Resumo: O presente artigo investiga as causas políticas, os motivos subjacentes que levaram à formulação das leis e atos administrativos federais que cuidam da aquisição e do arrendamento de imóveis rurais pelo estrangeiro, sejam pessoas naturais, sejam pessoas jurídicas. Ao longo deste estudo de Política do Direito, analisa-se a perspectiva do colonizador português e do Estado brasileiro independente, desde o Império até a Nova República: na história brasileira, buscou-se tanto a povoação do território nacional que asseguraria à nova nação o uti possidetis de facto quanto a introdução de mão de obra que mantivesse a produção agrícola do país. Posteriormente, examinam-se as consequências advindas da legiferação, a herança deixada aos novos governos e a continuidade ou ruptura que os estadistas pátrios adotaram. Por fim, é feita breve análise das propostas de lei que querem atualizar os cuidados dispensados à matéria. Alguns projetos de lei (PL) já tramitam no Congresso Nacional brasileiro.
Palavras-Chave: Imóvel rural; aquisição de terras por estrangeiros; terras; Direito Agrário.
Sumário: Introdução. 1. Brasil Colônia. 1.1. As Capitanias Hereditárias. 2. Brasil Independente: Desenvolvimento de Políticas Soberanas. 2.1 Brasil Império - A Lei de Terras de 1850 (Lei n.º601, de 18 de setembro de 1850). 2.1.1 Conclusões acerca da Lei de Terras de 1850 e a Eficácia da Política Pró-Imigração. 2.2. Brasil República. 2.2.1 A Constituição de 1891. 2.3.2. O Brasil pós-1930: o Imóvel Rural, o Estrangeiro e a Modernização. 2.2.3. A Aquisição de Imóvel Rural por Estrangeiro durante a Ditadura Militar. 2.2.4. A Terra e o Estrangeiro na República Nova. 2.2.4.1 A Aquisição de Imóveis Rurais por Estrangeiros – o Futuro.
Introdução
A política do Direito investiga os meios jurídicos que podem assegurar a consecução de fins comunitários, que são representados, contemporaneamente, pelo Estado.
Imerso na realidade estatal desde os tempos de colonização portuguesa, o Brasil conheceu políticas fundiárias que buscaram objetivos diversos ao longo do processo de construção da identidade nacional, que culminou na Independência do país e na luta pela defesa da soberania.
Este artigo faz um apanhado histórico dos objetivos por trás dos diplomas normativos que regularam o acesso de imóveis rurais por estrangeiros.
1. Brasil Colônia
Ainda na condição de colônia lusitana de ultramar, o Brasil assitiu aos esforços portugueses para mantê-lo a salvo das ambições holandesas, francesas e inglesas. Francisco I, da França, exigia ler a cláusula do testamento de Adão que assegurava ao mundo ibérico o oligopólio da colonização na América.
Assim, Portugal tinha como desafios imediatos a pressão de potências externas e a desconhecida dimensão das terras a ocupar efetivamente.
Em 1530, Martim Afonso de Souza é enviado pelo Reino português para que expulsasse os franceses e buscasse jazidas de metais preciosos (SILVA, 1990, p. 58-59). A expedição, ainda que modesta para as dimensões do que viria a ser o Brasil, foi o passo inicial para a ocupação efetiva das terras por cidadãos lusos, meio ideal de se evitar a presença estrangeira.
1.1 As Capitanias Hereditárias
A distribuição de terras aos nobres foi o meio encontrado por João III para que se efetivasse a colonização do país. Os migrantes se dedicaram à extração do pau-brasil, ao cultivo de cana-de-açúcar e ao abastecimento interno.
O sistema de capitanias tinha dois principais documentos. A Carta de Doação registrava que o capitão-donatário recebia a extensão de terras indicada. O Foral ou Carta de Foral sempre acompanhava a Carta de Doação, e assinalava quais os direitos e deveres do donatário, dentre os quais a possibilidade de decretar a pena de morte em caso de traição, sodomia, heresia ou falsificação de moedas; direitos sobre a pescaria e o comércio de metais; a possibilidade de conceder sesmarias (SILVA, 1990, p. 58-59).
As donatarias eram inalienáveis, mas transmissíveis por herança (FALCÃO, 1995, p. 31).
Apesar do fracasso do sistema de capitanias, o regime sesmarial vigora até 1822. Segundo Falcão (1995, p.31), revogado o sistema de concessão de sesmarias, as terras devolutas ficaram juridicamente desacobertadas até 1850, ano em que se cria a Lei de Terras, examinada adiante.
2. Brasil Independente: Desenvolvimento de Políticas Soberanas
O Brasil independente sofreu forte pressão inglesa para que se erradicasse o tráfico intercontinental de escravos; todavia, entre 1815 e 1830, o fluxo de navios negreiros em direção ao País aumentou, fruto da demanda por mão de obra.
Entre 1831 e 1835, o ritmo do tráfico de escravos diminui, graças à cooperação bilateral de Rio de Janeiro e Londres, que buscavam restringir o comércio marítimo da “mercadoria”. Em 1845, no entanto, o Brasil deixa de trabalhar junto aos ingleses.
As principais causas do rompimento são os apresamentos unilaterais de navios, operados pelos britânicos, e a retaliação que sofrem produtos nacionais brasileiros (CERVO; BUENO, 2011, p.60-85) no mercado da Grã-Bretanha.
Diante desse quadro, Aberdeen, Ministro dos Negócios Estrangeiros daquele país, interveio para que se aprovasse lei que, na prática, permitiria o apresamento de navios que traficassem trabalhadores cativos, ainda que sua bandeira fosse brasileira.
No importante ano de 1850, o gabinete conservador, por intermédio de Eusébio de Queirós, proscreve o tráfico internacional de escravos, acalmando os ânimos de Londres. É nesta data em que o Brasil soberano cria a sua primeira Lei de Terras, com dois objetivos primordiais: a) criar arcabouço jurídico que trate das terras devolutas em posse de nacionais; b) criar um sistema capaz de normatizar a aquisição de terras pelo imigrante europeu, alvo da política migratória nacional recém-inaugurada.
2.1 Brasil Império - A Lei de Terras de 1850 (Lei n.º601, de 18 de setembro de 1850)
A Lei de Terras de 1850, em seu preâmbulo, afirma que o diploma “dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por título de sesmaria sem preenchimento das condições legais bem como por simples título de posse mansa e pacífica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a título oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de colonias de nacionaes e de extrangeiros, autorizado o Governo a promover a colonisação extrangeira na forma que se declara” (INSTITUTO DE TERRAS, CARTOGRAFIA E GEOCIÊNCIAS, 2008, p.195-196) (grifo nosso).
Em realidade, os preparatórios para que o imigrante europeu viesse ao Brasil já datavam de 1832, quando havia sido sancionada uma lei geral sobre naturalização de estrangeiros. Se fosse casado com pessoa brasileira, o estrangeiro só necessitaria requerer a nacionalidade acompanhada de prova de que declarou princípios religiosos, Pátria e desejo de fixar residência no país perante Câmara do Município (ROCHA, 1999, p.31).
Em princípio, a política migratória brasileira surtiu poucos efeitos. Somente nas últimas décadas do século XIX houve entrada massiva da desejada mão de obra “livre”. Muitos dos imigrantes, contudo, não puderam adquirir imóveis rurais e acabaram tragados pela cidade, meio mais atraente do que o sistema de parceria e o trabalho assalariado no campo. Citemos como exemplo mais relevante a colônia italiana no Brasil, que foi “(...) parar em Santa Catarina ou no Rio Grande Sul. Lá, eles conseguiram constituir uma agricultura de pequena propriedade, periférica e complementar com o latifúndio pecuário” (RICUPERO, 2011, p. 19), porém, em São Paulo “(...) o italiano vinha plantar café como assalariado, e não para se tornar um pequeno proprietário” (RICUPERO, 2011, p.19).
A política de terras que buscava atrair o imigrante europeu contava, ainda, com o artigo 17 da Lei de Terras de 1850, que prescreve que “os estrangeiros que comprarem terras, e nellas se estabelecerem, ou vierem á sua custa exercer qualquer industria no paiz, serão naturalisados querendo, depois de dous annos de residencia pela fórma por que o foram os da colonia de S. Leopoldo, e ficarão isentos do serviço militar, menos do da Guarda Nacional dentro do municipio” (grifo nosso).
Como se percebe, a ideia era agregar o elemento alienígena ao corpo de nacionais do país. É bastante sensível que, ainda na metade do século XIX, o Estado brasileiro sofresse para povoar o território nacional e torná-lo produtivo. As fronteiras nacionais, ressalte-se, só seriam plenamente determinadas no começo do século XX, pelos acordos bilaterais com Argentina (1895), França (1900), Bolívia (1903), Equador (1904), Holanda (1906), Colômbia (1907), Peru e Uruguai (1909). Estes tratados de fronteira, de maneira geral, garantiram a quase totalidade do que era pleiteado pelos brasileiros, o que assegurava, formalmente, a soberania sobre uma área total de cerca de 8.500.000 km².
A vida do colono no Brasil, entrentanto, não era atraente. Por conta do “regime de semi-escravidão” a que muitos imigrantes se encontravam submetidos, vários países europeus vedaram a imigração ao Brasil, como a Alemanha (1872), França (1876), Inglaterra (1875) e Itália (1895) (ROCHA, 1999, p.32). Pesava contrariamente à vinda de imigrantes, ainda, a concessão de terras devolutas apenas a título oneroso, o que restringia o acesso dos empobrecidos.
Quanto às terras devolutas, aliás, cabe salientar que a Lei n.º 601/1850 as definiu “por exclusão” (FALCÃO, 1995, p.41), é dizer, seriam devolutas as terras que não estavam incorporadas ao patrimônio público, como próprios, ou aplicadas ao uso público, nem eram objeto de domínio ou de posse particular, desde que presente a cultura efetiva e a moradia habitual (art. 3º da Lei n.º 601/1850).
Apesar dos elogios “dos mestres agraristas pátrios” (FALCÃO, 1995, p.41), “a ponto de Messias Junqueira, com proficiência e feliz sabedoria, a haver cognominado de a formosa lei terras” (FALCÃO, 1995, p. 41), não logrou separar, efetivamente, as terras devolutas dos imóveis rurais privados. A Lei parecia afirmar que toda posse efetiva, com cultivo e moradia, faria adquirir a terra . Além disso, a demarcação era de responsabilidade precípua dos próprios particulares, que, em geral, eram fazendeiros, os únicos capazes de plantar e criar gado em largas extensões. Prescrevia o artigo 6º da referida Lei que “Não se haverá por princípio de cultura para a revalidação das sesmarias ou outras concessões do Governo, nem para a legitimação de qualquer posse, os simples roçados, derribadas ou queimas de matos ou campos, levantamentos de ranchos e outros atos de semelhante natureza, não sendo acompanhados de cultura efetiva e morada habitual exigidas no artigo antecedente”. A medida buscava evitar um previsível desmatamento desenfreado que “configurasse posse”, mas faticamente apenas privilegiou quem dispunha de meios para expandir e manter cultivadas largas áreas rurais.
2.1.1 Conclusões acerca da Lei de Terras de 1850 e a Eficácia da Política Pró-Imigração
No século XIX, o saldo migratório brasileiro foi profundamente positivo. A distribuição dos europeus, contudo, não foi uniforme.
No Nordeste do país, por exemplo, o trabalho livre era uma realidade bastante tangível mesmo antes da abolição da escravidão. Em Pernambuco, já em 1872, já havia mais trabalhadores livres do que escravos (FRAGOSO, 1990, p. 169), o que somada à expansão demográfica local, dispensou a presença do estrangeiro. É bem verdade, porém, que o trabalho “livre” era realizado em relações pré-capitalistas de trabalho, como a figura do morador-agregado, que recebia lote de terra donde retirava a subsistência, mas quem, em contrapartida, pagava quota ao proprietário do imóvel.
No Sudeste e Sul do Brasil a recepção de estrangeiros se deu em maior escala, mas não por conta da facilidade de acesso mediante compra da terra. Dois principais fatores fizeram dar certo a política de imigração europeia ao Brasil: a) sistemas de parceria, arrendamento e outras formas de trabalho rural sem título de propriedade, incentivados pelo Império. O artigo 18 da Lei 601/1850 é bastante pertinente: “O Governo fica autorizado a mandar vir anualmente à custa do Tesouro certo número de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agrícolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração pública, ou na formação de colônias nos lugares nos lugares em que estas mais convierem; tomando antecipadamente as medidas necessárias para que os colonos achem emprego logo que desembarcarem. Aos colonos assim importados são aplicáveis as disposições do artigo antecedente”; b) a imigração era patrocinada pela burguesia europeia do século XIX, que acreditava que o continente estava saturado de pobres. Em verdade, não apenas a classe mais abastada, mas também "las sociedades benéficas o incluso los sindicatos estaban de acuerdo en subvencionar la migración de sus clientes o miembros, como el único medio posible de luchar contra la pobreza y el desempleo" (HOBSBAWM, 2010, p. 209).
Citemos novamente a colônia italiana, que teve metade dos imigrantes no estado de São Paulo logo deslocados para as cidades. Mesmo no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, onde se tornaram pequenos proprietários, “As terras que lhe couberam eram as desprezadas encostas das serras ou os solos pouco fertéis” (RICUPERO, 2011, p. 19).
Como acima exposto, a posse do imóvel rural foi relevada e convertida em propriedade legal com muita facilidade, mas não beneficiou os pequenos agricultores, como os novos imigrantes. Desprovidos de meios de comprovar “verdadeiros cultivos” em detrimento “das meras queimadas”, não tiveram opção senão sujeitar-se aos sistemas pré-capitalistas de produção.
2.2 Brasil República
Por conta de severos atritos, a Monarquia perde apoio de setores importantes da sociedade, nomeadamente dos militares, da Igreja e dos escravocratas, o que culmina na derrocada do regime. Nasce a República Brasileira.
2.2.1 A Constituição de 1891
A República no Brasil iniciou sua trajetória com a chamada “Grande Naturalização”, que veio por preceito constitucional (artigo 69, parágrafo 4º). Prescrevia a nova Constituição que o silêncio do imigrante importaria na automática aquisição da nacionalidade brasileira aos que estivessem no país em 15.11.1889.
Para além desta determinação, seguramente a mais abrangente, o constituinte de 1891 quis incentivar a naturalização do estrangeiro que logrou adquirir um imóvel. Caso a) possuísse um imóvel no País; b) fosse casado com brasileiro ou tivesse filho brasileiro, domiciliado(s) no País, seria doravante considerado “cidadão brasileiro”, salvo manifestação em contrária do imigrante.
É perceptível o esforço do constituinte para garantir que os povos novos passassem a integrar o contingente demográfico brasileiro e que cidadãos pátrios povoassem “certos conglomerados regionais nas áreas sulinas em que mais se concentrou” (RIBEIRO, 1995, p.242-243). O êxito da política é representado pela ausência de “tensões eventuais (…) em torno de unidades regionais, raciais ou culturais opostas. Uma mesma cultura a todos engloba” (RIBEIRO, 1995, p. 242-243).
A Lei de Terras de 1850 não foi automaticamente revogada pelo constituinte, mas uma parcela considerável das terras devolutas foi repassada aos estados federados, que disporiam sobre elas. Foram coniventes com a posse “mansa e pacífica” feita até 1889, o que intensificou a já relevante concentração fundiária.
2.2.2 O Brasil pós-1930: o Imóvel Rural, o Estrangeiro e a Modernização
Com a Revolução de 30, a industrialização do país tomou forte impulso. Há divergências quanto a maior ou menor participação do empresariado nacional, mas, “Do ponto de vista das forças em jogo, a tese mais corrente da historiografia afirma que a implantação do regime correspondeu aos desejos dos grupos técnico-militares defensores da instituição de um regime forte, capaz de viabilizar a instalação das indústrias de base no país, ligadas à sua concepção de defesa nacional” (MENDONÇA, 1990, p. 169).
O café era o principal produto da pauta exportadora brasileira quando da crise de 1929. Embora o preço internacional do produto tenha sofrido um duro golpe, deslocar a mão de obra para as cidades, para que se realizasse a desejada industrialização, significaria o enfraquecimento do principal setor produtivo do país. O produto representava, à época, ¾ do total auferido em exportações. Necessário, portanto, descartar a apressada interpretação de que o meio agrário perdeu importância. O nível de renda e a demanda agregada keynesiana somente se mantiveram em alta por conta da política de defesa do café, que queimou toneladas da commodity entre 1939 e 1945.
O governo do Estado Novo decidiu lançar mão, novamente, do estrangeiro, para que trabalhasse nos imóveis rurais, enquanto a força de trabalho nativa se deslocava para as cidades. “A população rural do Brasil correspondia, em 1940, a 68,6% da população total, e, em 1950, a 63,8%” (MONTEIRO, 1990, p. 310).
O Decreto-Lei 406 de 1938 dispunha “sôbre a entrada de estrangeiros no território nacional”. Aparte as amostras quase anedóticas de preconceito contidas no art. 1º, vale ressaltar o estabelecimento de quotas que indicavam um máximo de estrangeiros admitidos a depender da procedência. Dentro desses limites, “oitenta por cento (80%) de cada quota serão destinados a estrangeiros, agricultores ou técnicos de indústrias rurais” (art. 16, Decreto-Lei 406/38).
Como se impediria, porém, o fluxo de novos imigrantes às cidades? “O agricultor ou técnico de indústria rural não poderá abandonar a profissão durante o período de quatro (4) anos consecutivos, contados da data do seu desembarque, salvo autorização do Conselho” (art.17, Decreto-Lei 406/38).
O intuito de empregar o estrangeiro-agricultor fica claro no Decreto-Lei n.º 2.009 de 1940, que prescreve que “os lotes rurais dos núcleos coloniais seriam distribuídos não só a nacionais que quisessem se dedicar à agricultura como a estrangeiros agricultores. A diferenciação no caso é que o nacional não precisaria já ser agricultor, enquanto que o estrangeiro já devia sê-lo para receber o lote” (ROCHA, 1999, p.39-40).
A cifra de novos imigrantes foi controlada, portanto, a partir dos interesses estatais e da industrialização. Tão é verdade que o artigo 18 do referido Decreto-Lei flexibilizava a política de cotas, a depender da avaliação do Conselho de Imigração e Colonização.
O estrangeiro, nesse período, não recebeu incentivos para adquirir imóvel rústico. Como exemplos de restrições, o Decreto-Lei n.º 1.164 de 1939 dispunha que lotes de terras públicas só poderiam ser distribuídos a brasileiros casados com brasileiros; o Decreto-Lei n.º 1.202 de 1939 não permitia sequer o arrendamento (menos ainda a venda) de terras municipais ou estaduais a estrangeiro ou sociedade estrangeira, sem a autorização do Presidente da República; o Decreto-Lei n.º 1.968 de 1940 exigia certificado de permissão de Comissão Especial para terras em faixas de fronteiras (ROCHA, 1999, p.38-40).
A exceção foi o Decreto-Lei n.º 3.059 de 1941, diploma que tratava das Colônias Agrícolas Nacionais. Os agricultores estrangeiros qualificados poderiam receber lote próprio, nos termos do artigo 20, parágrafo 1º. Como se vê, a medida era elitista e visava apenas àqueles que pudessem aportar conhecimento “técnico-científico”.
2.2.3 A Aquisição de Imóvel Rural por Estrangeiro durante a Ditadura Militar
A Lei 5.709 de 1971 possui dispositivos ainda em vigor, sendo, hoje, o principal diploma a tratar da aquisição de terras por estrangeiros. Sua legiferação, contudo, obedeceu à necessidade do governo militar de responder inúmeros escândalos de venda ilegal de terras a estrangeiros.
Entre 1964 e 1970, o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (INDA) sofreram várias acusações de venda ilegal de terras a estrangeiros. O Relatório Velloso, de 1968, foi consequência de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que comprovou a participação de funcionários do IBRA na aquisição das terras.
Já no governo Costa e Silva, veio o Ato Complementar n.º 45, eivado de nacionalismo, em que somente se permitia a aquisição de imóveis rústicos por estrangeiro residente no país. Não foi medida duradoura, uma vez que “em 10 de outubro de 1969, no mesmo ano, portanto, do Ato Complementar nº 45 (30/01/69) e do decreto-lei nº 494 (10/3/69), simplesmente excluía das disposições do Decreto-Lei nº 494 'as aquisições de áreas rurais necessárias à execução de empreendimentos industriais considerados de interesse para a economia nacional, cujos projetos tenham sido aprovados pelos órgãos competentes' (Artigo 1º, Decreto-Lei n. 11.924 de 10/10/69)” (OLIVEIRA, 2010, p. 16), o que, em termos mais prosaicos, deixava a aquisição de áreas rurais por estrangeiros ao arbítrio do Executivo.
Destaque-se que a terra era um tema central da política brasileira da década de 70. Era o período em que se enaltecia a necessidade de garantir a “soberania energética” nacional, tão afetada pela importação massiva de petróleo bruto. O substituto imediato era o álcool. Por isso, em 1975, por meio do Decreto n.º 76.593, chegou a ser criado o Pró-Álcool.
A Lei n.º 5.709 de 1971 revogou expressamente os Decretos-leis n.º 494 de 1969 e n.º 924 de 1969. Dispôs que a pessoa natural estrangeira não poderia adquirir mais de 50 módulos e que a aquisição de imóvel de dimensão superior a 3 módulos necessitaria de autorização estatal. Ainda, vedava-se a aquisição estrangeira de mais de 25% do território de um município.
A pessoa jurídica estrangeira recebeu especial cuidado normativo. O objetivo estatutário deveria compreender ou a empreitada agrícola, ou pecuária, ou industrial ou de colonização. O pedido de aquisição de imóvel rural por pessoa jurídica estrangeira passa a depender de inúmeros documentos: área total do município onde se situa o imóvel a adquirir; soma das áreas transcritas em nome de estrangeiros, no município, por grupos de nacionalidades; soma das áreas rurais transcritas em nome de estrangeiros, no município, por grupos de nacionalidade; assentimento prévio da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional se é área considerada indispensável à segurança nacional; arquivamento do contrato social ou estatuto em Registro apropriado; adoção de forma nominativa de ações, feita por Certidão do Registro de Comércio. “Mas em compensação não há limite de área para as aquisições de imóveis rurais por pessoas jurídicas estrangeiras” (ROCHA, 1999, p. 104). Equivale a dizer que ¼ de um município brasileiro poderia, hipoteticamente, estar em mãos de apenas uma sociedade empresarial.
Esta “limitação”, que por si já era permissiva, resta ainda mais flexível se analisamos o artigo 12, parágrafo 2º, da referida lei. Em tese, “a soma das áreas rurais pertencentes a pessoas estrangeiras, físicas ou jurídicas, não poderá ultrapassar a um quarto da superfície dos Municípios onde se situem”, mas “o Presidente da República poderá, mediante decreto, autorizar a aquisição além dos limites fixados neste artigo, quando se tratar de imóvel rural vinculado a projetos julgados prioritários em face dos planos de desenvolvimento do País”. Ora, mais uma vez, as restrições às sociedades estrangeiras dependeriam do alvedrio do Executivo.
As consequências de tal política legislativa se fazem sentir na concentração fundiária em determinados municípios. José Miguel Pretto analisou meros 124 municípios de 11 estados brasileiros, em que se registram mais de 47% das médias e grandes propriedades registradas por estrangeiros no país (PRETTO, 2009, p. 14). Vale ressaltar o aumento exponencial de registros nas décadas de 70 e 80, que seguiram a Lei n.º 5.709 (PRETTO, 2009, p. 21).
2.2.4 A Terra e o Estrangeiro na República Nova
Superada a República Militar e promulgada uma nova Constituição, dispõe o artigo 190 da nova Carta que “a lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional”.
Na falta de nova Lei, permanece em vigor a Lei n.º 5.709 de 1971.
Neste período, uma pequena restrição consta, todavia, na Lei 8.629 de 1993, que no seu artigo 23, parágrafo 2º, afirma que o Congresso Nacional deve autorizar aquisições para além do permitido na Lei n.º 5.709 de 1971 e de mais de 100 Módulos de Exploração Indefinidas.
É bem verdade que os governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva foram abertos a investimentos externos[1]. Para Ariovaldo Umbelino de Oliveira, o governo Lula nada fez para evitar a especulação fundiária e o avanço da fronteira agrícola (OLIVEIRA, 2010, p. 16), em nome das exportações de soja.
Atualmente, o INCRA cuida, por meio de Instrução Normativa, do procedimento administrativo empregado para que haja acesso por estrangeiros às terras brasileiras. Em 2011, foi redigida a Instrução Normativa nº70, que teve pouca duração, uma vez que a Instrução Normativa nº76, de 2013, revogou-a.
2.2.4.1 A Aquisição de Imóveis Rurais por Estrangeiros – o Futuro
Tramita no Congresso Nacional proposta de atualização do tema. Trata-se do PL 4.059 de 2012, que também propõe efetivar o artigo 190 da Constituição e revogar a Lei 5.079 de 1971[2].
Este PL determina a proscrição da venda de terras da União, estados ou municípios a estrangeiros. Ficaria dispensada de licença ou autorização a compra de imóvel rural pelo estrangeiro de até 4 módulos fiscais.
As terras compradas ou arrendadas por estrangeiros não poderão somar mais de um quarto da área total do município em que se encontram. Além disso, pessoas de um mesmo país não poderão deter mais de 40% desse limite. A única exceção para esse caso são as terras de estrangeiro casado com brasileiro em regime de comunhão total de bens. Esses limites poderão ser dispensados nos casos de projetos considerados prioritários para o País. Para tanto, será necessária a aprovação de um decreto legislativo do Congresso Nacional, com manifestação prévia do Executivo.
Veja que o PL 4.059 de 2012 prevê a conjunção de manifestações do Executivo e do Legislativo para que se dispensem os limites de extensão de terras compradas ou arrendadas por estrangeiros, uma espécie de solução de compromisso entre a introdução de investimentos estrangeiros no Brasil e o receio de que multinacionais adquiram unidades federativas inteiras.
É medida louvável, mas a esfera de discricionariedade na decisão ou não de se marginalizar os limites legais é ampla. Sem a discriminação dos requisitos a cumprir, dos projetos específicos que poderiam ser admitidos, dá-se importância irrazoável à vontade política e dificulta-se a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário.
Por último, destaca-se a necessidade de que os projetos de grande porte aprovados pela União respeitem a opinião de povos tradicionais possivelmente afetados pelas grandes empresas.
Conclusão
Ao longo da história dos governos brasileiros, vários foram os objetivos subjacentes à legiferação sobre a aquisição e, de maneira mais ampla, presença do estrangeiro nos imóveis rurais brasileiros.
O “elemento alienígena” serviu de meio para garantir o povoamento de extensas áreas, ainda que o colonizador padecesse de escassos recursos demográficos para tanto.
Foi empregado, ainda, para servir de mão de obra no auge da produção cafeeira, em regiões nas quais o trabalho livre ainda não possuía o contingente necessário.
Criadas as indústrias de base, veio em menor número, mas esteve presente como peça elementar na substituição de mão de obra agrária.
Em nenhum destes casos, recebeu incentivos maiores do que o desejo de melhorar o padrão de vida. A aquisição de terras por pessoas naturais estrangeiras se fez pela posse, na medida do possível, e pelo que traziam ou auferiam no Brasil.
Já as pessoas jurídicas conheceram melhor sorte, principalmente nos períodos em que a “modernização” se tornou mote. Naturalmente mais economicamente capazes de adquirir imóveis, compraram, já na década de 50, extensas áreas do Mato Grosso.
Atualmente, os Projetos de Lei que tramitam no Congresso apresentam melhorias em relação à Lei hoje vigente, mas ainda com deficiências a serem sanadas.
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SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Conquista e Colonização da América Portuguesa: O Brasil Colônia – 1500/1750. In: LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil. 9 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990.
[1] Para um estudo mais detalhado, que conclui pelo aumento de investimentos externos diretos no agronegócio entre 2004 e 2007, ALVIM, Augusto. Os Investimentos Estrangeiros Diretos no Brasil e os Impactos sobre o Agronegócio - 2002 a 2008. Disponível em: <http://www.sober.org.br/palestra/15/78.pdf>. Acesso em 15.6.2015.
[2] A tramitação está disponível em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=548018>. Último acesso em 15.6.2015.
Advogado inscrito na OAB/PR sob o nº 75757. Bacharel em Direito pela UFPR.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CLETO, Vinicius Hsu. A Política Legislativa Brasileira sobre a Presença do Estrangeiro em Imóveis Rurais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 jul 2015, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44751/a-politica-legislativa-brasileira-sobre-a-presenca-do-estrangeiro-em-imoveis-rurais. Acesso em: 22 nov 2024.
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