Em regra, a sociedade limitada responde pelos atos praticados por seus administradores, quando estes atuam nessa qualidade e dentro do âmbito de autorização do contrato social. O contrato social, para além de regular as relações entre os sócios que integram o ente coletivo, constitui típico contrato de mandato, vez que a manifestação de vontade do representante vincula o representado.
Dentre as hipóteses que permitem que a sociedade oponha, perante terceiros, excesso de mandato por parte de seus administradores, destaca-se a teoria da ultra vires, inaugurada no direito brasileiro pelo art. 1.015, III, do Código Civil de 2002, a qual consiste em considerar como praticados em excesso de mandato os negócios jurídicos estranhos ao objeto social da pessoa jurídica empresária.
Concebida inicialmente na Inglaterra na segunda metade do Século XIX, com o propósito primeiro de coibir o desvio de finalidade e abuso de direito por meio das sociedades empresárias, e tendo sido largamente utilizada nos Estados Unidos, essa teoria deixou de ser aplicada nesses países, vez que gerava bastante insegurança jurídica, comprometendo, sobranceiramente, o fluxo do mercado.
De fato, ao se permitir à sociedade empresária opor essa doutrina em face de terceiros de boa-fé, a pretexto da falta de pertinência entre o negócio jurídico levado a efeito por seus administradores e o objeto da empresa, semeava-se intensa insegurança jurídica aos demais contratantes e comprometia-se o tráfico negocial, pois, a cada avença, era necessário exigir o contrato social da sociedade, a fim de se verificar a normalidade do negócio jurídico em relação àquele ente coletivo; foi por isso que a teoria ultra vires perdeu força nesses países.
A pergunta que se coloca é: será possível a aplicação irrestrita do art. 1.015, III, do Código Reale, mesmo diante dos resultados danosos demonstrados pela experiência? Terá a teoria da ultra vires o mesmo destino que aquele verificado no direito comparado?
Apesar de positivada no ordenamento jurídico brasileiro, a aplicação da teoria ultra vires deve ser temperada com o postulado da boa-fé objetiva, notadamente pela teoria da aparência. Por essa teoria, atribuem-se efeitos jurídicos a situações meramente aparentes, as quais, ordinariamente, não deveriam consideradas pela ordem jurídica. É o que ocorre com o pagamento feito a credor putativo por quem esteja de boa-fé. Pelo art. 309, do Código Civil, considera-se válido o pagamento feito nessa condições, devendo o credor fornecer quitação ao devedor.
Pela insegurança jurídica que gera a aplicação da teoria ultra vires, o Professor André Luiz Santa Cruz Ramos afirma que “melhor seria, talvez, em homenagem à boa-fé dos terceiros que contratam com a sociedade limitada, reconhecer sua responsabilidade pelos atos ultra vires, mas assegurar-lhe a possibilidade de voltar-se em regresso contra o administrador que se excedeu” (RAMOS, André Luiz Santa Cruz, p. 374).
E parece que esse é o entendimento que tem prevalecido em âmbito doutrinário, ou seja, da compatibilização entre a ultra vires e a teoria da aparência, porquanto se mostra de suma importância a proteção dos interesses do terceiro de boa-fé no negócio jurídico praticado pelo administrador da sociedade, ainda que aquele se mostre estranho ao objeto da empresa.
O STJ, por seu turno, passou a encampar o entendimento doutrinário, ao afirmar que a ultra vires deve ser aplicada em consonância com a teoria da aparência, de modo a salvaguardar o interesse de terceiros de boa-fé, especialmente quando do negócio, ainda que estranho ao objeto do contrato social, decorram efeitos favoráveis à sociedade limitada. É o que denota do aresto abaixo, proferido por aquela Corte Infraconstitucional:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. OBRIGAÇÃO ASSUMIDA PELO PRESIDENTE DA ENTIDADE. AUSÊNCIA DE ASSINATURA CONJUNTA DO VICE-PRESIDENTE. PRESTAÇÃO DO SERVIÇO EM FAVOR DA PESSOA JURÍDICA NÃO QUESTIONADA. AGENTE "FIFA" CREDENCIADO. RELAÇÃO DIRETA COM O OBJETO SOCIAL DA PESSOA JURÍDICA. BENEFÍCIO DA ENTIDADE ESPORTIVA. VALIDADE. POSIÇÃO JURISPRUDENCIAL CONSOLIDADA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 83/STJ. OBSCURIDADE. AUSÊNCIA.
·O Superior Tribunal de Justiça tem mitigado os rigores da teoria da ultra vires, mesmo após a edição do novo Código Civil, dando prevalência à boa-fé de terceiro, mormente nos casos em que a obrigação guarda relação com o objeto social e não se nega a prestação do serviço em benefício da sociedade contratante.
·O reexame da matéria que constitui o objeto do acórdão embargado na busca de decisão infringente é pretensão estranha ao âmbito dos embargos declaratórios, definido no artigo 535 do Código de Processo Civil.
3. A atribuição de efeitos modificativos somente é possível em situações excepcionais, em que, sanada a omissão, contradição ou obscuridade, a alteração da decisão surja como consequência lógica e necessária.
4. Embargos de declaração rejeitados [1].
Esse julgado, apesar de incorrer numa contradição em termos - pois admite a aplicação da teoria ultra vires aos atos que guardam pertinência com o objeto do contrato social, quando, na verdade, esses não precisam de socorro da mencionada teoria, pois vinculam diretamente a sociedade como regra geral -, não deixa qualquer dúvida acerca da necessidade de análise da teoria da aparência.
Conclusão
Forçoso concluir que, ainda que não se negue a vigência da teoria ultra vires às sociedades limitadas, o seu âmbito de aplicação na ordem jurídica brasileira é mitigado, e muito, pelo princípio da boa-fé objetiva, em especial pela teoria da aparência, decorrência lógica daquele postulado, como forma de promover proteção a terceiros de boa-fé objetiva, a gerar segurança jurídica aos contratantes e a regularidade do tráfico negocial.
Referências bibliográficas
FILHO BARBOSA, Marcelo Fortes, in Código Civil Comentado, Coord. Min. César Peluso, 3ª edição, Barueri/SP: Ed. Manole, 2009.
RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de direito empresarial. 2. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2009.
Notas:
[1] Resp 704546 / DF, DJe 08/06/2010, LEXSTJ vol. 251 p. 9
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