RESUMO: O Presente artigo é o relatório final de pesquisa PROIC realizada em 2010-2011, é o primeiro grato contato de uma graduanda com o vasto mundo da pesquisa jurídica. Portanto tem a intenção de ser o despertamento para a vida acadêmica, o relato de um ano de pesquisa compilado em um artigo. Não tem a pretensão portanto de esgotar o assunto nem mesmo trazer grandes inovações, contudo, no presente artigo será possível encontrar uma interessante análise sobre o papel da Mulher na Sociedade, o poder que ela exerce, as dominações exercidas sobre ela e como entender e encarar esta questão de gênero. O trabalho traz uma interdisciplinaridade marcante, possibilitando o diálogo entre teses de historiadores, sociólogos, juristas e filósofos sem porém deixa de trazer este diálogo para a realidade prática e atual do estado social feminino.
Palavras-chave: Mulheres, Dominação, Poder, Empoderamento, Igualdade, Discriminação, Gênero, Charles Taylor, Outsider, Violência, Família, Violência Doméstica, Opressão, Dominação Masculina, Reconhecimento, Articulação, Preconceito, Políticas.
1. Introdução
"Eu gostaria muito que os pais e as mães das meninas pudessem olhar hoje nos olhos delas e dizer: sim, a mulher pode.” A frase proferida pela atual Presidenta da República Federativa do Brasil, Dilma Rousseff, quando de sua vitória nas urnas em 2010, carrega consigo uma triste constatação: hoje a mulher tem sim grande potencial enquanto ser humano nas mais diversas áreas, porém não tem poder para exercer com efetividade seus objetivos e potenciais. Somos hoje munidas de igualdade formal perante a lei e os meios jurídicos, todavia ainda estamos longe de alcançarmos uma efetiva igualdade material, e igualdade diante do olhar familiar, profissional e da sociedade.
Devido aos movimentos feministas que eclodiram durante o século XX muitos avanços foram conquistados pelo gênero feminino, entretanto tais avanços geraram em certa medida um comodismo no pensamento contemporâneo de que homem e mulheres andam lado a lado na sociedade, este mito pode ser facilmente refutado ao observar com cautela dados estatísticos que mostram como ainda faltam importantes passos a serem dados a fim de alcançar não apenas a emancipação da mulher, mas da própria sociedade.
Em 2009, 41 mil mulheres foram vítimas de violência doméstica, resultando em 10,2% dos atendimentos policiais. Já escolaridade das mulheres é superior à masculina, em 2008, 59,9% delas possuíam 11 anos ou mais de estudo, contra 51,9% deles; todavia, elas recebem 60% do rendimento salarial masculino.[1] Tais números do IBGE mostram que as mulheres ainda figuram numa posição socialmente inferior diante do mercado de trabalho e do ambiente doméstico, um claro exemplo do domínio da visão paradigmática tradicionalista.
No meio político a realidade não é diferente, mesmo com o regime de cotas nas eleições, os partidos brasileiros tem por obrigatoriedade lançar 30% de mulheres do total de candidatos, porém, mesmo assim, poucas conseguem ser eleitas. Com as eleições de 2010, dos 513 deputados federais, apenas 45 são mulheres, sendo assim 8,7% de mulheres no parlamento brasileiro, no senado este número é de 12,5%, números muito abaixo da média mundial que gira em torno de 19,5%; aliás, os números brasileiros assemelham-se aos dos Países Árabes onde 11,4%[2] das câmaras são ocupadas por mulheres. Interessante é notar que nesses países tomados por rédeas muçulmanas esses números já são esperados devido a dinâmica social e cultural destes países, todavia não há justificativas aparentes para tais índices em países democráticos e que dizem ter como princípios a liberdade e a igualdade como o Brasil. As burcas das mulheres árabes, como símbolo opressor da dominação masculina, são facilmente retirados com a mão, contudo o mesmo não se pode dizer de nós ocidentais. Onde estão as nossas burcas?
Diante das evidências dessa segregação de gênero que persiste mesmo em sociedades ditas contemporâneas, surgiu uma motivação e inquietação pessoal em tentar compreender o porquê de lamentável realidade, e ainda, a partir de tal entendimento, poder vislumbrar caminhos que possibilitem projetar a mulher para um futuro próximo, quando então poderemos falar em verdadeira emancipação feminina. O objetivo desta pesquisa é buscar as raízes da ainda presente diferença social de gênero, suas justificativas, dinâmica e estrutura, compreendendo assim as relações de poder em que a mulher está inserida, especialmente no campo social brasileiro. Através da Filosofia, História, Sociologia e Direito este trabalho visa entender a necessidade das políticas de ação afirmativa destinado às mulheres, gerando base teórica para futuras ações.
2. Metodologia
A princípio os meios pelo qual foi idealizada a presente pesquisa, incluíam pesquisas teóricas e empíricas. Todavia, à medida que as perspectivas teóricas foram sendo aprofundadas e ampliadas, ficou evidente que por mais elaborada e perspicaz que fosse uma pesquisa empírica, realizada por nós mesmos, ela acabaria por reduzir e generalizar a realidade, correndo o risco de inclusive traduzir erroneamente falsos resultados, comprometendo todo o estudo.
Um esboço de questionário a ser aplicado às mulheres das mais diferentes classes sociais e idades, chegou mesmo a ser realizado. Porém como toda pesquisa, o pesquisador faz a princípio uma ideia do que irá encontrar ao pensar o problema teórico, mas ao mergulhar no universo que abrange seus estudos descobre um horizonte muito mais vasto que aquele que imaginara. Obviamente, tal questionário idealizado não conseguiria revelar as respostas para as questões levantadas; primeiramente por um problema de amostragem; nosso campo de pesquisa são as mulheres como um todo e as relações de poder provenientes do gênero feminino, não conseguiríamos assim amostras suficientemente significativas, que representassem com pouca margem de erro a situação presente das brasileiras.
Por isso, adotamos dados empíricos já existentes e consistentes como aqueles reconhecidamente publicados pela ONU mulheres, IBGE, e Observatório de Gênero; foi então possível traçar um mapa da realidade vivida pelas mulheres, notadamente as ocidentais. E a fim de interpretar esses dados, correlacioná-los e compreender não só as raízes da dominação masculina como também entender sua dinâmica para então encontrar um meio de emancipação deste núcleo de poder ilegítimo; foi que se buscou as lentes de teóricos como Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Norbert Elias, Jessé Souza, Enrique Dussel, Charles Taylor, dentre outros. E assim, convergiram-se as perspectivas da Sociologia, Filosofia, História e Direito para uma compreensão desta totalidade. Tais teorias e estudos juntos serviram como linhas que incorporam um longo tecido, intercruzando-se tais noções teóricas gera-se um novo olhar sobre a realidade; só então com este aparato teórico foi possível avaliar as atuais políticas de ação afirmativa e prospectar a necessidade de novas.
3. Duas faces, uma violência.
Essa moça Tá Diferente
Essa moça tá diferente
Já não me conhece mais
Está pra lá de pra frente
Esta me passando pra trás
Essa moça tá decidida
A se supermodernizar
Ela só samba escondida
Que é pra ninguém reparar
Eu cultivo rosas e rimas
Achando que é muito bom
Ela me olha de cima
E vai desinventar o som
Faço-lhe um concerto de flauta
E não lhe desperto emoção
Ela quer ver o astronauta
Descer da televisão
Mas o tempo vai
Mas o tempo vem
Ela me desfaz
Mas o que é que tem
Que ela só me guarda despeito
Que ela só me guarda desdém
Mas o tempo vai
Mas o tempo vem
Ela me desfaz
Mas o que é que tem
Se do lado esquerdo do peito
No fundo, ela me quer bem
Essa moça tá diferente
Essa moça é a tal da janela
Que eu me cansei de cantar
E agora está só na dela
Botando só pra quebrar
Mas o tempo vai
Chico Buarque
Desculpa-me a ternura
Estremece-me pensar que estás aí
Não forma de trabalho desigual
Nem vida à pressa
Mas minha amiga
Talvez as palavras que te digo
Me transpareçam classe,
Talvez nem te devesse dizer nada.
Porque és a mão que ampara o meu silencio,
A minha filha, o meu cansaço
- à custa do teu cansaço, da tua filha,
Do teu silencio.
Não há homens-a-dias neste mundo,
Mas tantas como tu,
A segurar nas mãos e no sorriso
Algumas como eu.
Entraste a pouco a perguntar se eu tinha febre
- a louça por lavar nas tuas mãos,
Aspirando o cansaço dos meus ombros,
Nos teus ombros o cansaço de mim
E o cansaço de ti.
Desculpa os meus silêncios,
O falar-me contigo como mais ninguém,
Desculpa o tom sem pressa
- e o meu dinheiro que não chega a nada,
Comprando o teu trabalho
(o teu sorriso).
Ana Luísa Amaral[3]
Os dois poemas acima apresentam dois retratos bem distintos para o que podemos chamar de mulher moderna, todavia eles não se fazem antagônicos, mas mostram faces opostas de interpretações da realidade. Chico Buarque na canção “Essa Moça Tá Diferente” traz esta visão progressista proveniente dos movimentos feministas do século XX, mostrando uma mulher independente, forte, a frente dos homens, principalmente nas relações profissionais. Porém, mesmo Chico Buarque e sua bela poesia não podem ignorar que essa visão de mulher de sucesso, tão em voga nos veículos de informação, não passa de um estereótipo que não é fiel à realidade enfrentada por 35%[4] das famílias brasileiras que são chefiadas por mulheres, chefes estas que mesmo com escolaridade superior à masculina continuam ganhando menos que eles.
Este estereótipo da mulher moderna acaba por ofuscar a voz daquelas que clamam por igualdade de oportunidades e reconhecimento, em especial em sua carreira profissional. Aliás, esta imagem atribuída às mulheres de sucesso gera outra reação, desta vez negativa, que o próprio Chico Buarque apontou em seu poema; aquelas mulheres que conseguem se destacar em suas mais diversas carreiras, passam a serem vistas com estranheza, “essa moça tá diferente”, e ainda, são-lhes atribuídas posturas de frieza, indiferença, perda de atributos considerados tipicamente e necessariamente femininos como meiguice, calma, feminilidade, simplesmente pelo fato destas mulheres adotarem a postura profissional que seus ofícios exigem. No poema isto é percebido pelas expressões: “não lhe desperto emoção”, “ela só me guarda despeito”, “ela só me guarda desdém”, “no fundo[5], ela me quer bem”.
Além desta perspectiva do olhar do outro sobre a mulher, a prestigiada poetisa portuguesa Ana Luísa Amaral[6], mostra a vivência da própria mulher enquanto objeto de repressão da sociedade. O poema Desculpa-me a ternura, revela com sensibilidade a dura realidade desta mulher que luta pelo seu espaço, tem uma dupla jornada de trabalho, mas que permanece em silêncio, pois precisa sorrir e carregar sobre os ombros o peso do trabalho desigual. É justamente nesse contexto em que a mulher pode ser inserida em um quadro complexo e profundo de violência nas suas mais diversas, tristes, reais e presentes manifestações. E como carro chefe desde desfile de opressão está a violência simbólica[7], que une tiranicamente todas as mulheres, seja ela a Presidenta da República, seja ela a mulher vítima de violência doméstica física.
Em geral, a violência é associada apenas àquela física, contudo a profundidade da ação da violência vai muito além daquela reconhecida nos dogmas jurídicos. A violência está intimamente relacionada com as manifestações de poder e dominação, temas que serão tratados com mais detalhes adiante. A violência manifesta-se também nas coações sociais quase que imperceptíveis; nas sequelas e danos psicológicos, morais e sociais que ela gera; na própria dinâmica da sociedade, que quando analisada mais de perto se verifica uma violência já arraigada nas noções de hierarquia, família, religião, mercado de trabalho, dentre outras manifestações.
“Também sempre vi na dominação masculina, e no modo como é imposta e vivenciada, o exemplo por excelência desta submissão paradoxal, resultante daquilo que chamo de violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente do desconhecimento, do reconhecimento ou, em ultima instancia, do sentimento.”[8]
Pierre Bourdieu em sua pesquisa sociológica bem expressou em sua teoria o universo das relações de poder das sociedades, como a nossa brasileira, em especial a dominação que sofrem as minorias distintas do grupo dominante, minorias hoje identificadas como afrodescendentes, mulheres, homossexuais, crianças, indígenas. Consequentemente a dominação pode ser tipificada no padrão masculino, branco, europeu, heterossexual, e sob esse pilar a sociedade subordina suas crenças, cultura, valores, ideologias. É possível compreender, portanto, porque a minoria encontra-se submissa a esta dominação, este poder ilegítimo está apresentado à sociedade de maneira naturalizada, gerando a errônea ideia de legitimidade e de gênese de tal ordem. A dominação simbólica altera a interpretação, a percepção e a ação do indivíduo sobre a realidade, gerando a falsa fundamentação destes paradigmas dominadores, afinal ao inserir-se no esquema de dominação o ser absorve essa visão unidirecional, privando-se inconscientemente de compreender o todo e suas possibilidades.
Trazendo esta lente para a questão de gênero feminina, é possível enxergar e interpretar a situação de mulher sob outro ângulo. A dominação masculina gera símbolos que se associam aos gêneros e desenvolvem a falsa crença de que tal ordem estabelecida é natural, assim as próprias vítimas desta violência não se reconhecem enquanto vítimas ou percebem essa relação de dominação; e por terem seus olhos vendados para esta forma de coerção, as próprias mulheres passam a reproduzir a relação de dominação. A sutileza desta forma de violência concebe a enganosa ideia de imutabilidade dos papeis sociais delegados aos homens e mulheres; como se apenas por ter nascido com determinado órgão genital, o destino social do indivíduo já estivesse traçado.
Às mulheres, historicamente, são associados os símbolos da casa, das tarefas domésticas, do cuidado com os filhos, da cozinha, dos serviços manuais, da fertilidade, da submissão, da meiguice, da passividade, da fragilidade, de objeto sexual, da emoção, do privado. Enquanto que os homens são associados aos símbolos de força, de honra, de virilidade, de sucesso, de racionalidade, de público, do provedor, do líder. Tais símbolos quase que invisivelmente penetram no subconsciente social, segregando homens e mulheres, incumbindo a elas tarefas de menor prestígio social, privando-as de lugares de destaque por mérito próprio, criando barreiras para que ambos exerçam seu real potencial.
4. O Mito da Mulher Moderna
“‘Consideramos estas verdades autoevidentes: que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de Direitos inalienáveis, que estre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade’. Com essa única frase, Jefferson transformou um típico documento do século XVIII sobre injustiças politicas numa proclamação duradoura dos direitos humanos.”[9]
O Iluminismo XVIII trouxe o advento da Modernidade, e com ele as bandeiras da igualdade, da liberdade, da razão e da individualidade vieram à tona. Tais princípios geram uma nova mentalidade à sociedade europeia que culminaram na Independência dos Estados Unidos e na Revolução Francesa, marcos históricos que mudaram o curso da história do ocidente. O período da Modernidade é caracterizado, dentre outros aspectos pela evolução do Direito, uma clara evidência é o desenvolvimento dos chamados Direitos Humanos que tiveram seu nascimento na época. Alguns autores como Lynn Hunt atribuem tal gênese ao desenvolvimento do sentimento de empatia; o homem da época começou a se reconhecer como igual; práticas como o suplício passaram a ser abominadas; sentimentos como compaixão levou ao europeu a se auto reconhecer e a ansiar pelo fim da segregação do Antigo Regime. O discurso para tal ideologia passou a ser tido como universalista, mas as ações daí decorrentes não foram correspondentes.
Culturas que não seguiam o estilo de vida e economia europeus foram alvo de uma missão considerada civilizatória aos olhos europeus, a liberdade pregada na Revolução era dentro dos parâmetros culturais que ao Velho Mundo geravam identidade, considerados tradicionais; mas não desenvolveu-se, nos homens donos da racionalidade, a liberdade dada à diversidade: o europeu via-se como superior. A empatia anteriormente pregada é na medida em que o outro cria uma identidade próxima a sua. A consequência destas limitações é a formação e perpetuação da intolerância para com o diferente, a propagação do ideário de conquista dominou e ainda domina as nações ditas hegemônicas. Porém, “a ‘conquista’ é afirmação prática do ‘Eu conquisto’ e ‘negação do outro’ como outro”[10].
Enrique Dussel traz esta perspectiva para a colonização europeia aos povos originais das Américas; contudo, nós, brasileiros, podemos ver na análise deste sociólogo muito da origem das nossas heranças, dos nossos preconceitos. Dussel fala em encobrimento da cultura, voz, religião, vida e potencial dos povos pré-colombianos que aqui existiam, os preceitos iluministas só eram utilizados e reconhecidos, sobretudo para a figura masculina europeia heterossexual.
“A conquista” é um processo militar, prático e violento que inclui dialeticamente o Outro como o ‘si-mesmo’. O outro, em sua distinção, é negado como Outro e é sujeitado; subsumido, alienado a se incorporar à Totalidade dominadora como coisa, como instrumento, como oprimido, como ‘encomendado’, como ‘assalariado’ (nas futuras fazendas), ou como africano escravo (nos engenhos de açúcar ou outros produtos tropicais).” (DUSSEL, Enrique. 1993, p. 44).
A mesma noção pode ser trazida para a realidade feminina. A mulher, assim como o índio e o africano eram considerados alienados do processo de modernização. Tanto o é que a isonomia política com o direito ao voto só foi atingida no século XX, dois séculos depois da Revolução Francesa. O comportamento de subjugar e dominar foi transferido para a construção das colônias europeias ao redor do mundo, por gerações a mulher tem sido encoberta, tirada do cerne das grandes decisões, encarada como ‘outro’ e não como igual.
Quinhentos anos de história do Brasil, são sobretudo anos de dominação de uma razão cerceadora das minorias; e com o decorrer da História, a sociedade brasileira foi criada sob esses moldes patriarcalistas tradicionais, gerando um pensamento comum machista, sob uma visão eurocentrista, que de tão antiga parece-nos natural, recebemos uma marca, um estigma social como se a (sub)posição social ocupada pela mulher fosse um destino, como se o fato de ser mulher nos colocasse em inferioridade em relação aos homens, como se o fato de ser mulher não nos fizesse tão seres humanos quanto os homens, como se o fato de ser mulher fosse um castigo.
A modernidade chegou para a economia, a indústria, a construção civil, as universidades, a medicina; mas não chegou à questão de gênero. A luta feminista mal completou cem anos, e por muitos ainda é vista como uma questão partidária, uma questão de mulheres ‘solteiras’, enquanto na realidade é uma luta da sociedade para a sociedade, uma eminente necessidade de reparação de séculos de segregação e poder coativo ilegítimo, para então vivermos um Iluminismo em sua plenitude.
5. Mulher: um Outsider
Fazendo uma interessante analogia, imaginando que cada indivíduo está no centro de diversos círculos concêntricos[11], esses círculos representam as formas institucionalizadas ou não de controle social dos indivíduos. Em certa medida, todos os indivíduos estão sujeitos a forças coercitivas que exercem sobre nós influência e pressão para o controle da conduta individual em sociedade. Desta maneira o maior destes círculos é o sistema legal e político que abrange todos os demais sistemas, logo após, encontra-se o sistema de controle social ligado a costumes, moral, princípios, dentre outros, e por fim o círculo representante da vida privada, que abrange as relações pessoais como família e amigos.
Podemos encarar a dominação masculina como um poder constituinte de um sistema de controle social que permeia todos os círculos concêntricos. Da esfera estatal à privada, essa forma de poder está presente, coagindo homens e mulheres a agir conforme a tradição de dominação, criando assim a separação dos gêneros e um abismo entre esses grupos. Tal concepção de analise das esferas de poder, em muito se intercedem com a teoria do prestigiado sociólogo Norbert Elias[12], dentro da ótica de Elias podemos enquadrar as mulheres como um amplo e heterogêneo grupo classificado como Outsiders, ou seja, o grupo subjugado e marginalizado; já os homens constituem um grupo mais homogêneo chamado Estabelecidos, o grupo dominante. Diferentemente da perspectiva Marxista, aqui as diferenças não são marcadas pelo mercado, mas por uma tradição muito mais profunda e antiga que o próprio capitalismo, simplesmente a diferença sexual, diferença essa que traz consequências para a economia, um movimento inverso da análise marxista.
Norbert Elias em sua pesquisa, não analisou o caso de gênero em si, mas sim a formação de relações interpessoais de uma pequena cidade; porém o grande mérito da pesquisa do sociólogo é o fato de ela conseguir aplicabilidade não apenas em sociedades simples, mas até mesmo naquelas ditas complexas, afinal esse fenômeno social de formação de estabelecidos e outsiders ocorre em todas as sociedades. Portanto é possível utilizar sua teoria como lente para análise do papel da mulher na sociedade ocidental contemporânea.
Norbert Elias atribui a este fato social, sua sustentabilidade mediante a existência de relações desiguais de poder, assim, o grupo estabelecido e detentor de poder consegue subordinar as outsiders ao seu julgamento e estigmatização, passando, por isso mesmo, ser aceita esta conduta excludente pelas próprias outsiders que começam a considerar verídica este estigma de inferioridade.
“A peça central desta figuração é um equilíbrio instável de poder, com as tensões que lhe são inerentes. Essa é também a precondição decisiva de qualquer estigmatização eficaz de um grupo outsider por um grupo estabelecido. Um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído. Enquanto isso acontece, o estigma de desonra coletiva imputado aos outsiders pode fazer-se prevalecer.” (ELIAS, 2000, p.23).
Outro aspecto importante para a existência deste quadro é a potencial de coesão dos grupos. Os estabelecidos, por sua própria característica tradicionalista neste caso, são mais coesos, têm uma identidade e unidade de parâmetros e de cultura como marca, “essa integração diferencial contribui substancialmente para seu excedente de poder”[13]. Para fazer parte deste corpo o individuo, é claro, deve pagar um preço, ou seja, se submeter aos princípios, consciência e paradigmas do grupo, caso contrário sanções como a própria exclusão são uma das consequências. Diante justamente desta coesão é que os estabelecidos, os homens, conseguem seu destaque na sociedade gerando uma força que as outsiders não conseguiram até o momento construir com mesmo vigor, exatamente por não terem uma união em suas ações, pensamentos e diálogos.
“Era graças ao seu maior potencial de coesão, assim como à ativação deste pelo controle social, que os antigos residentes conseguiram reservar para as pessoas de seu tipo os cargos importantes das organizações locais, como o conselho, a escola ou o clube, e deles excluir firmemente os moradores da outra área, aos quais, como grupo faltava coesão.” (ELIAS, 2000, p.22).
É importante lembrar, entretanto, que a condição de outsider e estabelecido não é rígida e imutável; há situações históricas em que os outsiders de algumas sociedades, ganharam coesão em sua organização e lutaram pela mudança deste status, almejando assim ao poder antes restrito apenas aos estabelecidos, por vezes passando até a inversão destes papéis. Um exemplo disto foram as revoluções burguesas que consolidaram essa mudança nas sociedades industrializadas, principalmente na Revolução Francesa, nesta revolução os burgueses, antes marginalizados e outsiders na Idade Média, tornam-se estabelecidos ao tomar o poder e acabar com o Absolutismo.
6. Quebrando as cadeias
Ao pensar na figura de juízes, advogados, executivos, políticos, chefes logo vêm à mente a figura masculina, independentemente de valores ou preconceitos; a violência simbólica tem suas raízes, no ocidente, na antiga tradição judaico-cristã e toma a mente das sociedades herdeiras desta tradição. Tal violência gera como que um teto de vidro, teto este invisível que impede as mulheres dentro de suas possibilidades de formação familiar, educacional e profissional de ocupar, por exemplo, cargos tradicionalmente delegados a homens: até o ano de 2010 apenas 29,32%[14] dos magistrados eram mulheres; em e 2009, 19,45% dos conselheiros dos Conselhos de Justiça brasileiros eram mulheres.
Aliás, o próprio Direito, apesar do viés de poder transformador da sociedade, tem um caráter conservador, afinal as normas vêm para tentar manter a ordem estabelecida, gerando segurança jurídica para as decisões, seguindo em geral linhas doutrinárias que muitas vezes só se modificam depois de já transformado o meio social de atuação normativa. Assim, mesmo sendo o instrumento estatal para a transformação social, o direito enquanto ordem reproduz as ideologias e os preceitos do grupo dominante, os números acima revelam um pouco da dominação masculina mesmo no poder judiciário.
Entendendo em linhas gerais a construção do poder masculino sobre a sociedade ocidental, a impressão que temos é que permitir a mudança destes paradigmas, e cessar com esta forma ilegítima de poder é uma utopia. Todavia, existe sim caminhos à emancipação feminina da dominação; Charles Taylor com muita propriedade, desenvolveu um destes caminhos: a teoria do reconhecimento. Para este cientista social conhecer a dinâmica do poder é fundamental para gerar auto-reconhecimento. Infelizmente o poder simbólico tem como consequência uma “cegueira” coletiva, o mais agravante é o fato das próprias vitimas desta violência não a perceber e por esta razão permanecerem inertes à realidade. O auto-reconhecimento seria, portanto dar a possibilidade às mulheres gerar uma identidade comum, reconhecendo o meio coercitivo em que estamos inseridas e a posição de outsiders que ocupamos; gerar tal consciência não apenas nas mulheres mas igualmente nos homens é o primeiro passo à emancipação. A necessidade na libertação também da mente masculina de tal poder é também eminente, afinal esse processo é parte da mudança do olhar do “outro” para o “igual”, legitimando e dando voz à luta de gênero.
“Nesse sentido, o sujeito deve ser visto como alguém que, precisamente mediante a aceitação por parte de outros sujeitos de suas capacidades e qualidades, sente-se reconhecido e consequentemente em comunhão com estes, possibilitando sua disposição de também reconhecer o outro em sua originalidade e singularidade.” [15]
Gerar essa identidade enquanto grupo não é exaltar a coletividade em detrimento da individualidade do indivíduo, mas pelo contrário, ao permitir o reconhecimento das mulheres é dada voz à coletividade, possibilitando concomitantemente o agir da consciência agora transformada, na singularidade e na realidade de cada mulher, seja ela uma executiva em ascensão, ou a dona de casa que é violentada fisicamente pelo marido, abrindo espaço para o novo, para o potencial criador da própria sociedade. Há assim a geração de uma nova concepção de modernidade, superando a antiga tradição moderna.
Contudo, gerar consciência por si só não traz transformação ou libertação dos paradigmas e estruturas de poder, “é porque os efeitos e as condições de sua eficácia estão duradouramente inscritas no mais íntimo dos corpos sob a forma de predisposições (aptidões, inclinações).” Não é possível portanto dissociar o processo de emancipação da dominação masculina com a ação, a prática dos preceitos de transformação são as armas dadas à conscientização que por si só não tem força de libertação mas apenas quando parte da composição de um processo longo e complexo.
Diante do exposto, podemos falar em “articulação”, conceito esse desenvolvido por Taylor; a articulação da sociedade é o resultado palpável da tomada de consciência seguida da ação como instrumento transformador. Para Jessé Souza, a articulação da sociedade tem por objetivo estabelecer uma ponte nesse abismo social, agindo como diálogo, aproximando gêneros tidos como distintos.
“A articulação permite a constituição narrativa da identidade que possibilita uma condução da vida consciente. Nesse sentido, uma identidade não articulada reflexivamente é uma identidade fragmentada. A articulação permite, no entanto, não apenas nossa compreensão e conscientização dos nossos próprios sentimentos morais, mas possibilita também no limite, graças à distância crítica que a reflexão enseja, a modificação dos nossos próprios sentimentos.”[16]
Em quase um exercício lógico, essa tentativa de teorizar a transformação social leva a associação com algo que transporta o mundo das ideias para o prático: as políticas de ação afirmativa e a sua eminente necessidade. Verdadeiramente, são um instrumento viável para possibilitar àqueles alcançados por elas compreensão da dinâmica social em que estamos inseridos, possibilitando assim o reconhecimento e por fim a articulação dos objetos da ação para um fim comum.
Há hoje, especialmente no campo jurídico, uma fervorosa discursão acerca da legalidade das ações afirmativas, pois alguns defendem que estas ferem o princípio constitucional da igualdade, dando muletas a quem não precisa delas, privilegiando uns em detrimentos de outros. Ora, as ações afirmativas vêm justamente para permitir que a igualdade não seja apenas um artifício formal da Constituição, mas ganhe materialidade gerando espaço para que as minorias possam andar ao lado da classe dominante, usufruindo de seus potenciais, acabando com a distinção “estabelecidos e outsiders” dentro da questão de gênero.
7. Articulação e resultados
Leis como a lei nº 11.340 6, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, é um forte exemplo brasileiro de ação afirmativa dentro do âmbito jurídico. Lembrando que esta normatização recente só foi possível mediante a pressão da própria sociedade ao Estado para a tomada de providências acerca de violência doméstica. Com uma série de resistências a lei foi aprovada, porém, este foi só um passo à emancipação; ainda hoje dentro da autonomia dos juízes, muitos burlam a atuação desta lei ou a interpretam de maneira distorcida. A lei por si só não implica em transformação, há ainda uma luta contínua para que ela seja devidamente respeitada e aplicada, além de claro, o processo legal deve ser ajustado conforme a necessidade social. A criação de delegacias da mulher, casas abrigo, e núcleos de prática jurídica públicos são exemplos desta tentativa de dar voz as mulheres e aplicabilidade da lei. Mas ainda há um longo caminho a ser percorrido.
“A experiência latino-americana demonstra que para ter sucesso o sistema de cotas ou tem de ser acompanhado por uma reforma eleitoral, ou então a própria lei de cotas tem de criar mecanismos compensatórios para diminuir o prejuízo causado pelo sistema eleitoral sobre as candidaturas femininas.”[17]
Hoje países como a Argentina são pioneiros em resultados positivos e eficazes de ações afirmativas, como bem observa Mala Htun, a forma de ordenar a agenda política e a dinâmica das eleições foi fundamental para o sucesso do empoderamento das argentinas. Hoje os portenhos são referência em políticas como esta, a própria educação pública tomou novo formato, na tentativa de possibilitar a conscientização das gerações vindouras.
8. Considerações Finais
“Pelo fato de o fundamento da violência simbólica resistir não nas consciências mistificadas que bastaria esclarecer, e sim nas disposições modeladas pelas estruturas de dominação que as produzem, só se pode chegar a uma ruptura da relação de cumplicidade que as vítimas da dominação simbólica têm com os dominantes com uma transformação radical das condições sociais de produção de tendências que levam os dominadores a adotar, sobre os dominantes e sobre si mesmos, o próprio ponto de vista dos dominantes.”[18]
Possibilitar a ruptura com a tradição e a transformações de preconceitos que se encontram na base das estruturas sociais é em si um desafio, mas não uma impossibilidade. Ainda que os símbolos de dominação perpetuem-se pelas gerações, trazer a luz às mentes herdeiras de uma modernidade que segregou e dominou uma visão paradigmática de poder é ampliar os horizontes da interpretação da realidade tanto a mulheres quanto a homens. Gerar instrumentos para a retirada das burcas invisíveis que cobrem as relações sociais é dar a possibilidade de escolha às mulheres.
Diferentemente da visão de frieza e indiferença que foi plantado para encarar as mulheres que buscam esta independência, a proposta é a de respeito, de abertura de caminhos; não é masculinizar as mulheres, mas permitir a plenitude de sua feminilidade. Seja construindo famílias ou liderando governanças, empoderar as mulheres é permitir que o compartilhamento do poder de ação, é permitir que seus potenciais sejam aproveitados para o próprio engrandecimento da civilização; não é colocá-las na posição de dominadoras, mas ao contrário, tirá-las da posição de dominadas, dinamizando a própria sociedade.
Referencias Bibliográficas
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[1] Estatísticas disponíveis em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1717&id_pagina=1
[2] Dado disponível em: http://www.ipu.org/wmn-e/world.htm
[3] AMARAL, Ana Luísa, Às Vezes o Paraíso. 2ª edição. Lisboa, Quetzal Editores, 1998, p. 72, 73.
[4] Aumenta o número de mulheres chefes de família. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=6055:aumenta-numero-de-mulheres-chefes-familia&catid=10:disoc&Itemid=9
[5] Grifo nosso.
[6] Ana Luisa Amaral é professora de Literatura e Cultura Inglesa e Americana na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. http://www.mulheres-ps20.ipp.pt/Ana_Luisa_Amaral.htm
[7] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
[8] BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 7.
[9] HUNT, Lynn. A Invenção dos direitos humanos: uma história. Tradução: Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. P.13.
[10] DUSSEL, Enrique. 1492, O Encobrimento do Outro (A origem do “mito da modernidade”). Tradução: Jaime A. Clasen. Editora: Vozes. Petrópolis, 1993. P. 49.
[11] Teoria dos círculos concêntricos de Peter Berger. Disponível em: BERGER, Peter. “A perspectiva Sociológica: o homem na sociedade”. In: Perspectivas Sociológicas: uma visão humanista. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1973.(p.78-105)
[12] ELIAS, Norbert & SCOTSON, John. Os Estabelecidos e os Outsiders: Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2000.
[13] Idem, p. 22.
[14] Mais mulheres no poder. Dados disponíveis em: www.maismulheresnopoderbrasil.com.brdados
[15] SOUZA, Jessé. A modernização Seletiva: uma interpretação do dilema brasileiro. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000, p. 97.
[16] SOUZA, Jessé. A modernização Seletiva: uma interpretação do dilema brasileiro. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000, p. 101.
[17] HTUN, Mala. Políticas de cotas na América Latina. 2001. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ref/v9n1/8612.pdf
[18] BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 54.
Estudante de graduação em Direito na Universidade de Brasília - UnB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SENA, Lorrane Fernandes de. Mulheres e o Poder: compreendendo a dinâmica da dominação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 maio 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44301/mulheres-e-o-poder-compreendendo-a-dinamica-da-dominacao. Acesso em: 22 nov 2024.
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