RESUMO: A partir dos conceitos de liberdade, poder e do direito de resistência, a desobediência civil é analisada no contexto constitucional como direito fundamental para garantia da cidadania.
Palavras-chave: Liberdade. Poder. Resistência. Desobediência. Constitucional. Cidadania.
1. O SIGNIFICADO DE LIBERDADE
O que é liberdade? Direito fundamental garantido no caput do artigo 5° da Constituição Federal, a liberdade “se constitui num bem da existência humana”[1], a qual todos os indivíduos buscam.
Documentos internacionais consagram a liberdade como o direito dos direitos, pois sem ela todos os outros direitos perderiam razão de ser.[2]
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, estabelece em seu artigo 1° que “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.” e no seu artigo 3° que “Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.”
Nas várias concepções que se pode atribuir ao se tentar definir liberdade, parece claro que as diferenças existentes e inerentes à humanidade são fundamentais para que a liberdade exista.
A obra de ficção de Aldous Huxley, “Admirável Mundo Novo”, publicada em 1932, que narra um hipotético futuro em que pessoas são condicionadas biologicamente e psicologicamente para viverem em harmonia, guiadas por leis e regras sociais dentro de uma sociedade organizada por castas, é um exemplo de que a eliminação das diferenças entre os seres humanos traz apenas infelicidade, pois lhes retira a liberdade. Na obra citada, sempre que algum cidadão demonstrava qualquer dúvida ou insegurança lhe era administrada uma droga chamada “soma”, que o fazia voltar ao estado de apatia desejado.
O respeito às diferenças é fundamental para que se possa falar em liberdade e deve ser cultivado, sendo que mesmo na literatura infantil o tema vem sendo abordado. Exemplo disso é a obra intitulada “Na minha escola todo mundo é igual”, de Rossana Ramos, que versa sobre o assunto e o aborda de forma bem apropriada para a faixa etária a que é dirigida. Destacamos alguns trechos:
Lá na minha escola
Ninguém é diferente
Cada um tem o seu jeito
O que importa é ir pra frente[3]
Tem gente que não tem braço
E que só joga no gol
Tem outro que não escuta
Mas que dança rock-and-roll[4]
...
Na minha escola se aprende
Que não existe perfeição
E o que todos nós precisamos
É de carinho e atenção
Que bom se todo mundo
Pudesse entender direito
Que tudo fica mais fácil
Sem o tal do preconceito
Aqui vai um belo conselho
Que só leva um segundo:
Quem não respeita o outro
Não tem lugar neste mundo[5]
A liberdade está ligada a noção de fraternidade, na medida em que, nas palavras de José Horácio Meirelles Teixeira:
Liberdade é o direito de viver e de desenvolver e exprimir nossa personalidade de maneira a mais completa, conforme as leis da Natureza e da Razão e a essencial dignidade da pessoa humana, no que for compatível com igual direito dos nossos semelhantes e com as necessidades e interesses do Bem comum, mediante o adequado conjunto de permissões e de prestações positivas do Estado.[6]
2. LIBERDADE E PODER
Por qual motivo o homem se submete às leis?
A vida em sociedade impõe a existência de normas que regulem a convivência humana, normas que, muito embora, limitem as liberdades dos indivíduos, são necessárias para a estrutura básica do convívio social, a fim de que a ordem seja mantida.
Várias posições são sustentadas a fim de se justificar a obediência ao direito. O ser humano, por temor à insegurança, constituiu uma sociedade política em busca de proteção, e, em nome desta proteção, renunciou aos seus direitos e às suas liberdades em favor de um protetor, e por esta razão, obedece às normas geradas no seio desta organização política.[7]
Na visão de Thomas Hobbes, pela sua condição natural, os homens vivem uns contra os outros, numa guerra perpétua, e é pelo temor que se submetem a um poder soberano. É pelo temor que os homens reúnem-se em grupos, em sociedade, sob a égide do Leviatã (Estado). Não é por fraternidade, mas por interesse e necessidade. A sociedade política é decorrente da insegurança dos homens, que em busca de segurança e estabilidade, se submetem a um soberano, ainda que lhes custe renunciar a direitos e liberdades nocivos à paz.
Já para Locke, o homem é uma criatura de Deus e cada um deve respeitar a liberdade do outro. O Estado apenas deve declarar e garantir uma ordem jurídica que lhe é anterior.[8]
Hart concebe a obediência ao direito como uma questão moral. Ele entende que há duas formas mediante as quais uma conduta pode ser moralmente determinada. A primeira delas se dá através de obrigações. A segunda por meio de deveres.
As obrigações seriam as exigências morais de conduta que se originam de um ato voluntário, dirigidas à pessoas determinadas ou, pelo menos, determináveis e a cada obrigação corresponderia um direito.
Já os deveres não dependem da vontade do sujeito e podem ser vistos pelas exigências morais e jurídicas relacionadas com certas posições, cargos, ofícios, ou até mesmo papéis que a pessoa possa vir a desempenhar, como por exemplo, o papel de filho, o papel de cidadão; ou pelos "deveres de obediência", isto é, através de deveres que surgem de normas emanadas por autoridades competentes, derivando este dever do conteúdo da norma.[9]
Várias teorias foram elaboradas, sendo que algumas vêem a obediência ao direito como uma obrigação, ou seja, como um ato de vontade (Teoria Voluntarista); e outras entendem este fenômeno como um dever.
Segundo Maria Garcia “a liberdade é o contraponto do poder. São pólos que se confrontam, unidos pela mesma dinâmica e inconcebíveis, um sem a existência do outro, se correspondem e se exigem.”[10]
Mas o que é o Poder?
Nas palavras da ilustre Prof. Dra. Maria Helena Diniz, quem melhor definiu Poder foi Goffredo Telles Jr: “Poder é a força exercida pela idéia de bem a realizar capaz de impor atitudes e com isso assegurar a ordem no meio social”.[11]
O Poder cria a norma e cria a ordem. Ele também é o aplicador da norma e seu destinatário.
O Poder pode ser constituinte originário ou derivado. Pode ser Poder Legislativo, Executivo, Judiciário, coletivo e individual.
O Poder é legítimo quando atende ao interesse do povo, se houver a idéia de um bem a realizar e se houver forma institucionalizada de constituição conforme a lei.
Na lição da Prof. Maria Garcia:
Legitimidade e legalidade, todavia, parece constituírem um componente da autoridade, no sentido dado por Benedicto Ferri de Barros que não é ‘senão a tradução, em termos operacionais, do conceito de poder legitimamente constituído e consentido (e o conceito de legitimidade não é senão a expressão de consensualidade quanto às regras de convivência social em situações de conflito).
Vale dizer: o Direito é que define o acordo comum quanto ao fato de que os conflitos se previnem, se dirime e se resolvem mediante o poder outorgado a uma autoridade – a qual (nunca é demais repetir) só é autoridade enquanto atua sob o império da lei. Esta – também não é demais repetir – só é lei se exprime consenso’.[12]
Nem sempre a finalidade da norma é cumprida.
A Prof. Dra. Rosa Maria de Andrade Nery entende que há leis e decisões judiciais que não atendem à consciência ética de todos que se submetem ao poder de coerção de seu comando jurídico.
Segundo a autora, nestes casos, muitas vezes, identifica-se uma falsa justificativa moral como fundamentação estrutural da norma, e não é raro identificar um conjunto de “razões que presumidamente teriam esteio na fé que o povo devota a algo que lhe foi apresentado como transcendental.”[13]
Essa técnica não é casual, e sim resulta de estudos para “descobrir em que (ou em quem) o povo “quer” crer (por conveniência)[14]” e fazem o povo acreditar que certas soluções ou imposições decorrem de “verdades” em que se crêem, ou nas quais se devam crer.
Criam-se falsos “deuses”, manipulando-se a fé do povo, fazendo com que certos comportamentos que não deveriam, sejam aceitos, e que outros, que deveriam ser exigidos, não o sejam.
Para a Prof. Rosa Nery:
“Se a norma jurídica é fruto dessa motivação, ela descumpre sua finalidade, se afasta de seu compromisso com a justiça social e passa a chancelar condutas que podem visar apenas gerar lucros empresariais; ditar comportamentos maléficos para a vida social e para a dignidade do homem; ditar soluções que minimizem direitos fundamentais; elaborar valores novos em substituição de outros que já se encontravam alicerçados no espírito da civilização. Ou ainda, se pôr a serviço de interesses contrários à segurança e à ordem da sociedade e à liberdade das pessoas. ... A norma jurídica passa a ter finalidades que não são, propriamente, aquelas para cuja vocação elas deveriam ter sido elaboradas.”
A ilustre autora exemplifica com a atual questão de culto ao corpo perfeito e belo. Segundo a jurista:
“Chega a se impor a todos como idolatria, ditando comportamentos sócio-econômico-familiares; reescalona valores, taxando como “felizes” os magros e “infelizes” os gordos; prestigia o uso de determinados produtos e exorciza o uso de outros; incentiva condutas determinadas para um fim e recrimina outras. Produtos e serviços caem da moda. Outros passam a ser de consumo obrigatório. Criam-se necessidades nunca dantes consideradas como tal. Em conseqüência disso, impõem-se como autorizados o uso de determinado medicamento, por exemplo, a partir de sua eficácia para produzir o emagrecimento, e o embelezamento rápido do corpo, sem se questionar sobre a ocorrência de certa conseqüências funestas para a saúde e equilíbrio do organismo humano. O certo e o errado passam a depender desse “falso deus” ( a beleza), que tem mandamentos seus, que dita comportamentos.”
Para a autora Rosa Nery, essa idolatria que dita normas de conduta, de consumo e que cada vez mais aumenta o poder empresarial, “é uma conseqüência do sistema jurídico invadido pelas ‘técnicas’ apreendidas da pisteologia, que deforma a fé, transforma a economia, manipula a idolatria e provoca a prática de comportamentos que interessa a poucos.”[15] Pisteologia é o estudo da fé do povo.
E conclui a autora que a conseqüência disso é a falsa crença de agir com liberdade, de poder decidir o que pode pretender. A crença do povo manipulada implica na manipulação da escala de valores que inspira as normas jurídicas e “gravíssimas e deletérias as conseqüências dessa “opção jurídica”, feita pelo Poder.”[16]
3. O DIREITO DE RESISTÊNCIA
A Prof. Maria Garcia[17] com muita propriedade coloca essa questão: “podemos desobedecer?”
Citando o jurista Machado Paupério, a autora identifica, na recusa à obediência de uma lei ou ordem legal, três aspectos: a oposição às leis injustas, a resistência à opressão e a revolução.[18]
“Pela oposição às leis injustas, explica, concretiza-se a repulsa de um preceito determinado ou de um conjunto de prescrições em discordância com a lei moral - essa resistência é de iniciativa individual ou de um grupo limitado; pela resistência à opressão, concretiza-se a revolta contra a violação, pelos governantes, da idéia de direito de que procede o Poder cujas prerrogativas exercem; pela revolução, concretiza-se a vontade de estabelecer uma nova ordem, em face da falta de ressonância da ordem vigente na sociedade.
Na primeira hipótese, resume, está em jogo a relação entre duas regras; na resistência à opressão, é a atitude dos governantes por correlação com a idéia de direito que lhes legitima a autoridade e na última hipótese, a revolução, a oposição entre duas idéias de direito".
Segundo Susana Falsoni[19], a doutrina dominante divide o direito à resistência em duas formas de exercício, quais sejam: revolução e desobediência civil. A revolução é exercida para a modificação, por meios alheios à Constituição e ao ordenamento jurídico, dos fundamentos do Direito e do Estado, ou a restauração da ordem constitucional, cabendo somente à coletividade, enquanto que a desobediência civil pode ser exercida pelo cidadão ou por um grupo de cidadãos, e não pela coletividade. Importante notar que a desobediência civil pode ocorrer tanto na forma passiva, pela inércia, quanto pela forma ativa, por fazer o que seria proibido.
Roberta Coelho informa que segundo Norberto Bobbio, a resistência abrange qualquer comportamento de ruptura contra a ordem constituída, que coloque em crise o sistema, como ocorre num tumulto, num motim, numa rebelião, numa insurreição, até a própria revolução. A autora informa ainda que para Meirelles Teixeira o direito de resistência é um direito de caráter e conteúdo jurídico, ético, moral, devendo, portanto, ser exercido no sentido do bem comum e da defesa dos direitos fundamentais do homem, dos seus direitos políticos e da dignidade da pessoa humana. Prossegue a autora que Canotilho coloca o direito de resistência entre os meios de defesa não-jurisdicionais, entendendo-o como ultima ratio do cidadão que se vê ofendido nos seus direitos, liberdades e garantias, seja por atos do poder público ou por atos de entidades privadas.[20]
O direito de resistência não tem sido acolhido pelos textos constitucionais contemporâneos, porém, a Prof. Maria Garcia[21] aponta dois textos constitucionais que vêm consagrar expressamente o direito de resistência. A Lei Fundamental da Alemanha, de 1949, que estabelece entre os princípios constitucionais o direito de resistência no art. 20, a saber:
Art. 20
...
(3) O poder legislativo está vinculado à ordem constitucional; os poderes executivo e judiciário obedecem à lei e ao direito.
(4) Não havendo outra alternativa, todos os alemães têm o direito de resistir contra quem tentar subverter essa ordem.
O segundo texto constitucional é a Constituição portuguesa de 1982 que dispõe em seu artigo 21 que “Todos têm o direito de resistir à qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”.
Ao tratar da corrupção, a Prof. Maria Garcia explica que a corrupção é uma das causas justificadoras do direito de resistência. Ela afirma que “opressão e corrupção, o lado visível e o lado invisível da patologia do Estado”.[22]
4. A DESOBEDIÊNCIA CIVIL
Como fica o cidadão, que segundo Hannah Arendt é titular do direito a ter direitos, quando a norma jurídica é fruto de um poder corrompido ou de uma opção jurídica deturpada por falsos valores (conforme ensinamentos de Rosa Nery já abordados)?
Consta na doutrina que o primeiro a utilizar a expressão “desobediência civil” foi um cidadão norte-americano chamado Henry David Thoreau, que em 1846 foi preso porque se negou a pagar impostos a um governo que permitia e escravidão e protestava contra a guerra entre Estados Unidos e México.
Na sua obra Desobediência Civil, Henry Thoreau[23] questiona o governo e o dever de obediência a ele. Ele diz:
“Aceito com entusiasmo o lema ‘O melhor governo é o que menos governa’; e gostaria que ele fosse aplicado mais rápida e sistematicamente. Levado às últimas conseqüências, este lema significa o seguinte, no que também creio: ‘O melhor governo é o que não governa de modo algum’; e, quando os homens estiverem preparados, será esse o tipo de governo que terão. O governo, no melhor dos casos, nada mais é do que um artifício conveniente; mas a maioria dos governos é por vezes uma inconveniência, e todo o governo algum dia acaba por ser inconveniente.”
Ele critica a inércia daqueles que acham que o governo representa a vontade da maioria.
“Toda a votação é um tipo de jogo, tal como damas ou gamão, com uma leve coloração moral, onde se brinca com o certo e o errado sobre questões morais; e é claro que há apostas neste jogo. O caráter dos eleitores não entra nas avaliações. Proclamo o meu voto – talvez – de acordo com meu critério moral; mas não tenho um interesse vital de que o certo saia vitorioso. Estou disposto a deixar essa decisão para a maioria. O compromisso de votar, desta forma, nunca vai mais longe do que as conveniências. Nem mesmo o ato de votar pelo que é certo implica fazer algo pelo que é certo. É apenas uma forma de expressar publicamente o meu anêmico desejo de que o certo venha a prevalecer. Um homem sábio não deixará o que é certo nas mãos incertas do acaso e nem esperará que a sua vitória se dê através da força da maioria. Há escassa virtude nas ações de massa dos homens.”[24]
Após expor sua revolta com a guerra travada pelos Estados Unidos contra o México e contar sua experiência ao ser preso, ele conclui:
“Será que a democracia tal como a conhecemos é o último aperfeiçoamento possível em termos de construir governos? Não será possível dar um passo a mais no sentido de reconhecer e organizar os direitos do homem? Nunca haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que ele venha a reconhecer no indivíduo um poder maior e independente – do qual a organização política deriva o seu próprio poder e a sua própria autoridade – e até que o indivíduo venha a receber um tratamento correspondente.”[25]
Para Friedrich Müller[26], o que legitima uma democracia são as liberdades civis, juntamente com os direitos humanos enquanto realizados. Segundo Müller:
A função do “povo”, que um Estado invoca, consiste sempre em legitimá-lo. A democracia é dispositivo de normas especialmente exigente, que diz respeito a todas as pessoas no seu âmbito de “demos” de categorias distintas (enquanto povo ativo, povo como instância de atribuição ou ainda povo-destinatário) e graus distintos. A distinção entre direitos de cidadania e direitos humanos não é apenas diferencial; ela é relevante com vistas ao sistema.
Hannah Arendt também dedicou um estudo à desobediência civil. Maria Garcia[27] explica que para Arendt a desobediência civil sempre será praticada por um certo número de pessoas com identidade de interesses e que para se configurar há características próprias a observar.
A primeira é que a desobediência civil pode servir tanto para mudanças necessárias e desejadas como para a preservação ou restauração do estado anterior, ou seja, preservação de direitos fundamentais ou restauração e harmonia dos poderes governamentais. Mas não se pode comparar a desobediência civil com a desobediência criminosa.
A segunda característica é a não violência na desobediência civil, o que a diferencia da revolução. Assim, a desobediência civil é tida como elemento de mudança, tão necessária quanto a estabilidade.
Maria Garcia[28] apresenta o conceito de desobediência civil segundo Celso Lafer. Para o autor desobediência civil é “a ação que objetiva a inovação e a mudança da norma por meio da publicidade do ato de transgressão, visando demonstrar a injustiça dele”. Ele atribui essa atitude a um dever ético do cidadão. Ele exemplifica com o direito de greve.
Ainda segundo Maria Garcia, para Norberto Bobbio, a desobediência civil é uma forma particular de desobediência, já que tem como fim imediato mostrar publicamente a injustiça de uma lei, mas como fim mediato induzir o legislador a mudá-la. Seria, pois, um ato inovador e não destruidor. De acordo com Bobbio duas hipóteses autorizam a desobediência civil, a lei injusta e a lei ilegítima, isto é, emanada de quem não tem competência legislativa. Já a lei inválida, ou inconstitucional, não enseja a obrigação de desobediência.[29]
A ilustre jurista Maria Helena Diniz[30], segundo Maria Garcia, entende que o direito de resistência e a desobediência civil são formas diversificadas de manifestação contra o abuso de poder que exerce opressão. A resistência é legítima desde que a ordem que o poder pretende impor seja falsa, separada da ideia de direito imperante na sociedade.
Maria Helena Diniz reconhece que na Constituição Federal, no artigo 5°, inciso II, existe uma garantia implícita de resistência à ilegalidade, na medida em que “ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”[31]
Também no art. 5°, §2°, da Constituição Federal, não estão esgotados os direitos e garantias, sendo aceitos “outros implícitos e necessários para a defesa do cidadão contra a opressão”, mas entende a autora que a norma constitucional pátria não reconhece expressamente o direito de resistência, ante o disposto no art. 5°, XVI, que trata do direito de reunir-se pacificamente.
Maria Garcia ensina:
“Conforme vimos afirmando, entretanto, destaca-se como intuito do presente estudo a demonstração de que a desobediência civil – espécie distinta da resistência à opressão – não se dirige ao direito de revolução, nem ao direito de objeção de consciência, ou se constitui em dever moral; não objetiva a destruição da lei ou da ordem, da autoridade ou do respeito às regras erigidas em normas de coexistência social: é um direito de garantia do exercício da cidadania, a qual outorga ao cidadão o poder de fazer a lei e de descumprir a lei, quando em desacordo com a ordem constitucional, e aquela consubstanciada nos direitos e garantias expressos na Constituição”.[32]
Assim conceitua Maria Garcia:
“A desobediência civil pode-se conceituar, portanto, como a forma particular de resistência ou contraposição, ativa ou passiva do cidadão, à lei ou ato de autoridade, quando ofensivos à ordem constitucional ou aos direitos e garantias fundamentais, objetivando a proteção das prerrogativas inerentes à cidadania, pela sua revogação ou anulação.”[33]
A autora entende que a desobediência civil é um direito fundamental de garantia, contido no artigo 5°, §2°, da CF e decorre do direito constitucional à liberdade, destinando-se à proteção da cidadania.
5. CONCLUSÃO
Sendo reconhecida a desobediência civil como um direito fundamental que visa proteger a cidadania, questiona-se se poderá o cidadão ou um grupo de cidadãos, pleitear aos Poderes Públicos (Executivo, Legislativo ou Judiciário), declarando-se em desobediência civil, com base no princípio da cidadania (art. 1°, II e art. 5°, §2° e XXXIV, a, da CF).? A Profa. Maria Garcia entende que sim. Esta petição ao Poder Público pode demandar a sua exclusão aos efeitos de uma lei ou ato de autoridade, ou a sua revogação ou alteração, tendo em vista o conflito com a ordem constitucional ou certo direito ou garantia fundamental.
A partir daí, se o pedido do cidadão não for acatado, ele não deverá sofrer sanção, pois ele não foi um mero descumpridor da lei. Deverá haver retorno ao status quo ante, para que o cidadão possa cumprir a lei.
Se o pedido do cidadão sequer for apreciado, por não reconhecer o Poder Público a desobediência civil, a solução será impetrar Mandado de Segurança para assegurar o direito líquido e certo do cidadão de ver seu pleito apreciado[34].
Assim, face a todo o exposto, concordamos com os argumentos dos ilustres doutrinadores analisados e vislumbramos a possibilidade de desobediência civil, como exercício de cidadania, com amparo, ainda que implícito, nos ditames constitucionais, desde que nos limites apontados, vez que a desobediência civil não pode ser confundida com anarquia, revolução ou qualquer forma de atitude criminosa.
BIBLIOGRAFIA:
COELHO, Roberta Werlang. Direito de resistência e desobediência civil: causas supralegais de exclusão da infração penal. Disponível em:
http://www.pucrs.br/direito/graduacao/tc/tccII/trabalhos2007_2/Roberta_Werlang.pdf
Acesso em: 09 de fevereiro de 2012
FALSONI, Susana Ferreira. Obediência ao direito e direito de resistência: algumas bases filosóficas para reflexão sobre a chamada “Lei seca”. Disponível em: http:www.lfg.com.br. 24 de julho de 2008. Acesso em: 10 de fevereiro de 2012
GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia. 6ª ed..São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 67
NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Manual da Monografia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1997
RAMOS, Rossana. Na minha escola todo mundo é igual. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 2008
THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Disponível em: www.livrosgratis.net. Acesso em: 09.02.2012
[1] GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.16
[2] Idem, p.16
[3] RAMOS, Rossana. Na minha escola todo mundo é igual. São Paulo: Cortez, 2008, p. 4
[4] Idem, p.6
[5] RAMOS, Rossana. Op. cit. p. 17-18
[6] MEIRELLES TEIXEIRA, José Horácio. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Forense Universitária, 1991, p. 672 apud GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.65
[7] FALSONI, Susana Ferreira. Obediência ao direito e direito de resistência: algumas bases filosóficas para reflexão sobre a chamada “Lei seca”. Disponível em http:www.lfg.com.br. 24 de julho de 2008. Acesso em 10 de fevereiro de 2012.
[8] GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental., p. 42
[9] FALSONI, Susana Ferreira. Op. cit.
[10] GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental., p. 51
[11] Aula proferida pela Prof. Maria Helena Diniz no curso de Doutorado da PUC-SP em 06.02.2012.
[12] Idem. p.92
[13] NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 43.
[14] Idem, p.43
[15] NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do Direito Privado. p.45
[16] Idem, p.45
[17] GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental., p. 152
[18] Idem, p.157
[19] FALSONI, Susana Ferreira. Obediência ao direito e direito de resistência: algumas bases filosóficas para reflexão sobre a chamada “Lei seca”. Disponível em http:www.lfg.com.br. 24 de julho de 2008. Acesso em 10 de fevereiro de 2012
[20] COELHO, Roberta Werlang. Direito de resistência e desobediência civil: causas supralegais de exclusão da infração penal. http://www.pucrs.br/direito/graduacao/tc/tccII/trabalhos2007_2/Roberta_Werlang.pdf. Acesso em: 09.02.2012
[21] GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental., p. 171-172
[22] Idem, p. 174
[23] THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Arquivo baixado em http://www.elivros-gratis.net/livros-download-gratis-pg-6.asp. Acesso em 09.04.20124, p.1
[24] THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Arquivo baixado em http://www.elivros-gratis.net/livros-download-gratis-pg-6.asp. Acesso em 09.04.20124, p.4
[25] Idem, p.16
[26] MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia. 6ª ed..São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 67
[27] GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental., p. 269-270
[28] GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental., p. 274
[29] Idem, p. 276
[30] DINIZ, Maria Helena. A norma constitucional e seus efeitos. São Paulo: Saraiva, 1989, p.87 e ss apud GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.290
[31] Idem, p.290
[32] GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental., p. 291
[33] Idem, p. 293
[34] Idem, p. 302
Mestre e doutoranda em Direito das Relações Sociais pela PUC de São Paulo, professora de direito civil e de direito ambiental, advogada. Autora do livro Resumo jurídico de direitos reais, volume 19. São Paulo: Quartier Latin, 2004 (a venda na internet)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JARDIM, Luciana Chiavoloni de Andrade. Direito de resistência e desobediência civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 jul 2015, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44910/direito-de-resistencia-e-desobediencia-civil. Acesso em: 22 nov 2024.
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