RESUMO:O Supremo Tribunal Federal tem firmado entendimento segundo o qual as decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade podem ter efeitos erga omnes, buscando estabelecer o que se entende por abstrativização do controle difuso de constitucionalidade. O presente artigo visa explanar em que consiste tal fenômeno, e quais os fundamentos que o lastreia.
PALAVRAS-CHAVE: controle de constitucionalidade; abstrativização; Supremo Tribunal Federal; Senado Federal.
INTRODUÇÃO
A rigidez formal de uma Constituição traz consigo a possibilidade de se aferir a constitucionalidade do ordenamento jurídico. Talprocedimento, impende destacar, apenas é perceptível em Constituições escritas, uma vez que a rigidez formal culmina em sistema mais complexo de modificação constitucional, mediante procedimentos mais solenes (prazos mais extensos para apreciação, quórum de aprovação qualificado, etc.), o que leva à indubitável superioridade hierárquica das normas constitucionais em relação às demais normas do ordenamento jurídico.[1]
Historicamente, dois grandes sistemas de controle de constitucionalidade das normas foram instituídos: o austríaco e o norte-americano.
No primeiro, também denominado de sistema europeu, o tribunal constitucional aprecia a norma apenas em sua abstração, sem que se encontre tangenciada a fatos ou ações judiciais concretas. O motivo que leva a cabo a análise da sua constitucionalidade ou não, portanto, é a própria existência da norma. Em suma, a (in)constitucionalidade da lei ou ato normativo é o pedido estrito da pretensão levada ao Poder Judiciário.
No modelo norte-americano, por sua vez, a constitucionalidade de eventual norma será impugnada em adstrição à lide concretamente trazida perante o magistrado. Ou seja, a (in)constitucionalidade de uma lei ou ato normativo é requerida no bojo de uma ação judicial, como uma das suas causas de pedir.
Tal distinção é relevante, uma vez que implica diferenciação dos efeitos oriundos de tais declarações de inconstitucionalidade. Nos termos de um controle direto (abstrato, concentrado, por via de ação direta) de constitucionalidade, os efeitos da decisão poderão ser extensíveis a todas as pessoas (erga omnes), visto que não se traz à baila uma análise da norma em determinado caso concreto, mas sim, da sua própria característica e subsistência como ato normativo.
Quando se está deparado com o controle difuso (concreto, por via de exceção) de constitucionalidade, em sentido oposto, se aprecia a norma em nítida aplicação em um caso concreto. Não será a constitucionalidade ou não da norma que acarretará a concessão do direito pleiteado; porém, a sua eventual declaração de inconstitucionalidade tratará consigo implicações visíveis ao caso apresentado perante as partes conflitantes. Diz-se, pois, que os efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade se darão apenas entre as partes (inter partes).
Eis, pois, em apertada síntese, a tese adotada pela doutrina: “se a declaração de inconstitucionalidade ocorre incidentalmente, pela acolhida da questão prejudicial que é fundamento do pedido ou da defesa, a decisão não tem autoridade de coisa julgada, nem se projeta, mesmo inter partes — fora do processo no qual foi proferida”[2].
Em suma, portanto, tem-se que a decisão do controle concentrado de constitucionalidade será aplicável erga omnes, ao passo que as decisões emanadas em sede de controle difuso de constitucionalidade terão aplicação apenas inter partes.
Visível, pois, que o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade das normas não adotou fielmente o modo norte-americano de se estabelecer precedentes no caso concreto. É indubitável a inexistência da figura do staredecisis no Brasil.
Trocando-se em miúdos, mesmo quando o STF vier a decidir um determinado caso concreto, tal julgamento não implica observância necessária da parte dos demais membros do Poder Judiciário, ou seja, não é vinculante. Tal decisão – que não é uma staredecisis–, portanto, apenas restará aplicada ao caso em apreço pelo Supremo, com efeitos exclusivamente entre as partes.
Foi para suprir tal carência de se designarem efeitos erga omnes para as decisões do STF em controle concreto de constitucionalidade que foi introduzida a regra do artigo 52, inciso X, da Constituição Federal de 1988.
Tal disposição preceitua que o Senado Federal possui a prerrogativa de suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo STF. Assim sendo, a decisão do Supremo Tribunal Federal que viesse a declarar a inconstitucionalidade pela via de exceção, passaria, em princípio, a ter a sua eficácia contra todos.
O próprio artigo 178, do Regimento Interno do STF assinala que uma vez declarada, incidentalmente, a inconstitucionalidade, far-se-á comunicação, depois do trânsito em julgado, ao Senado Federal,para os efeitos do art. 52, X, da Constituição.
Resta patente, portanto, que não obstante, em sede de controle concreto de constitucionalidade, aSuprema Corte apenas poderia proferir decisões com efeito inter partes, sendo da incumbência do Senado Federal ampliar tal efeito, mediante a suspensãoda execução, no todo ou em parte, da lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.
ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE CONCRETO DE CONSTITUCIONALIDADE PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
Como dito, o STF, em sede de controle incidental de constitucionalidade, proferirá decisão com efeitos entre as partes, e, após o trânsito em julgado, comunicará ao Senado Federal para que esse suspenda ou não a lei declarada, por via de exceção, como inconstitucional.
Nem sempre, porém, é isso o que se verifica.
Há algum tempo tem-se verificada a difusão – ao menos conceitualmente, e em debates doutrinários e jurisprudenciais[3] – do fenômeno denominado de “abstrativização do controle concreto de constitucionalidade”, que nada mais é do que a prolação de decisão, em sede de recurso extraordinário em processo no qual se analisa a constitucionalidade de lei ou ato normativo, pelo STF, com eficácia erga omnes, em lugar de vincular apenas as partes.
Pelo fenômeno da abstrativização, então, o órgão pleno do Supremo Tribunal Federal decidiria um caso concreto com a mesma eficácia perante terceiros que o controle concentrado de constitucionalidade. Ou seja, de modo vinculante e erga omnes.
Marcelo Novelino[4], sobre o tema, afirma que a abstrativização tem se estabelecido como regra em razão de duas vertentes distintas: a judicial e a legislativa.
No que toca à primeira dimensão, dois institutos merecem ser destacados: a súmula vinculante e a repercussão geral. Em breve síntese, impende demonstrar, nos termos do que apresentado pelo autor, que ao editar uma súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal confere eficácia erga omnes a decisões prolatadas em sede de processos em grau de recurso, dentre as quais, os processos de controle concreto de constitucionalidade; o que culmina na abstrativização das decisões do STF.
Ademais, e noutra perspectiva, o requisito da repercussão geral como pressuposto de admissibilidade para a análise dos recursos extraordinários pelo STF também configuram a tendência fenomênica de se transcender os efeitos das decisões emanadas do Supremo Tribunal Federal.
Na seara jurisprudencial, por sua vez – e com fulcro na tese da possibilidade de mutação constitucional das decisões do STF, segundo a qual resta dispensada a resolução do Senado prevista no artigo 52, X, da Constituição Federal –, é possível se atribuir eficácia erga omnes em sede de controle concreto de constitucionalidade. Para tanto, basta que o próprio Supremo Tribunal Federal, em quórum qualificado, conceda a transcendência dos efeitos de sua própria decisão.
De acordo com tal corrente, então, o artigo 52, X, da Constituição Federal de 1988 passou por uma mutação constitucional, o que implicou a mudança de entendimento quanto ao papel do Senado após a definitividade do decisum prolatado pelo STF.Em tal cenário, o Senado, funcionando como um mero “mensageiro”, teria por função unicamente dar publicidade às decisões prolatadas pelo STF[5].
Nessa nova visão, e apoiados em tese de mutação constitucional, o Supremo Tribunal Federal dotaria de abstratividade as decisões emanadas em sede recursal, sempre que se votasse pela incidência erga omnes e vinculante dos efeitos decisórios, resultando em uma nítida convergência de sistemas de controle de constitucionalidade das leis[6].
Na doutrina, Gilmar Mendes afirmou ser “possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988”[7].
Seguindo o mesmo fluxo, o atual ministro do STF, Teori Zavascki, também em sede doutrinária[8], sustentou a possibilidade de transcendência, com caráter vinculante e erga omnes, das decisõesdo Supremo Tribunal Federal, mesmo em sede de controle concreto de constitucionalidade.
Atualmente, então, a função estabelecida constitucionalmente para o Senado Federal seria a de dar apenas publicidade à decisão do STF, não mais suspendendo a execução legal.
A doutrina, contudo, está cindida. Relevante parcela de constitucionalistas entende inexistir a mutação constitucional no caso em tela, defendendo que “Embora a tese da transcendência decorrente do controle difuso pareça bastante sedutora, relevante e eficaz, inclusive em termos de economia processual, de efetividade do processo, de celeridade processual (art. 5.º, LXXVIII — Reforma do Judiciário) e de implementação do princípio da força normativa da Constituição (Konrad Hesse), afigura-se faltar, ao menos em sede de controle difuso, dispositivos e regras, sejam processuais, sejam constitucionais, para a sua implementação”[9], e alegando não existir a mutação constitucional, nos precedentes do STF, mas sim, uma “manipulação inconstitucional”[10], visto que a Corte Suprema desvirtuou o estrito sistema constitucionalmente estabelecido.
CONCLUSÕES.
Como se vê, as críticas quanto à matéria têm sido formuladas basicamente abstraindo-se da visão do STF e buscando concretizar o real papel do Senado Federal a ser desempenhado por força do artigo 52, X, da Constituição Federal de 1988.
Ademais, muitos doutrinadores entendem indevida a interferência do Supremo Tribunal em simplesmente adicionar competências constitucionais em sua alçada pela mera alegação de mutação constitucional.
Em que pese o Supremo Tribunal Federal apresente a possibilidade de modulação dos efeitos para as decisões em controle concreto de constitucionalidade como instrumento de se efetivar, para todos, os direitos e as garantias tuteladas pelo afastamento da existência de norma inconstitucional, é inegável que o Senado possui a prerrogativa constitucional de “abstrativizar” os efeitos da decisão prolatada pelo Supremo.
Caso o Senado passe a dar apenas a mera publicidade a decisões do STF, estaremos diante de nítida afronta às disposições constitucionais de competência, o que configuraria conduta reprovável pelo ordenamento jurídico pátrio.
Em outro sentido, porém, é visível uma recente aproximação do Direito pátrio com o sistema de common law praticado pelos Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo, no qual os precedentes e as decisões judiciais ganham maior relevância jurídica na defesa de direitos.
Incorporadas certas raízes da common law ao ordenamento jurídico brasileiro, resta inegável a necessidade de se conceder poderes maiores e mais amplos ao Supremo Tribunal Federal, de maneira que se permitaao Tribunal, dentre outros,estabelecer precedentes com efeitos erga omnes mesmo que em sede de controle difuso de constitucionalidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
BULOS, UadiLammêgo. Curso de Direito Constitucional. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
BUZAID e GRINOVER. Controle da constitucionalidade. RePro 90/11.
LEAL Roger Stiefelmann. A convergência dos sistemas de constitucionalidade: aspectos processuais e institucionais. Revista de Direito Constitucional e Internacional. RDCI 57/62, out. – dez. 2006. Clèmerson Merlin Clève e Luís Roberto Barroso (organizadores). Edições Especiais Revista dos Tribunais 100 anos: doutrinas essenciais (...). vol. V. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
LENZA, Pedro. Abstrativização do controle difuso? O Senado transformou-se em um mero "menino de recado"? O STF reconheceu a mutação constitucional do art. 52, X? Disponível em http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/abstrativizacao-do-controle-difuso-o-senado-transformou-se-em-um-mero-menino-de-recado-o-stf-reconheceu-a-mutacao-constitucional-do-art-52-x/13769
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método. 2011.
_______________________. Teoria da Constituição e Controle de constitucionalidade. Salvador: JusPodvim, 2008.
PIÑEIRO, Eduardo Schenato. O controle de constitucionalidade: direito americano, alemão e brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris (editor), 2012.
ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional.
[1] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método. 2011. p. 246.
[2]BUZAID e GRINOVER. Controle da constitucionalidade, RePro 90/11.
[3] Cita-se, pois, os paradigmáticos casos do STF: “Mira Estrela” – RE 197.917, e “progressividade do regime de cumprimento de pena nos crimes hediondos” – HC 82.959; e também do STJ, como o REsp 828.106.
[4]NOVELINO, Marcelo. Teoria da Constituição e Controle de constitucionalidade. Salvador: JusPodvim, 2008, p. 168-170.
[5]PIÑEIRO, Eduardo Schenato. O controle de constitucionalidade: direito americano, alemão e brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris (editor), 2012. p. 204.
[6] LEAL Roger Stiefelmann. A convergência dos sistemas de constitucionalidade: aspectos processuais e
institucionais. Revista de Direito Constitucional e Internacional. RDCI 57/62, out. – dez. 2006. Clèmerson
Merlin Clève e Luís Roberto Barroso (organizadores). Edições Especiais Revista dos Tribunais 100 anos:
doutrinas essenciais (...). vol. V. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 494.
[7] RIL, 162/165.
[8] ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. p.135-136.
[9] LENZA, Pedro. Abstrativização do controle difuso? O Senado transformou-se em um mero "menino de recado"? O STF reconheceu a mutação constitucional do art. 52, X? Disponível em http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/abstrativizacao-do-controle-difuso-o-senado-transformou-se-em-um-mero-menino-de-recado-o-stf-reconheceu-a-mutacao-constitucional-do-art-52-x/13769
[10] BULOS, UadiLammêgo. Curso de Direito Constitucional. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p.227
Advogado na área de Direito Administrativo-Econômico em Urbano Vitalino Advogados. Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp e Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Renato Saeger Magalhães. O que é o fenômeno da abstrativização do controle concreto de constitucionalidade? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 ago 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44917/o-que-e-o-fenomeno-da-abstrativizacao-do-controle-concreto-de-constitucionalidade. Acesso em: 22 nov 2024.
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