Resumo: O presente trabalho destina-se à pesquisa e ao estudo do fenômeno “discurso do ódio”, com a finalidade de caracterizá-lo e demonstrar os casos da jurisprudência brasileira, bem como demonstrar que os direitos à liberdade e à liberdade de expressão assegurados pela Constituição Federal de 1988 não são absolutos, devendo ser respeitados de forma a não admitir quaisquer abusos ou atos preconceituosos, racistas ou discriminatórios.
Palavras-chave: discurso do ódio – liberdade – limites constitucionais – “habeas corpus” – racismo – preconceito – discriminação.
1. Introdução
O discurso do ódio questiona os limites e fundamentos do Estado Democrático de Direito, pois se trata de um discurso que tem a intenção de agredir e hostilizar certos grupos sociais, étnicos, religiosos ou culturais, tendo como consequência uma intensa e perigosa incitação de ódio contra estes grupos.
Para melhor se analisar este fenômeno, deve-se estudar os princípios constitucionais que garantem o direito à liberdade, à liberdade de expressão, mas também, por outro lado, é necessário que se conheça os limites dessas liberdades, uma vez que estes direitos não são absolutos. Exemplos de limitação à liberdade de expressão estão previstos no próprio texto constitucional, como ocorre com a vedação ao anonimato, a proibição de violação à honra e à imagem do indivíduo e a previsão de indenização pelos danos morais ou patrimoniais advindos de eventuais abusos no exercício desses direitos.
Dessa forma, o presente trabalho visa esclarecer os aspectos que abrangem o discurso do ódio, buscando a delimitação de conceitos como o de preconceito, de discriminação e de racismo, a fim de averiguar se, realmente, este discurso tem a capacidade de incitar tais práticas abusivas.
2. A proteção ao Direito de Liberdade de Expressão
A liberdade de expressão consiste em uma das dimensões do direito à liberdade e ambas são asseguradas pelo texto constitucional brasileiro de 1988. A liberdade é diretamente relacionada à natureza animal e humana, sendo que Filho (2004), assim a descreve:
A liberdade é uma das notas definidoras do homem. Como animal racional, o homem é dotado de inteligência e vontade. A liberdade é, justamente, a decorrência necessária da racionalidade humana. Trata-se de traço constitutivo do ser humano. (FILHO, 2004, p.36)
A maioria dos ordenamentos jurídicos prevê o direito à liberdade, entretanto, a sua mera previsão não basta para garantir a eficácia da execução deste direito. É necessário que haja um esforço por parte dos indivíduos para assegurar o seu exercício, pois este direito depende de um empenho constante de todos os envolvidos para existir. Desta forma, uma parcela dos esforços compete ao Estado, seja criando condições necessárias para que a liberdade seja exercida, seja incentivando os indivíduos ou, ainda, seja determinando o fiel cumprimento do ordenamento através da devida fiscalização para tanto.
Importante destacar, todavia, que, ao legislar acerca de ações e omissões permitidas ou restringidas, o ordenamento jurídico não pode privar as pessoas da sua liberdade, ou seja, esta não poderá sofrer limitações em excesso. Assim, deve existir uma garantia de uma quota mínima de liberdade que consiste em uma esfera da liberdade do indivíduo na qual deve haver ausência de vinculação jurídica, em que não penetre qualquer comando ou proibição.
Este direito, portanto, envolve um aspecto social, mas também um aspecto individual. O direito à liberdade é oponível ao estado, pelo indivíduo, quando houver restrição ou abuso sobre ele. É garantido ao indivíduo uma atuação livre, sem restrição, pois será permitido a ele tudo o que não for proibido pelo ordenamento jurídico.
Os direitos e garantias fundamentais são o gênero da espécie que é o direito à liberdade e se encontram espalhados por todo o texto constitucional, principalmente em seu artigo quinto. Ademais, as declarações internacionais acerca dos Direitos Humanos também constituem forte esteio para assegurar o direito de liberdade e o direito de liberdade de expressão.
A liberdade de expressão consiste, desta forma, no direito de o ser humano pensar e se manifestar acerca de ideias e ideais que lhe aprouverem, sem sofrer por parte do Estado ou dos demais indivíduos quaisquer tipos de censura ou restrição. As pessoas são livres para se manifestarem, tendo o direito de exteriorizar tudo aquilo que lhe convir segundo a sua razão e os seus pensamentos, desde que, obviamente, não se trate de ações ou conteúdos proibidos pelo ordenamento jurídico.
3. O fenômeno do Discurso do Ódio
O fenômeno “discurso do ódio” se trata de uma apologia abstrata ao sentimento de ódio nas pessoas, representando repúdio e discriminação a determinados grupos devido a suas características definidoras, como, por exemplo, os islâmicos, os judeus, os homossexuais, dentre outros.
Para Brugger (2007), o discurso do ódio:
[refere-se a] palavras que tendam a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, ou que têm a capacidade de instigar a violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas. (BRUGGER, 2007, p.118)
Ao fim da Segunda Guerra Mundial, na Europa, principalmente, restou grande preocupação dos países em evitar o ressurgimento do antissemitismo. Uma importante medida foi a de se criminalizar a Teoria Revisionista, que é aquela em que se questiona a existência do holocausto. Ora, ao se questionar a existência dessa barbárie, incita-se expressamente o apoio àquele regime cruel e às suas nuances discriminatórias.
Um dos principais direitos afetados por este discurso do ódio é o direito da dignidade da pessoa humana, pois as manifestações de desprezo e ódio a determinados indivíduos por conta de suas características existenciais e essenciais tende a diminuir a autoestima desses seres humanos, bem como sua dignidade e auto respeito, e instigam, ainda, o preconceito em pessoas que não viam nenhum defeito nesses grupos anteriormente.
O discurso do ódio pode ocorrer devido a atos que incitem o preconceito, a discriminação ou o racismo, sendo necessário, desta forma, a análise de cada um destes conceitos.
Preconceito é um conjunto de valores e crenças decorrentes da má instrução cultural, social e educacional de determinado indivíduo, através dos quais ele não consegue se desvencilhar ao interpretar uma dada norma ou situação. Pode se originar pelo medo ou desconfiança do que é diferente ou desconhecido ou, ainda, pela ignorância, falta de informação ou educação.
Discriminação é a idealização de um grupo ao se achar superior a outro. Geralmente, os membros de um grupo que possua determinado estereótipo é que possuem esta atitude. Esse é um comportamento com aspecto negativo, pois seus atos têm o objetivo de exclusão de um outro grupo em relação a toda a sociedade.
O racismo, por sua vez, é uma valorização que ocorre devido às diferenças existentes entre os homens, com o objetivo de um grupo se sobrepor a outro, dominando-o com o fim de obter privilégios e exploração econômica, como ocorreu, por exemplo, durante a política imperialista do século XX, com a escravidão dos negros.
Questão complexa para o sistema jurídico é a dificuldade em identificar o discurso do ódio para, assim, repudiá-lo e puni-lo. Isto se deve ao fato de a incitação ao ódio poder ocorrer não apenas de maneira explícita, mas também, de maneira implícita. Insultos e ofensas, mensagens de ódio ou de repulsa, podem estar presentes no discurso por meio de mensagens subliminares. Assim sendo, o Estado deve ser extremamente cauteloso para averiguar este fato, pois não poderá restringir a liberdade de expressão do indivíduo se não houver prova concreta de que a sua intenção era praticar este ato.
Assim, o grande desafio do Estado e da sociedade será possibilitar e garantir o direito à liberdade de expressão sem que haja abuso e, consequentemente, prejuízos e danos irreparáveis para a dignidade da pessoa humana e o direito à liberdade.
4. Discurso do Ódio no cenário brasileiro atual
A Constituição Federal brasileira guarnece proteção à liberdade de expressão, à dignidade da pessoa humana e repudia a prática de racismo. Assim sendo, já foram ratificados pelo Brasil inúmeros tratados acerca da proteção à liberdade de expressão e da proibição de práticas discriminatórias e atentatórias aos direitos fundamentais. Apesar disso, nenhuma lei brasileira refere-se expressamente à proibição do discurso do ódio.
O Supremo Tribunal Federal, Corte de nossa jurisdição e principal defensor da Constituição Federal brasileira, já teve, infelizmente, que julgar um caso histórico que envolvia a prática de racismo e o discurso do ódio. Foi assim, desde esta decisão, que passou a haver especial observância à matéria “discurso do ódio” na jurisprudência brasileira.
O referido caso tinha como objeto o Habeas Corpus 82.424/Rio Grande do Sul, impetrado em favor de Siegfried Ellwanger, que houvera sido denunciado pelo crime de racismo em 14 de Novembro de 1991. Este paciente fora absolvido em primeira instância, entretanto, fora condenado em segunda instância, em dois anos de reclusão por apologia a ideias preconceituosas e discriminatórias contra judeus.
Siegfried Ellwanger era sócio da editora Revisão Editora Limitada e também era autor de algumas obras literárias detentoras de conteúdo antissemita. Primeiramente, ocorreu a sua condenação pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Assim, impetrou-se habeas corpus em seu favor no Superior Tribunal de Justiça, sendo indeferido nesta instância, fazendo com que, em seguida, o caso chegasse ao Supremo Tribunal Federal. A Corte Suprema denegou o writ, decidindo:
10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam. (BRASIL, 2004, p.9)
A referida decisão do Supremo Tribunal Federal foi tomada por maioria de votos, entretanto, não foram enfrentados de maneira direta os conflitos entre direitos fundamentais e a liberdade de expressão, a dignidade do povo judeu e a proibição à prática do racismo, por não ser este o ponto central do habeas corpus. A questão principal era saber se judeu era considerado raça ou não.
Todavia, deve-se ressaltar que o racismo não está no fato de uma pessoa ser judeu ou não, mas sim se quem promoveu prática discriminatória, o fez baseado na concepção e conceito de raça. Por isso que no caso concreto, judeu é uma raça.
Assim, o Tribunal Constitucional, na medida em que lhe foi proposta a discussão acerca do tema, fixou o entendimento de que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, pois para exercê-lo, há que se observa r e respeitar limites morais e jurídicos. Este foi um importante passo para a preservação da dignidade da pessoa humana pela nossa jurisprudência, entretanto, a luta contra o racismo, a discriminação e o preconceito ainda está muito distante de um fim.
5. Conclusão
Os direitos da liberdade e da liberdade de expressão são assegurados em muitos ordenamentos jurídicos pelo mundo, assim como a Constituição Federal brasileira, lei maior do nosso Estado, também a assegura. Estes direitos simbolizam a autodeterminação da pessoa humana, autorizando a divulgação de seus pensamentos e ideias, desde que não sejam proibidos pela legislação vigente. Entretanto, o abuso de práticas discriminatórias, racistas e preconceituosas na manifestação do pensamento gera o que se denomina “discurso do ódio” e, assim, merece e deve ser punido.
A jurisprudência brasileira já teve que se manifestar sobre o discurso do ódio, mais precisamente a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em um caso no qual um escritor foi acusado de prática de racismo por publicar obras que questionavam a existência do Holocausto e eram dotadas de caráter antissemita.
Estes comportamentos são destrutivos da união da sociedade e da dignidade da pessoa humana, devendo ser tutelados e, principalmente, evitados para que os indivíduos possam seguir constantemente na luta por um Estado Democrático de Direito.
6. Referências
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Crime de racismo e anti-semitismo: um julgamento histórico no STF: habeas corpus n. 82.424/RS. Brasília: Brasília Jurídica, 2004.
BRUGGER, Winfried. Proibição ou proteção do discurso do ódio? Algumas observações sobre o direito alemão e o americano. Revista de Direito Público, v.15. Brasília, 2007.
FILHO, Ives Gandra da Silva Martins. Reflexões sobre a liberdade. Revista de Direito Público, v. 4. Brasília,2004.
MEYER-PFLUG,Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. Prefácio Ives Gandra da Silva Martins; Apresentação Ney Prado. São Paulo; Editora Revista dos Tribunais, 2009.
SARMENTO, Daniel. A Liberdade de expressão e o problema do “hate speech”. Disponível em: <http://www.danielsarmento.com.br/wp-content/uploads/2012/09/a-liberade-expressao-e-o-problema-do-hate-speech.pdf.> Acesso em 10 de Agosto de 2013.
Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEAL, Fernanda Rabelo Oliveira. O fenômeno "discurso do ódio" sob a ótica do direito constitucional brasileiro contemporâneo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 fev 2015, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43252/o-fenomeno-quot-discurso-do-odio-quot-sob-a-otica-do-direito-constitucional-brasileiro-contemporaneo. Acesso em: 22 nov 2024.
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