RESUMO: O presente estudo objetiva analisar a aplicabilidade das normas consumeristas ao serviço público de transporte hidroviário de passageiros na Baía de Todos, bem como a utilização de medidas político-administrativas e jurídicas que permitam ao poder público fiscalizar a execução do serviço e garantir a sua prestação em conformidade com as normas jurídicas de tutela do consumidor.
PALAVRAS CHAVE: Serviço público. Transporte hidroviário de passageiros. CDC. Aplicabilidade.
1 INTRODUÇÃO
O Serviço de Transporte Hidroviário de Passageiros é regulado pela Lei Estadual n. 12.044, de 04 de janeiro de 2011, e, conforme dispõe o seu artigo 2º [1], compete ao Estado da Bahia explorar diretamente, ou mediante concessão ou permissão, os serviços de transporte hidroviário intermunicipal de passageiros e veículos.
De acordo com a definição legal, insculpida no parágrafo único do artigo 2º [2], da Lei Estadual n. 12.044/1991, o transporte hidroviário intermunicipal de passageiros e veículos é o serviço de navegação entre dois ou mais municípios, nos limites territoriais do Estado da Bahia, numa faixa litorânea de até 12 (doze) milhas náuticas de largura da costa, em águas de leitos de rios, baías, angras, enseadas, lagos, lagoas, canais, e águas marítimas abrigadas, com origem, destino, tarifa e horários definidos.
Observam-se, ainda hoje, embates doutrinários e jurisprudenciais sobre o conceito de serviço público. Para os fins deste trabalho, adotar-se-á a doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 665), que define serviço público como a prestação de utilidades ou comodidades materiais para os administrados que deve ser obrigatoriamente desenvolvida pelo Estado, ou por seus delegados, sob regime jurídico de direito público.
Confira-se a lição do citado autor:
Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público — portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais — instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo(MELLO, 2009, p. 665).
De acordo com a Constituição Federal de 1988, incumbe ao Poder Público, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão a prestação de serviços públicos, nos termos do artigo 175, caput [3].
Os serviços públicos a que se refere o artigo 175 da Constituição Federal são aqueles que, conquanto sejam de titularidade exclusiva do Poder Público, isto é, afastados dos empenhos da livre iniciativa, podem, de outro lado, ser executados por particulares, com a finalidade de obtenção de lucros, mediante delegação, o que não desfigura a sua natureza de serviço público.
Tratam-se de atividades que o Estado tanto pode desempenhar diretamente, mediante órgãos de sua administração direta ou indireta, quanto indiretamente, delegando a sua execução a entes privados, mediante concessão ou permissão. Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 683), são serviços que o Estado não é obrigado a prestar, mas, não os prestando, terá de outorgar a prestação em concessão ou permissão a terceiros.
Com efeito, a circunstância de o Poder Público deter a titularidade de tais serviços públicos não impõe a obrigatoriedade de prestá-los por si ou por suas entidades, nas hipóteses que possua a titularidade exclusiva do serviço. No mais das vezes, estará somente obrigado a disciplinar e a promover a sua prestação. (MELLO, 2009, p. 675).
É importante referir, além disso, a distinção entre titularidade do serviço e titularidade da prestação. A concessão ou permissão para a prestação de um determinado serviço público sobre o qual o Estado detém a exclusividade jamais transfere a sua titularidade. Ou seja, o concessionário ou permissionário não desempenha a atividade por direito próprio, na qualidade de titular do serviço, mas como simples delegatário.
É evidente que nas hipóteses em que o Estado não detém a exclusividade do serviço, como, de resto, quaisquer daquelas abertas à livre iniciativa, não há que se falar em delegação, porquanto manifestamente desnecessária.
A competência para regular e fiscalizar a prestação do serviço de transporte hidroviário intermunicipal na Bahia é da Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia - AGERBA, autarquia sob regime especial, vinculada à Secretaria de Infra-Estrutura – SEINFRA, conforme preceitua o artigo 3º da Lei estadual n. 12.044/2011 [4].
A regulação consiste numa atividade tipicamente estatal e, portanto, indelegável a particulares. Trata-se do conjunto de atos necessários ao estabelecimento das condições da prestação do serviço, que compreende a edição de leis e atos administrativos destinados a delinear o respectivo “marco regulatório”, inclusive as condições para a delegação dessas atividades mediante concessão ou permissão de serviço público.
No caso de delegação de um serviço público a particulares, por meio de concessão (ou permissão), o que ocorre com o transporte hidroviário de passageiros na Bahia, essa atividade regulatória deve ser ainda mais rigorosa, eis que a sua titularidade permanecerá com o Poder Público, que deve assegurar a sua adequada prestação.
Para tanto, o ordenamento jurídico confere ao Poder Público inúmeras prerrogativas, tais como a possibilidade de modificação unilateral das cláusulas contratuais, de intervenção na concessão ou permissão, de encampação, de decretação de caducidade e outras tantas.
Por fim, saliente-se que o controle do serviço de transporte hidroviário não se restringe à agência reguladora, mas inclui também a sociedade em geral, a ainda os órgãos incumbidos da tutela dos interesses coletivos e difusos, como o Ministério Público e as entidades de defesa do consumidor.
2. O FORNECEDOR DO SERVIÇO
A TWB BAHIA S/A TRANSPORTES MARÍTIMOS, pessoa jurídica de direito privado, desenvolve o serviço público de transporte hidroviário de navegação marítima interior de passageiros, cargas e veículos, na Baía de Todos os Santos, entre os terminais marítimos de São Joaquim (TSJ), em Salvador/BA, e Bom Despacho (TBD), em Itaparica/BA, o que faz na condição de concessionária de serviço público, se enquadrando na definição jurídica de “fornecedor” estabelecida no artigo 3º, caput e § 2º, do CDC.
Visando a compreensão da forma de incidência das normas de proteção do consumidor no campo do aludido serviço público, examinaremos, inicialmente, a definição de fornecedor, o que permitirá designar um dos polos da relação e, por conseguinte, se há ou não relação de consumo, desde que presente no outro polo um consumidor, e adiante teceremos alguns comentários sobre a aplicabilidade do CDC no campo dos serviços públicos.
2.1 O Conceito de Fornecedor no CDC
De acordo com a redação do artigo 3º, caput, do CDC [5], considera-se “fornecedor” as pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, ou ainda entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos. Ou ainda aqueles que desenvolvem atividade de prestação de serviços.
Vê-se que o ponto fundamental para se identificar o “fornecedor” está na expressão “desenvolver atividade”. O caráter “profissional” da atividade não representa elemento do conceito de fornecedor do artigo 3º do CDC. Será “fornecedor” qualquer agente que exerça atividade com certa habitualidade, não importando a natureza, o regime jurídico ou a nacionalidade, ou ainda se fabricante originário, intermediário ou comerciante.
Nesse sentido, Leonardo de Medeiros Garcia (2011, p. 24) afirma que “somente será fornecedor o agente que pratica determinada atividade com habitualidade”. Conclui que “estariam excluídas da tutela consumerista os contratos firmados entre dois consumidores não profissionais ou com o comerciante que não atue em sua atividade-fim, por não fazê-lo com habitualidade”.
Para alguns doutrinadores, entretanto, a definição de “fornecedor” exige a “profissionalidade”. Nesse diapasão, Bruno Miragem (2008, p. 94) argumenta que a distinção não reside na habitualidade com que o fornecedor desempenha a sua atividade. Segundo o autor, a atividade do fornecedor é habitual porque ele é profissional, e não o contrário. Desta forma, ainda que não tenha previsto expressamente na lei, o legislador consumerista consagrou o aspecto da “profissionalidade” ao indicar que a atividade do fornecedor deveria ser habitual e remunerada.
Sobre a discussão, Cláudia Lima Marques (2009, p. 81) traz uma interessante distinção entre as atividades, se fornecimento de produtos ou de serviços. Segundo a autora, quando se fala no fornecimento de produtos, o critério seria desenvolver uma atividade tipicamente profissional com certa habitualidade, ao passo que, na prestação de serviços, se exigiria apenas que essa atividade fosse habitual.
Nas palavras de Cláudia Lima Marques:
Há uma diferenciação nos critérios para o fornecimento de produtos e serviços, que vêm definidos nos parágrafos do art. 3º do CDC (...) Quanto ao fornecimento de produtos, o critério caracterizador é desenvolver atividades tipicamente profissionais, como a comercialização, a produção, a importação, indicando também a necessidade de certa habitualidade, como a transformação, a distribuição de produtos (...). Quanto ao fornecimento de serviços (...) menciona apenas o critério de desenvolver atividades de prestação de serviços (...) não especificando se o fornecedor precisa ser um profissional, bastando que esta atividade seja habitual ou reiterada. (2009a, p. 82).
Diante da literalidade do artigo 3º, caput, do CDC, o critério preponderante para a identificação do “fornecedor”, seja de produtos seja de serviços, há de ser relacionado diretamente à habitualidade da atividade.
Destarte, se a pessoa exerce a atividade no mercado de consumo com regularidade, qualifica-se como fornecedora para os fins do Código de Defesa do Consumidor, desde que transacione produto ou serviço com um consumidor na outra ponta da relação.
2.2 O Serviço Público no CDC
No § 2º do artigo 3º, o CDC traz o conceito de “serviço” [6], definido como qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, seja direta, como contraprestação paga pelo consumidor, ou mesmo indireta, como resultado de vantagens econômicas a serem percebidas pelo fornecedor alheias ao contrato de consumo.
Vê-se que a definição de “serviço” estabelecida pelo Código de Defesa do Consumidor pressupõe uma atividade oferecida no mercado de consumo, de modo que se distanciam do campo de aplicação das normas consumeristas aquelas atividades às margens do mercado, qualquer que seja o motivo.
A legislação exige também que o serviço seja prestado mediante remuneração, ainda que esta seja indireta. Deve-se entender a noção de “remuneração” como qualquer tipo de repasse econômico que possa auferir o fornecedor, como nos serviços ditos “aparentemente gratuitos”.
Dizem-se serviços “puramente gratuitos” aqueles oferecidos sem qualquer intenção de lucro e que, por esta razão, não estão abrangidos pelo regime consumerista. Já os serviços “aparentemente gratuitos” são aqueles que, apesar da gratuidade, são passíveis de serem ressarcidos de seus custos, quase sempre transferidos para o preço do bem, como remuneração indireta, e que, portanto, estão sujeitos ao CDC.
Nesse sentido, a lição de Leonardo Medeiros Garcia (2011, p. 27), para quem “a chave para se identificar o que é ‘serviço’ no Código é verificar se ocorre a prestação mediante remuneração, ainda que de forma indireta. Do contrário, não é considerado ‘serviço’ para fins de aplicação do CDC”.
Quanto aos serviços públicos, o Código de Defesa do Consumidor expressamente refere a sua aplicabilidade a tais serviços, o que faz ao definir “fornecedor”, dispondo expressamente que a pessoa jurídica de direito público pode ser considerada fornecedora (artigo 3º, caput, do CDC). Adiante, estabelece como princípio da Política Nacional das Relações de Consumo a racionalização e melhoria dos serviços públicos (artigo 4º, VII, do CDC) e, ao tratar dos direitos básicos do consumidor, dispõe sobre a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral (artigo 6º, X, do CDC).
Mas é no artigo 22 do CDC que se percebe a mais importante disposição referente aos serviços públicos como objeto da relação de consumo. Segundo o dispositivo, os entes públicos, diretamente ou por suas empresas, concessionárias ou permissionárias, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Questiona-se, porém, quais os serviços públicos estariam subordinados ao regime consumerista. O tema não é pacifico e tem ensejado controvérsias na doutrina e na jurisprudência.
Cumpre anotar, pela relevância no desate da questão, a distinção entre os serviços públicos gerais ou indivisíveis (uti universi) e os serviços públicos individuais ou singulares ou divisíveis (uti singuli).
Serviços públicos gerais ou indivisíveis (uti universi) são aqueles fornecidos a toda coletividade, nos quais não é possível identificar os seus destinatários. Ou seja, nestes serviços não se pode, de forma individualizada, identificar as pessoas beneficiadas. Normalmente são custeados por impostos, e não por taxa ou tarifa, que é remuneração mensurável e proporcional ao uso individual do serviço.
Os serviços públicos individuais ou singulares ou divisíveis (uti singuli) são aqueles fornecidos a destinatários determinados, sendo possível mensurar a sua utilização por cada um dos beneficiários. São serviços públicos de utilização individual, facultativa e mensurável, remunerados por taxa ou tarifa ou preço público, e não por imposto.
Bruno Miragem bem sintetiza o tema:
a aplicação do CDC não prescinde da distinção entre os serviços uti singuli e uti universi. Serviços públicos uti singuli são aqueles prestados e fruídos individualmente e, por isso, de uso mensurável, os quais são remunerados diretamente por quem deles se aproveita, em geral por intermédio de tarifa. Já os serviços uti universi, prestados de modo difuso para toda a coletividade, não passíveis de mensuração, sendo custeados por intermédio de impostos pagos pelos contribuintes. (2008, p. 105).
Sobre a discussão acerca da aplicabilidade do CDC aos serviços públicos existem basicamente três posições: a primeira, defendendo a aplicabilidade da legislação especial a todos os serviços públicos; a segunda, afirmando que a prestação dos serviços deve ser remunerada, seja por taxa ou tarifa; a terceira, sustentando que somente os serviços remunerados por tarifa ou preço público estariam sujeitos ao CDC.
De acordo com Leonardo Medeiros Garcia (2011, p. 185), as normas do CDC não se aplicariam a todos os serviços públicos, de modo que o regime consumerista aplicar-se-ia apenas aos serviços uti singuli, ou seja, aqueles prestados mediante uma contraprestação ou remuneração realizada diretamente pelo consumidor ao fornecedor, pois o § 2º do artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor exige o requisito “remuneração” do serviço.
Em idêntico sentido, Bruno Miragem (2008, p. 106) leciona que a legislação consumerista se aplicaria somente aos serviços públicos nos quais o consumidor figure como agente de uma relação de aquisição remunerada do respectivo serviço, individualmente e de modo mensurável, ou seja, aos serviços públicos uti singuli.
Segundo Leonardo Roscoe Bessa (2009, p. 174) os serviços públicos regidos pelo CDC são aqueles especificamente remunerados e inseridos no mercado de consumo. Deve haver, portanto, certa correspondência entre o valor pago e o serviço prestado, ou seja, contrapartida entre o que se paga e o que se recebe. O serviço dever ser divisível e mensurável individualmente.
Conclui-se, pois, que o CDC abrange aqueles serviços públicos cuja remuneração é realizada diretamente pelo consumidor ao fornecedor, não importando a natureza desta remuneração, se tarifa ou taxa. Portanto, não há dúvida sobre a aplicabilidade das normas do Código de Defesa do Consumidor ao “Serviço Público de Transporte Hidroviário de Passageiros na Baía de Todos os Santos”, porquanto oferecido no mercado de consumo e, principalmente, remunerado diretamente pelo consumidor.
2.3 O Vínculo Jurídico com a Administração Pública
Como dito anteriormente, a empresa TWB BAHIA S/A TRANSPORTES MARÍTIMOS presta o serviço público de transporte hidroviário de passageiros na Baía de Todos os Santos mediante contrato de concessão de serviço público firmado com a Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia – AGERBA.
O contato de concessão de serviço público consiste no contrato administrativo pelo qual a Administração confere ao particular a execução remunerada de serviço público ou obra pública para que o explore pelo prazo e nas condições regulamentares e contratuais (DI PIETRO, 2008, p. 276).
A concessão é prestada por particulares ou por entidade com natureza de direito privado constituída por entidade de direito público. Em qualquer caso, porém, a concessão é entregue a uma pessoa determinada segundo os termos constitucionais e legais definidos. (ROCHA, 1996, p. 45).
O fundamento constitucional da concessão se encontra no artigo 175, caput, da Constituição Federal [7]. Este dispositivo refere que incumbe ao Poder Público a prestação de serviços públicos, direta ou indiretamente, nesse último caso, mediante concessão ou permissão.
O parágrafo único do artigo 175[8] promove expressa remissão a legislação infraconstitucional que estabeleça o regime jurídico das concessões e permissões de serviços públicos, as condições de caducidade, fiscalização e extinção dos respectivos contratos, a obrigação de manter serviço adequado, os direitos dos usuários e a política tarifária.
Nessa esteira, a União editou a Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que estabeleceu o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previstos no artigo 175 da Constituição Federal. Trata-se de lei nacional veiculadora de normas gerais sobre os regimes de concessão e permissão de serviços públicos, cujas normas se aplicam à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios.
No seu artigo 2º, incisos II e III, a referida Lei tratou de distinguir a concessão em 1) concessão precedida de obra pública e 2) concessão não precedida de obra pública, assim como definiu cada uma dessas modalidades.
De acordo com a definição legal, a concessão de serviço, não precedida de obra pública, consiste na delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado.
Vê-se que nessa modalidade o Poder Público transfere a execução de um serviço público a um ente particular, para que o preste em nome próprio, por sua conta e risco, conforme normas regulamentares e contratuais predispostas e modificáveis unilateralmente pela Administração, mas assegura ao particular a remuneração pela própria exploração do serviço.
Cuida-se, desta forma, de um acordo administrativo, e não um ato unilateral da Administração, com vantagens e encargos recíprocos, no qual se fixam as condições de prestação do serviço, levando-se em consideração o interesse coletivo na sua obtenção. (MEIRELLES, 2004, p. 367).
Nesse sentido, a doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello:
Concessão de serviço público é o instituto através do qual o Estado atribui o exercício de um serviço público a alguém que aceita prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco, nas condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público, mas sob garantia contratual de um equilíbrio econômico-financeiro, remunerando-se pela própria exploração do serviço, em geral e basicamente mediante tarifas cobradas diretamente dos usuários do serviço. (2009, p. 696).
É indispensável, assim, que a remuneração do concessionário se dê pela própria exploração do serviço delegado, em regra mediante a cobrança de tarifa paga pelos usuários. E assim ocorre com o serviço de Transporte Hidroviário na Baía de Todos os Santos.
Nada impede, vale ressaltar, que o poder público concedente subsidie parcialmente a tarifa, bem como não se exige que a remuneração decorra exclusivamente da cobrança de tarifas, a fim de fomentar a modicidade das tarifas. O importante é que exista um liame entre a remuneração do concessionário e a exploração do serviço, sob pena de se desfigurar a modalidade concessão de serviços públicos.
Enfim, a concessão consiste numa forma pela qual o Poder Público se desincumbe da obrigação de prestar diretamente o serviço ao usuário e transfere a sua prestação ao concessionário, que passa a ostentar a qualidade de prestador do serviço.
O vínculo jurídico estabelecido entre o particular concessionário – a empresa TWB BAHIA S/A TRANSPORTES MARÍTIMOS – e o poder público – o Estado da Bahia – decorre, no geral, das normas regulamentares, e, no particular, das disposições do contrato administrativo de concessão do serviço público de Transporte Hidroviário de Passageiros na Baía de Todos os Santos.
2.4 Os Usuários do Serviço
Prescreve o artigo 175, inciso II, da Constituição Federal que a lei disporá sobre os direitos dos usuários. Regulamentando o dispositivo constitucional, o artigo 7º, da Lei n. 8.907, de 13 de fevereiro de 1995, elenca diversos direitos dos usuários, dentre os quais o de receber serviço adequado.
É, na verdade, a outra faceta da moeda, uma vez que a Constituição Federal, ao inscrever as atribuições do Poder Público como prestador de serviços públicos, fez inserir a obrigação de manter serviço adequado, nos termos do inciso IV do artigo 175 da Constituição Federal.
Entende-se por serviço adequado, nos termos do § 1º do artigo 6º, da referida Lei, aquele que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
É importante ressaltar que aos usuários de serviços públicos são também aplicáveis as normas de proteção estabelecidas no Código de Defesa do Consumidor. Nesse sentido, dispõe o artigo 22 do CDC[9] que os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias, são obrigados a fornecer serviços adequados.
Como alhures afirmado, as normas do Código de Defesa do Consumidor se aplicam aos serviços públicos, desde que oferecidos no mercado de consumo e remunerados diretamente pelo usuário. Diante disso, nada mais apropriado que passar ao exame do conceito de consumidor no ordenamento jurídico brasileiro.
2.5 A Noção de Consumidor
O Direito das Relações de Consumo se ocupa com a disciplina das relações jurídicas estabelecidas entre consumidores e fornecedores de produtos ou serviços, na seara do interesse individual e coletivo. Motiva-o, sobretudo, a preocupação em proteger um sujeito ou grupo de sujeitos especiais, os consumidores, nas relações frente aos fornecedores, pondo-os a salvo dos abusos do contratante mais forte, mediante o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo (artigo 4º, inciso I, do CDC).
Diante dessa premissa, nada mais apropriado que esmiuçar os traços distintivos dos sujeitos envolvidos nessa relação, assim como o seu objeto, a fim de identificar o que se deve compreender como relação de consumo e, ao final, desvendar o campo de aplicação das normas do Código de Defesa e Proteção do Consumidor.
É preciso consignar, antes de tudo, que a legislação especial de proteção do consumidor não cuidou de definir quais os vínculos jurídicos que devem ser entendidos como relação de consumo.
Preferiu, noutro passo, definir os sujeitos sobre os quais recairá a disciplina, consumidor e fornecedor, e o objeto da relação, produtos e serviços. Tais conceitos são interdependentes, relacionais, na medida em que a caracterização do consumidor, de um lado, pressupõe a presença do fornecedor, de outro.
Nesse sentido, Bruno Miragem (2008, p. 80) afirma que apenas haverá um consumidor se também houver um fornecedor, contratando produto ou serviço, pois tais conceitos não podem ser considerados separadamente. Arremata assim que “as definições são dependentes umas das outras, devendo estar presentes para ensejar a aplicação do CDC”.
A definição jurídica de consumidor, centro do sistema tutelar do Direito das Relações de Consumo, possui contornos legais bem definidos, conforme dispõem os artigos 2º, caput e seu parágrafo único, e artigos 17 e 19, do Código de Defesa e Proteção do Consumidor.
De posse desses conceitos, é fácil perceber a abrangência material da definição de “consumidor”, que ultrapassa as relações meramente contratuais, com o escopo de proteger não apenas os interesses de adquirentes de produtos ou serviços, mas igualmente, e ao mesmo tempo, outros sujeitos não envolvidos diretamente no ato contratual, como os usuários, as vítimas de atos ilícitos pré-contratuais e as vítimas de acidentes de consumo. (MAZZILLI, 2004, p. 149).
Em síntese, a definição abrange atos pré-contratuais, atos pós-contratuais, relações contratuais, individuais ou coletivas. É uma definição para relações de consumo contratuais e extracontratuais, não havendo distinção entre o adquirente de produtos e o usuário de produtos (MARQUES, 2009, p. 70).
2.6 Consumidor Padrão (standard)
O artigo 2º, caput, do Código de Defesa e Proteção do Consumidor, referindo-se ao consumidor standard, define-o como a pessoa física ou jurídica, adquirente ou utente de produto ou serviço, na condição de destinatário final.
Consigne-se preliminarmente que é indiferente a qualidade da pessoa. O Código de Defesa e Proteção do Consumidor não promoveu qualquer discriminação entre pessoas naturais e jurídicas, de modo que ambas as categorias podem ser abrangidas pelo conceito de consumidor padrão e, portanto, protegidas pela legislação especial do consumidor.
De mais a mais, não apenas os adquirentes, mas também os utentes de produtos e serviços estão circunscritos pela definição, uma vez que a lei considera consumidor não apenas a pessoa que transaciona bens frente a um fornecedor, numa específica relação contratual, mas igualmente aquelas que os utiliza para a satisfação de suas necessidades, sem participar do ato de consumo (retirar o bem do mercado de consumo).
Outro aspecto ainda mais importante na definição de consumidor é a explicitação do conteúdo da expressão “destinatário final” prevista no artigo 2º, caput, do Código do Consumidor. Conforme a redação do dispositivo, o atributo essencial na definição de consumidor padrão seria a aquisição ou utilização de produto ou serviço como “destinatário final”.
Nesse sentido, Marco Antonio Zanellato (2003, p. 173) assevera que o CDC distinguiu “consumidor final” e “consumidor intermediário”, ao assinalar no artigo 2º, caput, que somente a aquisição para uso próprio, individual, familiar ou de terceiros poderia ser considerada como consumo, excepcionando-se a aquisição de bens ou serviços para utilização na atividade-fim da empresa.
Com efeito, não se considera consumidor o adquirente intermediário. Logicamente o regime consumerista não se aplica aos que utilizam bens ou serviços para produção de outros bens e serviços, estes sim destinados ao consumidor final. Se a aquisição se destina a incrementar atividades industriais ou comerciais, com a alocação de bens na cadeia produtiva, não há que se falar em relação de consumo. Conforme Roberto Senise Lisboa (2007, p. 329), “o legislador consumerista desconsiderou a figura econômica do intermediador, não lhe proporcionando existência jurídica positivada”.
Mas, afinal de contas, que se entende por “destinatário final”? Há que se examinar as acepções do termo, a fim de situar no debate as pessoas físicas profissionais e as pessoas jurídicas, e compreender os casos em que podem ser considerados “destinatários finais”.
Há quem sustente, por exemplo, que destinatário final corresponde àquele que “utiliza o bem, mediante a sua destruição” ou “retira o produto ou serviço do mercado de consumo” ou “não apenas retira do mercado como também não volta a reempregá-lo” (MIRAGEM, 2008, p. 81).
Surgiram, em consequência da variância semântica da expressão, duas teorias que se propõem a elucidar a controvérsia, a finalista e a maximalista, que doravante analisaremos. Dentro da perspectiva deste trabalho, não serão analisados os fundamentos axiológicos de uma e de outra.
Para os adeptos da teoria finalista, a configuração do consumidor padrão exige a convergência do elemento subjetivo com o teleológico, preconizando uma interpretação restritiva, com fundamento no artigo 4º, inciso I, do Código do Consumidor, a fim de reservar a proteção aos vulneráveis. Afirmam, destarte, que destinatário final seria o destinatário fático e econômico do bem, pessoa física ou jurídica.
Por exemplo, o veranista que, desejando passar uma temporada na Ilha de Itaparica, toma o serviço de transporte hidroviário de passageiros para realizar a travessia entre os terminais de São Joaquim (TSJ) e Bom Despacho (TBD). É evidente que nesse caso há relação de consumo abrangida pelo Código de Defesa do Consumidor. Diversamente seria se um supermercadista contratasse o serviço para transportar um grande lote de mercadorias destinadas à revenda, uma vez que a aquisição, nesse caso, ocorreria como incremento de sua atividade produtiva, de modo que essa relação deverá ser regida pelo direito comum.
Segundo a doutrina finalista, em suma, consumidor é aquele que retira o bem do ciclo de produção (destinação fática) e, ao mesmo tempo, o adquire sem a finalidade de revenda ou uso profissional (destinação final econômica). Se, ao contrário, adquire ou utiliza produto ou serviço como bens de produção, a fim de agregar valor a outro produto ou serviço, alocando-os na prática de outra atividade produtiva, não pode ser considerado consumidor.
Registre-se, por oportuno, que para os partidários de um finalismo extremado “destinatário final” seria a pessoa física não profissional, afastando, por completo, as pessoas jurídicas. Cláudia Lima Marques (2009, p. 71) adverte que “esta interpretação restringe a figura do consumidor àquele que adquire (utiliza) um produto para uso próprio e de sua família”.
É preciso ter em mira, entretanto, que o artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor, ao definir o conceito de consumidor, referiu expressamente às pessoas jurídicas, não podendo o aplicador do direito presumir que a lei contenha palavras inúteis.
Em contraposição, surgiu uma facção moderada do finalismo, o finalismo aprofundado, que admite, excepcionalmente, à luz do princípio da vulnerabilidade, a caracterização da pessoa jurídica e da pessoa física profissional como consumidoras, desde que a aquisição dos produtos ou serviços se destine ao consumo, de forma não profissional, sem a finalidade de inseri-lo no processo produtivo.
Nesse diapasão, Bruno Miragem (2009, p. 81) argumenta que a definição de consumidor dever levar em conta os critérios da vulnerabilidade e da destinação econômica não profissional do produto ou serviço. Desta forma, admitir-se-ia, excepcionalmente, que agentes econômicos de pequeno porte, desde que comprovada a vulnerabilidade, pudessem ser considerados consumidores para fins de aplicação das normas do Código do Consumidor.
Suponha-se que um padeiro tome o serviço de transporte hidroviário para transportar a sua camioneta carregada com pequena quantidade de farinha de trigo e fermento destinada à produção alimentícia em sua padaria. Para a teoria finalista aprofundada haveria sim relação de consumo, eis que verificada uma parte vulnerável de um lado, o padeiro, e um fornecedor de serviços, de outro.
Nesse sentido o seguinte julgado do Colendo Superior Tribunal de Justiça:
Direito do Consumidor. Recurso especial. Conceito de consumidor. Critério subjetivo ou finalista. Mitigação. Pessoa Jurídica. Excepcionalidade. Vulnerabilidade. Constatação na hipótese dos autos. Prática abusiva. Oferta inadequada. Característica, quantidade e composição do produto. Equiparação (art. 29). Decadência. Inexistência. Relação jurídica sob a premissa de tratos sucessivos. Renovação do compromisso. Vício oculto. - A relação jurídica qualificada por ser "de consumo" não se caracteriza pela presença de pessoa física ou jurídica em seus pólos, mas pela presença de uma parte vulnerável de um lado (consumidor), e de um fornecedor, de outro. - Mesmo nas relações entre pessoas jurídicas, se da análise da hipótese concreta decorrer inegável vulnerabilidade entre a pessoa-jurídica consumidora e a fornecedora, deve-se aplicar o CDC na busca do equilíbrio entre as partes. Ao consagrar o critério finalista para interpretação do conceito de consumidor, a jurisprudência deste STJ também reconhece a necessidade de, em situações específicas, abrandar o rigor do critério subjetivo do conceito de consumidor, para admitir a aplicabilidade do CDC nas relações entre fornecedores e consumidores-empresários em que fique evidenciada a relação de consumo. - São equiparáveis a consumidor todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais abusivas. - Não se conhece de matéria levantada em sede de embargos de declaração, fora dos limites da lide (inovação recursal). Recurso especial não conhecido. (REsp 476428/SC, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 19/04/2005, grifo nosso).
Já a segunda linha de pensamento, a teoria maximalista, defende a interpretação extensiva do artigo 2º, “caput”, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, de forma objetiva.
Sustentam que “destinatário final” equivaleria ao “destinatário fático” do produto ou serviço, ou seja, aquele que o retira o bem do mercado e o consome ou utiliza, ou, em outras palavras, quem pratica o ato de consumo (aquisição ou utilização direta). Bastaria, para qualificar-se como consumidor, a retirada do bem do mercado de consumo, não importando a destinação econômica ou a qualidade da pessoa adquirente.
Para a vertente maximalista, em síntese, a indagação acerca da vulnerabilidade no caso concreto não possui nenhuma importância, pois diante do fenômeno da contratação em massa, acompanhada da hegemonia dos contratos de adesão, qualquer co-contratante poderia ser considerado vulnerável.
2.7 Consumidor Equiparado (bystander)
Encerrada a análise do conceito de consumidor padrão (standard), cumpre-nos abordar as figuras equiparadas a consumidor (os bystanders) estabelecidas no Código de Defesa do Consumidor. Com relação a esses terceiros equiparados, a legislação especial trouxe múltiplos conceitos de consumidor, assim definidos no artigo 2º, parágrafo único (a coletividade), artigo 17 (as vítimas de acidentes de consumo) e artigo 29 (os expostos às práticas comerciais e contratuais), do Código de Defesa do Consumidor.
O fundamento dessas equiparações legais, e, portanto, da ampliação do campo de incidência da legislação tutelar, decorreu do aparecimento de uma nova realidade econômica, a sociedade de consumo de massas, marcada pela massificação da produção, da distribuição e do consumo. E, no seio dessa nova conjuntura econômica, mais que natural que as relações jurídicas acompanhassem a perspectiva da coletivização.
Sob esse aspecto, a experiência tem demonstrado que as atividades de fornecedores podem atingir e prejudicar pessoas não participantes (diretamente) do ato contratual (ato de consumo), na medida em que, ao menos potencialmente, as “estratégias do lucro” podem alcançar grupos, classes ou categorias de pessoas, determináveis ou não, as quais devem ser juridicamente protegidas, mediante a colocação das “coletividades de pessoas” como sujeito de direitos.
Nesse sentido, a lição de Sérgio Cavalieri Filho:
A clássica dicotomia entre responsabilidade contratual e extracontratual foi aqui superada, ficando o assunto submetido a um tratamento unitário, tendo em vista que o fundamento da responsabilidade do fornecedor é a violação do dever de segurança - o defeito do produto ou serviço lançado no mercado e que, numa relação de consumo, contratual ou não, dá causa a um acidente de consumo. (2007, p. 479).
Atento a essa circunstância, o regime consumerista se preocupou em alargar a definição de consumidor, expandindo a aplicabilidade de suas normas também às coletividades de pessoas, ao equiparar a consumidor, primeiramente, “a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”, nos termos do artigo 2º, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor[10].
Como se percebe, a legislação especial protege não somente os interesses dos “consumidores concretos”, ou seja, aqueles que praticam o “ato de consumo” em si, mas, da mesma maneira, os interesses da “universalidade” de consumidores, ainda que indeterminados, desde que “haja intervindo nas relações de consumo”.
Tal intervenção “pode se configurar simplesmente pela subordinação aos efeitos da ação dos fornecedores no mercado” (MIRAGEM, 2008, p. 83-84). “A importância do parágrafo único do artigo 2º do CDC é seu caráter de norma genérica, interpretadora, aplicável a todos os capítulos e seções do Código”. (MARQUES, 2009a, p. 80).
É o caso da coletividade de usuários do serviço de transporte hidroviário de passageiros, que pode sofrer danos sem que um consumidor real participe diretamente da relação de consumo como destinatário final. O próprio CDC ilustra o conceito de consumidor por equiparação, ao igualar aos consumidores as pessoas expostas a práticas comerciais abusivas.
Assim, ao prestar o serviço público de transporte hidroviário em descordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes e pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), ou elevar sem justa causa o preço do serviço [11], a empresa TWB BAHIA S/A TRANSPORTES MARÍTIMOS ofende os direitos de toda a coletividade de usuários. Diante disso, os órgãos legitimados para a defesa coletiva dos consumidores poderão adotar toda e qualquer medida judicial que reputarem pertinentes para reprimir a prática abusiva, independentemente da identificação de um consumidor insatisfeito.
Seguindo ainda essa inspiração, o Código de Defesa do Consumidor, ao tratar da responsabilidade pelo fato do produto ou serviço, no seu artigo 17[12], equiparou a “consumidor” qualquer pessoa, natural ou jurídica, que venha a sofrer um dano decorrente de fato do produto ou serviço[13], abrangendo, assim, as vítimas de acidentes de consumo. Vê-se que, em relação aos acidentes de consumo, a legislação não reproduziu a exigência da “destinação final” presente na definição genérica de consumidor padrão (standard), insculpida no artigo 2º, caput, do CDC. Diz-se apenas “vítimas do evento”.
Conforme lição de Cláudia Lima Marques
A proteção desse terceiro, bystander, que não é destinatário final de produtos e serviços do art. 2º do CDC, é complementada pela disposição do art. 17 do CDC, que, aplicando-se somente à seção de responsabilidade pelo fato do produto ou serviço (arts. 12 a 16) dispõe (...). Logo, basta ser “vítima” de um produto ou serviço para ser privilegiado com a posição de consumidor legalmente protegido pelas normas sobre responsabilidade objetiva pelo fato do produto presentes no CDC – não é necessário ser destinatário final, ser consumidor concreto, basta o acidente de consumo oriundo deste defeito do produto ou serviço que causa o dano. (2009a, p. 80).
Portanto, para fins de acidentes de consumo, a definição de consumidor abrange todas as pessoas que sejam atingidas por fato do produto ou serviço, ainda que inexista relação contratual antecedente, desde que resulte dano. É assim porque esta “regra de equiparação do CDC parte do pressuposto que a garantia de qualidade do fornecedor vincula-se ao produto ou serviço oferecido”. (MIRAGEM, 2008, p. 84).
Imagine-se, por exemplo, que banhistas numa das praias da Ilha de Itaparica, não contratantes do serviço de transporte hidroviário, sejam atingidas por destroços ou peças desprendidas de uma das embarcações ou de um dos terminais marítimos geridos pela concessionária. Havendo dano físico ou patrimonial, estas pessoas são equiparadas a consumidor, recebendo a proteção legal instituída no CDC.
E por fim, ao tratar das práticas comerciais e contratuais, o Código de Defesa do Consumidor, no seu artigo 29[14], equiparou a consumidor todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas, ampliando o campo de proteção das normas consumeristas.
Tal proteção abrange todas as seções do capítulo V (Das Práticas Comerciais), do CDC, que versam sobre a oferta (artigos 30 a 35), a publicidade (artigos 36 a 38), as práticas abusivas (artigos 39 a 41), a cobrança de dívidas (artigo 42), os bancos de dados e cadastros de consumidores (artigos 43 e 44), e do capítulo VI (Da Proteção Contratual), sobre as cláusulas abusivas (artigos 52 a 53) e os contratos de adesão (artigo 54).
Trata-se da definição de consumidor equiparado que confere maior extensão ao campo de aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor. Com efeito, a norma exige apenas a simples exposição às práticas comerciais e contratuais abrangidas pelo Código, ainda que não seja possível determinar, in concreto, qualquer pessoa em vias de adquirir ou utilizar produto ou serviço.
Dada a amplitude do artigo 29 do CDC, qualquer contratante poderia, em princípio, invocar a proteção das normas dos artigos 30 a 54 do CDC. Entretanto, a jurisprudência vem se desenvolvendo no sentido de aplicá-las de acordo com a principiologia do Código, com base no reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo.
Segundo Cláudia Lima Marques (2009, p. 81), “o STJ começa a diferenciar entre pessoas jurídicas vulneráveis, se consumidores finais (art. 2º) ou se apenas equiparados, no caso concreto e conforme a prova do processo, a posição de consumidor (art. 29). Assim, em termos de práticas comerciais e contratuais, a norma de extensão do artigo 29 do CDC deve ser aplicada somente se presente a vulnerabilidade do contratante a justificar a equiparação legal, a fim de garantir equilíbrio entre os desiguais.
3. CONCLUSÃO
O Serviço de Transporte Hidroviário de Passageiros na Baía de Todos os Santos, entre os Terminais Marítimos de São Joaquim (TSJ), em Salvador/BA, e Bom Despacho (TBD), em Itaparica/BA, é regulado pela Lei Estadual n. 12.044/2011, que atribui ao Estado da Bahia a incumbência de explorar os serviços de transporte hidroviário intermunicipal de passageiros e veículos.
Como estudamos, as atividades de regulação e fiscalização da prestação desse serviço competem à Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia - AGERBA, autarquia sob regime especial, vinculada à Secretaria de Infra-Estrutura – SEINFRA, conforme a Lei estadual n. 12.044/2011.
Tal serviço tem sido prestado, mediante contrato de concessão, pela empresa TWB BAHIA S/A TRANSPORTES MARÍTIMOS, pessoa jurídica de direito privado, considerada “fornecedora” na definição jurídica estabelecida no Código de Defesa e Proteção do Consumidor.
Quanto à aplicabilidade das normas de proteção do consumidor aos serviços públicos, analisamos o CDC ao definir que a pessoa jurídica de direito público pode ser considerada fornecedora (artigo 3º, caput, do CDC); ao eleger como princípio da Política Nacional das Relações de Consumo a racionalização e melhoria dos serviços públicos (artigo 4º, VII, do CDC); ao tratar como direito básico do consumidor a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral (artigo 6º, X, do CDC); e ao determinar que os órgãos públicos, por si ou suas empresas concessionárias, são obrigados a fornecer serviços adequados (artigo 22, caput, do CDC).
A partir da definição jurídica de “consumidor”, nos artigos 2º, caput e seu parágrafo único, e artigos 17 e 19, do Código de Defesa e Proteção do Consumidor, afirmamos a proteção não apenas da pessoa física ou jurídica, adquirente ou utente de produto ou serviço, na condição de destinatário final, mas também da coletividade, das vítimas de acidentes de consumo e dos expostos às práticas comerciais e contratuais.
A partir da análise da Lei n. 8.987/95 (Lei de Concessões), aplicável à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, asseveramos que cabe ao poder concedente fiscalizar a execução do serviço, aplicar as penalidades cabíveis, intervir na sua prestação, extinguir a concessão e fazer cumprir as disposições regulamentares.
Por fim, os contratos administrativos se caracterizam pela presença de cláusulas exorbitantes, sendo que nos contratos de concessão de serviço público a legislação conferiu à Administração Pública os poderes de alterar e rescindir unilateralmente o contrato, fiscalizar a sua execução, aplicar penalidades e outras medidas pertinentes.
REFERÊNCIAS
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CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2007.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2008.
GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor: código comentado e jurisprudência. 7ª ed. Niterói: Impetus, 2011.
LISBOA, Roberto Senise. O consumidor na sociedade da informação. In: Revista de Direito do Consumidor, n. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan./mar./2007
MARQUES, Claudia Lima. Campo de aplicação do CDC. In: BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e. Marques, Claudia Lima. Bessa, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
MIRAGEM, Bruno. Direito do Consumidor: fundamentos do direito do consumidor; direito material e processual do consumidor; proteção administrativa do consumidor; direito penal do consumidor. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
ROCHA, Carmen Lúcia Antunes, Estudo sobre concessão e permissão de serviço público no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1996.
ZANELATTO, Marco Antonio. Considerações sobre o conceito jurídico de
consumidor. In: Revista de Direito do Consumidor, n. 45. São Paulo: Revista dos
Tribunais, jan./mar./2003.
[1] Artigo 2º, da Lei estadual n. 12.044/11: Cabe ao Estado da Bahia, na forma desta Lei, explorar diretamente, ou mediante concessão ou permissão, os serviços de transporte hidroviário intermunicipal de passageiros e veículos, obrigando-se a fornecê-lo com qualidade e mediante tarifa justa, na forma da Lei e das Constituições Federal e Estadual.
[2] Parágrafo único, do artigo 2º, da Lei estadual n. 12.044/11: Transporte hidroviário intermunicipal de passageiros e veículos, para os efeitos desta Lei, é o serviço de navegação entre dois ou mais municípios, dentro dos limites territoriais do Estado da Bahia, numa faixa litorânea de até 12 (doze) milhas náuticas de largura da costa, em águas de leitos de rios, baías, angras, enseadas, lagos, lagoas, canais, e águas marítimas abrigadas, com origem, destino, tarifa e horários definidos.
[3] Artigo 175, da Constituição Federal de 1998: Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
[4] Artigo 3º, da Lei estadual n. 12.044/11: Os serviços do SHI serão operacionalmente planejados, coordenados, controlados, concedidos, permitidos, regulados e fiscalizados pela Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia - AGERBA, autarquia sob regime especial, vinculada à Secretaria de Infra-Estrutura - SEINFRA, ressalvada a competência da autoridade marítima.
[5] Artigo 3°, caput, do CDC: Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
[6] § 2°, do artigo 3º, do CDC: Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
[7] Artigo 175, Constituição Federal: Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
[8] Artigo 175, parágrafo único, da Constituição Federal: A lei disporá sobre: I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; II - os direitos dos usuários; III - política tarifária; IV - a obrigação de manter serviço adequado.
[9] Artigo 22, do CDC: Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
[10] Artigo 2º, parágrafo único, do CDC: Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.
[11] Artigo 39, do CDC: É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: [...]VIII - colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro); [...] X - elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços.
[12] “Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento”.
[13] Segundo Marques (2009, p. 115), a expressão “fato” significa “dano causado por um produto ou serviço (...) dano provocado (fato) por um produto ou serviço”.
[14] Artigo 29, do CDC: Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas.
Advogado formado pela Universidade Federal da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Altino Conceição da. Transporte hidroviário de passageiros na Baía de Todos os Santos: aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 abr 2015, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43755/transporte-hidroviario-de-passageiros-na-baia-de-todos-os-santos-aplicabilidade-do-codigo-de-defesa-do-consumidor. Acesso em: 22 nov 2024.
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