RESUMO: O presente trabalho aborda a relevância dos princípios no direito pós-positivista e sua aplicação jurisdicional. O pós-positivismo caracteriza-se pelo reconhecimento da força normativa dos princípios, deixando estes de serem meros ideais sem eficácia jurídica para, então, comporem o ordenamento jurídico, reaproximando o Direito e os valores éticos. As regras, dotadas de mais especificidade e concretude, possuem o importante papel de delinear a finalidade dos princípios, mas os princípios, de outro modo, se revelam imprescindíveis para uma prestação jurisdicional justa, haja vista que concedem maior fluidez aos valores e abarcam um maior número de fatos, por vezes não abrangidos pelas regras. Daí a necessidade de desenvolver a aplicação direta dos preceitos principiológicos. Estes devem seguir sendo concretizados mediante a criação de regras, mas a ausência destas não deve impedir sua aplicação direta ao caso concreto. A concretização dos princípios pode se dar tanto pela edição de normas, como pela edição de decisões judiciais. Quatro são os modelos de eficácia dos princípios que merecem maior atenção: a eficácia interpretativa dos princípios, eficácia negativa, eficácia vedativa do retrocesso e eficácia positiva ou simétrica. Deste modo, no direito pós-positivista os princípios ganham maior relevância e se tornam, cada vez mais, usuais no exercício da atividade jurisdicional.
PALAVRAS-CHAVE: TEORIA DOS PRINCÍPIOS; DIREITO PÓS POSITIVISTA; EFICÁCIA DAS NORMAS PRINCIPIOLÓGICAS; EFICÁCIA NEGATIVA; EFICÁCIA VEDATIVA DO RETROCESSO; EFICÁCIA INTERPRETATIVA.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Norma, regra e princípio; 3. Da eficácia normativa dos princípios; 3.1. Da eficácia interpretativa; 3.2. Da eficáia negativa; 3.3. Da eficácia vedativa do retrocesso; 3.4. Da eficácia simétrica ou positiva 4. Conclusão.
1 INTRODUÇÃO
O sentido da aplicação normativa, numa visão pós-positivista, não mais se resume a um método subsuntivo, que cuida predominantemente da correlação entre uma previsão legal e um fato. Este se dá a partir da interpretação dos elementos evidenciados no caso concreto, dos princípios a serem efetivados e dos fins pretendidos.
Não significa que se deve desprezar o método da subsunção do fato à norma. Tal método, apenas, deixa de ser absoluto ou prevalente dando espaço a uma nova interpretação jurídica, a qual preza por um exercício do Direito lastreado no exame completo do ordenamento jurídico, associando princípios, valores e regras, sem desconsiderar a realidade social e o caso concreto.
A nova tendência posiciona o aplicador e intérprete não somente como um revelador dos dizeres normativos, mas como um construtor da norma à luz dos princípios, regras, valores e finalidades do ordenamento. Estas, muitas vezes, somente podem ser alcançadas concretamente após gerado o fato, alvo da incidência normativa. Neste sentido é o entendimento de Luís Roberto Barroso:
Não é verdadeira a crença de que as normas jurídicas em geral – e as normas constitucionais em particular – tragam sempre em si um sentido único, objetivo, válido para todas as situações sobre as quais incidem. E que, assim, caberia ao intérprete uma atividade de mera revelação do conteúdo preexistente na norma, sem desempenhar qualquer papel criativo na sua concretização (BARROSO, 2010, p.347-348).
Pela complexidade do ordenamento a norma é mais que a descrição de um comportamento, mas transmite imediatamente ou mediatamente uma finalidade, a qual deve ser extraída pelo aplicador e devidamente valorizada.
A mera aplicação da norma sem uma interpretação em consonância com a totalidade do ordenamento, por vezes pode gerar contradições, incoerências e injustiças, violando o próprio senso de valor e ideal.
Tem-se, portanto, a função interpretativa não somente como reveladora do conteúdo preexistente da norma, mas também revestida de caráter criativo no momento de sua concretização.
A obrigatoriedade ou imperatividade é também uma característica relevante do ordenamento. Este não se consubstancia em um conselho ou um ideal, mas, uma vez constituída a norma, torna-se então obrigatória, cabendo ao Estado o poder de fazer valer o ordenamento em sua integralidade, não considerando um dispositivo isoladamente, mas todo o sistema, conforme acima exposto.
Ana Paula de Barcellos, neste ponto, ressalta que o caráter imperativo se consolida como elemento fundamental do direito e da norma jurídica. É o que distingue as demais normas sociais das jurídicas. Diferencia-se pela possibilidade de, através da máquina estatal, se exigir o cumprimento da norma. Tal cumprimento se dá mediante a força coativa do Estado (BARCELLOS, 2002, p.31-32).
Nas palavras da mesma autora, são três os requisitos para tornar a norma jurídica efetiva: apurar o efeito que cada norma pretende produzir no mundo dos fatos, identificar o que se pode exigir perante o Judiciário para garantir a realização do efeito normativo em caso de descumprimento e, por fim, dispor de meios jurídicos eficazes na implementação da consequência jurídica, ou seja, de ampla tutela.
Significa que é necessário perceber o resultado anelado por cada disposição normativa em concreto. Não é possível realizar uma norma sem saber ao certo os efeitos por ela pretendidos. Além disso, é fundamental ter evidente o que se deve requerer perante o Judiciário diante de uma violação normativa, para que o Estado utilize sua força coativa no intuito de forçar o cumprimento da norma. Por fim, o aparato estatal deve estar à disposição de todas as classes sociais, de maneira ampla e eficaz com o fim de permitir a implementação da consequência jurídica.
Deste modo, a norma jurídica compõe o ordenamento consolidando um conjunto harmônico e coeso de valores e condutas, não se restringindo a uma prescrição isolada. Diferencia-se de outras normas sociais pelo seu caráter imperativo, sendo possível a realização de seus efeitos de maneira coativa por meio dos aparatos estatais.
Norma jurídica, conforme já descrito, diferencia-se das demais normas sociais por ser garantida pelo Poder Público, através do caráter imperativo e coercitivo[1]. O pós-positivismo caracteriza-se pelo reconhecimento da força normativa dos princípios, deixando estes de serem considerados meros ideais sem eficácia jurídica para, então, comporem o ordenamento jurídico, reaproximando o Direito e os valores éticos.
A doutrina já pacificou o entendimento no sentido de que as normas subdividem-se em duas espécies básicas, quais sejam, princípios e regras[2]. Nesta esteira, restou superado o entendimento que negava o caráter normativo dos princípios. Luís Roberto Barroso assim afirma:
Na trajetória que os conduziu ao centro do sistema, os princípios tiveram de conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata. A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas em geral e as normas constitucionais em particular enquadram-se em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras. (BARROSO, 2010, p. 352).
Tem-se, portanto, que a norma configura gênero do qual são espécies os princípios e as regras.
A era antecedente, positivista, foi marcada pelo legalismo e tecnicismo exacerbado, de modo que os ideais principiológicos eram dissociados do ordenamento enquanto normas imperativas. A aplicação do direito era determinada pela subsunção das regras ao caso concreto, ainda que não resultasse em um fim justo. Após, inaugurou-se uma nova fase, a pós-positivista.
O pós-positivismo destaca a diferenciação clara entre normas gerais e normas específicas, sendo estas enquadradas nos conceitos de regra e princípio. Thiago Bonfim afirma que “As regras têm uma incidência mais restrita às situações jurídicas por elas preconizadas, enquanto os princípios possuem uma maior carga valorativa e um alto grau de abstração” (BOMFIM, 2008, p. 49).
Ressalte-se ainda que, neste contexto do sistema jurídico, não há hierarquia entre regras e princípios. Possuem, tão somente, funções distintas sendo igualmente fundamentais. A hierarquia presente entre normas no ordenamento leva em consideração outros critérios, e.g., se a regra ou princípio é constitucional ou infraconstitucional.
Sobre a inexistente superioridade ou inferioridade entre normas no que toca a sua classificação enquanto regra ou princípio, se manifesta Luiz Barroso: “Sem embargo da multiplicidade de concepções na matéria, há pelo menos um consenso sobre o qual trabalha a doutrina em geral: princípios e regras desfrutam igualmente do status de norma jurídica e integram, sem hierarquia, o sistema referencial do intérprete” (BARROSO, 2010, p. 355).
Insta salientar que não se deve desprezar o método tradicional da subsunção, sendo certo que, por vezes, o intérprete tão somente enquadrará o fato na hipótese descrita resultando daí as conseqüências jurídicas previstas, sem maiores valorações. O avanço se deu em razão da necessidade de aprofundar o estudo da teoria normativa tornando-o mais completo e abrangente.
O tema que aborda os aspectos diferenciadores das espécies normativas supramencionadas ainda carece de maior exploração e consolidação na doutrina. Merecem destaque, entretanto, os principais fatores de distinção já evidenciados.
Barroso define regras como disposições objetivas e descritivas de certas condutas, podendo ser aplicadas a um número determinado de situações fáticas. Sua aplicação se dá pela subsunção assim que ocorrido o evento previsto em seu relato. Afirma que “a aplicação da regra se opera na modalidade tudo ou nada: ou ela regula a matéria em sua inteireza ou é descumprida. Na hipótese entre duas regras, só uma será válida e irá prevalecer” (Ídem, p.353).
Já princípios, ainda para Barroso, são prescrições mais abstratas que não definem a conduta a ser seguida bem como são aplicáveis a um número imprevisível ou extenso de situações. Podem entrar em tensão dialética, apontando para várias direções, razão pela qual devem ser aplicados por ponderação (Ídem, p.354).
O autor destaca três critérios de distinção: o conteúdo, a estrutura normativa e as particularidades da aplicação.
Quanto ao conteúdo, os princípios são predominantemente carregados de valor e finalidade. Como exemplo, cita isonomia como um valor e redução das desigualdades regionais como um fim. É a positivação de ideais a serem alcançadas. As regras, por sua vez, descrevem condutas, sem explicitar carga valorativa. São normas finalísticas e prescritivas respectivamente.
Em relação à estrutura normativa, a regra descreve uma conduta a ser seguida. A aplicação é mais objetiva, em que pese não seja mecânica. Quanto aos princípios, que descrevem fins, ao serem aplicados, requerem uma maior argumentação, pois caberá ao interprete definir a conduta a ser realizada em concreto.
Por fim, define o critério da aplicação, com lastro na teoria desenvolvida por Dworkin e Alexy.
Dworkin afirma que uma regra é aplicável à maneira tudo ou nada. Uma regra enuncia um fato. Uma vez constatado o fato no caso concreto a resposta dada pela regra deve ser aceita, a menos que a regra não seja válida, quando não contribuirá em nada com a decisão (DWORKIN, 2002, p.39).
Alexy, no mesmo sentido, afirma que as regras somente não serão aplicadas se inválidas. Estas não admitem exceções, a menos que introduzida no próprio texto da regra como cláusula de exceção. A invalidez da regra se dará pelos critérios de anterioridade, especialidade, competência etc. Deste modo as regras ou são aplicadas integralmente ou afastadas, por serem consideradas inválidas (ALEXY, 2008, p. 92-93).
Regras, para Barroso, seguindo os fundamentos supramencionados, constituem disposições normativas de aplicação tudo ou nada. Uma vez consolidado o fato descrito, devem ser aplicadas, predominantemente, por subsunção, incidindo de modo automático e direto. Somente deixarão de incidir automaticamente caso sejam inválidas, e.g., se não forem vigentes ou se existir outra mais específica (BARROSO, 2010, p. 356).
Os princípios são aplicados por ponderação. Em uma colisão, a incidência se dá por meio de uma valoração de pesos ou importância. Para tanto, impende uma fundamentação especificando os métodos da ponderação e a razão da escolha do intérprete.
Dworkin afirma que “os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam [...] aquele que vai resolver o conflito tem que levar em conta a força relativa de cada um” (DWORKIN, 2002, p. 42).
Alexy conclui que os princípios podem ser considerados menos ou mais importantes diante de um conflito, sob determinadas condições. Enquanto as regras concorrem na dimensão da validade, os princípios concorrem na dimensão de peso (ALEXY, 2008, p. 93-94).
Humberto Ávila critica a aplicação tudo ou nada das regras, entendendo que, em razão de possuírem fundamento principiológico, estas podem sofrer ponderação. Cita o exemplo de uma regra que proíbe taxistas e motoristas de lotação de realizarem o transporte de passageiros com animais, especialmente cães, sendo penalizado com multa o proprietário que descumprir a regra. Não obstante, o Departamento de Trânsito poderá deixar de aplicar a multa caso o passageiro seja cego e precise de cão guia, por entender que a finalidade da regra (a segurança no trânsito) não se coaduna com a penalização de passageiros que necessitem de cão guia (ÁVILA, 2012, p. 80-81).
Neste caso o traço essencial da regra seria a possibilidade de não aplicá-la integralmente. Já o princípio, após sofrer ponderação em eventual contraposição com outro princípio, pode ser completamente afastado, em razão do núcleo que direciona sua aplicabilidade impondo atos que podem ser contrários aos atos que o outro princípio colidente estabelece.
O autor defende uma teoria que não anula a possibilidade da aplicação tudo ou nada das regras, sendo importante para algumas situações específicas que não se adéquem ao método tradicional de aplicação normativa.
Ainda sobre princípios e regras, Daniel Sarmento define como critérios diferenciadores, em síntese, o grau de generalidade e abstração, o mecanismo de aplicação e relação da norma com o fato e, por conseguinte, a solução dada às hipóteses de conflitos normativos (SARMENTO, 2003, p. 42-46).
No tocante ao grau de generalidade e abstração, tem-se que os princípios são revestidos de maior abstração e generalidade que as regras. Significa que seu raio de determinação é reduzido, abarcando um incontável número de situações fáticas, ao passo que, as regras, prescrevem comportamentos delimitados, identificando as situações fáticas às quais se aplicam.
Nesta esteira, os princípios são normas predominantemente finalísticas, das quais se abstrai facilmente o valor ou bem jurídico a que se deseja tutelar, sem, contudo, determinar a hipótese concreta objeto de incidência da norma, sendo este o papel das regras.
Humberto Ávila aborda a questão da generalidade dentro do critério de dissociação que denominou “natureza do comportamento prescrito”. Afirma que as regras são normas imediatamente prescritivas, enquanto os princípios são finalísticos, haja vista que estabelecem um estado de coisas que para ser alcançado dependerá da adoção de um comportamento não especificado pela norma (ÁVILA, 2012, p.78).
A norma-princípio, portanto, somente especifica uma finalidade a ser atingida, sem identificar os meios comportamentais a serem adotados para o alcance da finalidade. Nas palavras do autor “Os princípios são normas cuja a qualidade frontal é, justamente a determinação da realização de um fim juridicamente relevante, ao passo que a característica dianteira das regras é a previsão do comportamento” (Ídem, p.78).
Ávila, por sua vez, opõe-se ao posicionamento que defende uma alternativa exclusiva das espécies normativas, ou seja, que uma norma, uma vez qualificada como regra, jamais possa ser considerada como princípio ou vice-versa. Para ele um dispositivo pode ser analisado em diferentes dimensões, podendo ser princípio ou norma, a depender do ponto de partida que se constrói a regra ou princípio.
No entanto, os princípios são imediatamente responsáveis pela promoção de um estado ideal de coisas (o que acentua seu grau de abstração, por ser uma característica prima facie) e, mediatamente, responsáveis pela adoção da conduta necessária. No caso concreto o princípio obriga uma adequação entre o fim que se deseja promover e os efeitos da conduta que deve ser adotada.
Ávila baseia-se na teoria que determina que o fim exprime necessariamente uma orientação prática, representando uma função diretiva. Relativiza, deste modo, o caráter abstrato do princípio (admitindo sua função diretiva mediata), sem negar, contudo, seu caráter imediatamente finalístico.
A teoria dá uma maior praticidade e aplicabilidade aos princípios ao delinear e ressaltar um efeito concreto no mundo dos fatos. De outra feita, não se pode negar a importância da classificação que enfatiza o caráter abstrato e geral dos princípios, da qual advém maior clareza à função principal da espécie normativa.
Ana Paula de Barcellos também trata acerca de um núcleo dos princípios que possui natureza de regra. A natureza se dá em razão de sempre se abstrair dela um conteúdo mínimo, não obstante a impossibilidade de determinar em toda extensão o efeito planejado pela norma. Assevera que “no momento em que se desrespeitam determinadas condições que compõem o princípio, há consenso de que foi violado” (BARCELLOS, 2002, p.192).
A natureza de regra advém da existência de um núcleo de condições materiais inerente à composição do princípio. O núcleo possui incidência tão automática e necessária que, uma vez não atendido, não há possibilidade de ponderação, mas, o princípio terá sido categoricamente violado.
Uma vez ultrapassados os limites do núcleo, a norma passa a assumir seu caráter abstrato e indeterminado, permitindo ao legislador aplicá-la da maneira mais eficaz ao fim que ela propõe em consonância com o contexto e o momento histórico.
Luís Barroso também admite a possibilidade de ponderação das regras e da aplicação tudo ou nada dos princípios, conforme o seguinte parágrafo:
É certo que, mais recentemente, já se discute tanto a aplicação do esquema tudo ou nadaaos princípios como a possibilidade de também as regras serem ponderadas. Isso porque, como visto, determinados princípios – como o princípio da dignidade humana e outros – apresentam um núcleo de sentido ao qual se atribui a natureza de regra, aplicável biunivocamente. Por outro lado, há situações em que uma regra, perfeitamente válida em abstrato, poderá gerar uma inconstitucionalidade ao incidir em determinado ambiente ou, ainda, há hipóteses em que a adoção do comportamento descrito pela regra, violará gravemente o próprio fim que ela busca alcançar (BARROSO, 2010, p.357).
Conclui-se que, dessa nova perspectiva que surge na doutrina, em certas situações as normas não devem ser classificadas e aplicadas com a rigidez do método de diferenciação de regras e princípios, mas se deve analisar o núcleo material cogente do princípio e a base principiológica da norma de modo a unir todos os âmbitos normativos à prática.
Daniel Sarmento constata também uma relação de simbiose entre as espécies do sistema normativo, na qual “os princípios passam por um processo de concretização sucessiva, através de princípios mais específicos e subprincípios, até adquirirem o grau de densidade das regras” (SARMENTO, 2003, p.42-43).
Significa que um princípio é parâmetro de origem e interpretação da regra e a regra, por sua vez, delineia objetivamente os fins do princípio, consubstanciando o bem que se deseja tutelar. É o que explica Sarmento:
O que ocorre, na verdade, é um procedimento dialético, no qual cada subprincípio em que se desdobra o princípio original adiciona a este novas dimensões e possibildades, subsistindo o princípio original no papel de vetor exegético dos cânones mais específicos. Há um “esclarecimento recíproco”: o princípio ilumina-se através das suas concretizações, as quais, por sua vez, só assumem seu sentido pleno ao lume do princípio que as engendrou (Ídem, p.43).
Deste modo, Daniel Sarmento afirma a existência de uma concretização sucessiva dos princípios dentro do ordenamento, até que se alcança o grau de densidade das regras.
Outra diferença ratificada pelo autor diz respeito ao modo que cada espécie se relaciona com o fato. As regras, prescritivas, especificam uma hipótese de incidência bem como as conseqüências jurídicas no caso de seu descumprimento, permitindo, geralmente, a subsunção da norma ao fato.
Os princípios, por seu turno, são mais concretos que os valores e menos que as regras. Não delimitam prima facie as hipóteses de sua incidência inviabilizando ou reduzindo as possibilidades de subsunção. Deste modo sua relação com os fatos se dá, normalmente, por meio da ponderação. Sua aplicação, portanto, não pode ser automática e exige uma maior fundamentação que, embora jamais dispensada, pode ser mais concisa na aplicação das regras.
Esclarece, ainda, mesmo quando preenchidos os requisitos para sua aplicação ao caso concreto, os princípios dependem de um sopesamento, pois são dotados de uma dimensão de peso, de maneira que outro princípio também poderá ser aplicado ao mesmo caso. Em suposto conflito, a aplicação da referida espécie deverá se dar por meio da ponderação, é o que defende o autor:
[...] os princípios são dotados de uma dimensão de peso. Tal característicarevela-se quando dois princípios diferentes incidem sobre determinado caso concreto, entrando em colisão. Nesta hipótese, o conflito é solucionado levando em consideração o peso relativo assumido por cada princípio dentro das circunstâncias concretas presentes no caso, a fim de que possa precisar em que medida cada um cederá espaço ao outro (Ídem, p. 45).
Tem-se, portanto, a possibilidade de um princípio ser perfeitamente adequado a determinada situação fática e, no entanto, não ter suas conseqüências jurídicas parcial ou integralmente aplicadas em razão de outros princípios de maior peso e pertinência ao caso em análise.
No caso das regras, geralmente, não se aplica a ponderação. Se há um conflito, este se soluciona por meio de critérios de anterioridade, especialidade ou hierarquia, afastando completamente uma regra, cedendo espaço à aplicação da outra.
Lembre-se que a classificação rígida de regras aplicadas pelo método tudo ou nada e princípios por ponderação vem sendo relativizada, dando espaço a ideia de que as regras podem ser ponderadas e os princípios aplicados pelo método tudo ou nada. Mas não se deve desprezar a teoria tradicional, precursora, que é de grande valia para a solução de boa parte dos casos de aplicação normativa.
Ana Paula de Barcellos, sem deixar de levar em conta os demais critérios diferenciadores, distingue princípios e regras a partir da própria definição que apresenta acerca da norma jurídica, focando dois aspectos: os efeitos que pretendem produzir e os meios aptos a alcançá-los (BARCELLOS, 2002, p. 31-38).
Impende relembrar que a autora define norma jurídica através de seu caráter imperativo, reconhecendo a necessidade de identificar três elementos: o efeito da norma no mundo dos fatos, a consequência jurisdicional em caso de descumprimento da norma e, ao final, o meio de tutela judicial para a implementação da consequência jurídica.
Os princípios possuem efeitos, a partir de certo ponto, indeterminados. O que não ocorre com as regras. Como exemplo a autora demonstrou que a regra que proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de dezoito anos produz um efeito absolutamente claro e previsível, qual seja, que nenhum menor de dezoito anos pode exercer trabalhos em horário noturno, perigoso ou insalubre (ainda que seja necessário perícia para classificar o trabalho como perigoso ou insalubre).
Quanto aos princípios, não se deduz tão facilmente seus efeitos. Como exemplo, pode-se citar o dispositivo que determina a segurança ao salário. Dele depreende-se, e.g., que ao empregador é obrigatório o pagamento do salário pactuado, mas não se tem um consenso acerca da repercussão e de toda a abrangência da norma.
O princípio se assemelha à regra por possuir um núcleo básico a partir do qual se abstrai alguns efeitos claros. Enseja a criação, inclusive, de outras normas com a mesma finalidade e limita a atuação contrária do Estado ou do particular. Contudo, a indeterminação de seus efeitos acentua-se gradualmente em razão tanto das ilimitadas situações desconhecidas e imprevisíveis, como também dos diferentes entendimentos religiosos, culturais, políticos, ideológicos, filosóficos etc., que permeam a mente do intérprete. Veja-se:
Uma primeira conclusão a que se pode chegar, portanto, é de que os efeitos que um princípio pretende produzir irradiam-se a partir de um núcleo básico determinado, semelhante, neste particular, às regras. A partir deste núcleo, todavia, esses efeitos vão tornando-se indeterminados, sejam porque variam em função de concepções políticas, ideológicas, religiosas, filosóficas etc., seja porque há uma infinidade de situações não previstas, e a rigor indetermináveis, às quais seu efeito básico poderá se aplicar (Ídem, p.53).
Essa indeterminação gradual dos princípios é de extrema importância por dar fluidez ao ordenamento, permitindo que dele se abstraia soluções justas aos conflitos, independente da circunstância social, que se altera constantemente.
A segunda característica diferenciadora das espécies normativas para Barcellos relaciona-se com o meio para alcançar a finalidade da norma. Ainda que se defina o efeito desejado através do princípio, este não determina o modo para sua realização, ponto em que difere das regras.
Com o fito de demonstrar a característica diferenciadora, tem-se o princípio do pleno emprego. Dele se entende que o efeito a ser produzido no mundo dos fatos é que o Estado viabilize a todos oportunidade de emprego. Contudo, a maneira que se fará efetivo o efeito determinado não é especificada pelo princípio. Para uns pode ser através do incentivo ao pequeno empresário, para outros através da abertura de frente de trabalhos pelo Estado etc.
Destarte, para a autora, os princípios diferenciam-se das regras em razão dos seus efeitos, a partir de certo ponto, serem indeterminados (o que não ocorre com as regras) e pela variedade de meios possíveis para a concretização dos efeitos deduzidos a partir do dispositivo principiológico (flexibilidade que inexiste no caso das regras).
Conclui-se que, no que atine a diferenciação das regras e princípios, esta, tradicionalmente se dá pelo caráter geral e indeterminado dos princípios em contraste com a concretude e especificidade das regras, características tais que repercutem na aplicação e nos meios de incidência das normas.
Contudo, inseridas em um ordenamento integral e aberto, deve-se considerar que os princípios são dotados de certa natureza específica e concreta, pois possuem um núcleo mínimo material de exigências a serem efetivadas ou respeitadas, de maneira que certos atos configurarão violação a norma-princípio, sem qualquer possibilidade de ponderação.
Ainda, as regras, analisadas profundamente, levando em conta seu lastro principiológico, irradiam, em certas situações, valores a serem respeitados, ainda que não aplicadas em sua integralidade. Podem, deste modo, sofrer ponderação.
As novas perspectivas, por sua vez não invalidam a incidência tudo ou nada das regras ou a ponderação dos princípios, que, em inúmeras hipóteses constitui método eficaz na aplicação normativa, bem como na associação da necessária segurança jurídica e do indispensável senso de justiça.
Nesta perspectiva, Luis Barroso assevera que o sistema jurídico ideal deve ser constituído de regras e princípios, sem predomínio de um sobre o outro:
É bem de ver, no entanto, que o sistema jurídico ideal se consubstancia em uma distribuição equilibrada de regras e princípios, nos quais as regras desempenham o papel referente à segurança jurídica– previsibilidade e objetividade das condutas – e os princípios, com sua flexibilidade, dão margem à realização da justiça no caso concreto (BARROSO, 2010, p. 354).
Os princípios, pilares fundamentais dos fins e valores a serem tutelados pelo direito, permitem solucionar conflitos não previstos pelo ordenamento bem como garantir direitos básicos e não explícitos. As regras, por seu turno, igualmente necessárias, consolidam a previsibilidade e a segurança do direito, estabelecendo claramente atos exigíveis e consequências jurídicas em caso do descumprimento.
Conforme já tratado, tornou-se consensual a função normativa dos princípios. Estes não são mais considerados meros ideais axiológicos para o direito, mas compõem o ordenamento pátrio, adquirindo a imperatividade própria das normas jurídicas. Ana Paula Barcellos manifesta-se a respeito do tema afirmando que “[...] os princípios, assim como as regras, espécie de normas jurídicas que são, pretendem produzir efeitos sobre o mundo dos fatos, ou seja: pretendem que a realidade assuma uma forma específica.” (BARCELLOS, 2002, p. 51).
Deste modo, uma vez parte do conjunto normativo, como qualquer norma jurídica, importa que os princípios produzam efeitos reais, ainda que não especificados os meios comportamentais a serem adotados. Cabe ao Estado, deste modo, dar efetividade através de instrumentos processuais suficientes, disponíveis e eficientes.
No contexto positivista, os princípios eram tidos como ideais sem qualquer função normativa. Uma decisão jurídica poderia sofrer influência da subjetividade do julgador, mas sua fundamentação somente poderia ser fulcrada em normas positivadas no sistema jurídico.
Em seguida, os princípios ingressaram nos estatutos normativos como fonte subsidiária. Não eram considerados como lei, mas dela deduzidos, suprindo eventual omissão do ordenamento. A esse respeito trata Thiago Bonfim:
O valor dos princípios está no fato de derivarem das leis, e não de um ideal de justiça, o que torna altamente precária sua normatividade, por conta do papel subsidiário que essa corrente lhes atribui e o lugar teórico em que lhes coloca, como fontes de integração do direito, isso na hipótese de ocorrerem vazios legais (BOMFIM, 2008, p.64).
Cabe um breve comentário acerca do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil que possui o seguinte enunciado: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito” (BRASIL, 1942).
Para Eros Roberto Grau, o dispositivo ratifica a normatividade dos princípios, pois autoriza o provimento jurisdicional baseado nos princípios gerais de direito. Considera que uma vez que a norma é pilar necessário para a fundamentação, a autorização do lastro decisório nos princípios gerais do direito confirma a força normativa da espécie (GRAU,2009, p.168).
Concessa venia, não assiste razão ao autor, haja vista que, em verdade, a prescrição normativa enfraquece o caráter normativo do princípio ao subjugar seu uso às hipóteses restritas de omissão da lei, refletindo exatamente fase antecedente à atual, que não reconhecia a hegemonia principiológica no ordenamento.
Os princípios, na atualidade, exercem função fundamentadora no ordenamento, ostentando eficácia diretiva e derrogatória, podendo invalidar e excepcionar regras. Por vezes também exercem função interpretativa, orientando soluções jurídicas e supletiva, integrando o sistema e suprindo eventuais vazios. Ocupam, deste modo, um papel deveras relevante, que não se restringe ao suplemento de vazios. Impende transcrever as palavras de Thiago Bomfim:
Importante operar a distinção entre as diversas funções desempenhadas pelos princípios, pelo fato de que os princípios constitucionais abordados ao longo deste trabalho, [...] representam efetivamente princípios jurídicos, com força normativa suficiente para condicionar a aplicação das normas jurídicas e não apenas princípios puramente retórico-argumentativos, com a intenção meramente orientadora. Não obstante, é possível que um princípio desempenhe tanto função fundamentadora como interpretativa. O que se deve definitivamente repisar é que a pura e simples função supletiva, outrora dominante, não pode ser vista como regra nesse novo contexto pós-postitivista. (grifo nosso) (BOMFIM, 2008, p. 67).
Em verdade todo o ordenamento deve servir a interpretação e integração normativa. Este deve ser considerado como um todo, afastando a análise isolada de regras ou disposições. Os princípios, então, reconhecidamente ocupam um espaço de enorme importância no ordenamento, atuando como normas fundamentadoras, que direcionam comportamentos e atos, bem como que derrogam outras normas contrárias.
Então, finalmente, no pós-positivismo, conquistado espaço nas Constituições, os princípios gerais do direito passam a ser disposições normativas basilares, dando fundamento axiológico e normativo a todo o ordenamento. É o chamado Estado principialista. Alcançaram, finalmente, reconhecimento, amplamente divulgado e explorado pela doutrina, ensejando, ainda, fundamentação em diversas decisões nos tribunais (BOMFIM, 2008, p.65-66).
Os princípios podem ser divididos em explícitos, aqueles que estão expressos no ordenamento, e implícitos, aqueles que, malgrado não evidenciados, são identificados no conjunto normativo e na constatação doutrinária.
Não há dúvidas que os princípios explícitos são normas como qualquer outra positivada. Os implícitos, por seu turno, são de maior grau de abstração, carecendo de mais fundamentação para produzirem seus efeitos, entretanto não deixam de possuir força normativa.
Eros Roberto Grau afirma que, uma vez identificados pela doutrina, são declarados e não constituídos, pois são latentes no ordenamento. Não há que se falar em positivados, mas sim descobertos:
Os princípios explícitos, estes se manifestam de modo expresso. Os demais, implícitos, não são “positivados”, mas descobertos no interior do ordenamento; pois eles já eram, nele, princípios de direito positivo, embora latentes. Em outros termos: o intérprete autêntico nada “positiva”. O princípio já estava positivado. Se não fosse assim, não poderia ser induzido.
Devo insistir e deixar muito bem vincado este ponto: o ato de “descoberta” de um princípio latente em determinado ordenamento é declaratório, não é constitutivo. (GRAU, 2009, p.171).
Tem-se, portanto, que, para o autor, os princípios, ainda que não expressos na norma, mas latentes, são positivados, possuindo força de norma, cabendo ao aplicador tão somente sua descoberta e declaração.
As espécies de princípios se diferenciam, contudo, pelo grau de abstração que apresentam. Um princípio explícito possui um menor grau de abstração que o implícito. Para sua efetivação será necessária sua concretização. A concretização para Eros Grau ocorre através da edição de normas prescritivas, podendo esta se dar pelo legislador, através da aprovação de uma regra ou, em última instância, pelo juiz, em edição de sentença, classificada como norma individual.
A efetividade dos princípios é um dos maiores desafios enfrentados na teoria dos princípios no pós-positivismo.
Esta, a efetividade, se mostra através da exigibilidade e possibilidade do provimento jurisdicional com lastro na norma-princípio a fim de que, os efeitos normativos, que deveriam ser gerados espontaneamente e por algum motivo não o foram, sejam coativamente produzidos pelo Judiciário no mundo dos fatos.
Para tanto, necessário se faz que sejam evidentes os efeitos a serem produzidos pelos princípios. Conforme explicado anteriormente, a espécie possui um caráter geral e certo grau de abstração (não descrevem um fato concreto objeto de sua incidência), de modo que sua utilidade prática depende da identificação clara dos efeitos desejados pela norma. Mais uma vez, nas palavras de Ana Paula:
Como já se mencionou, os princípios são normas jurídicas e, portanto, pretendem produzir determinados efeitos concretos que haverão de ser garantidos coativamente pela ordem jurídica. Se uma das particularidades dos princípios pode ser a indeterminação de seus efeitos, a partir de um núcleo básico, antes de saber como “garantir coativamente”, é preciso saber “o que” será garantido. Ou seja: é preciso saber que efeitos o princípio pretende produzir para, na sequência, apurar o que se pode exigir diante do Poder Judiciário de modo a garantir a realização desses efeitos. (BARCELLOS, 2002, p.56).
Tem-se então a necessidade de desenvolver métodos capazes de evidenciar os efeitos e finalidades próprios do princípio a que se deseja efetivar. Lembre-se que os princípios, ainda que gerais e abstratos, possuem um núcleo que se equipara à natureza de regra, o qual delimita um mínimo material de condições a serem impostas ou preservadas sob pena de violação clara ao princípio.
Esse núcleo será fundamental para a aplicação do princípio ao caso concreto, norteando a consolidação dos efeitos, bem como elidindo possibilidades de distorções por parte do intérprete.
É relativamente recente o reconhecimento da força normativa dos princípios. Deste modo, ainda é incipiente o estudo das modalidades de eficácia da espécie. A doutrina majoritária vem adaptando as espécies usualmente aplicadas para as regras, buscando desenvolver uma nova perspectiva, qual seja, a dos princípios. Três são as modalidades principais reconhecidas: a interpretativa, a negativa e a vedativa do retrocesso (mais recente de todas)[3].
Os métodos referidos, entretanto, são insuficientes por tratarem apenas de ações comissivas que devem ser anuladas, invalidadas ou modificadas, sem levar em conta as omissões, que também são contrárias aos efeitos dos princípios.
Certos princípios requerem uma ação positiva para serem cumpridos. Ana Paula Barcellos, então, entende como imprescindível a eficácia positiva ou simétrica para a satisfação dos princípios. Tal reconhecimento vem sendo recentemente consolidado, de modo que a doutrina vem reconhecendo a eficácia positiva dos princípios.
Do mesmo modo Luís Roberto Barroso esclarece quatro métodos de eficácia das normas principiológicas, sendo um deles justamente o positivo ou simétrico, que se assemelha ao método tradicionalmente aplicado a todas as normas, que antes se entendia restringir-se basicamente às regras. Os métodos serão estudados separadamente nos tópicos seguintes.
3.1. Da Eficácia Interpretativa
A eficácia interpretativa diz respeito à possibilidade de normas de hierarquia superior direcionar a interpretação de normas de hierarquia inferior. Não significa que há uma hierarquia entre os princípios, mas, por exemplo, entre uma norma constitucional e uma infraconstitucional, entre uma lei e seu regulamento etc. (BARCELLOS, 2002, p.73).
Entre os princípios inseridos na Constituição, o método de eficácia interpretativa também pode se operar, em razão de alguns princípios possuírem maior carga valorativa, sendo gerais ou fundamentais, enquanto outros são mais específicos, influenciando somente sua área de atuação, como ocorre com o princípio da anterioridade, inerente à área tributária.
Os princípios fundamentais (dignidade da pessoa humana), pela sua importância, exercem influência interpretativa sobre todo ordenamento, assim como os gerais (princípio da legalidade), que também abarcam todas as áreas jurídicas.
A influência dentro da própria Constituição se dá em razão também da necessidade de uniformidade, devendo suas normas seguir orientações confluentes e não divergentes[4]. Neste caso, alguns princípios de maior densidade axiológica e abrangência servem de orientação às demais normas, ainda que constitucionais.
A modalidade interpretativa tem produzido resultado, ganhando força, principalmente entre os princípios constitucionais. Dentre as normas infraconstitucionais, cabe ao aplicador escolher a interpretação que melhor atende às finalidades principiológicas. Não somente isto, mas, os códigos vêm, pouco a pouco, sendo reconstruídos e reformulados à luz das normas constitucionais, revestindo-se, portanto, dos valores e ideais de justiça desde a ótica de interpretação (BARCELLOS, 2002, p.74).
Thiago Rodrigues de Pontes traz, ainda, um aspecto relevante da eficácia interpretativa dos princípios, qual seja, o que permite a renovação dos conceitos sociais dentro do ordenamento jurídico e da própria Constituição, por meio da interpretação, sem maiores formalidades.
Explica que os valores sociais não são estanques, mas se alteram constantemente, de modo que cabe ao Direito acompanhar tal evolução. Uma mudança no ordenamento jurídico, entretanto, é muito mais complexa e lenta que as mudanças sociais. Depende, formalmente, da edição de emendas constitucionais, através de um longo processo legislativo, o qual é necessário em razão da garantia da segurança jurídica.
Tem-se, portanto, a interpretação normativa como uma maneira mais fluida de acompanhar as modificações sociais.
Nesse contexto, os princípios, por serem de maior teor de generalidade e abstração, permitem inúmeras de possibilidades passíveis de adequação, assim como podem, conceitualmente, acompanhar as modificações sociais.
Thiago Bomfim destaca que a diferenciação clara entre princípios e regras ressalta a importância dos princípios, que concedem ao ordenamento maior possibilidade de adaptação às modificações sociais. Veja-se:
A distinção feita, em momento oportuno, entre regras e princípios, é de fundamental importância para que se demonstre o papel dos princípios na atualização da Constituição. Isto porque, é exatamente a partir da definição do conteúdo e da função dos princípios como pólos norteadores e informadores de todo o Texto Constitucional e como veiculadores dos valores e das diretrizes fundamentais deste último, bem como da acepção dos princípios como normas dotadas de um alto grau de generalidade e abstratividade, que se faz possível demonstrar a função da atividade interpretativa como forma de atualização da Constituição. (BOMFIM, 2008, p.100-101).
Não se trata de defender uma abstração desmedida, mas de permitir que valores e ideais socialmente aceitos sejam incorporados à norma, bem como que os bens juridicamente tutelados sejam incólumes às diversas formas de violação, ainda que não especificadas no ordenamento.
Um exemplo seriam as violações através dos meios eletrônicos. Thiago Bomfim cita uma hipótese de um perfil de uma página de relacionamentos sociais que é alterado caracterizando sua proprietária como uma garota de programa. Ainda que a norma não preveja expressamente tal situação fática, resta evidente, pelo método interpretativo, que houve uma violação ao patrimônio moral, bem constitucionalmente tutelado (Ídem, p. 101-102).
Ainda sobre o tema, importa transcrever as exatas palavras de Thiago Bomfim:
Isso porque é nessas “zonas moles”, abstratas e genéricas, que o intérprete tem sua competência alargada, na exata medida em que essas normas possuidoras de um alto grau de vaguidade e imprecisão possibilitam sua flexibilização em face das novas realidades históricas e sociais. É dizer: elas possuem uma maior maleabilidade e adaptabilidade frente às novas situações. Dessa maneira, o intérprete pode inserir novos elementos no conteúdo da norma sem que para isso viole a literalidade da disposição normativa. Assim, as normas constitucionais são atualizadas sem que se recorra às formalidades exigidas para a edição dos mecanismos responsáveis pela mutação formal, ou seja, as Emendas à Constituição. (Ídem, p.101).
Deste modo, conclui-se que o método interpretativo tem função não somente uniformizadora e diretiva na interpretação de outras normas, como também é de fulcral importância na adequação do ordenamento às novas conjecturas e modificações sociais. Tais funções tornam-se ainda mais relevantes em razão do grau de maior abstração dos princípios bem como de sua generalidade.
3.2. Da Eficácia Negativa
A eficácia negativa consolida-se pelo poder principiológico de invalidar uma norma contrária aos efeitos por ele pretendidos. É uma construção doutrinária que visa a ampliar a eficácia dos princípios, ou seja, conceder à espécie normativa uma maior capacidade de promover modificações na realidade, asseverando o cumprimento de seus efeitos (BARCELLOS, 2002, p.66).
O princípio, conforme anteriormente relatado, possui um maior grau de abstração e generalidade. A consolidação de seus resultados advém do núcleo material inerente a cada norma principiológica. Este garante um mínimo substancial a ser protegido para a garantia da não violação do princípio. Os efeitos nucleares de cada princípio são determinantes e evidentes a cada grupo social sobre o qual incide.
Para exemplificar, Luís Barroso supõe um contrato trabalhista no qual uma empresa rural determina que seus empregados poderão sofrer penas corporais, privação de alimentos ou proibição de contato com seus familiares em caso de descumprimento de regras por ela impostas. Afastada outras normas constitucionais, resta claro que a eficácia negativa do princípio da dignidade da pessoa humana, por si só, seria suficiente para invalidar as normas contratualmente previstas. (BARROSO, 2010, p. 380).
O autor conclui afirmando que “[...] nada obstante a relativa indeterminação do conceito da dignidade da pessoa humana, há consenso de que em seu núcleo central deverá estar a rejeição às penas corporais, à fome compulsória e ao afastamento arbitrário da família”. (Ídem, pg. 380).
Destarte, a eficácia negativa dos princípios estabelece a possibilidade de invalidar normas que violem o núcleo material dos princípios. Tem-se como necessário a compreensão máxima dos efeitos que cada princípio almeja produzir para então correlacioná-los com as demais prescrições normativas a fim de não haver divergências ou, em havendo, invalidá-las.
3.3. Da Eficácia Vedativa do Retrocesso
A eficácia normativa proveniente da vedação do retrocesso diz respeito à capacidade de a norma invalidar eventual revogação de outra norma que regulamenta princípio e, por conseguinte, provê maior amplitude e concretização aos seus efeitos. A revogação é inválida quando não acompanhada de outro mecanismo substitutivo de efetivação dos efeitos do princípio.
Tal método de eficácia atua, assim como a eficácia negativa, no plano da validade. Tem, contudo, os seguintes pressupostos: que princípios fundamentais sejam concretizados por normas infraconstitucionais, de maneira que suas consequências sejam aplicadas pela legislação ordinária e, também, que se pressuponha uma necessidade de evolução da concretude dos resultados almejados. A progressiva ampliação dos direitos deve ser considerado um dos efeitos gerais dos princípios. (BARCELLOS, 2002, p.69).
Ana Paula Barcellos explica que “a invalidade, por inconstitucionalidade, ocorre quando se revoga uma norma infraconstitucional concessiva de um direito, deixando um vazio em seu lugar”. (Ídem, p. 69).
Trata-se, então, de inconstitucionalidade o ato que revoga norma que concretiza direito fundamental expresso em princípio. Explica-se em razão da proibição do retrocesso, que esvazia o avanço no sentido da proteção e tutela de direitos fundamentais.
A eficácia pela vedação do retrocesso permite que o princípio sirva de parâmetro não somente para os atos criadores de normas que concretizam seus efeitos como também impeçam atos que restrinjam direitos já conquistados e reconhecidos.
O legislador não pode agir de modo contrário ao que determinam os princípios. Estes limitam a atuação do poder legislativo, para que atenda ao pilares e fundamentos expressos pelos princípios jurídicos.
A eficácia negativa e vedativa do retrocesso possuem maior aplicação na medida em que se conhece mais os efeitos almejados pelo princípio, razão pela qual importa consolidar e esclarecer progressivamente o núcleo mínimo material de cada norma sem, contudo, anular a fluidez imprescindível à função dos princípios.
Saliente-se que o legislativo é livre para substituir norma que concretiza princípio fundamental por outro mecanismo de concretização que julgue mais adequado, viável ou eficiente. A proibição assiste no que atine à revogação pura e simples de norma aprovada em favor do direito fundamental, ou seja, veda-se ato que vai frontalmente de encontro com o princípio ao inibir uma de suas formas de atuação real no mundo dos fatos sem qualquer compensação. (BARROSO, 2010, p.381).
3.4. Da Eficácia Simétrica ou Positiva
As eficácias interpretativa, negativa e vedativa do retrocesso, sem dúvida, representam um progresso na força normativa dos princípios haja vista que permitem uma exigibilidade de seus efeitos perante o Judiciário com uso, inclusive, do poder coativo do Estado. Não obstante, mostram-se ainda incipientes.
A eficácia tradicionalmente reconhecida aos princípios permite que estes produzam seus efeitos com o fim de coibir a violação, normalmente pelo Estado, da finalidade principiológica. Todavia, não atua diretamente na consolidação da finalidade em caso de omissão. Não possibilita uma exigibilidade de uma conduta ou ato inerente aos efeitos irradiados pelo princípio com fulcro tão somente no próprio princípio, ainda que evidente seu núcleo material. Não havendo uma ação comissiva violadora da espécie normativa, não há entre os métodos elencados um suficiente para a realização do princípio. Ora, a ausência de ação transgressora não garante a realização da norma. (BARCELLOS, 2002, p.80-81).
Desta constatação, necessário reconhecer uma modalidade de eficácia comumente aplicada para as regras que, contudo, pode ser utilizada para a efetivação também dos princípios. É uma evolução na consolidação, enquanto espécie normativa que são. Trata-se da eficácia positiva ou simétrica.
A eficácia positiva ou simétrica dos princípios significa a identificação do indivíduo ou grupo a que se deve reconhecer determinado efeito normativo e sua consequente concretização. Garante o efeito normativo por meio do provimento jurisdicional com base, pura e simplesmente, no princípio no qual está inserido.
É a eficácia garantida no caso concreto em hipótese de omissão ou de violação. Ainda que se questione o modo de aplicação do princípio por tal efeito, tendo em conta sua intrínseca abstração e elevado grau de generalidade, sabe-se que este possui um núcleo denso que corporifica o mínimo material que se deseja tutelar, possuindo natureza equivalente à de regra. A partir deste núcleo, restando claro seus efeitos básicos, é que se deve fazer incidir o princípio no caso concreto pela eficácia simétrica. (BARROSO, 2010, p.379).
A simetria transmite ideia de identificação ou correlação entre o efeito normativo e a hipótese de incidência. Para clarear a adequação da modalidade de eficácia positiva ou simétrica no âmbito principiológico, apresenta-se o exemplo do princípio da dignidade da pessoa humana. Este, apesar do seu alto grau de abstração, evidencia diversos atos, comportamentos ou circunstâncias inerentes ao seu cumprimento. Dentre elas, e.g., a educação básica, alimentação, saúde, vestuário etc. Dada a importância de tais efeitos positivos, diversas regras e princípios já foram editados consolidando-os, mas, ainda que alguma das hipóteses não esteja claramente prevista, com base unicamente neste princípio é possível garantir os efeitos citados.
6 Conclusão
A norma jurídica compõe o ordenamento consolidando um conjunto harmônico e coeso de valores e condutas, não se restringindo a uma prescrição isolada. Diferencia-se das demais normas pelo seu caráter imperativo, sendo possível a realização de seus efeitos de maneira coativa por meio dos aparatos estatais.
Nesse contexto, o pós-positivismo caracteriza-se pelo reconhecimento da força normativa dos princípios, deixando estes de serem considerados meros ideais sem eficácia jurídica para, então, comporem o ordenamento jurídico, reaproximando o Direito e os valores éticos.
Os princípios, pilares fundamentais aos fins e valores a serem tutelados pelo direito, permitem solucionar conflitos não previstos pelo ordenamento bem como garantir direitos básicos e não explícitos. As regras, por seu turno, igualmente necessárias, consolidam a previsibilidade e a segurança do direito, estabelecendo claramente atos exigíveis e conseqüências jurídicas em caso do descumprimento.
É relativamente recente o reconhecimento da força normativa dos princípios. Deste modo, ainda é incipiente o estudo das modalidades de eficácia da espécie normativa, sendo as principais: a interpretativa, a negativa, a vedativa do retrocesso e a positiva ou simétrica.
A eficácia interpretativa diz respeito à possibilidade de normas de hierarquia superior direcionar a interpretação de normas de hierarquia inferior.
A eficácia negativa consolida-se pelo poder principiológico de invalidar uma norma contrária aos efeitos por ele pretendidos.
A eficácia vedativa do retrocesso diz respeito à capacidade de a norma invalidar eventual revogação de outra norma que regulamenta um princípio. A revogação é inválida quando não acompanhada de outro mecanismo substitutivo de efetivação dos efeitos do princípio.
A eficácia positiva ou simétrica dos princípios permite a identificação do indivíduo ou grupo a que se deve reconhecer determinado efeito normativo e sua consequente concretização. Garante o efeito normativo por meio do provimento jurisdicional com base, pura e simplesmente, no princípio no qual está inserido.
Deste modo, no direito pós-positivista os princípios ganham maior relevância e se tornam, cada vez mais, usuais no exercício da atividade jurisdicional, que passa a prezar por um exercício do Direito lastreado no exame completo do ordenamento jurídico, associando princípios, valores e regras, sem desconsiderar a realidade social e o caso concreto
referências
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renaovar, 2002, p. 31-32.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
BRASIL. Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Diário Oficial [dos] Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, 09 set. 1942. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm>. Acesso em: 06 jun. 2012.
BOMFIM, Thiago Rodrigues de Pontes. Os princípios constitucionais e sua força normativa: análise e prática jurisprudencial. Salvador: JusPodivm, 2008.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. 1.ed.São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 168.
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003.
[1] O Estado impõe sanções, previamente estabelecidas, para o caso de descumprimento de algum preceito. No caso das normas costumeiras, tais como as morais, religiosas etc., não há possibilidade legal de coação que obrigue o indivíduo a cumpri-las (BOMFIM, 2008, p. 28-29).
[2] Robert Alexy afirma: “Aqui, regras e princípios serão reunidos sob o conceito de norma. Tanto regras quanto princípios são normas, porque ambos dizem o que deve ser. Ambos podem ser formulados por meio das exceções deônticas básicas do dever, da permissão e da proibição. Princípios são, tanto quanto as regras, razões para juízos concretos do dever-ser, ainda que de espécie muito diferente. A distinção entre regras e princípios é, portanto, uma distinção entre duas espécies de normas”.
[3] Ana Paula Barcellos identifica estas como as mais aplicadas. Reconhece, contudo, serem insatisfatórias, entendendo ser possível o método também positivo ou simétrico. (BARCELLOS, 2002, p. 80-81). Luís Roberto Barroso já entende entre as modalidades de aplicação dos princípios o método simétrico ou positivo.
[4] Não obstante, a pluralidade inerente à sociedade impõe a necessidade de o ordenamento jurídico abarcar interesses diversos e até minoritários, mas não anula a existência de pilares fundamentais, incidentes sobre todo o conjunto normativo.
Graduação em Direito Universidade Federal da Bahia, UFBA, Bahia, Brasil. Curso de Especialização em Direito Comunitário e União Europeia na Universidade de Cantabria, Santander Espanha. Bacharelado em Comunicação Social com Relações Públicas (incompleto) Universidade do Estado da Bahia, UNEB, Bahia, Brasil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Mírian dos Reis Ferraz de. A força normativa dos princípios e a atuação do Poder Judiciário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 abr 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44031/a-forca-normativa-dos-principios-e-a-atuacao-do-poder-judiciario. Acesso em: 22 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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