RESUMO: Discute-se se a possibilidade de modulação de efeitos das decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade acabariam por ferir o princípio da supremacia da constituição, concluindo-se pela perfeita compatibilização dos institutos, de modo a conferir máxima eficácia normativa ao texto constitucional diante da preservação do Estado de Direito.
Palavras-chave: Sentença Intermediária – Declaração de Inconstitucionalidade – Efeitos Retroativos – Modulação de Efeitos – Princípio da Segurança Jurídica – Princípio do Interesse Social – Separação de Poderes – Ponderação – Mutação Constitucional – Estado Democrático de Direito.
Embora sedimentadas atualmente, muitas já foram as discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre a constitucionalidade de sentenças intermediárias proferidas no bojo de ações diretas de controle de constitucionalidade. Havia quem dissesse que referidos provimentos jurisdicionais ofenderiam o princípio da Separação de Poderes, previsto no artigo 2º da Constituição Federal Brasileira, ao atribuírem ao Poder Judiciário a feição de legislador positivo.
A discussão em testilha toma por base, em linhas gerais, as disposições contidas no art. 27 da Lei Federal n. 9.868/99, que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, in verbis:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
De chofre, constata-se facilmente que o dispositivo em apreço institui verdadeira exceção ao princípio da nulidade absoluta da norma constitucional. De fato, a regra geral consiste na atribuição de efeitos retroativos à declaração de inconstitucionalidade da norma desde sua publicação, mormente diante do caráter vinculativo aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual ou municipal, nos termos do parágrafo único do art. 28 da Lei Federal sob análise:
Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.
Tanto que a eficácia ex nunc de decisões proferidas em controle de constitucionalidade somente é admitida como regra diante das específicas e restritas hipóteses de medidas cautelares ajuizadas naquela seara, conforme disposto no art. 11, §1º, da Lei Federal n. 9.868/99:
Art. 11. Concedida a medida cautelar, o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário Oficial da União e do Diário da Justiça da União a parte dispositiva da decisão, no prazo de dez dias, devendo solicitar as informações à autoridade da qual tiver emanado o ato, observando-se, no que couber, o procedimento estabelecido na Seção I deste Capítulo.
§ 1o A medida cautelar, dotada de eficácia contra todos, será concedida com efeitoex nunc, salvo se o Tribunal entender que deva conceder-lhe eficácia retroativa.
As sentenças intermediárias de controle de constitucionalidade, também chamadas de sentenças reconstrutivas, tem por escopo verificar a compatibilidade da norma com o sistema jurídico. Afiguram-se, em verdade, como técnica de decisão que declara ser a norma constitucional desde que interpretada ou aplicada em determinado sentido. Fundamentam-se no fato de que, caso houvesse rigidamente a declaração de nulidade extunc de todas as normas inconstitucionais, poderia haver reflexos a implicar densas injustiças na esfera social, de modo a intimidar o Poder Judiciário a declarar inconstitucional ou não certa regra independentemente de sua convergência com o ordenamento jurídico posto, mas com vistas às nefastas consequências sociais que esta decisão poderia ocasionar.
Pode-se dizer, nesse sentido que a modulação dos efeitos das sentenças intermediárias inspira-se na doutrina alemã (Verfassunsgskonforme Auslegungdes GesetzesI) e na atuação da Suprema Corte Americana visando à manutenção do texto legal no sistema jurídico, declarando sua inconstitucionalidade somente a partir de certo momento no tempo, distinto do início da vigência da norma.
Este marco temporal atinente à constitucionalidade (ou inconstitucionalidade) da lei não necessariamente corresponderá à data da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal; ao contrário, a literalidade do artigo 27 da Lei Federal n. 9.868/99 permite ao julgador defini-lo como o momento em que o julgamento transitar em julgado ou como qualquer outra demarcação no tempo, desde que atendidas razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.
Neste aspecto, não existe incompatibilidade entre as sentenças intermediárias de declaração de inconstitucionalidade com o princípio da Supremacia da Constituição. Muito pelo contrário, elas visam a conferir máxima normatividade ao texto constitucional sem que isto retire a legitimidade dele perante a sociedade. Em outras palavras, as sentenças intermediárias de constitucionalidade buscam solucionar a questão constitucional de modo justo, preocupando-se em preservar o princípio da segurança jurídica nas relações sociais.
Isto porque a proteção da Constituição é indispensável para a preservação da democracia, exteriorizada pelo controle de constitucionalidade, pela proteção dos direitos fundamentais e pelo controle de políticas públicas.
De qualquer modo, dentre os fatores capazes de ensejar a revisão de posicionamento quanto a inconstitucionalidade de determinada norma no tempo, não se pode olvidar a possibilidade de densa alteração da situação normativa no seio social em que aplicada. Não são raras as oportunidades em que o legislador tinha, perante si, quando da edição da norma, realidades fáticas e usos que se coadunavam com a norma por ele elaborada; todavia, essas realidades e usos acabaram por sofrer tamanha variação ao longo da história que a norma inicialmente proclamada já não se mostra ajustável às novas relações.
Não se pode esquecer que, aquilo que no momento do nascimento da lei atuava de modo determinado, desejado pelo legislador, pode posteriormente atuar de um modo que o legislador nem sequer previu, nem, se pudesse prevê-lo, estaria disposto a aprovar. Somente, assim, no momento da aplicação as regras do direito aos casos concretamente efetivados é que a norma revelaria o seu sentido e o alcance de seu enunciado normativo.
O Supremo Tribunal Federal não está, portanto, somente autorizado, mas sim obrigado a ponderar em suas decisões a considerações das possíveis consequências que dela poderão advir. Exclusivamente deste modo é que se apura se um possível resultado da decisão não se afiguraria manifestamente injusto, acarretaria dano para o bem público ou lesionaria interesses dignos de proteção de cidadãos regulares. Haveria não apenas um resultado injusto, mas também um resultado juridicamente errado.
Conclui-se, portanto, que a norma contida no art. 27 da Lei Federal n. 9.868/99 tem caráter fundamentalmente interpretativo, revestindo-se os conceitos jurídicos indeterminados de base constitucional, notadamente os princípios da segurança jurídica e do interesse social, não ferindo o Princípio da Supremacia da Constituição mas, ao contrário, fortalecendo-o diante da máxima efetividade do texto constitucional, a encontrar expressão no próprio princípio do Estado Democrático de Direito.
Precisa estar logado para fazer comentários.