RESUMO:o texto apresenta a ideia de democracia para Hans Kelsen, entendida como como uma convivência da maioria e da minoria no parlamento e a capacidade da minoria em influenciar nas decisões, tendo-se em mente antítese ideologia (dever ser) e realidade (é). Para o autor, o direito da maioria pressupõe o direito à existência de uma minoria. Disto resulta a possibilidade de proteger a minoria contra a maioria. Esta proteção da minoria é função essencial dos chamados direitos e liberdades fundamentais, também denominados direitos do homem e do cidadão, garantidos por todas as modernas constituições das democracias parlamentares.
Palavras-chaves: Democracia – Democracia ideal – Democracia real –Kelsen
INTRODUÇÃO
Muito conhecido como jurista, Kelsen também escreveu sobre a democracia. É como filósofo político que o autor desenvolve suas observações ao substrato material do direito
Em A democracia, Hans Kelsen, define a democracia como a síntese dos princípios da liberdade e da igualdade, entendendo ser esta a melhor forma de governo, ao mesmo tempo em que refuta qualquer espécie de ditadura partidária, seja ela de esquerda ou de direita.
Apresenta a ideia de democracia como uma convivência da maioria e da minoria no parlamento e a capacidade da minoria em influenciar nas decisões, tendo-se em mente antítese ideologia (dever ser) e realidade (é).
Para o autor, o direito da maioria pressupõe o direito à existência de uma minoria. Disto resulta a possibilidade de proteger a minoria contra a maioria. Esta proteção da minoria é função essencial dos chamados direitos e liberdades fundamentais, também denominados direitos do homem e do cidadão, garantidos por todas as modernas constituições das democracias parlamentares.[1]
DESENVOLVIMENTO
Na obraA democracia, Kelsen se volta para a democracia como uma convivência da maioria e da minoria no parlamento e a capacidade da minoria em influenciar nas decisões.
A essência da democracia só pode ser compreendida tendo-se em mente a antítese ideologia e realidade.
Temos intrínseca à ideia de democracia dois postulados de nossa razão: a liberdade e a igualdade. A síntese de tais postulados, liberdade com igualdade, que caracteriza da democracia.[2] Assim, da ideia de que somos iguais, podemos deduzir que ninguém deve mandar em ninguém. Mas então porque “eu” obedeço? De onde surge a ideia de autoridade do poder?
Diante da necessidade de haver um regulamento obrigatório das relações dos homens entre si, há uma transformação semântica na noção de liberdade, que passa da ausência de qualquer domínio de Estado (liberdade natural), para a autodeterminação política do cidadão, ou seja, a participação do indivíduo no poder do Estado (liberdade política[3]. Assim, temos que o homem será dominado por ele mesmo. A liberdade natural é, então, transformada em liberdade política, que significa a sujeição ou obediência do indivíduo a uma ordem normativa criada por ele mesmo. Isso significa que a sujeição decorre da participação do indivíduo às normas por ele mesmo criadas.
Em outras palavras, a ideia de autoridade do poder decorre da autodeterminação do indivíduo, que obedece às normas porque é igual, porque é parte criadora da norma a que se submete e o poder de mando decorre do liberdade cedida à autoridade quando da superação do estado de natureza.
Contudo, aponta o autor que mesmo na democracia direta, a liberdade do cidadão dura somente o momento da votação, e apenas se votou com a maioria e não com a minoria vencida. Por isso, o princípio democrático da liberdade parece exigir uma maioria qualificada, possivelmente uma unanimidade, como garantias da liberdade individual, a fim de reduzir ao mínimo a possibilidade de uma decisão imposta à minoria.[4]
Entretanto exigir a unanimidade é inadmissível para a vida política corrente, só sendo exigido para a conclusão do contrato social. A democracia, em favor da uma possível ordem social ulterior, renuncia à unanimidade que, hipoteticamente, poderia ser aplicada a sua fundação por contrato e se contenta com as decisões tomadas pela maioria, limitando-se a aproximar de seu ideal original.[5]
Mesmo quando vota com a maioria, o indivíduo não está submetido à sua vontade, sendo isso perceptível quando muda de opinião e, como essa mudança, não verifica consequências jurídicas. Para que fosse livre novamente, seria necessário encontrar uma nova maioria. O que antes servia à proteção da liberdade individual torna-se uma prisão para o indivíduo quando ele não pode subtrair a essa ordem, ainda mais se pensarmos que a maioria dos indivíduos que vive sob o império de uma determinada ordem social sequer havia nascido quando de sua aprovação, o que significaria, então, a submissão à vontade alheia e não à própria.
Se de um lado poderíamos ter a supressão da minoria pela prevalência da maioria simples, de outro a maioria qualificada ou a unanimidade poderia ensejar uma ditadura da minoria, que impedisse uma mudança da vontade do Estado.
Para Kelsen, a igualdade, como postulado democrático, visa a assegurar a liberdade ao maior número possível de indivíduos. A ideia contida no princípio majoritário é a de que se nem todos os indivíduos são livres, pelo menos o seu maior número o é, o que significa que há a necessidade de uma ordem social que contrarie o menor número de indivíduos.[6] Esse raciocínio pressupões a igualdade como postulado fundamental da democracia. Procura-se assegurar a liberdade ao maior número possível de indivíduos.
O princípio da maioria absoluta, porém, é o que mais se aproxima da ideia de liberdade. Se para alterar a ordem vigente fosse necessário menos que a maioria absoluta, a vontade geral, no momento de formação do contrato social, estaria em desacordo com o maior número de indivíduos que participaram dessa criação dessa ordem e a ela se submeteram e que, portanto, não seriam livres. Dessa maneira, a quantidade de indivíduos não livres seria maior do que a de livres, subvertendo-se o princípio democrático.
Por outro lado, a maioria qualificada poderia possibilitar uma obstrução da minoria à alteração legislativa, fazendo com que o maior número de indivíduos que queria a modificação seja vencido, e, consequentemente, não seja livre. O princípio da maioria preconiza que a ordem social esteja em conformidade com o maior número de sujeitos possível e em desacordo com o menor número possível.
Podemos assim verificar a aproximação da ideia de liberdade à realidade política, tendo em vista que o princípio da maioria pressupõe o da igualdade, considerado o grau de liberdade em uma sociedade proporcional ao número de indivíduos livres, tendo todos o mesmo valor político e a mesma pretensão à liberdade.
A transformação da ideia de liberdade e a natural para a política revela a separação entre democracia e liberalismo, na medida em que a ideia de liberdade do individuo em relação ao domínio do Estado (liberalismo) passa a ser a participação do indivíduo no poder do Estado (democracia). Nesse contexto de passagem do indivíduo da condição de súdito para a de cidadão, da qual o indivíduo é parte do processo decisório, será livre o conjunto de cidadãos, que, no fim, significa a liberdade do próprio Estado. Apenas o cidadão de um Estado livre será livre, na medida em que à liberdade do indivíduo substitui-se, como exigência fundamental, a soberania popular, ou seja, o Estado livre.
Para Kelsen, a democracia, no plano da ideia, é uma forma de estado e de sociedade realizada pelo povo, entendido como unidade e como sujeito e objeto do poder. O povo ocupa essa posição de sujeito do poder somente na medida em que participa da criação da ordem estatal, quando intervém na criação das regras do direito.[7]
O povo ocupa a posição de objeto do poder enquanto um sistema de atos individuais determinados, regulados e dirigidos pela ordem jurídica do estado. Trata-se de um vínculo normativo decorrente da submissão ao direito do estado. Como objeto de poder é aquele submetido às normas jurídicas.
Nem todos que constituem o povo em sentido ativo, composto de indivíduos participam da criação da ordem estatal e a ela estão submetidos podem participar do processo de criação dessas normas. A participação na formação da vontade geral é o conteúdo dos chamados direitos políticos.
As restrições do direito ao voto a certas categorias de indivíduos, como os escravos, as mulheres e outros, não descredenciam o regime como democrático. Some-se ao grupo dos impedidos, aqueles que simplesmente não desejam valer-se de seu direito.
Para passar da noção ideal para a noção real de povo, não basta substituir o conjunto de todos os indivíduos submetidos ao poder por aqueles titulares de direitos políticos. Seria necessário distinguir aqueles que, como massa de juízo, se deixam guiar pela influência dos outros, e aqueles que intervêm realmente com uma decisão pessoal, conferindo determinada direção à formação da vontade comum, segundo a ideia de democracia. Essa investigação nos coloca diante da realidade de um dos elementos mais importantes da democracia real: os partidos políticos.
Kelsen destaca a importância dos partidos políticos, base da moderna democracia e parte essencial da formação da vontade geral que neles se realiza. O indivíduo isolado não tem, politicamente, nenhuma existência real, não sendo capaz de exercer influência real sobre a formação da vontade do Estado. Os indivíduos se agrupam segundo suas afinidades políticas com a finalidade de dirigir a vontade geral para os seus fins políticos, de tal forma que, entre o indivíduo e o Estado, se insiram formações coletivas, tais como os partidos políticos, que filtram e sintetizam as vontades iguais de cada um dos indivíduos.[8]
A unidade de interesses do povo é apenas uma ilusão. Verifica-se, na realidade, a oposição de interesses de grupos. A vontade geral não deve exprimir o interesse de um único grupo, devendo ser o resultado da conciliação entre interesses opostos, movendo-se a vontade geral do povo na linha média dos interesses dos grupos organizado em partidos.
Ressalta Kelsen que a democracia do Estado moderno é a democracia indireta, parlamentar, em que a vontade geral diretiva é formada pela maioria de eleitos pela maioria dos titulares dos direitos políticos, que acabam reduzidos a um simples direito de voto.
A luta contra a autocracia nos fins do século XVIII e início do século XIX foi uma luta travada em favor do parlamentarismo, tido como vital para a democracia moderna. A luta pelo parlamentarismo a luta pela liberdade política e que qualquer negação do parlamentarismo significa a negação da própria democracia. Para Kelsen o parlamentarismo se revela como um importante instrumento capaz de resolver as questões sociais de seu tempo. Para o autor, o parlamentarismo é a única forma real possível da ideia de democracia pois para ele, a aplicação de uma democracia direta ao estado moderno seria impossível.
O parlamentarismo é a formação da vontade diretiva do Estado através de um órgão colegial eleito pelo povo com base no sufrágio universal e igualitário, vale dizer democrático, segundo o princípio da maioria.[9]
A liberdade no parlamentarismo encontra-se limitada por dois elementos, que obstam sua força original: o princípio majoritário e o princípio da distribuição de trabalho segundo uma diferenciação social.
Em decorrência da exigência inconteste de divisão do trabalho, que causa diferenciação e é condicionante a qualquer processo técnico social, e por ser a democracia direta impraticável na realidade, recorre-se à ficção da representação, utilizando-se do parlamento, um órgão bem diferente do povo, para formar a vontade do Estado em lugar do povo. Tal ficção exprime a ideia de que o parlamento é apenas um representante do povo, que por meio dele e apenas nele o povo poderá exprimir sua própria vontade.[10] Com isso, o parlamento se legitima do ponto de vista da soberania popular, ainda que o parlamento, no exercício de suas funções seja juridicamente independente do povo e que os parlamentares não possam receber instruções obrigatórias do povo, por ser o mandato independente após a investidura.
Kelsen justifica a necessidade do parlamento, lembrando que até mesmo numa autocracia o monarca vê-se obrigado a recorrer ao apoio de um Conselho de Estado ou órgão análogo, que é responsável pela preparação, deliberação e aprovação dos princípios e normas gerais de seu regime. O motivo para, tanto o monarca quanto o povo, não fazê-lo sozinhos é que lhes faltaria conhecimento, poder ou porque teriam medo da responsabilidade.
Para o autor, qualquer reforma do parlamentarismo só pode ser tentada com o intuito do reforçar o elemento democrático. Destaca a importância de se utilizar ou mesmo de se ampliar a utilização dos mecanismos de participação popular, como o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular. Para recuperar a crença no parlamento, propõe um controle permanente dos deputados por parte dos grupos de eleitores constituídos em partidos políticos e a responsabilidade do parlamentar perante seus eleitores.
Além disso, entende ser também necessária a limitação da imunidade dos parlamentares, denominada de irresponsabilidade perante a autoridade do Estado e dos tribunais e o estabelecimento da fidelidade partidária, já que o voto do eleitor significa uma adesão ao partido e não ao candidato. Essa última medida pressupõe uma organização partidária sólida e relativamente estável dos eleitores. Conclui que a perda do mandato deve ser formal, declarada por um tribunal independente e imparcial, mediante provocação do partido cujos interesses possam ser comprometidos.[11]
Diante de críticas feitas pelo autor ao parlamento, acusado de estar afastado do povo e de carecer, em sua atual composição, de conhecimentos técnicos necessários à elaboração de boas leis nos diversos campos da vida pública, Kelsen sugere a criação de parlamentos profissionais (ständeparlament), que seriam eleitos por grupos técnicos profissionais de eleitores, e que funcionariam juntamente com o parlamento político, que seria o órgão coordenador. Critica, contudo, tal sugestão por entender que a ideia de organização profissional não pode ser suficiente para resolver o problema da forma de Estado, seja democrática ou autocrática.[12] .
A única saída para a composição de conflitos que satisfaça a todos os interesses em jogo é a atribuição do poder de decisão a uma autoridade eleita democraticamente, ou imposta de forma autocrática. É muito mais sensato um sistema que leve em conta a vontade de cada eleitor como membro do Estado e, portanto, interessado nas diversas questões que o compõem, do que considerá-lo simplesmente como profissional de determinada área.
O direito da maioria pressupõe o direito à existência de uma minoria. Disto resulta a possibilidade de proteger a minoria contra a maioria. Esta proteção da minoria é função essencial dos chamados direitos e liberdades fundamentais, também denominados direitos do homem e do cidadão, garantidos por todas as modernas constituições das democracias parlamentares.[13]
O parlamentarismo permite que o princípio majoritário impeça o domínio de classe, protegendo os interesses da minoria. A proteção da minoria é alcançada justamente com os direitos e liberdades fundamentais, que transformam um instrumento de proteção do indivíduo em instrumento de proteção da minoria (qualificada) conta a maioria puramente absoluta. Tal proteção, decorrente de uma autolimitação está acobertada por um procedimento diferenciado. Desse modo, ter-se-á a proteção da minoria qualificada contra a maioria absoluta.
O princípio da maioria qualificada pode concretizar de forma mais aproximada o princípio de liberdade, representando uma tendência à unanimidade na formação da vontade geral..[14]. Poderíamos entender como o verdadeiro significado do princípio da maioria na democracia real como o “princípio majoritário-minoritário”, dado que a técnica dialético-contraditória do procedimento parlamentar tende a criar um meio termo entre os intereses opostos, tendendo a levar a um compromisso entre os dois lados na formação da vontade geral.
Kelsen acredita que o sistema eleitoral preferível para uma democracia parlamentar é o proporcional, afirmando que a ideia de proporcionalidade será tanto melhor concretizada quanto maior for o número de mandatos postos à disposição. O fato de esse sistema favorecer a formação de diversos partidos minúsculos desloca a necessidade de superar as diferenças entre os grupos em prol da união por um bem comum maior da esfera do eleitorado para a do parlamento[15]. Com isso, a vontade do Estado será formada por um processo no qual estarão representados os mais diversos interesses.
Alerta para eventual abuso da minoria, utilizando-se das regras parlamentares, para tentar evitar a formação da vontade parlamentar por meio da obstrução. O obstrucionismo, que pode ser técnico ou físico, violento. Todavia, admite, com exceção da obstrução violenta, que pode servir como um meio para orientar a vontade parlamentar para um compromisso entre maioria e minoria.
O sistema da eleição proporcional é o mais adequado para permitir que todos os grupos políticos estejam representados no parlamento na proporção de sua força, retratando, assim, a realidade dos interesses em conflito. Se apenas a maioria tivesse representação no parlamento, não haveria como formar-se um compromisso verdadeiramente democrático. A influência que a minoria exerce sobre a formação da vontade da maioria será proporcional à sua representação no parlamento e essa participação na vontade geral impede o arbítrio da maioria, fortalecendo o princípio de liberdade.
No sistema de representação proporcional, o representante é eleito com os votos do seu próprio grupo, sem o ser contra os votos de outro, sendo a máxima aproximação possível do ideal de autodeterminação em uma democracia representativa, e, por conseguinte, o tipo mais democrático de sistema eleitoral.
Para Kelsen, a democracia implica a ausência de chefes. [16]Contudo, verifica-se uma realidade social de domínio, e, por isso, deve-se perguntar como se cria o chefe. No sistema da ideologia democrática, a direção exercida pelo chefe não tem valor absoluto, seu mandato é temporário, seus atos exigem publicidade e ele não é considerado uma divindade, mas um igual, sujeito a crítica e responsável perante aqueles que o elegeram – e que, posteriormente, podem ser eleitos para ocupar a sua posição.
O autor critica a separação de poderes, e analisa se tal princípio é ou não democrático. Para Kelsen, a separação de poderes acarreta um legislativo policefálico e gera uma supervalorização da função legislativa.[17] Se for uma monarquia constitucional, possibilita ao monarca ainda exercer um poder próprio no campo da execução.
Kelsen consegue ver nessa separação duas características favoráveis ao princípio democrático: a divisão impede a concentração de poder, que, por sua vez, implica na expansão do exercício arbitrário e minimiza a influência direta do governo na formação da vontade geral do Estado, pois reduz sua função à ratificação legislativa das leis e, com isso, permite que os cidadãos influenciem mais na formação dessa vontade. Critica, ainda, a república presidencial, acusando-a de enfraquecer a soberania popular, na medida em que, à frente de milhões de indivíduos está um único homem eleito para representá-los.
Os marxistas apresentam uma dicotomia entre a democracia formal burguesa e a democracia social, que defendem. A democracia social ou proletária é uma ordem social que garante aos indivíduos não só uma participação igual na formação da vontade da coletividade, como uma igualdade com relação aos bens materiais.[18]
Kelsen argumenta que é a liberdade e não a igualdade que define a ideia de democracia. Salienta que a igualdade material pode talvez ser melhor realizada em regimes ditatoriais. O que se pretende é substituir o postulado da liberdade pelo de justiça – igualdade –, utilizando-se do termo democracia, em razão do forte apelo ideológico que subjaz a ele, para, na verdade, construir um sistema de ditadura política.
Uma vez que todos devem ser livres na maior medida possível, todos devem participar da formação da vontade geral do Estado em idêntico grau. A luta pela democracia é uma luta pela liberdade política, ou seja, uma luta pela participação do povo nas funções legislativa e executiva.
A democracia dá a cada convicção política a mesma possibilidade de exprimir-se e de buscar conquistar o ânimo dos homens através da livre concorrência.[19] Por isso, o procedimento dialético da assembleia popular ou pelo parlamento no processo de criação das normas é democrático. A decisão política, então, é resultado do acordo da maioria, presentes iguais condições de exposição, discussão e argumentação, e garantidos os direitos fundamentais da minoria. A minoria, que não está necessariamente equivocada, pode tornar-se maioria a qualquer momento. Deste modo, a democracia angaria adeptos também pelo fato de o processo dialético da vontade do Estado que enseja, no confronto entre maioria e minoria, resultar em uma conciliação, obtida através de ampla discussão.
Para Kelsen, a democracia se funda no princípio da tolerância. [20]Muito Se não houver tolerância, haverá a supressão da minoria. Deve haver uma tolerância da maioria com os interesses da minoria. Esse é um ponto fulcral da democracia, eis que há permanente tensão entre maioria e minoria, no procedimento dialético de criação das normas, tão central à democracia.
A afirmação de que a democracia pressupõe a existência de um bem comum objetivamente determinável, que constitui a vontade do povo é falsa e, se fosse assim, a democracia seria irrealizável. O povo não tem uma vontade uniforme; a chamada “vontade do povo” é uma figura de retórica e não uma realidade. O governo do povo não pressupõe uma vontade do povo, mas que o povo participe na formação desse governo, através de eleições democráticas, com voto igualitário, universal, livre e secreto. Essa é a característica essencial da democracia.
O significado original do termo “democracia”, criado pela teoria política da Grécia antiga, é o de “governo do povo” (demos = povo e kratein = governo), e designa a participação dos governados no governo. [21]Tentativas de deturpar esse conceito em prol de ideologias foram levadas a efeito pela doutrina comunista e do nacional-socialismo, afirmando-se que democracia é o governo “para o povo”. Contudo, não necessariamente um o governo do povo: e para o povo será um regime democrático.
O governo do povo é desejado por ser, supostamente, para o povo. Mas definir o que seria interesse do povo não é tarefa fácil. Pode ser aquilo que o povo acredita ser de seu interesse, ou o que o governo diz que é. Um governo do povo, se exercido por homens sem preparo para tanto, pode revelar-se um governo contra o povo. Muitos autores políticos tentaram demonstrar que uma autocracia é um governo para o povo melhor que o governo do povo. Isso demonstra que governo do povo não é o mesmo que governo para o povo e que, visto poder haver um governo para o povo autocrático, essa característica não pode ser um dos elementos da definição de democracia.
O autor, ao analisar a existência de uma relação essencial entre democracia e os sistemas econômicos rivais, capitalismo e socialismo, afirma que nenhum dos dois sistemas estão relacionados por natureza a um sistema político específico, já que, por definição, um sistema político é um processo ou método para a criação e aplicação de uma ordem social, enquanto um sistema econômico constitui o conteúdo da ordem social.[22]
Como enfatiza o autor, o capitalismo e o socialismo podem ser estabelecidos sob regimes democráticos ou autocráticos. Contudo, quanto à uma análise de eficiência, é possível que a democracia favoreça mais o capitalismo e que a autocracia seja mais benéfica ao socialismo. Ele refuta a tese de que o governo socialista seria o “verdadeiramente” democrático, mas destaca que essa é uma opinião própria, pois não há (à época) dados experimentais (históricos) para que seja possível fazer tal afirmação com cientificidade.[23]
Kelsen critica os teóricos do socialismo ao afirmarem que o triunfo do poder econômico organizado esvaziou as formas democráticas, vivendo a democracia uma crise.[24] Ele pontua que tal tese se funda no antagonismo entre poder econômico e direitos políticos. Muito embora não discorde desse antagonismo, entende que o poder, entendido como a capacidade de influenciar os outros, não é nem político nem econômico. O meio pelo qual se obtém o comportamento desejado é que seria político ou econômico. No exercício de poder econômico, o que mudaria entre os sistemas, tendo em vista a diferença quanto ao domínio dos meios de produção, seria a forma de distribuição dos produtos econômicos, concluindo que enquanto sistema político, a democracia não está necessariamente vinculada a um sistema econômico específico.[25]
CONCLUSÃO
Verifica-se, portanto, que para Kelsen, a democracia só pode ser compreendida tendo-se em mente a síntese de liberdade e igualdade: liberdade com igualdadeé o que caracteriza da democracia. A ideia de autoridade do poder decorre da autodeterminação do indivíduo, que obedece às normas porque é igual, porque é parte criadora da norma a que se submete e o poder de mando decorre da liberdade cedida à autoridade quando da superação do estado de natureza.
A igualdade, como postulado democrático, visa a assegurar a liberdade ao maior número possível de indivíduos. A ideia contida no princípio majoritário é a de que se nem todos os indivíduos são livres, pelo menos o seu maior número o é, o que significa que há a necessidade de uma ordem social que contrarie o menor número de indivíduos. Esse raciocínio pressupões a igualdade como postulado fundamental da democracia. Procura-se assegurar a liberdade ao maior número possível de indivíduos.
Para o autor, o direito da maioria pressupõe o direito à existência de uma minoria. Disto resulta a possibilidade de proteger a minoria contra a maioria. Esta proteção da minoria é função essencial dos chamados direitos e liberdades fundamentais, também denominados direitos do homem e do cidadão, garantidos por todas as modernas constituições das democracias parlamentares.
REFERÊNCIAS
KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
[1]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 67
[2]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 27
[3] KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 29
[4]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 29
[5]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 30
[6]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 32
[7]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 37
[8]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 39 e 40
[9]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 37
[10]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 47
[11]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 55 e 56
[12]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 64
[13]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 67
[14]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 68
[15]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 71 e 72
[16]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 88
[17]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 93
[18]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 99
[19]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 104
[20]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 183
[21]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 140
[22]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 253
[23]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 254
[24]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 258
[25]KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 294
Procuradora Federal. Especialista em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: WACHHOLZ, Roberta Negrão Costa. A ideia de democracia para Hans Kelsen Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42688/a-ideia-de-democracia-para-hans-kelsen. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
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Por: Marcos Antonio Duarte Silva
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Por: LETICIA REGINA ANÉZIO
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