Resumo: Este artigo aborda, de forma sucinta, a questão referente à efetivação do direito à saúde, constitucionalmente previsto, pela via judicial. Procurou-se buscar as opiniões doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema e traçar um panorama de como os estudiosos e juízes têm entendido o assunto da “judicialização da saúde”, sem pretensões de profundidade ou esgotamento do assunto ou mesmo de expor nossa posição quanto ao tema.
Palavras-chave: Direito à Saúde. Judicialização da Saúde. Cláusula da Reserva do Possível. Ativismo Judicial.
Sumário: 1 Introdução. 2 “Judicialização da Saúde” e “Ativismo Judicial”. 3 Cláusula da Reserva do Possível. 4 Conclusão. Referências.
1 Introdução.
A discussão envolvendo a questão da efetividade dos direitos sociais, especialmente aquelas afetas ao direito à saúde, tem atingido grandes proporções entre os estudiosos do Direito, os profissionais da área de saúde e o público em geral.
Diante disso, é de bom alvitre traçar-se um breve quadro de como a doutrina jurídica e os tribunais pátrios têm entendido a matéria referente à “judicialização da saúde”, ou seja, a efetivação do direito constitucional à saúde por meio da via judicial, quando o Executivo se recusa a fazê-lo sponte propria.
Foi justamente tal traçado que buscou o presente artigo, que visa a proporcionar ao leitor um breve panorama da questão, condensando em um só lugar os diversos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, como forma de facilitar a consulta futura pelos estudiosos do tema.
Evitou-se propositadamente, assim, a pretensão de esgotamento do tema ou a exposição de nossa opinião pessoal, limitando-se, nesta empreitada, a mera exposição do cenário atual da discussão.
2 “Judicialização da Saúde” e “Ativismo Judicial”
Como já dito, a discussão envolvendo a questão da efetividade dos direitos sociais, especialmente aquelas afetas ao direito à saúde, tem atingido grandes proporções entre os estudiosos do Direito, os profissionais da área de saúde e o público em geral.
Alguns autores, como o Ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Roberto Barroso, têm tratado do assunto com algumas reservas, defendendo, em suma, que o Judiciário somente deveria determinar o fornecimento de medicações e procedimentos médicos constantes das listas elaboradas pelo Poder Público; a inclusão de novos medicamentos nas referidas listas somente deve se dar excepcionalmente e, mesmo assim, levando-se em conta as competentes avaliações técnicas, de ordens médica, administrativa e orçamentária, observadas as competências dos Poderes Legislativo e Executivo. Deveria o Judiciário, ainda, se atentar para o fornecimento apenas de medicamentos de eficácia comprovada, excluídos, portanto, aqueles ainda em fase experimental e os alternativos, sempre optando por substâncias disponíveis no Brasil, fornecidas por agentes situados em território nacional, e privilegiando os de menor custo, como os genéricos[1].
Tais ponderações, como aponta o insigne jurista, se justificam em razão da “... proliferação de decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis – seja porque inacessíveis, seja porque destituídos de essencialidade –, bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, associados a terapias alternativas.”[2].
Argumenta-se, também, que o “ativismo judicial”[3] arrojado coloca em risco a exequibilidade das políticas de saúde pública, redundando na desorganização da atividade administrativa, comprometendo, assim, a própria realização das diretrizes constitucionais relativas à garantia a saúde como direito fundamental, tendo em vista a universalidade desse tipo de prestação estatal e dos princípios relacionados ao orçamento e à reserva do possível. Além disso, a atuação judicial estaria a se sobrepor às ponderações já previa e abstratamente realizadas pelo legislador quando da criação da norma[4].
Não é este, contudo, o pensamento que nos parece dominante no Brasil.
Isto porque, argumenta a corrente dominante, no Brasil, a saúde é um direito líquido e certo do cidadão, conforme os arts. 196 e 197 da Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB.
Se o assunto foi constitucionalizado, pode (e deve) ser judicializado[5]. Na atualidade, inexistiria sentido não fazer valer normas que procuram proteger o maior bem que o ser humano possui (a vida), haja vista que o direito à saúde é conexo à dignidade da pessoa humana, fundamenta da República (art. 1º, III, da CRFB).
No sentido de garantir plena efetividade à disposição constitucional referente ao direito à saúde, é de se ver que, uma vez previsto na Constituição Federal como um direito social conferido aos cidadãos (coletivo e individualmente), trata-se de um direito hábil de ser reivindicado de forma imediata e efetiva. Nesse diapasão o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento, especialmente, no julgamento do Agravo Regimental em Recurso Extraordinário 271.286/RS, conforme se vê do voto do Relator, Ministro Celso de Mello:
O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. (AgR-RE 271.286-8/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 12/09/2000)
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao decidir o Agravo de Instrumento nº. 97.000511-3, Rel. Des. Sérgio Paladino, entendeu que o direito à saúde, garantido pela Constituição, seria suficiente para condenar o Estado a, liminarmente, custear o tratamento ainda experimental, nos Estados Unidos, de menor, vítima de distrofia muscular de Duchenne, totalizando US$ 163,000.00. Muito embora não houvesse comprovação da eficácia do tratamento da doença, de origem genética, aduziu que “Ao julgador não é lícito, com efeito, negar tutela a esses direitos naturais de primeiríssima grandeza sob o argumento de proteger o Erário.”.
Também o STJ na caneta do Min. João Otávio de Noronha, já havia se pronunciado, em 2003, em caso envolvendo criança portadora de Mielomeningocelite Infantil, doença congênita grave, e cujo tratamento adequado se encontrava disponível nos EUA. Em seu pronunciamento, o eminente ministro asseverou que “não se pode generalizar a aplicação da norma que veda ao Estado a concessão de auxílio financeiro para tratamento fora do País, a ponto de abandonar, à sua própria sorte, aqueles que, comprovadamente, não podem obter, dentro de nossas fronteiras, tratamento que garanta condições mínimas de sobrevivência digna”, consignando, ainda, que “não havendo no País equipamento terapêutico apropriado ao tratamento da enfermidade, justifica-se que o Estado disponibilize recursos para a sua aquisição no exterior.” (MS 8740/DF, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ 09/02/2004)
Como bem apontam Holmes e Sunstein, não faria muito sentido existir uma dicotomia entre direitos positivos e negativos[6] uma vez que para a proteção de todos necessitam de uma vigorosa atuação estatal e, ironizando, argumentam que se o Estado somente pudesse proteger os direitos negativos, como alguns defendem, não exerceria sua função, pois:
If rights were merely immunities from public interference, the highest virtue of government (so far as the exercise of rights was concerned) would be paralysis or disability. But a disabled state cannot protect personal liberties, even those that seem wholly ‘negative,’ such as the rights against being tortured by police officers and prison guards. […] All rights are costly because all rights presuppose taxpayers funding of effective supervisory machinery for monitoring and enforcement.[7].
Destarte, com a evolução do reconhecimento da efetividade dos direitos positivos há, paulatinamente, um crescimento das demandas, haja vista que a tendência natural revela que à medida que um antigo problema social desaparece ou diminui, um novo surge. E esta constatação pode ser aproveitada também quando verificada a complexidade dos cuidados demandados, os quais correspondem ao progresso das ciências médicas.
No entanto, ao tutelar o direito à saúde deve o Judiciário atentar para que, ao proteger o referido bem jurídico, não passe a substituir totalmente a competência do poder que possua competência originária para isso. De fato, o sistema de saúde se tornou “judicializado” porque chegam aos Tribunais questões que não deveriam chegar. Isso traz como consequência que: “O Judiciário, tanto quanto o paciente, é vítima da situação carente do Estado e se vê incumbido de administrar a escassez de recursos públicos, quando essa não é a sua função.”[8].
Cabe ressaltar que, ao exercer função imprópria (sem inclusive requerer como os pacientes intentem o acesso aos seus direitos mediante as vias administrativas), o Judiciário passaria a exercer não subsidiariamente a função de fiscalizador das decisões dos outros poderes, passando a exercê-las de forma plena. Como bem assevera Germano Schwartz:
A atuação judicial far-se-á em um momento posterior ao da constatação de que as ações positivas estatais não garantiram o direito à saúde. É, portanto, uma atuação secundária (mas não suplementar) em relação ao dever dos Poderes Públicos – especialmente o Executivo, pois inexistiria necessidade de uma decisão derivada do sistema jurídico caso tais Poderes cumprissem o seu papel.[9]
Assim, apesar da ausência de meios e não ser do Poder Judiciário a responsabilidade originária para concretizar o direito à saúde, nossos tribunais exercem relevante papel de agentes de mudança social, ao exigirem fidelidade dos demais poderes aos preceitos constitucionais, que preveem a concessão de um mínimo existencial de saúde e dignidade aos seres humanos.
Poder-se-ia indagar se tal “judicialização dos direitos” sociais não significaria evidente intromissão do Judiciário na seara do Executivo, a configurar indesejável ativismo judicial.
Entendemos que não. De fato, a escolha de políticas públicas é atribuição do Poder Executivo, por meio de um juízo de conveniência e oportunidade, que leva em conta as necessidades prioritárias da população e os recursos orçamentários.
Porém, não viola a separação dos poderes a interferência do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas que visam a efetivar direitos fundamentais.
Primeiro, porque o judiciário, entre suas atribuições constitucionais, tem o dever de proteger os direitos fundamentais tanto no aspecto negativo (não violação) quanto no aspecto positivo (efetiva prestação).
Segundo, porque cada poder (função) do Estado tem a atribuição de controlar uns aos outros, conforme o princípio da harmonização dos poderes (art. 2º da CRFB/88) e a teoria dos freios e contrapesos.
Por fim, é entendimento pacífico no Supremo Tribunal Federal – STF, que o judiciário tem legitimidade para controlar e intervir nas políticas públicas que visem a garantir o mínimo existencial, conforme restou decidido na ADPF 45/DF:
A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do poder judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao supremo tribunal federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Carácter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da “reserva do possível”. Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do “mínimo existencial”. Viabilidade instrumental da argüição de Descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração). (ADPF 45-MC, decisão monocrática do Rel. Min. Celso de Mello, DJU 04/05/2004)
Além disso, não se pode subtrair do cidadão o direito constitucional de acesso ao judiciário quando este se sentir ameaçado ou lesado, conforme o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV da CRFB), que ganha ainda mais força quando se trata da proteção de direitos fundamentais.
3 Cláusula da Reserva do Possível.
De tudo que foi dito decorre, logicamente, que o Estado não pode alegar a “reserva do possível” como justificativa de não implementar políticas públicas que visam a garantir o mínimo existencial. Nestes casos, o judiciário poderá interferir no ato administrativo, principalmente porque se trata de garantir os fins do Estado (art. 3º da CRFB), de modo que o impedir seria inviabilizar a vontade do próprio constituinte.
Tome-se como exemplo disso a sempre comum alegação da falta de verbas para concretização do direito à saúde, a qual o Estado tenta acampar sob o manto da “cláusula da reserva do possível”.
Derivado originalmente da doutrina germânica, bem assim como da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, o “princípio da reserva do possível”, determina que a satisfação de certos direitos exigíveis do Poder Público é condicionada à disponibilidade de recursos financeiros para a sua satisfação material, isto é, sua execução em casos práticos. A doutrina e certas decisões nacionais vêm acolhendo sem incômodo o referido princípio, aceitando-o indiscriminadamente e ensejando verdadeiro obstáculo à efetividade, por exemplo, dos direitos sociais[10].
Não obstante, a realidade jurídica e sociocultural alemã é muito diversa da realidade concreta, histórica e social do Brasil. Naquele país europeu os cidadãos contam com uma efetiva assistência social, além de uma Administração Pública consciente de suas obrigações e zelosa com seus deveres. A dignidade da pessoa humana, bem como os direitos ligados à saúde, por exemplo, não são repetida e irresponsavelmente ignorados pelo Poder Público, como ocorre muitas vezes no Brasil.
De efeito, é notória e evidente a mal sucedida Administração Pública brasileira em diversos segmentos da sociedade, mostrando-se ineficaz, indiferente e inexistente em muitas situações. A área da saúde pública e demais direitos sociais é uma delas. Os recursos financeiros públicos são não poucas vezes mal aplicados, como em gastos em publicidade política tendenciosa, desvios de valores por corrupções as mais variadas e estarrecedoras, mordomias de certas autoridades públicas etc. tudo a impedir a justa aplicação em setores carentes de investimentos, como é o da área da saúde. É consternador que possuindo vultosa soma de recursos financeiros, advinda sobremaneira de enorme carga tributária, queira o Estado alegar que a disponibilidade orçamentária não é suficiente para custear a execução material de direitos fundamentais, muitas vezes mesmo em seus reflexos mínimos.
Assim, a evocação da cláusula da reserva do possível pode acabar por negar o acesso de vários cidadãos aos seus direitos fundamentais, como à saúde e também à dignidade, permitindo ao Estado, inerte e muitas vezes omisso, esquivar-se de suas obrigações.
Analisando o tema, vê-se que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem se guiado no sentido de não aceitar a alegação da “cláusula da reserva do possível” quando esta importar em tornar inútil a previsão do direito fundamental, i.e., quando se fira seu núcleo essencial[11].
Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida àquela Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais – que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. Celso de Mello) –, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional.
Por isso que no julgamento da já citada ADPF 45/DF, o Rel. Min. Celso de Mello, em decisão monocrática, bem deixou assentado que:
... os condicionamentos impostos, pela cláusula da ‘reserva do possível’, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração – de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos. Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. (ADPF 45-MC, decisão monocrática do Rel. Min. Celso de Mello, DJU 04/05/2004)
A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental (RTJ 185/794-796, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno).
Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.
Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” — ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível — não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.
Tratando-se de típico direito de prestação positiva, que se submete ao conceito de liberdade real ou concreta, a proteção à saúde — que compreende todas as prerrogativas, individuais ou coletivas, referidas na Constituição da República (notadamente em seu art. 196) — tem por fundamento regra constitucional cuja densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal comando, o Poder Público disponha de um amplo espaço de discricionariedade que lhe enseje maior grau de liberdade de conformação, e de cujo exercício possa resultar, paradoxalmente, com base em simples alegação de mera conveniência e/ou oportunidade, a nulificação mesma dessa prerrogativa essencial.
Tal como o STF pôde enfatizar (Pet 1.246/SC, Min. Celso de Mello, decisão monocrática), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde – que se qualifica como direito subjetivo inalienável a todos assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, “caput”, e art. 196) – ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo, uma vez configurado esse dilema, que razões de ordem ético-jurídica impõem, ao julgador, uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humanas.
Assim, é que no julgamento do RE 393.175-AgR/RS, Rel. Min. Celso de Mello, o STF deixou firmado entendimento de que:
O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode convertê-la em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, ‘caput’, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. (RE-AgR 393.175/RS, Rel. Min. Celso de Mello, j. 12/12/2006)
O sentido de fundamentalidade do direito à saúde — que representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas — impõe, ao Poder Público, um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional.
É por tal razão que o STF tem proferido inúmeras decisões sempre a fazer prevalecer (RTJ 175/1212-1213, v. g.), o direito fundamental à vida, de que o direito à saúde representa um indissociável consectário, como o atestam os seguintes julgamentos, todos da relatoria do Min. Celso de Mello: RE 556.886/ES (adenocarcinoma de próstata), AI 457.544/RS (artrite reumatóide), AI 583.067/RS (cardiopatia isquêmica grave), RE 393.175-AgR/RS (esquizofrenia paranóide), RE 198.265/RS (fenilcetonúria), AI 570.455/RS (glaucoma crônico), AI 635.475/PR (hepatite “c”), AI 634.282/PR (hiperprolactinemia), RE 273.834-AgR/RS (HIV), RE 556.288/ES (insuficiência coronariana), AI 620.393/MG (leucemia mielóide crônica), AI 676.926/RJ (lipoparatireoidismo), AI 468.961/MG (lúpus eritematoso sistêmico), RE 568.073/RN (melanoma com acometimento cerebral), RE 523.725/ES (migatia mitocondrial), AI 547.758/RS (neoplasia maligna cerebral), AI 626.570/RS (neoplasia maligna cerebral), RE 557.548/MG (osteomielite crônica), AI 452.312/RS (paralisia cerebral), AI 645.736/RS (processo expansivo intracraniano), RE 248.304/RS (status marmóreo), AI 647.296/SC (transplante renal), RE 556.164/ES (transplante renal), RE 569.289/ES (transplante renal).
Da jurisprudência dominante do STF, pois, se verifica que, sempre quando contraposta a uma prerrogativa fundamental estiver um interesse financeiro e secundário do Estado, o STF tem dado prevalência aquela posição que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humanas.
Isto porque tais direitos sociais (como o direito à saúde) sempre devem prevalecer sobre os interesses patrimoniais do Estado, quando estes parecerem entrar em colisão.
4 Conclusão.
A doutrina e jurisprudência hoje dominante no Brasil, principalmente no seio do Supremo Tribunal Federal, demonstra que é possível ao Judiciário determinar ao Executivo que efetive o direito constitucional à saúde, obrigando o Estado a custear tratamentos médico-hospitalar, remédios, etc., e a tendência de não aceitar a alegação da “cláusula da reserva do possível” quando esta importar em tornar inútil a previsão do direito fundamental, i.e., quando se fira seu núcleo essencial.
Referências
BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Revista Jurídica UNIJUS, Uberaba, v. 11, n. 15, p. 13-38, nov. 2008.
CECCONELLO, Douglas. Sistema de Saúde se tornou judicializado. Diário da Justiça, Porto Alegre, 24 de agosto de 2004, p. 1.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. Salvador: Jus Podivm, 2008.
HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. New York: Norton & Co, 1999.
SCHWARTZ, Germano. Direito à Saúde: Efetivação em uma Perspectiva Sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
VIANNA, Felipe Augusto Fonseca. Direitos Fundamentais e Competência de Reforma Constitucional: os limites materiais das emendas à Constituição. São Paulo: Baraúna, 2014.
______. O Direito Fundamental à Liberdade de Consciência e a Impossibilidade de Imposição de Valores Morais pelo Estado através de Normas Penais, Revista Jurídica do Ministério Público do Estado do Amazonas, v. 12, p. 157-179, 2011, passim.
[1] Cf., para o resumo do pensamento do brilhante constitucionalista, BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Revista Jurídica UNIJUS, Uberaba, v. 11, n. 15, p. 13-38, nov. 2008.
[2] BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Revista Jurídica UNIJUS, Uberaba, v. 11, n. 15, nov. 2008, p. 14.
[3] Como ativismo judicial designa-se uma postura proativa do Poder Judiciário, que interfere de maneira regular e significativa nas opções dos demais poderes (Legislativo e Executivo). A expressão foi utilizada pela primeira vez em 1947, pelo jornalista Arthur M. Schlesinger Jr., na Revista Fortune, com o intuito de identificar o perfil dos juízes da Suprema Corte Americana. O jornalista identificou dois grupos de juízes na Corte Americana, quais sejam, o grupo de Black-Douglas e o grupo de Frankfurter-Jackson. O primeiro preocupava-se em solucionar os casos de acordo com a sua concepção social, isto é, enxergava a Corte como um meio de obter os resultados socialmente desejáveis. O segundo, ao contrário, defendia o uso da Corte como um instrumento para permitir que os outros Poderes realizassem a vontade popular, apresentando, desta forma, uma atitude de autocontenção judicial.
[4] BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Revista Jurídica UNIJUS, Uberaba, v. 11, n. 15, nov. 2008, p. 14.
[5] Por judicialização, entende-se a possibilidade de se levar ao conflito à apreciação do Poder Judiciário.
[6] Em termos de direitos fundamentais, a doutrina jurídica costuma diferenciar os chamados direitos de defesa dos direitos à prestação. Os direitos de defesa permitem ao indivíduo resistir a uma possível atuação do Estado. A essência do direito está na proibição imediata de interferência imposta ao Estado. Trata-se de um direito negativo, pois gera a obrigação negativa endereçada ao Estado, a obrigação de deixar de fazer algo. É uma obrigação de abster-se da intervenção na esfera de liberdade garantida pela Constituição. Os direitos a prestações englobam os que permitem aos indivíduos exigir determinada atuação do Estado, no intuito de melhorar suas condições de vida e garantir os pressupostos materiais ou jurídicos necessários para exercer sua liberdade. Sobre o tema, conferir VIANNA, Felipe Augusto Fonseca. Direitos Fundamentais e Competência de Reforma Constitucional: os limites materiais das emendas à Constituição. São Paulo: Baraúna, 2014, p. 51-53; Idem, O Direito Fundamental à Liberdade de Consciência e a Impossibilidade de Imposição de Valores Morais pelo Estado através de Normas Penais, Revista Jurídica do Ministério Público do Estado do Amazonas, v. 12, p. 157-179, 2011, passim.
[7] HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. New York: Norton & Co, 1999, p. 17. Tradução livre: “Se os direitos fossem apenas imunidades a interferência pública, a maior virtude de governo (até onde o exercício de direitos diz respeito) seria paralisia ou deficiência. Mas um estado deficiente não pode proteger as liberdades pessoais, até mesmo aquelas que parecem totalmente ‘negativas’, como os direitos contra a ser torturado por policiais e agentes penitenciários. [...] Todos os direitos são custosos porque todos os direitos pressupõem contribuintes financiando mecanismos de controle eficazes para monitoramento e fiscalização.”.
[8] CECCONELLO, Douglas. Sistema de Saúde se tornou judicializado. Diário da Justiça/RS, Porto Alegre, 24 de agosto de 2004, p. 1.
[9] SCHWARTZ, Germano. Direito à Saúde: Efetivação em uma Perspectiva Sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 162.
[10] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. Salvador: Jus Podivm, 2008, p. 714.
[11] Acerca da violação do núcleo essencial do direito fundamental, cf. VIANNA, Felipe Augusto Fonseca. Direitos Fundamentais e Competência de Reforma Constitucional: os limites materiais das emendas à Constituição. São Paulo: Baraúna, 2014, p. 202-212.
Mestrando em Criminal Justice pela California Coast University. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amazonas. Professor das Escolas Atualizar Saúde e Protetiva Saúde. Autor de obra doutrinária e artigos jurídicos publicados em periódicos especializados.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIANNA, Felipe Augusto Fonseca. A Saúde como Direito Fundamental e sua Efetivação pelo Judiciário: Breve análise do panorama no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 ago 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44925/a-saude-como-direito-fundamental-e-sua-efetivacao-pelo-judiciario-breve-analise-do-panorama-no-brasil. Acesso em: 26 nov 2024.
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