RESUMO: Este trabalho trata da análise dos valores subjacentes ao art. 68, ADCT, que possuem o condão de condicionar a interpretação desse mesmo artigo, bem como trazem à tona a necessidade de adoção pelo Estado de políticas públicas que concretizem efetivamente esse direito previsto constitucionalmente.
1) INTRODUÇÃO:
O art. 68, ADCT, encerra direito fundamental que deve ser conferido a uma minoria étnica vulnerável – Quilombolas –, porquanto o perímetro que deverá ser ocupado pela Comunidade Quilombola, conforme estudos a serem desenvolvidos no procedimento que deverá culminar com a titulação da área à comunidade, restará por permitir a sua continuidade no tempo através de sucessivas gerações.
A preservação da identidade étnica e cultural dos remanescentes de Quilombos com a concessão de títulos de domínio garante aos membros da comunidade uma vida digna, conferindo-se efetividade ao princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido no art. 1º, inciso III, CF/88, base e meta do Estado Democrático de Direito e de onde decorrem todos os demais princípios e subprincípios constitucionais.
O art. 68, ADCT, deve buscar a proteção da Comunidade Quilombola, o que lhe confere um espectro amplo de atuação, de modo a impedir interpretações e atuações que restem por levar à extinção dessa minoria étnica vulnerável.
2) ÂMBITO DE PROTEÇÃO DO ART. 68, ADCT:
A elaboração do RTID não pode pautar-se apenas na definição de território sob a ótica de preservação tão somente das terras atualmente ocupadas pelos remanescentes de quilombos, adotando-se, por conseguinte, uma interpretação literal do art. art. 68, ADCT.
Para melhor ilustração da questão, transcreve-se aqui o teor do art. 68, ADCT, in verbis:
“Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”
A leitura do texto constitucional acima transcrito demonstra que o legislador constitucional garantiu a uma minoria étnica o direito de moradia, possibilitando, assim, a manutenção de seus costumes, tradições e peculiar modo de viver.
Porém, quando se trata de comunidade remanescente quilombola, esse direito à moradia assume proporções gigantescas, traduzindo-se em um direito associado à identidade étnica do grupo, posto que a terra que vem sendo ocupada pelo grupo, bem como a terra que deveria estar sendo ocupada pelo grupo, é o elo que mantém a união do grupo e que permite a sua continuidade no tempo, através das gerações, possibilitando a preservação da cultura, dos valores e do modo peculiar de vida da comunidade.
Nessa linha, a interpretação literal do artigo 68, ADCT, restaria por retirar-lhe a sua máxima efetividade, isto é, a sua máxima eficácia social, e, portanto, a sua própria utilidade. Não se pode conceber, nesse diapasão, uma interpretação que acabe frustrando a garantia de sobrevivência de um grupo culturalmente diferenciado.
Repisa-se, dessa forma, que garantir tão-somente as terras que vêm sendo ocupadas pela Comunidade Remanescente Quilombola, ainda que tais espaços não sejam suficientes para a manutenção do grupo, com alta potencialidade do grupo desaparecer, ofende o espírito do art. 68, ADCT, que é exatamente o de garantir a sobrevivência do grupo e não o seu etnocídio.
Dessa forma, é possível traçar a devida ligação entre o princípio da dignidade humana – art. 1o, inciso III, CF, e o art. 68, ADCT, que busca preservar a identidade étnica e cultural dos remanescentes quilombolas, pressuposto necessário para a manutenção da própria identidade desses grupos e, por conseguinte, de sua dignidade.
Portanto, o etnocídio de uma comunidade afro-brasileira por ausência de espaço territorial necessário ao desenvolvimento de suas formas de expressão, de seus modos de criar, fazer e viver, afronta diretamente os art. 1º, inciso III, art. 215, caput, §1º e art. 216, CF/88 e o art. 68, ADCT.
Oportuno frisar que a conclusão acima decorre de uma interpretação global da Constituição Federal e não de uma análise isolada e literal do art. 68, ADCT, pois, como sabido, as normas constitucionais devem ser vistas como preceitos integrados em um sistema unitário de regras e princípios – princípio da unidade da Constituição.
3) EFETIVIDADE DO ART. 68, ADCT:
A leitura do art. 68, ADCT, deve ser feita sob a ótica do neoconstitucionalismo, ou seja, desse novo momento constitucional vivenciado pela sociedade jurídica brasileira, em que se buscam técnicas dogmaticamente consistentes e utilizáveis na prática jurídica que tenham o condão de transformar as disposições constitucionais em realidade, é a busca incessante de transformação do teórico em concreto.
Raciocinando nessa linha, tem-se que, do ponto de vista metodológico-formal, o atual constitucionalismo opera sobre três premissas fundamentais, expostas por Ana Paula Barcelos em seu artigo sobre neoconstitucionalismo, in verbis:
“(...) (i) a normatividade da Constituição, isto é, o reconhecimento de que as disposições constitucionais são normas jurídicas, dotadas como as demais de imperatividade; (ii) a superioridade da Constituição sobre o restante da ordem jurídica (cuida-se aqui de Constituições rígidas, portanto); (iii) a centralidade da Carta nos sistemas jurídicos, por força do fato de que os demais ramos do direito devem ser compreendidos e interpretados a partir do que dispõe a Constituição.”
No mundo contemporâneo, portanto, não se concebe mais a adoção de posicionamento de que a Carta Magna é uma carta de intenções, onde suas disposições apenas servem como diretrizes de atuações governamentais, o que resta por ocasionar a chamada “síndrome da inefetividade constitucional”.
O art. 68, ADCT, traz, destarte, em seu bojo a inarredável conclusão de que o Poder Público tem o poder-dever de adotar Políticas Públicas capazes de instrumentalizar a concretização do direito subjetivo de cada membro de remanescente de Comunidade Quilombola de ter reconhecido o seu Território com a consequente emissão do título definitivo de propriedade em prol da comunidade, nos termos do mencionado artigo.
4. CONCLUSÃO:
Atualmente, há uma verdadeira preocupação com a eficácia social dos direitos fundamentais, mormente no contexto de uma sociedade sobremaneira desigual como a brasileira.
Nessa linha, o Estado – em todos os seus níveis de poder – deve observar o dever de respeito (não violar o direito), proteção (não deixar que o direito seja violado) e promoção (possibilitar que todos usufruam o direito) dos direitos fundamentais das Comunidades Quilombolas. Esses deveres devem estar estritamente conectados com a interpretação que deve ser conferida ao art. 68, ADCT, e com o realce conferido pelo neoconstitucionalismo às normas constitucionais, que devem ser vistas como normas jurídicas, dotadas de imperatividade.
Portanto, o Estado não poderá, através de interpretações e atuações que restrinjam os direitos das comunidades, retirar a teleologia da regra constitucional, esvaziando o seu conteúdo e impedindo que as Comunidades Quilombolas vivam dignamente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Barcelos, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. pág. 2.
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