RESUMO: Esse trabalho objetiva reavaliar a validade das críticas de Marx e Burke ao discurso universalista oitocentista dos direitos humanos e desenvolver um diálogo com Bloch e Douzinas sobre a relação entre tais direitos e o direito natural no contexto humanista do século XX. Burke, crítico ao discurso oitocentista, pregava uma prática de justiça individualizada, pautada num exercício de prudência em relação ao particular e ao mutável e desprovida de teorias metafísico-universalizantes, as quais possibilitam aos geometristas morais produtores do discurso do poder, ao legitimar as injustiças presentes, bloquear o futuro. Burke e Marx encontram na história um elemento determinante para a compreensão das instituições jurídicas como políticas. No entanto, Burke destoa de Marx ao entender a convenção, o costume e a tradição locais como elementos legitimadores da lei escrita. O conservadorismo tradicionalista de Burke e a potentia emancipatória de Marx incorrem, ainda assim, no mesmo erro, apontado por Douzinas: não perceber que a ideia universalizadora dos direitos humanos como limite de validade do discurso de aplicação do direito pelo Poder Judiciário precisa resguardar uma dignidade crítico-transcendental diante de condições locais. Com Douzinas, entendemos que a crítica de Marx ao discurso racional-jusnaturalista dos direitos humanos não é transponível ao direito natural radical, cujo eixo seriam os princípios de dignidade e igualdade, nos moldes da proposta de Bloch. Concluímos que o direito natural, como elemento crítico imanente à positividade material do legítimo direito positivo, possibilita, sem perder a utopia, que os membros do Judiciário escapem prudencial-reflexivamente da dupla-face do discurso dos direitos humanos, resguardando seu potencial protetivo e emancipatório em relação aos instintos de dominação disciplinar dos “diplomatas e emissários governamentais” famigerados por Burke.
Palavras-chave: Direitos Humanos; Direito Natural; Marx, Burke, Bloch E Douzinas.
1 INTRODUÇÃO
Esse trabalho tem como objeto uma reavaliação da validade das críticas de Marx e Burke ao discurso universalista da primeira expansão oitocentista da retórica dos direitos humanos e o desenvolvimento de um diálogo com Bloch e Douzinas sobre a relação entre direito natural e direitos humanos no contexto do discurso humanista da segunda metade do século XX.
Burke, crítico ao discurso oitocentista, pregava uma prática de justiça individualizada, pautada num exercício de prudência em relação ao particular e ao mutável e desprovida de teorias metafísico-universalizantes, as quais apenas possibilitariam aos geometristas morais produtores do discurso do poder, ao legitimar as injustiças presentes, bloquearem o futuro. Marx, por sua vez, via os direitos humanos como uma causa para que o homem perdesse sua identidade concreta de classe, gênero e etnia, sua história e seu contexto, resultando em uma socieade monádica. Ambos os autores encontram na história um elemento determinante para a compreensão das instituições jurídicas como políticas, ainda que a partir de perspectivas distintas. A hipótese a ser testada no presente trabalho é a seguinte: o conservadorismo tradicionalista de Burke e a potentia emancipatória de Marx incorrem no mesmo erro, apontado por Douzinas: não perceber que a ideia universalizadora dos direitos humanos como limite de validade da aplicação do direito precisa resguardar uma dignidade crítico-transcendental diante de condições locais.
2 AS CRÍTICAS DE BURKE E MARX AO DISCURSO OITOCENTISTA DOS DIREITOS HUMANOS
Edmund Burke e Karl Marx criticaram o discurso dos direitos do homem oriundo das revoluções burguesas devido a seu caráter abstrato. Segundo Burke, a abstração metafísica em que consistem os direitos escondem os homens concretos por trás dos problemas jurídicos a serem solucionados, pois de nada adianta discutir apenas em tese o direito a questões fundamentais como alimentação e medicamentos. Assim, o que se configura como uma perfeição abstrata é, em contrapartida, um defeito prático. Burke entende que o objetivo prático central do pensamento sobre o direito diz respeito à busca pelo método que permita o fornecimento dos bens da vida pretendidos pelos sujeitos concretos, o que exige uma substituição da visão dos direitos como universais e absolutos pela ideia de uma titularidade concreta de direitos, em um contexto social determinado, com suas cambiantes peculiaridades tradicionais. Seguindo linha semelhante, Marx concordava que o homem, zoon politikon, só se desenvolve como indivíduo em sociedade, de modo que os direitos têm procedência histórica e estão atrelados à ação concreta. Ao contrário de Burke, o problema da abstração do sujeito de direito não é uma suposta vacuidade, a qual o tornaria irreal, mas, isso sim, a plenitude de um modelo específico de indivíduo: homem burguês, branco, possessivo, individualista, orientado ao mercado, tem no direito de propriedade o fundamento para todos os seus demais direitos e embasa o poder político e econômico dos capitalistas.
Nas palavras de Douzinas (2009, p. 113), a diferença entre as críticas de Marx e Burke foi sintetizada da seguinte forma: “Para Burke e Marx, o sujeito dos direitos não existe. Ou é muito abstrato para ser real, ou muito concreto para ser universal. Em ambos os casos, o sujeito é falso, pois sua essência não corresponde, e não pode corresponder, a pessoas reais”. Analisemos ambas as críticas de modo específico a partir de agora.
2.1 A CRÍTICA DE BURKE AO DISCURSO UNIVERSALISTA DOS DIREITOS HUMANOS
É bem verdade que o pensamento de Burke (1993;1997), atualmente, é encarado com diversas ressalvas. Ora, o autor tinha em seu discurso a característica central do conservadorismo, com um respeito excessivo ao monarca, à aristocracia, ao english way of life e às instituições britânicas, vistas estas como naturalmente superiores às dos demais povos. Nada disso faz sentido nos tempos da reforma da Câmara dos Lordes e Lei Britânica dos Direitos Humanos de 1998. Desde o segundo pós-guerra, a disseminação da democracia de massa e a segunda retórica de expansão dos direitos humanos fizeram proliferar a elaboração de constituições e documentos fundados no discurso dos direitos. Entretanto, a crítica de Burke continua, em certa medida, sendo pertinente no que diz respeito a alguns elementos do discurso dos direitos. Ora, o caráter local da proteção dos direitos (defendido por Hannah Arendt), a objeção à abstração do discurso dos direitos (partilhada por feministas e comunistas) e as limitações do racionalismo (denunciadas pelos pós-modernos) são questões englobadas pela tese de Burke sobre a necessidade de uma justiça individualizada (DOUZINAS, 2004, p. 159-60).
Podemos indicar três pontos centrais na crítica de Burke ao discurso dos direitos humanos. O primeiro deles diz respeito ao idealismo e racionalismo metafísico do referido discurso. O segundo elemento é referente ao caráter irreal, desprovido de efetivação, gerado pela formulação geral e abstrata dos direitos. O terceiro aspecto é o cunho absoluto que os direitos assumem no contexto de sua retórica de justificação. Analisemos cada um deles separadamente.
Burke não aceita a metafísica política racionalista que caracterizou a primeira fase de expansão da retórica dos direitos humanos. Segundo o autor, não é adequado especular sobre a política, entendida esta como arte do possível, como se suas questões centrais pudessem ser solucionadas por meio de uma teoria racional a ser transposta em uma ação radical. Burke vê a prática política como uma questão de prudência, sabedoria prática que diz respeito ao particular e ao mutável, enquanto a teoria se preocupa com o universal e o imutável. Ora, os juízos práticos lidam com casos concretos e com o cumprimento de prazos, de modo que não é viável avaliar todos os argumentos idealmente envolvidos, mas sim aquilo que é possível diante da situação concreta. As urgências exigem que não se suspenda a análise até o momento em que se alcance a certeza, o que significa, em outras palavras, que Burke atribui à política a necessidade de trabalhar com um padrão de certeza e clareza inferior ao teórico. Deve-se partir, portanto, do precedente e da convenção, chegando-se rapidamente ao objetivo, e não, como faz a teoria, de um princípio abstrato, neutro e imparcial até a situação concreta. Não se pode, portanto, na política, rejeitar os erros e os pré-conceitos, ao contrário do que acontece no campo teórico. O discurso idealista dos direitos é cognitivamente equivocado em sua concepção e moralmente equivocado em sua aplicação, visto desconsiderar os compromissos, os cálculos e exceções, bem como a relevância prática da experiência (DOUZINAS, 2004, p. 161)
A política não pode ser pensada abstratamente, o que, segundo Michel Villey (1975), denota que Burke teria sido um aristotélico adaptado às circunstâncias de seu tempo, em que a liberdade era tida como o valor fundamental. O intérprete vê em Burke a preocupação jusnaturalista clássica em construir as leis de acordo com o que existe na natureza positivamente, o que significa que o autor inglês não é contrário aos direitos, mas sim a uma concepção abstrata de liberdade, desconectada do espaço-tempo. De tal modo, segundo Burke, a política precisa levar em conta a inexistência de métodos e instrumentos políticos universalmente válidos, devido à mutabilidade das circunstâncias em que se desenvolve a sociedade. São as circunstâncias, segundo Burke, que permitem a caracterização de um dado regime político como bom ou ruim, não sendo viável, portanto, idealizar, com base em um raciocínio dedutivo a priori, constituições e declarações de direitos “geométricas e aritméticas”. A razão humana não pode, sem levar em conta a história, a tradição e a sabedoria prática, criar instituições estáveis e legítimas. Ao contrário, o discurso dos direitos humanos estimula o individualismo e desintegra a estabilidade do regime político, permitindo que modismos alterem a composição institucional de um país artificialmente, como aconteceu com a França a partir da revolução (DOUZINAS, 2004, p. 163)
Burke trabalha com a ideia de sublimidade da autoridade real e paterna, em moldes semelhantes ao que faria Freud ao tratar do mito totêmico sobre a gênese da lei, como percebe Pierre Legendre, para quem o Estado e a constituição representam o princípio patriarcal que é necessário ao sujeito e à república. Em Burke, o medo da terrível autoridade encontra suporte na precedência da linguagem sobre a própria imagem da autoridade, o que se projeta na ideia de que a convenção e o costume da lei não escrita precedem a elaboração de uma lei escrita. Nesse contexto, Burke entende que os costumes britânicos funcionam melhor do que a lei e servem como base para as leis escritas e a constituição, a qual, em verdade, apenas formaliza a tradição oral antiga. Por tais motivos, Burke considera um crime a existência de uma constituição escrita, já que a verdadeira constituição é um organismo, uma “comunidade de sentidos com distintos poderes e privilégios”, uma mistura entre o natural e o convencional preservada pela tradição imemorial. A constituição, portanto, deve cultivar laços afetivos e ser expressa por meio de belas representações simbólicas; para que amemos nosso país, nosso país deve ser amável. Ao contrário, o planejamento racionalista acaba por impor uma constituição, paradoxalmente, pela pura força, já que o caráter secreto e sagrado da fonte do compromisso jurídico-político deixa de existir. Aí está o equívoco, pois tal filosofia mecanicista nunca fará uma constituição ser amada e não será capaz de mudar a natureza afetiva da práxis política (DOUZINAS, 2004, p. 165).
O problema da factibilidade do discurso dos direitos humanos está atrelado, na crítica de Burke, à necessidade de abstração e generalidade para fins de estruturação de um discurso teórico coerente. Ora, a pretensão de universalidade espacial e temporal dos direitos humanos de primeira dimensão (geração) realmente exige que tal estruturação metafísica tenha caráter geral e formal. O problema é que o preço pago por tal coerência é justamente a falta de utilidade política e a falsidade moral de tais direitos. De nada adianta a assinatura de um tratado internacional que garante abstratamente um direito à vida às vítimas da fome ou da guerra, ou um direito à educação na maioria dos países africanos. Nesse ponto, Strauss percebe que Burke não tem objeções propriamente quanto aos direitos, mas sim à postura legalista, a qual ocupou o espaço da sabedoria de exercício de tais direitos e de sua abordagem política. Seu alvo diz respeito aos instintos de dominação disciplinar dos “diplomatas e juristas internacionais, emissários governamentais e funcionários de organizações internacionais”, os quais produzem códigos de direitos que servem apenas para que os governos apaziguem sua consciência coletiva publicamente. Assim, os direitos humanos, como uma espécie de discurso de arrependimento dos Estados ocidentais pelas explorações passadas, acabam por bloquear o futuro (DOUZINAS, 2009, p. 164-5).
Burke também atrela o problema da factibilidade dos direitos humanos à sua tese de que a natureza humana é socialmente determinada, de modo que cada sociedade gera um tipo de pessoa, o que inviabiliza o reconhecimento de qualquer valor à ideia de direitos universais do homem, já que direitos só são eficazes quando concebidos no contexto de uma história, tradição e cultura particulares (DOUZINAS, 2009, p. 166). Ao contrário do disposto nas declarações de direitos, não há uma humanidade comum, mas várias “espécies de humanos”, uma para cada sociedade. Assim, o homem abstrato é ontologicamente irreal e a utilidade de seu modelo é limitada, já que os indivíduos concretos não conseguem alcançar a eficácia social dos direitos pretensamente universais (crítica também feita pelos comunitaristas), pois apenas as comunidades em que se dão as violações dos direitos podem protegê-los e sancionar os infratores. Nesse contexto, Burke exalta a tradição inglesa de considerar o homem como nascido livre, ou seja, de reconhecer um direito herdado dos antepassados daquela comunidade, sem a necessidade de qualquer referência universal anterior (DOUZINAS, 2009, p. 166).
A terceira linha de crítica de Burke diz respeito à base de princípios morais absolutos assumida pelo discurso dos direitos humanos, a qual pode ser aplicada igualmente contra governos tiranos ou sistemas políticos antigos e benevolentes. Nesse ponto, percebe-se a rejeição de Burke ao rompante revolucionário típico do movimento francês, o qual, em suas pretensões universalistas, poderia significar uma rebeldia injusta contra governos tradicionais legítimos, desconsiderando as peculiaridades dos arranjos institucionais adequados a cada sociedade concretamente considerada. Em sua visão, enquanto o poder e o direito não coincidem completamente, a medida das decisões políticas deve ser a prudência, como virtude primeira, nos moldes aristotélicos, de busca pelos direitos como meio-termo, coisa que não pode ser determinada por legisladores, por mais sábios que sejam (DOUZINAS, 2009, p. 166-7).
Na leitura de Strauss, o histórico, na jurisprudência histórica de Burke, é o local e o eventual. A história é o espaço de uma determinação secular um tanto quanto aleatória, em que o eterno se temporaliza e é inteligível apenas parcialmente. A constituição inglesa, por exemplo, é o resultado de tal quase-seleção natural, um produto imemorial que expressa a existência de direitos reais, e não ideais, nos termos de uma sabedoria latente ou imanente do direito inglês – ponto em que, na interpretação de Douzinas (2009, p. 168-9), há uma prévia empírica de Hegel, para quem o real e o presente coincidem com o racional.
Douzinas (2009, p. 168) considera Burke o fundador do comunitarismo (em sentido contemporâneo), por ter mesclado certo grau de relativismo à preferência pela tradição local particular inglesa, mormente em seu destaque da constituição de seu país como a mais perfeita do mundo. A constituição é o resultado da cristalização imemorial de padrões institucionais e remédios legais. Desprovida de um propósito particular, a constituição atende a uma multiplicidade de fins. Nesse ponto, identifica-se que, apesar das referências a Aristóteles, a teleologia do filósofo antigo foi perdida diante do surgimento da preocupação com o sentimento e os interesses individuais. A vocação do jusnaturalismo cosmológico para a construção teórica da melhor República deu espaço, em Burke, à compreensão da política como a ciência dos cálculos de interesses. O direito natural aristotélico deu lugar a um processo de quase- seleção natural por meio do qual a força da lei deixou de ter caráter metafísico-essencialista e se transferiu para as regras positivas da constituição inglesa (DOUZINAS, 2009, p. 168). Tais regras devem “naturalmente” permitir o reconhecimento da individualidade e da liberdade na comunidade inglesa na visão de Burke, mas o elemento natural aí, como nota Douzinas (2009, p. 168), não é igual ao dos clássicos, visto que a economia e o mercado se transferem, no discurso do autor inglês, para o seio da política e da constituição.
Douzinas (2009, p. 175-6) identifica, mutatis mutandis, as críticas de Burke ao discurso universalista e o destaque dado pelo autor inglês à realidade concreta e ao poder das instituições jurídicas com as teorias comunitaristas, jurídico-pluralistas e multiculturalistas contemporâneas. Por outro lado, a tese da sabedoria inata da constituição britânica e da “natureza” do homem inglês expressa uma dimensão conservadora em que Estado, nação, leis e tradição se identificam e assumem um padrão de atualidade eterna. Essa postura reacionária tende a resultar em um “legalismo autocrata” ou em um “procedimentalismo nativo”, o qual considera o passado como correto por ser antigo e qualifica uma lei como justa em função da repetição de práticas e costumes imemoriais. Em outros termos, o direito seria legitimado pelo mero fato de estar inserido em um contexto tradicional, sem a existência de princípios críticos externos ao critério de validade totalitário (a tradição). Tal discurso legitima a tese conservadora de que o não-reconhecimento e a violação de direitos humanos é logicamente impossível, pois direitos só fazem sentido no contexto de uma dada comunidade local. Apenas a própria instituição, tendo como referência a sua história institucional e as leis positivamente criadas, teria legitimidade para realizar juízos jurídicos. Essa visão se aproxima do comunitarismo no que se refere à rejeição de princípios e valores universais, os quais transcenderiam a comunidade concreta e poderiam ser inseridos em qualquer uma delas, mas afasta-se no tocante à identificação da comunidade com as leis positivadas pelo Estado (DOUZINAS, 2009, p. 176).
Expostos os contornos da crítica de Burke, vejamos como Marx encarava a matéria.
2.2 A CRÍTICA DE MARX AO INDIVIDUALISMO E À ABSTRAÇÃO DO DISCURSO DOS DIREITOS HUMANOS
Marx, ao analisar a Revolução Francesa em “A questão judaica” (1978), segue Hegel no argumento de que o movimento dividiu o espaço social unificado feudal em, de um lado, o domínio político (Estado), e, de outro, um domínio econômico (sociedade civil). Isso resultou na atomização dos indivíduos e na distinção entre os egoístas direitos do homem e o idealismo dos direitos do cidadão. Surgem, assim, os pares homem-sociedade civil e cidadão-Estado. Marx considerou, diferentemente de Hegel, que o processo social ainda não estava completo com as revoluções burguesas, pois uma outra revolução, universal e social, viria a extinguir o Estado, o qual, embora fosse, em tese, dotado da função de concretizar o bem universal, na prática, apenas satisfazia os interesses do domínio burguês sobre a sociedade civil. Era necessário, portanto, que à emancipação econômica já ocorrida se seguisse uma revolução social que completasse o processo de emancipação humana (DOUZINAS, 2009, p. 169-70).
A leitura de Marx sobre os direitos humanos os vê como a causa para que o homem perca sua identidade concreta de classe, gênero e etnia, sua história e seu contexto. Ademais, os direitos do homem especificamente considerados resultam em uma sociedade monádica, sustentada na ideia de uma liberdade negativa, de uma propriedade privada dos meios de produção, a qual dissocia a pessoa e suas ferramentas de trabalho, de uma liberdade de opinião e de expressão e de uma igualdade formal, ou seja, perante a lei, que destrói as relações entre os sujeitos concretamente considerados. O direito, aí, está errado, pois ele deveria ser desigual, de modo a levar em conta as peculiaridades de cada sujeito, e não uma medida igual, geral e abstrata. No entanto, na sociedade capitalista, os vínculos sociais são construídos artificialmente por meio de um direito à segurança e consistem em uma relação de temor entre indivíduos amedrontados e a sociedade. De tal modo, o bem público dá lugar a um princípio de policiamento como valor social máximo, em uma sociedade em que a ordem pública e a paz social são alcançadas ao custo do sufocamento de conflitos (DOUZINAS, 2009).
A política e o Estado substituem a religião na sociedade burguesa. No espaço que resta à Igreja no exercício da vida pública, os homens, em tese, participam igualmente da soberania popular. Porém, no âmbito privado, os homens tratam uns aos outros como meios e vivem em conflito permanente. Como os direitos políticos do cidadão abstrato estão submetidos aos interesses concretos da burguesia, os quais são apresentados na linguagem dos direitos naturais à igualdade e à liberdade, o Estado sustenta ficções ideológicas em que se baseia uma sociedade individualista e opressora. Os direitos do cidadão, embora não sejam falsos e opressivos como os direitos do homem, não podem cumprir o que prometem. Têm com mérito a criação do nível máximo de emancipação humana possível dentro da ordem burguesa, visto que tais direitos geram uma comunidade política na qual o homem é valorizado como uma pessoa comum moral. Ainda assim, os direitos dos cidadãos foram esvaziados pela dissociação entre os espaços público e privado, mormente quando a propriedade e a Igreja se tornam instituições privadas, protegidas da intervenção do Estado. Do mesmo modo, a economia foi despolitizada, visto também fazer parte do âmbito privado. Aparentemente, o Estado (espaço público) domina, mas, em verdade, o verdadeiro domínio social é exercido no âmbito privado, por meio da economia (DOUZINAS, 2009, p. 172-3).
Marx considera que os direitos do homem, assim como quaisquer direitos, não têm caráter natural e inalienável, sendo meras criações históricas do Estado e da lei. Na sociedade moderna, o Estado, criado pelo capitalismo, transforma as condições de existência desse mesmo capitalismo em direitos legalmente reconhecidos e os trata como a positivação de direitos naturais e eternos. Assim, o fato de a estrutura social típica moderna ser histórica e contingente é escondido sob um discurso de universalidade, o qual torna os direitos do homem ainda mais reais e eficazes do que parecem – no sentido de fradulentamente apresentarem a opressão como liberdade. Por tal motivo, é necessária a revolução proletária, a qual concretizará as aspirações dos direitos do homem ao abandonar sua forma moralista, seu conteúdo idealista e seu modelo abstrato e individualista de homem. Só assim os direitos fundamentais, notadamente a liberdade e a igualdade, teriam significado no contexto de uma comunidade de homens socializados. No que diz respeito à liberdade, deixaríamos de vê-la como negativa e defensiva, como distância entre os homens, para pensá-la como força positiva de união. Do mesmo modo, a igualdade não seria mais formal, uma comparação abstrata entre indivíduos privados, e sim a participação integral em uma comunidade forte. A propriedade deixaria de ser excludente e se tornaria comum. A pessoa tornar-se-ia concretamente considerada, substituindo-se as definições formais de justiça e distribuição pelo princípio “de cada um conforme sua capacidade, para cada um conforme suas necessidades”. As qualidades, aptidões e interesses dos homens não são descritos como direitos em um contexto comunista. Ao contrário, são atributos da existência individual, celebrados como elementos integrantes de cada pessoa. Assim, a noção de direitos deixa de ser necessária e de ter qualquer utilidade (DOUZINAS, 2009, p. 173-4).
Douzinas (2009, p. 174) considera que a grande contribuição de Marx na crítica ao discurso sobre os direitos humanos é o combate ao seu suposto caráter universal e natural. A qualificação dos direitos como elementos históricos por Marx permitiu a percepção de que os direitos humanos de primeira geração são construtos sociais e legais da Modernidade, os quais não são absolutos, mas sim instrumentos limitados e limitadores do direito. Não podem, portanto, como defendiam os seus ideólogos, estar acima da política, pois são fruto da política moderna. Ademais, embora sejam vistos como universalmente racionais, os direitos humanos de primeira geração nascem da razão do capital, e não de uma deliberação social fundada em um padrão de razão pública. Há, portanto, uma inversão perfeita e contextualizada entre fenômeno e realidade, o que, para Marx, representa um exemplo perfeito do que se pode entender por ideologia.
Apesar de todo o incômodo de Marx com o discurso jusnaturalista burguês, o autor partilha dos ideais de dignidade e igualdade assumidos pelo direito natural radical de Ernst Bloch. Marx acreditava que o socialismo poderia concretizar o “livres e iguais”, bem como a segunda fórmula do imperativo categórico de Kant, de modo a substituir a religião no que diz respeito ao fundamento da ideia de solidariedade. O incômodo de Marx, portanto, é com o discurso idealista e falacioso, com os objetivos escamoteados, e não com os objetivos alegados. Sua crítica dos direitos humanos pode ser vinculada à ideia de que tais direitos não eram humanos os suficientes, não permitiam um compartilhamento concreto em condições de igualdade (DOUZINAS, 2009, p. 175).
Em função das críticas acima expostas, Douzinas refletiu sobre os dilemas da tradição marxista após a Segunda Guerra Mundial, como veremos a partir de agora.
3 DILEMAS DA TRADIÇÃO MARXISTA APÓS A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
Douzinas (2009, p. 176), ao comparar as teses de Marx e Burke, diz que este fez uma crítica da filosofia política da transcendência, enquanto aquele elaborou uma crítica da impossibilidade de transcendência. O professor de origem grega considera Burke correto no tocante à tese de que declarações de direitos humanos não fazem sentido quando não são traduzidas em uma cultura e nas leis positivas de uma comunidade específica. Por outro lado, é necessário que a dimensão universalizante dos direitos humanos resguarde uma postura e uma dignidade transcendentais, sob pena de impedimento à realização de qualquer crítica do direito. “Direitos são locais, mas só podem ser criticados e redirecionados a partir do ponto de vista de um universal não concretizado e não concretizável. [...] O direito opera como uma função crítica somente contra um horizonte futuro, aquele do ideal (impossível) de uma humanidade emancipada e autoconstituída)”. (DOUZINAS, 2009,p. 176). Já quanto a Marx, Douzinas entende que há um acerto no que diz respeito à crítica à ideologia do homem branco burguês, mas, em contrapartida, o socialista científico ignorou o fato de que a falta de fundamento do discurso dos direitos e a indeterminação do conceito de homem geraria uma indeterminação respectiva quanto à identidade humana e uma indecidibilidade política, de modo a criar condições futuras para a autorrealização. Ora, as pessoas concretas podem moldar suas identidades livremente caso não estejam submetidas a um Estado, a uma lei ou a um partido (DOUZINAS, 2009, p. 177).
A análise crítica de Douzinas sobre o pensamento de Marx e Burke toma em consideração as transformações do discurso sobre os direitos humanos ocorridas após a Segunda Guerra Mundial. Durante o período da Guerra Fria, os socialistas defenderam a prevalência dos direitos sociais e econômicos em relação aos direitos liberais clássicos, com o fundamento de que sobrevivência material e condições de vida decentes são mais relevantes do que o direito ao voto e à fundação e filiação a partidos políticos, até mesmo porque os direitos políticos teriam os direitos sócio-econômicos como precondição de exercício. Em contrapartida, os liberais e os governos ocidentais argumentavam que os direitos civis e políticos eram prioritários, visto terem caráter negativo, individualista e terem sido historicamente conquistados em um momento anterior. A ideia de liberdade perante o Estado continuava a ser defendida como o cerne da autonomia humana e do discurso dos direitos, enquanto os direitos sociais e econômicos, por serem positivos, foram considerados não qualificáveis como direitos legais e direitos individuais. Seriam, isso sim, meros direitos de grupo, os quais demandariam uma ampla intervenção do Estado e não seriam justiciáveis ou garantidos pela legislação, visto não podem ser convertidos para a linguagem dos direitos subjetivos, nem por meio de decisões judiciais, nem na linguagem geral e abstrata das leis. Após a queda do regime soviético, parecia que o discurso liberal teria vencido o debate, até que este foi substituído, mormente após a intervenção da OTAN na guerra dos bálcãs, pela dualidade universalismo-comunitarismo (relativismo cultural). Com a modificação do debate principal em torno do discurso dos direitos humanos, discurso este que, a bem da verdade, já se estabilizou como uma argumentação de apelo global, é possível realizar uma análise do debate anterior de modo mais distante e imparcial (DOUZINAS, 2009, p. 177-8), nos moldes do que Gadamer chamou de consciência histórico-efeitual.
O maniqueísmo do período da Guerra Fria não permitiria o alcance de uma explicação para a violação dos direitos políticos mínimos em Estados capitalistas ocidentais, defensores do discurso das liberdades civis e políticas, nem a falta de condições sócioeconômicas básicas em países do bloco socialista. Douzinas registra que o respeito aos direitos humanos e à democracia foi a tônica da estrada democrática para o socialismo defendida por comunistas europeus após a queda da União Soviética, mormente diante das violações à dignidade e à igualdade sofrida pelas vítimas das ditaduras apoiadas pelos Estados Unidos na América Latina. Tal processo foi acompanhado pela defesa da necessidade de um discurso dos direitos para fins de um projeto socialista, tese partilhada, inclusive, por Ernst Bloch. Em outros termos, os pós-marxistas assumiam o desafio dos direitos humanos, o que pressupôs o enfrentamento da questão sobre as “reviravoltas ideológicas” que, segundo Marx, caracterizam os direitos humanos. Ora, sabemos que, atualmente, o discurso dos direitos humanos se consolidou como a principal expressão da contestação à política dominante e às correspondentes forças sociais. De tal modo, os pós-marxistas se viram na situação de entender a ideologia não mais como uma falsa consciência do mundo, como queriam Althusser e o próprio Marx, mas sim como as ferramentas de compreensão do mundo, como ensina Gramsci. Não é o caso, portanto, de tratar os conceitos jurídicos e políticos ideológicos, como o de “direitos humanos”, como errados, mas sim de protegê-los contra interpretações conservadoras e ajustá-los a propostas de política popular (DOUZINAS, 2009, p. 179-80).
Os ensinos de Marx, embora não sejam suficientes, ainda têm contribuições relevantes para uma reflexão sobre o discurso dos direitos humanos. Em primeiro lugar, devido à percepção da importância dos direitos políticos e da ação. Ora, ainda que os direitos do cidadão representassem uma emancipação limitada, a ideia de um tratamento estatal das pessoas como livres e iguais, embora tivesse um caráter abstrato e ideal, inseria no seio social a demanda pela liberdade e pela igualdade verdadeiras. Ademais, a ideia de direitos políticos está atrelada à do princípio da publicidade política, que exige uma postura cooperativa entre os cidadãos, em uma associação cujos direitos são exercidos conjuntamente, mitigando a dimensão individual característica da vida privada (DOUZINAS, 2009, p. 180-1).
Lefort, ao interpretar Marx, considera que o socialista científico entendeu mal a relevância da Revolução Francesa. A principal consequência do movimento não foi a formação de uma superestrutura econômica, mas sim a evolução política do Estado de Direito, o qual deixou de se submeter à vontade de um rei e se tornou verdadeiramente uma sociedade legitimada pela soberania popular. Em tal contexto, o distanciamento entre poder e direito foi repensado a partir das ideias de Estado Democrático de Direito e direitos humanos. Constitui-se, assim, uma relação de metalinguagem-linguagem objeto entre o Estado de Direito e o poder. A legitimidade torna-se o sujeito da disputa pública e os direitos humanos são a expressão de uma esfera que não é controlada pelo poder, mas sim programaticamente externa a ele (DOUZINAS, 2009, p. 181). Do mesmo modo, o marxista Etienne Balibar vê na Revolução Francesa a causa eficiente para a transformação do sujeito pré-moderno em moderno e da soberania nacional em soberania popular, bem como para o surgimento de um espaço político para discussão e crítica baseada na igualdade entre os cidadãos como uma condição de liberdade. A cisão entre os âmbitos público e privado, destaca por Marx, é menos relevante do que a identificação entre o homem e cidadão; a aproximação inédita entre liberdade e igualdade; e o surgimento de um direito universal à participação política (DOUZINAS, 2009, p. 183).
A transformação dos direitos humanos em referência última da política implica que todo direito e justiça estabelecidos se tornam questionáveis, pois à possibilidade de oposição entre direito e poder proporcionada pelo Estado de Direito é somado o potencial da política dos direitos humanos para testar e aceitar os direitos ainda não estabelecidos. Alcançam-se, assim, os espaços que o Estado ainda não pode dominar e deixam-se os seus limites abertos às contestações e expansões. Isso é perceptível, por exemplo, a cada conquista dos direitos dos trabalhadores e da seguridade social, situações em que o discurso dos direitos humanos transgrediu os limites que o Estado, até então, tinha imposto a si próprio. O discurso dos direitos, portanto, mantém a história aberta, de modo a fazer um contraponto ao desejo de unidade e proteção que contraria, devido à busca de unidade e homogeneidade em um ator histórico unitário, os princípios dos direitos humanos e sua relação com as lutas heterogêneas (DOUZINAS, 2009, p. 182).
Balibar entende que em nenhuma condição a igualdade é suprimida enquanto a liberdade sobrevive e vice-versa. Assim como a sociedade capitalista, ao negar a igualdade por assumi-la de modo meramente formal, destruiu a liberdade, o que se nota pelas desigualdades sociais dos países ocidentais; o comunismo, ao negar direitos políticos, ou seja, liberdade, resultou em uma sociedade extremamente desigual, em que os ocupantes de cargos oficiais formavam uma espécie de casta superior. De tal modo, o equilíbrio entre liberdade e igualdade importa na constatação de que todas as reivindicações de direito são politizadas, expressando uma demanda de ampliação de tais valores e da própria cidadania (DOUZINAS, 2009, p. 183).
A indeterminação ou “universalidade negativa” proporciona o caráter aberto da história dos direitos, em que o processo de emancipação se dá por uma ação política coletiva contínua, a qual, entretanto, não pode abrir mão de uma construção coletiva da liberdade individual. O que há de essencial na ideia de humanidade é justamente tal busca da emancipação pela via de um acesso coletivo e universal à política, em um contexto no qual os direitos humanos são “o título legal e a garantia institucional do indeterminado” (DOUZINAS, 2009, p. 183-4). Ainda que, como pondera Douzinas, os efeitos igualitários da Revolução Francesa tenham sido bastante restritos devido às exclusões raciais, étnicas, legais e de gênero (no que, portanto, segundo o autor de origem grega, Marx estava certo), devemos considerar que a existência de um espaço público, em certa medida, minimizou o problema das desigualdades na esfera privada e permitiu que, paulatinamente, certos ambientes privados fossem reconduzidos à dimensão pública por meio da flexibilização dos limites de intervenção do Estado – o que se traduz na expansão do discurso dos direitos humanos às dimensões social e econômica.
Douzinas (2009, p. 185-6) contém a empolgação com as teses de Leford e Balibar, autores que, de um lado, tiveram o mérito de transmudar a liberdade formal em liberdade existencial e perceber que esta é inexoravelmente atrelada à igualdade; mas, de outro, a excessiva politização dos direitos, paradoxalmente, acarreta certos prejuízos à noção de igualdade, notadamente quando as demandas pelo reconhecimento jurídico das diferenças e das identidades preponderam nos discursos de movimentos sociais em relação às ideias de igualdade e participação. O resultado de tais pleitos fundados em direitos humanos é o desvio das instituições políticas formais para o campo da ação direta relacionada a iniciativas individuais, o que contraria a proposta de Marx quanto ao potencial de aglutinação coletiva da política. Douzinas conclui que os pós-marxistas são excessivamente otimistas e pouco críticos quanto ao caráter contraproducente do legalismo na teoria dos direitos humanos. Valorizam-se excessivamente os direitos humanos, sem uma devida crítica diante da lei e da história dos direitos, a qual é comandada pelos Estados e pelos organismos internacionais, os quais impedem que a abertura e a indeterminação do discurso dos direitos proporcionem uma ação transformadora desordenada. Os direitos legais e internacionais são uma linguagem dos Estados, o que permite que o poder os molde nos termos de uma igualdade formal e de uma cidadania desprovida de caráter universal. A expansão dos direitos humanos, portanto, tem um caráter ambíguo, visto que, ao mesmo tempo, serviram como instrumento de emancipação e de dominação burguesa, assim como protegeram os homens em relação à arbitrariedade do Estado, mas naturalizaram as exclusões de classe, etnia e gênero.
Na visão de Douzinas, portanto, Leford e Balibar preservaram as afirmações universalizantes da razão jurídica e ignoraram o fato de que a lei normalmente é violenta e reacionária. Mais produtivo, segundo o filósofo grego seria, isso sim, o projeto de utopia e esperança sonhado por Bloch, do qual trataremos a partir de agora.
4 DIREITOS HUMANOS, DIREITO NATURAL E UTOPIA EM BLOCH
Ernst Bloch, com inspiração na cultura judaica da Europa central e nos valores românticos alemães, atribuiu uma roupagem jusnaturalista à crítica de Marx aos direitos humanos. O autor encontra nos direitos humanos o elemento humano historicamente variável de resistência à opressão e à dominação. Tal disposição para a utopia, ainda que possa assumir diversas formas, é eterna e consiste no estabelecimento de uma relação indissociável entre os direitos humanos e o fim da exploração (DOUZINAS, 2009, p. 186-7).
Bloch considera que desde a Antiguidade existe uma tensão entre a natureza, como categoria de confronto sempre em transformação, e as relações sociais, sedimentadas em um direito positivo. Rousseau atribuiu certa esperança a tal luta da natureza ao estabelecer uma relação entre os cidadãos e a vontade geral, de modo a dar uma roupagem satisfatória à questão da liberdade individual, a qual passa a só existir em uma comunidade de direitos humanos (liberdade civil), e transformar o construto filosófico (ou religioso) do direito natural, antes uma regra abstrata da razão, em uma instituição histórica resultante da ação concreta das pessoas, ou seja, a lei posta pela soberania popular. Daí em diante, as conquistas revolucionárias sempre foram submetidas a um controle dos cidadãos sobre o governo, em uma ligação indissolúvel entre direito e política. É nesse momento que a liberdade, a igualdade e a fraternidade ganham dimensão normativa, a política assume um padrão de igualdade e as noções de ilícito e de jus são identificadas com os direitos das pessoas, ainda que a igualdade, devido ao cunho inalienável do direito à propriedade privada, ficasse restrita à política e aos homens brancos (DOUZINAS, 2009, p. 187).
Bloch não via na cidadania uma ideia necessariamente burguesa, mas sim um “anúncio da futura liberdade socializada”, elemento que permite uma autopurificação de ideias morais corrompidas pelos poderosos, como é o caso dos direitos humanos. Essa tese se aplica aos três valores fundamentais da Revolução Francesa. Quanto à liberdade, precisamos entendê-la como ética e política, pessoal e pública, liberdade de escolha e de ação, exercível contra qualquer tipo de opressão ou dominação e tendo-se em vista a perspectiva de um mundo aberto, futuro, contrafactual. Nesse contexto, a ampliação da liberdade exige que os direitos estendam os limites do social e permitam uma redefinição das identidades pessoais e coletivas, o que pressupõe que tais possibilidades não tenham sido esvaziadas pela sujeição. Na sociedade capitalista, tal liberdade pode assumir a forma de resistir à escolha aparentemente livre, porém moralmente determinada, pelo modo consumista de ser possuidor. A liberdade, portanto, deve ser vista em Bloch, como, ao mesmo tempo, a cristalização de um passado e um desafio às limitações externas orientado ao futuro (DOUZINAS, 2009, p. 188).
Bloch considera que a igualdade, diferentemente da liberdade, não pode ser ideologicamente cooptada, visto que as violações a um padrão de igualdade são muito mais patentes do que a determinação sub-reptícia de um modo consumista de vida como estratégia de dominação. As desigualdades são óbvias na comparação entre os hemisférios setentrional e austral ou entre a classe média e a classe inferior. Justamente nesse ponto é que se percebe ser a igualdade econômica uma condição para que se tenha um mínimo de liberdade. Ambas dizem respeito à utopia de uma identidade que ainda não é, mas que encontra inspiração no passado e na tradição do direito natural radical, contexto em que Bloch vê Marx como o herdeiro de rebeldes e reformistas defensores da dignidade humana e da igualdade. A postura utópica significa enxergar um futuro latente em cada produto cultural e preservar um entusiasmo radical em cada crítica realizada. Essa preocupação em restaurar a dignidade humana e evitar a opressão sempre esteve presente em todo o discurso do direito natural, ainda que em versões variadas (DOUZINAS, 2009, p. 189).
As utopias sociais do século XIX complementaram a trajetória do direito natural, substituindo os princípios axiomáticos da natureza humana por narrativas e alegorias de projeção de uma sociedade futura, como na “Utopia” de Thomas More. A utopia atrela as inspirações do passado jusnaturalista à ideia de uma redução do sofrimento e de promoção da felicidade humana como um padrão de vida boa, ideia já cara aos gregos. Bloch não admite, portanto, a dissociação entre dignidade e felicidade, que alguns chegam a atribuir ao liberalismo. Há, isso sim, uma relação dialética entre dignidade e felicidade, a qual pode ser traduzida em uma relação entre direitos e utopia. Restaura-se o que há de bom no passado ao nosso presente, reativando-se os momentos adormecidos, em uma compreensão não linear da tradição, uma recriação retrospectiva da reminiscência, uma lembrança do futuro (DOUZINAS, 2009, p. 190-1). Nas palavras de Douzinas (2012, p. 190), “o utopismo é um sonho com o futuro, abastecido pelo passado e imanente no presente”.
Benjamin, em linha semelhante à de Bloch, lembra que a esperança reside na memória das derrotas e resistências passadas, o que exige uma vigilância contra o conformismo, problema que se manifesta no discurso dos direitos humanos quando estes se tornam instrumento de Estados e organizações internacionais. Por outro lado, as práticas do socialismo real violaram todos os princípios básicos e esperanças das tradições do direito natural em nome de uma utopia comunista, motivo pelo qual o Bloch maduro atribuía maior destaque aos direitos naturais e aos direitos humanos do que propriamente à utopia. Os direitos humanos tornam-se a forma utópica concreta de uma promessa de humanidade real, de modo que, mesmo quando alcançado o comunismo, o conteúdo dos direitos humanos, mesmo em um contexto de inexistência do Estado, constituirão um pathos do indíviduo livre na comunidade. O “princípio esperança” de Bloch, o qual conjuga os ideais de liberdade, igualdade, fraternidade e dignidade, é, segundo Douzinas, a melhor justificativa e o próprio fim da ideia de direitos humanos, indissociavelmente atrelada à rejeição da degradação ou da escravidão.
Diante do exposto, vejamos, tendo como eixo a tese de Douzinas sobre os direitos humanos, como o ideal de utopia pode ser resguardado no campo da aplicação do direito.
5 OS VÔOS DE SENTIDO DO SIGNIFICANTE “DIREITOS HUMANOS”
Douzinas (2009, p. 263) afirma que o discurso dos direitos humanos é ambíguo: pode servir como instrumento de legitimação dos governos e óbice a mudanças sociais significativas, mas sua retórica poderosa também pode gerar uma fragilização do processo democrático de institucionalização de conteúdos jurídico-positivos. O autor, buscando desvendar a gênese dos direitos humanos, caracteriza-os como um capital simbólico postulado retoricamente, dada a força do apelo contemporâneo à noção de dignidade humana. Essas novas reivindicações de direitos têm um simultâneo apelo a: 1) um elemento de identidade, de caráter universal, porém indeterminado, da natureza humana, o qual legitimaria o pleito de igualdade de tratamento perante os demais seres humanos, expediente que pressupõe lutas políticas por reconhecimento, nos moldes de Honneth; 2) um elemento de diferença, dada a distância entre a natureza humana abstrata e as características concretas dos reivindicantes, o que legitima sua exigência de tratamento diferenciado que respeite sua identidade específica.
Douzinas (2009, p. 374) explica que as alegações de direitos humanos traduzem uma denúncia de injustiça, entendida como o esquecimento de que a natureza humana (o universal) está constituída na e por meio da sua transcendência pelo mais particular, em sua singularidade não-repetida. Não há, pois, um elemento geral axiomático, idôneo a definir uma sociedade justa ou a prescrição de suas condições de existência. Ora, os direitos humanos não têm um tempo, espaço ou ideologia próprios. Apresentam, isso sim, uma passividade em relação à demanda do Outro e uma lógica de continuidade expansiva movida retoricamente, processo em que os movimentos sociais ocupam função preponderante.
Douzinas (2009, p. 265-6) afirma que a circunstância de a luta pelos direitos humanos consistir em uma operação retórica de afirmação de semelhança e diferença (e, inclusive, de determinação prática do sentido desses termos) não significa que não resultem daí transformações radicais sobre a constituição do sujeito jurídico e das vidas dos sujeitos reais. Essa potência retórica é tão grande que alguns movimentos sociais encontram nela fundamentos para pretensões de reconhecimento de direitos a entidades não-humanas por meio de figuras de linguagem, como no caso da defesa dos direitos dos animais. Os direitos permitem a formalização de identidades ao permitir um reconhecimento recíproco, processo em que o sujeito jurídico funciona como ponto intermediário entre conceitos abstratos e indeterminados de humanidade e pessoas concretas, reais. Cada reconhecimento de direitos a um reivindicante, ao dotá-lo da dignidade simbólica humana, preenche um direito abstrato com determinações empíricas e predicados históricos, de forma a conferir conteúdo ao significante vazio “direitos humanos”. O vôo de sentido resta, aí, detido temporariamente, até uma nova e concreta reivindicação (DOUZINAS, 2009, p. 265-6).
O direito natural, como elemento crítico imanente à positividade material do legítimo direito positivo, possibilita, sem perder a utopia, que os membros do Judiciário escapem prudencial-reflexivamente da dupla-face do discurso dos direitos humanos. François Ost (2004, p. 173 e ss) expoente do movimento direito e literatura, ao tratar da liberdade como capacidade de autodeterminação do indivíduo e sua relação com a legitimidade e os direitos humanos, apresenta na obra “Contar a Lei” um retrato narrativo-alegórico detalhado a respeito de instituições jurídicas básicas como a lei, a desobediência civil e o Judiciário. Destaca-se, nesse contexto, sua leitura dialética de Antígona (em oposição à leitura dicotômica da relação entre direito positivo e direito natural feita por Hegel), obra em que vislumbra uma antecipação do conflito geral da modernidade, qual seja, o da emergência da cidade-Estado, indeterminada quanto a suas finalidades e dialogando sobre os fundamentos de sua legitimidade, em relação ao indivíduo capaz de determinar-se como ser livre, sujeito de direitos, digno de respeito e fonte de uma reivindicação pessoal de direito e de justiça. Essa antecipação só é possível, segundo o autor, devido ao caráter de indefinição temporal da sociedade em que se dá o mito, fundindo-se imagens de uma sociedade grega convencional a elementos característicos do humanismo individualista da sociedade moderna – o que evoca a ideia do direito natural eterno, porém variável, de Bloch.
Ost (2004, p. 206-8), em sua análise de Antígona, vislumbra duas funções do direito ideal, em sua complementaridade com o direito em vigor. A primeira delas é uma função procedimental, consistente em alimentar a vigilância crítica. A segunda delas é a função material de lembrar o quadro constitutivo de valores substanciais da intersubjetividade humana, o qual deve ser visto como elemento constituinte da normatividade positiva, sem que isso signifique a rejeição da legitimidade histórica do direito positivo e de uma ordem jurídico-positiva. A tese de Ost unifica, assim, as dimensões de faticidade e validade como limites à autonomia política, de forma a evitar o convencionalismo positivista e aproximando-se de propostas democráticas como as de Habermas e Pinto Bronze, ainda que com a ressalva de o contexto de Antígona não ser pós-convencional nos moldes contemporâneos.
A própria visão de um tridimensionalismo dinâmico ou concreto no pensamento jurídico romano defendida por Reale (2010) também já espelhava a ideia do direito natural como um elemento crítico imanente ao direito positivo. O professor brasileiro, citando lição de Jors-Kunkel, explica que o jus gentium/naturale do período clássico, ao contrário do que queria Cícero, não pode ter sua dimensão universalista compreendida como uma espécie de sobre-direito abstrato e externo ao direito positivo, distinto do processo histórico e anterior lógica e ontologicamente ao jus civile e ao jus gentium, pois esta mutação do pensamento jurídico romano só vai se consolidar no período pós-clássico, quando Justiniano atribui à equitas um valor de princípio ideal (transcendente) da justiça humana composto por princípios jurídicos e metajurídicos, superior ao jus, abrindo espaço para o surgimento do jusnaturalismo teológico medieval. O direito natural do período clássico romano permanece conexionado à história de Roma pela via de sua integração à legislação. Na lição de Moritz Voigt, invocada por Reale, nota-se que o jus naturale/jus gentium romano tem um duplo significado, não se restringindo a um plano ideal teorético-especulativo-ético-dogmático (exigência ideal – jus naturale), mas alcançando também o plano empírico e prático; vale, pois, como norma ideal, potência condicionadora da também válida ordenação histórico-positiva, que é permeada pela noção de uma equitas imanente ao direito positivo (esse sim, tecnicamente, o jus gentium – categoria histórica). O jus naturale romano do período clássico, portanto, era caracterizado por um sentido de integração fático-axiológico-normativa, o que, segundo Reale, configurava uma concepção de direito natural variável pela atividade da dupla fonte de justiça concreta – o pretor e o jurisconsulto. Tal consciência de integração dinâmico-concreta tridimensional desapareceria apenas no período pós-clássico, devido ao surgimento de sobreposição estática do elemento ideal (valor) de natureza cristã-transcendente-providencialista sobre o elemento positivo (norma), resultante na desconexão das categorias dos institutos em relação à realidade histórica, alterando profundamente o valor semântico dos vocábulos jurídicos.
Diante do exposto, podemos dizer que a vigência do direito positivo é determinada pré-compreensivamente pela ideia de lei natural. Um juiz prudente (Aristóteles) concretizará os valores eleitos de forma particularmente justa (díkaion) e valorizadora dos sujeitos que se comportem ética e solidariamente, realizando o bem comum (justiça geral, integrada pelas noções de alteridade, dever e igualdade) de forma incessantemente revisada e com um elo de sentimento de humanidade fundamentante da positividade, a qual deixa de se fundar no poder coercitivo em si. O direito natural não pode ser reduzido à acusação, percebida em Nelson Saldanha nos opositores do direito natural, de ser uma mera variável cuja única característica estrutural seria a de fundamentar revoluções histórico-sociais pela via de uma postura epistemológica compromissada com uma ideologia em sentido representativo. O direito natural, segundo Saldanha, consubstancia-se como uma exigência ética permanente para o direito, como já levantado por Antígona, mas tal exigência não busca um fundamento último em uma idéia clássica de natureza como um padrão de crítica transcendente à realidade empírica, na idéia de um Deus ou em uma natureza humana universal pura.
6 CONCLUSÃO
Entendemos, com Douzinas, que as críticas de Marx e Burke ao discurso racional-jusnaturalista dos direitos humanos não é transponível ao direito natural radical, cujo eixo seriam os princípios de dignidade e igualdade, nos moldes da proposta de Bloch. A preocupação com a conexão entre as normas positivas e as normas morais naturais, em verdade, não as coloca como duas faces da mesma moeda, mas sim constitui uma unidade entre direito positivo e direito natural, nos moldes daquilo que já havia sido percebido pelos romanos. Configura-se o direito natural, com o que concordaria Bloch, como o elemento civilizador do direito, na formulação de um direito natural concreto, fundamento axiológico-cultural, ético-humano, crítico-racional que confere, na historicidade, o sentido de validade e obrigatoriedade humana do direito positivo. Concluímos que o direito natural, como elemento crítico imanente à positividade material do legítimo direito positivo, resguarda a dignidade transcendental do discurso dos direitos, como quer Douzinas, e possibilita, sem perder a utopia, que os membros do Judiciário escapem prudencial-reflexivamente da dupla-face do discurso dos direitos humanos, resguardando seu potencial protetivo e emancipatório em relação aos instintos de dominação disciplinar dos “diplomatas e emissários governamentais” famigerados por Burke.
REFERÊNCIAS
BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Vol. 1. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2005.
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Campinas: Papirus, 1993.
___________. Reflexões sobre a revolução em França. Brasília: UNB, 1997.
DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: UNISINOS, 2009.
MARX, Karl. A questão judaica. São Paulo: Moraes, 1978.
OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo: Unisinos, 2004.
REALE, Miguel. Horizontes do direito e da história. São Paulo: Saraiva, 2010.
VILLEY, Michel. Critique de la pensée juridique moderne. Paris: Dalioz, 1975.
Advogado graduado pela UFBa, Doutor em Ciências Sociais pela UFBa, Doutorando em Direito Público pela UFBa, Mestre em Direito Público pela UFBA, especialista em Direitos Humanos, Teoria e Filosofia do Direito pela PUC-MG, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP, professor de Hermenêutica/Filosofia do Direito/Argumentação da Faculdade Baiana de Direito, Aprovado em primeiro lugar em concurso para professor adjunto de Teoria Política e Instituições Políticas da UFBa.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MIGUEL, Daniel Oitaven Pamponet. O erro comum a Marx e Burke não implica uma negação dos direitos humanos: a utopia como elemento crítico constituinte da vinculatividade do direito positivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42762/o-erro-comum-a-marx-e-burke-nao-implica-uma-negacao-dos-direitos-humanos-a-utopia-como-elemento-critico-constituinte-da-vinculatividade-do-direito-positivo. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: FELIPE GARDIN RECHE DE FARIAS
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