Itália logo após o fim da II Guerra Mundial (seguidas por Portugal e Espanha na dêcada de 70 e pelo Brasil na dêcada de 80): o deslocamento da Constituição para o centro do ordenamento jurídico, destronando o Direito Civil, até então, baluarte do verdadeiro Direito. A concepção de Constituição que vigia na Europa até esse marco destoava diametralmente da concepção norte-americana – enquanto nesse ordenamento jurídica a Constituição sempre foi considerada norma jurídica sujeitando as demais normas, inclusive, a controle de constitucionalidade, naquele, era concebida como simples instrumento político, a tal ponto de ser necessária a mediação do legislador ordinário para garantir a eficácia de suas normas.
Tendo adquirido a centralidade do sistema jurídico, a Constituição ressurgiu com supremacia axiológica, material, somada à já existente supremacia formal – tendo sido reconhecida a sua força normativa, as normas constitucionais passaram a poder ser aplicadas direta ou indiretamente, conforme sua densidade jurídica.
Some-se a isso a expansão da jurisdição constitucional possibilitada por essa centralidade e pela supremacia da Constituição. Prevalecia na Europa, atê a êpoca, o modelo de centralidade da lei e de supremacia do parlamento, consequência inegável de se considerar a Constituição como estatuto político – sem controle de constitucionalidade das leis, a última palavra acerca da matêria constitucional era dada pelo parlamento. Mas esse modelo foi sendo ultrapassado pela adoção gradual de sistema similar ao norte-americano, com a instituição, nos países da Europa (exceto no Reino Unido e na Holanda) de Tribunais Constitucionais, guardiões da Constituição, imbuídos do encargo de realização da interpretação constitucional em última instáncia; embora processualmente o modelo de controle norte-americano e europeu se diferenciem, a ideia básica de superioridade axiológica, material e formal da Constituição, que deve ser respeitada pelo restante do ordenamento jurídico, ê comum.
Também em decorrência dessa nova centralidade com adjetivos de força normativa e de supremacia, a interpretação das normas constitucionais passou a ser encarada como interpretação jurídica. Entretanto, a especificidade destas normas constitucionais (especialmente em virtude da nova posição que passam a ocupar no ordenamento jurídico) reclamava mais que os critérios jurídicos tradicionais de hermenêutica, tendo sido desenvolvidas novas técnicas que buscavam responder aos anseios dos novos ares jurídicos. Passou-se, assim, de uma interpretação tradicional, que considerava que as respostas aos problemas estavam todas integralmente no sistema jurídico (desempenhando o intérprete simples função técnica de conhecimento, de formulação de juízos de fato), para uma nova hermenêutica constitucional, que admitia que a solução dos problemas jurídicos nem sempre estaria no relato abstrato da norma, só sendo possível produzir a resposta constitucionalmente adequada á luz dos fatos relevantes analisados topicamente, o que tornava o Juiz, por consequência, um co-participante do processo de criação do Direito[7].
É nesse ambiente de profundas transformações do Direito Constitucional que surge o neoconstitucionalismo: estruturado sobre o reconhecimento da força normativa da Constituição, a nova doutrina explicita uma necessária conexão entre Direito e valor (dimensão axiológica) verificada na interpretação das normas constitucionais e também na justificação da decisão judicial. Com efeito, o constitucionalismo prioriza o ponto de vista interno, do participante, na interpretação das normas (ao contrário do observador desinteressado que o positivismo realça) e a necessidade dessa conexão jurídica-axiológica na justificação da decisão judicial faz com que o Juiz passe a compartilhar o substrato axiológico dos participantes e a partilhar a efetiva justificação do Direito[8].
De acordo com Lílian Balmant Emeric, é possível observar o neoconstitucionalismo sob diferentes primas: teórico, ideológico e metodológico[9]. No primeiro, identifica-se um Direito que não é apenas descritivo de direitos e deveres, mas sim voltado á valoração desses conteúdos de acordo com a concepção axiológica prevista na Constituição. É dessa concepção teórica que irrompe o fenómeno da constitucionalização do Direito, decorrente do efeito expansivo das normas constitucionais – o conteúdo axiológico e material dessas normas se irradia por todo o ordenamento jurídico infraconstitucional, determinando um juízo de conformação aos preceitos e valores constitucionais. E esse efeito irradiante estabelece importantes diretrizes para o exercício das três funções estatais: a um só tempo, limita a liberdade de legislar do Poder Legislativo e lhe impõe a obrigação de atuar com vistas a realizar o direito e os programas constitucionais, limita a discricionariedade e impõe deveres de atuação à Administração Pública e, por fim, obriga o Poder Judiciário à observáncia de parámetros para o controle de constitucionalidade e das condições interpretativas de todas as normas do sistema.
Do ponto de vista ideológico, afirma a autora, é de se ressaltar a existência de uma obrigação moral de obedecer á Constituição, com claro objetivo de garantia e de promoção dos direitos fundamentais. O neoconstitucionalismo ideológico evidencia a especificidade da interpretação e da aplicação da Constituição em relação ás leis infraconstitucionais, especificidade essa que deriva do próprio objeto da Constituição e se manifesta especialmente em relação aos novos parámetros interpretativos.
Por fim, sob a perspectiva metodológica, diferentemente do positivismo, a autora enfatiza que o neoconstitucionalismo não se coaduna com a possibilidade de descrever o Direito como é (fato) e distingui-lo do Direito como deve ser (valor). Amparadas nessa nova visão, surgem as teses das fontes sociais do Direito e da conexão necessária entre direito e aspectos axiológicos, servindo como ponte entre Direito e Valores os princípios constitucionais e os direitos fundamentais
Em sentido aproximado, Ana Paula de Barcellos destaca que as características específicas do neoconstitucionalismo podem ser analisadas sob dois primas:
Do ponto de vista metodológico-formal, o constitucionalismo atual opera sobre três premissas fundamentais, das quais depende em boa parte a compreensão dos sistemas jurídicos ocidentais contemporáneos. São elas: (i) a normatividade da Constituição, isto é, o reconhecimento de que as disposições constitucionais são normas jurídicas, dotadas, como as demais, de imperatividade; (ii) a superioridade da Constituição sobre o restante da ordem jurídica (cuida-se aqui de Constituições rígidas, portanto); e (iii) a centralidade da Carta nos sistemas jurídicos, por força do fato de que os demais ramos do Direito devem ser compreendidos e interpretados a partir do que dispõe a Constituição. Essas três características são herdeiras do processo histórico que levou a Constituição de documento essencialmente político, e dotado de baixíssima imperatividade, á norma jurídica suprema, com todos os corolários técnicos que essa expressão carrega.
(...) Do ponto de vista material, ao menos dois elementos caracterizam o neoconstitucionalismo e merecem nota: (i) a incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais, sobretudo no que diz respeito á promoção da dignidade humana e dos direitos fundamentais; e (ii) a expansão de conflitos específicos e gerais entre as opções normativas e filosóficas existentes dentro do próprio sistema constitucional[10].
Lílian Balmant Emeric ainda aponta como particularidades do pensamento neoconstitucionalista a diferenciação entre regras e princípios, a ponderação ao invés de subsunção (sendo a subsunção meio de interpretação e aplicação requerido pelas regras e a ponderação ou balanceamento, pelos princípios); a Constituição ao invés de independência do Legislador (o legislador tem sua atuação condicionada pelos comandos constitucionais, já que esses condicionam a validade e legitimidade das normas); e a interpretação criativa dos juízes, sendo o papel do julgador adequar a legislação às determinações constitucionais (necessidade de interpretar o Direito conforme a justiça do caso concreto)[11].
5 CRíTICAS – PONTO E CONTRAPONTO
O pensamento neoconstitucionalista, todavia, não é livre de críticas. Veja-se, desde logo, o posicionamento de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, acerca da doutrina neoconstitucionalista brasileira:
(...) a doutrina brasileira do neoconstitucionalismo – ao menos nos ensinamentos que apreendi – não se sustenta. O seu pós-positivismo – peça central do modelo – é simplista e não traz inovações, mas usa, sem dizê-lo, de idéias de há muito conhecidas no plano do direito. Na verdade, para o bem da causa, a doutrina anterior é referida de modo caricatural e simplista, quando não convenientemente ignorada.[12]
Passa-se a analisar mais detidamente três das principais críticas dirigidas à doutrina do neoconstitucionalismo: (i) a da suposta superação das regras pelos princípios, (ii) a da suposta prevalência do critério de ponderação ante o método de subsunção nas decisões jurídicas, e (iii) a referente aos riscos de um ativismo judicial sem controle.
A primeira crítica, pois, acusa a doutrina neoconstitucionalista de pregar um ordenamento com mais regras que princípios e a superação daquelas por esses.[13]
Luís Roberto Barroso, um dos maiores expoentes da doutrina neoconstitucionalista no Brasil, rebate essa crítica desconstruindo a primeira afirmação: segundo o autor, o neoconstitucionalismo não prega um sistema com mais princípios do que regras e, aliás, nenhum sistema jurídico pode ser assim. Na verdade, a relação entre princípio e regra no novo Direito Constitucional não é de quantidade, mas de qualidade – e diz respeito especialmente ao papel que regras e princípios desempenham na ordem jurídica: os princípios, com sua plasticidade, permitem a construção de uma ideia de justiça no caso concreto; as regras, com sua objetividade, asseguram segurança jurídica. Justiça e segurança jurídica são os dois grandes valores de qualquer ordenamento jurídico. Em outras palavras, defende o autor que qualquer ordenamento jurídico que se pretenda em equilíbrio entre justiça e segurança jurídica deve manter um equilíbrio adequado entre princípios e regras. Mas, ressalta, é preciso moderação (considerando, designadamente, uma euforia inicial que aconteceu no Brasil em relação á utilização dos princípios) e não se descuidar desse equilíbrio entre princípios e regras, salientando, ainda, que, se houver regra que se consubstancie de forma expressa como uma exceção ao princípio, é ela que deve prevalecer, pois nesse caso, trata-se de opção política externada ou pelo constituinte ou pelo legislador (e que deve ser respeitada). Assim, Barroso afirma que o neoconstitucionalismo não prega uma superação das regras pelos princípios, defende apenas a leitura das regras, de todo o ordenamento jurídico (constitucional e infraconstitucional) á luz dos princípios constitucionais – o que, de forma alguma, significa desprestigiar a regra, mas sim potencializá-la de modo que ela realize da melhor forma possível o seu papel no sistema[14].
A segunda crítica apresentada na doutrina, que este trabalho se propôs a analisar, diz respeito á adoção, pelo neoconstitucionalismo, de um modelo onde se tem mais ponderação do que subsunção como critério de decisão.[15]
Luís Roberto Barroso, no entanto, rebate essa crítica argumentando que a ponderação defendida pelo neoconstitucionalismo é a solução-limite, utilizada apenas quando não é possível resolver o impasse atravês de subsunção. Assim, afirma que sempre que for possível extrair solução adequada do relato da norma, esta solução é a preferível, uma vez que a ponderação transfere parte do processo de criação do Direito para o intérprete, o que tem certo impacto sobre a segurança jurídica (já que esse processo de criação pode variar de intérprete para intérprete). A ponderação não é boa, diz, mas é necessária. Destaca o autor que neste ponto há uma interpretação equivocada dos críticos do neoconstitucionalismo de que os princípios só se aplicariam mediante processo decisório de ponderação. Barroso afirma que, na verdade, os princípios se aplicam mediante três diferentes modos: diretamente, com eficácia interpretativa e pelo processo de ponderação. Com efeito, defende o autor que os princípios podem ser aplicados direta e imediatamente, pois têm conteúdos mínimos, sendo possível se extrair uma regra de um princípio. Além disso, os princípios também têm eficácia interpretativa e ajudam a dar sentido á regra. É somente a terceira hipótese de aplicação dos princípios – quando normas constitucionais, direitos fundamentais entram em rota de colisão – que há a necessidade do processo de ponderação.
Por fim, há uma terceira crítica – a qual desde já adianta-se parecer muito pertinente – que se refere aos perigos de um ativismo judicial deformador.
Nas palavras de Daniel Sarmento:
O cerne do debate está no reconhecimento de que, diante da vagueza e abertura de boa parte das normas constitucionais mais importantes, quem as interpreta também participa do seu processo de criação. Daí a crítica de que o viés judicialista subjacente ao neoconstitucionalismo acaba por conferir aos juízes uma espécie de poder constituinte permanente, pois lhes permite moldar a Constituição de acordo com as suas preferências políticas e valorativas, em detrimento daquelas do legislador eleito.[16]
Além disso, Sarmento afirma que uma ênfase exagerada no espaço judicial pode levar ao esquecimento de outros terrenos importantes para a concretização da Constituição e realização de Direitos, gerando um resfriamento da mobilização cívica do cidadão. Continua: justifica-se o ativismo judicial a partir de uma visão muito crítica do processo político majoritário, mas que ignora as inúmeras mazelas que também afligem o Poder Judiciário, construindo-se teorias a partir de visões románticas e idealizadas do juiz”.[17]
Acompanha-se, no ponto específico que se analisa, as preocupações de Daniel Sarmento, por se entender que esta seja, talvez, a mais importante crítica ao neoconsticionalismo. Embora acredite-se que o Poder Judiciário tenha papel essencial na concretização da Constituição, há a inegável necessidade de se estar atento á liberdade criadora dos juízes, para que esta não ultrapasse as fronteiras da interpretação possível para subjetivismos e autoritarismos (em uma verdadeira ditadura da toga). Há que se ter em mente que o papel do juiz ativo no processo de interpretação não suplanta o papel do legislador e, muito menos do constituinte, que, em atividade majoritária, expressa na norma os anseios populares (ao menos em teoria...). Não se pode esquecer que a atividade dos juízes é principalmente concretizar direitos, buscando a justiça do caso concreto – e não externar ou impor ás partes seu modo particular de ver as coisas, de pensar ou de viver. As decisões devem ser fundamentadas, com retorno a algum elemento do ordenamento jurídico (ainda que não específico para aquele caso concreto, mas que indique de onde se extraiu a linha de pensamento e a forma de decisão adotada), além, é claro, de não se perderem em individualismos, subjetivismos, devendo ser pensadas como fórmulas para posterior aplicação caso ocorram fatos iguais ou semelhantes. Enfim, a interpretação não pode ser de tal modo diversa que a sorte dos contendores seja diferente caso a análise seja feita por este ou por aquele Juiz – há que se ter um mínimo comum de interpretação, retirado dos preceitos e valores constitucionais. Afinal, ainda que a interpretação seja criadora, haverá sempre uma margem que se pode (e deve controlar), conforme nos lembra Paulo Ferreira da Cunha:
Mas estes factos não invalidam uma outra realidade: a do significado conotativo mínimo e irredutível dos preceitos: um texto pode ser acomodado a algumas interpretações: extensivas, restritivas, analógicas, em casos excepcionais até corretivas. Mas não pode ser subvertido. Não se pode pó-lo a dizer o contrário do que, realmente, significa. Nem sequer é a razão do legislador, a sua vontade (ratio legislatoris) é o próprio conteúdo efetivo da norma (ratio legis).[18]
6 CONCLUSão
Diante de todo o exposto, é possível considerar o neoconstitucionalismo como uma forma de pensamento pluralista acerca da ontologia do Direito, que defende uma normogênese não exclusivamente legal. Está fundamentado em um “Direito pós-moderno” (entre aspas porque, como exposto, não há tanta certeza acerca dessa mudança de eras) e baseado na centralidade da Constituição no ordenamento jurídico, no reconhecimento de sua força normativa e da normatividade dos princípios, nos efeitos irradiantes das normas constitucionais (e conseqúente constitucionalização do Direito) e no papel ativo no julgador na concretização dos valores e normas constitucionais.
No entanto, dentre as várias críticas que são dirigidas ao neoconstitucionalismo, entende-se que uma deve ser objeto de especial atenção: há a necessidade de se ter cautela em matéria de ativismo judicial, para que a atividade criativa dos juízes não ultrapasse os limites da interpretação possível, passando a subjetivismos e arbitrariedades.
REFERêNCIAS
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[1] CUNHA, Paulo Ferreira da. Síntese de Filosofia do Direito. Coimbra: Almedina, 2009, p. 157.
[2] CUNHA, Paulo Ferreira da. Ob. cit., p. 143.
[3] CUNHA, Paulo Ferreira da. Ob. cit., p. 137.
[4] BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico – Lições de Filosofia do Direito. Compiladas pelo Dr. Nello Morra. Tradução e notas de Márcio Pugliese, Edson Bini, e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: ícone, 1995, p. 131 a 133.
[5] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil. In Revista Eletrónica sobre a Reforma do Estado. Bahia: Instituto Brasileiro de Direito Público, 2007, disponível em Acesso em 06 ago. 2014.
[6] Nesse sentido, cite-se Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que tem visão muito crítica acerca dessa passagem de eras. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Notas sobre o Direito Constitucional Pós-Moderno, em Particular sobre um certo Neoconstitucionalismo á Brasileira. In Systemas – Revista de Ciências Jurídicas e Económicas, v. 2, n. 1, p. 101 a 118, 2010. Disponível em Acesso em 06 ago. 2014.
[7] BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit., p. 9.
[8] EMERIC, Lílian Balmant. Neoconstitucionalismo e Alguns Elementos das Percepções Contemporáneas da Hemenêutica Constitucional. In QUARESMA, Regina, OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula, OLIVEIRA, Farlei Martins Riccio de (coord.). Neoconstitucionalismo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 631 e 632.
[9] EMERIC, Lílian Balmant. Ob. cit., p. 637 e 638.
[10] BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle das Políticas Públicas. In QUARESMA, Regina, OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula, OLIVEIRA, Farlei Martins Riccio de (coord.). Neoconstitucionalismo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 798 a 802. Em suma, segundo a autora, a partir do momento que passam a fazer parte da Constituição valores e opções políticas e filosóficas, passando esses a ter status de normas constitucionais, deve se desenvolver uma dogmática específica apta a lhes conferir eficácia jurídica.
[11] EMERIC, Lílian Balmant. Ob. cit., p. 640 a 650.
[12] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Ob. cit., p. 117.
[13] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Ob. cit., p. 111 e 112. No mesmo sentido, SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e Possibilidades. In QUARESMA, Regina, OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula, OLIVEIRA, Farlei Martins Riccio de (coord.). Neoconstitucionalismo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 272 e 273.
[14] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Ativismo Judicial no Brasil Hoje. Disponível em . Acesso em 07 ago. 2014.
[15] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Ob. cit., p. 114 e 115; A mesma crítica é apresentada por SARMENTO, Daniel. Ob. cit., p. 273 e 274 e p. 295 e 296.
[16] SARMENTO, Daniel. Ob. cit., p. 289 e 290.
[17] SARMENTO, Daniel. Ob. cit., p. 292.
[18] CUNHA, Paulo Ferreira da. Ob. cit., p. 26.
Procuradora Federal; Procuradora-Chefe substituta da Divisão de Assuntos Disciplinares da PGF. Mestra em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto/Portugal. Doutoranda em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto/Portugal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GONTIJO, Danielly Cristina Araújo. Anotações sobre o Neoconstitucionalismo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 nov 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42372/anotacoes-sobre-o-neoconstitucionalismo. Acesso em: 22 nov 2024.
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