RESUMO: O Estado brasileiro atualmente encontra-se sob uma crescente insurgência dos cidadãos através do Poder Judiciário para garantia de seus direitos fundamentais, notadamente o da saúde. A judicialização da saúde em nosso país surgiu no início da década de noventa com a efetiva exposição dos casos de contanimação por HIV/AIDS. Desde então o judiciário tem sido cada vez mais acionado para satisfação dos direitos sociais, na maioria das vezes através de ações individuais. Destaca-se dentre os feitos ajuizados pelos usuários os que buscam por medicamentos, que constituem grande parte dos casos apresentados. Embora as ações e serviços públicos de saúde sejam prestados pelo Sistema Único de Saúde é certo que o Estado tem se mostrado ineficiente para satisfação das necessidades sociais, agindo de maneira omissa ou até mesmo oferecendo terapêuticas ineficazes aos agravos de saúde apresentados. O Estado para se defender das demandas tem se valido da Teoria da Reserva Possível sob a alegação de que as necessidades sociais são ilimitadas e os recursos orçamentários são escassos. Contudo, conforme entendimento da Suprema Corte, o poder público não pode se valer de tal premissa sob pena de desrespeito aos direitos fundamentais e ao princípio da dignidade da pessoa humana, salvo situações de comprovada exaustão financeira, que serão analisadas no caso concreto. Nesse mesmo diapasão o Poder Judiciário não tem se furtado à missão constitucional e, via de regra, tem deferido as pretensões dos usuários em face do Estado, inclusive através da antecipação de tutela, em que pese as cautelas adotadas pelos Magistrados no sentido de exigir a comprovação da urgência da demanda e do agravo de saúde suportado e a insuficiência ou a ineficácia das ações e serviços de saúde oferecidos pelo SUS.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Judicialização da Saúde. Estado. Sistema Único de Saúde.
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 ao dispor sobre os direitos e garantias fundamentais elenca, dentre outros, os direitos e deveres individuais e coletivos e os direitos sociais.
Bem assim preleciona a Carta Magna:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Ainda no que tange ao direito à saúde a Constituição Federal ao disciplinar a ordem social o faz em seção específica, correspondente aos artigos 196 a 200, merecendo destaque:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Bem assim conforme se vislumbra do texto constitucional o Estado assumiu a responsabilidade de prestação dos serviços públicos de saúde, tendo garantido a todos aos cidadãos o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Nessa seara de entendimento o mestre Paulo Lenza destaca:
Como se sabe, a doutrina aponta a dupla vertente dos direitos sociais, especialmente no tocante à saúde, que ganha destaque, enquanto direito social, no texto de 1988: a) natureza negativa: o Estado ou terceiros devem se abstrair de praticar atos que prejudiquem terceiros; b) natureza positiva: fomenta-se um Estado prestacional para implementar o direito social. (LENZA, 2009, p.759)
No Brasil a assistência à saúde é prestada através do Sistema Único de Saúde – SUS, regulamentado através da Lei 8080/90, conhecida como Lei Orgânica da Saúde, que elenca entre seus princípios a universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de complexidade e a integralidade da assistência.
Contudo relevante questão se apresenta no momento em que Estado deixa de fornecer aos cidadãos a devida assistência à saúde em quaisquer de suas vertentes, a exemplo de medicamentos, internações, cirurgias, consultas especializada e outros.
A partir do surgimento da desassistência os cidadãos, notadamente os menos favorecidos financeiramente, buscam por socorro junto ao Poder Judiciário, através de ações individuais e até mesmo de ações coletivas, propostas por provocação dos órgãos competentes, tais como o Ministério Público e a Defensoria Pública.
Com o surgimento das demandas perante o Poder Judiciário passou-se a adotar a recorrente expressão Judicialização da Saúde, dando início a discussões acerca das conseqüências das decisões judiciais dentro do sistema público de saúde.
Nesse diapasão observa-se que muito se tem falado a respeito da Teoria da Reserva do Possível, contudo sobram questionamentos quanto à sua legitimidade frente aos comandos constitucionais que disciplinam a matéria.
Lado outro, constata-se que cada vez mais os cidadãos buscam a guarida judicial para implementar seus direitos e terem acesso às ações e serviços públicos de saúde de que necessitam e que o Estado insiste em ignorar.
Dentro do universo judicial o Estado insurge-se, no mais das vezes, em sob alegação de desrespeito ao princípio da separação dos poderes, bem como sob o argumento de que a indevida interferência judicial acarretará danos à coletividade vez que para atendimento das demandas judiciais individuais resta prejudicado o interesse coletivo e a programação administrativa estabelecida.
Dessa feita, pretende-se no curso deste trabalho analisar a questão envolvendo a Judicialização da Saúde nos seus aspectos positivos e negativos, passando por uma análise das garantias constitucionais, da estruturação do sistema público de saúde, dos meios de acesso à Justiça para garantia do direito à vida e à saúde e da Teoria da Reserva do Possível.
Ademais não se pode perder de vista que o direito à vida é o direito fundamental por excelência haja vista que sua ausência inviabiliza o gozo de quaisquer outros direitos constitucionalmente garantidos.
Noutro giro, considerando as constantes notícias envolvendo a malversação de recursos públicos da área da saúde, não se pode olvidar da necessidade da tutela judicial para garantia dos cidadãos frente a um Estado muitas vezes ineficiente.
Nessa seara de entendimento o presente estudo volta-se a analisar os diversos aspectos envolvendo a questão da Judicialização da Saúde merecendo destaque o fato de que é o próprio Estado que elenca os medicamentos a serem oferecidos pelo sistema único de saúde, assim como contratualiza com hospitais e clínicas para realização de procedimentos e exames, muitas vezes alheio à realidade e necessidade social.
Pontofinalizando, não há que se falar em indevida ingerência judicial na seara administrativa na medida em que, em que pese a organização estatal do sistema público de saúde, nenhuma norma administrativa tem condão de contrariar os comandos constitucionais garantidores dos direitos fundamentais.
I - DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A Constituição Federal de 1988 dedica seu título II aos Direitos e Garantias Fundamentais, disciplinando-os em cinco categorias: direitos individuais e coletivos (capítulo I), direitos sociais (capítulo II), direitos de nacionalidade (capítulo III), direitos políticos (capítulo IV) e direitos relacionados à participação em partidos políticos e à sua organização (capítulo V).
Observa-se que a Carta Magna adotou a sistemática de utilização do termo direitos fundamentais como gênero, que abrange as espécies dos direitos individuais, coletivos, sociais, nacionais e políticos.
A maioria da doutrina aponta como origem dos direitos fundamentais a Magna Carta Inglesa do ano de 1215, contudo essa se limitou a assegurar poder político aos barões mediante a restrição de poderes do rei. Já com a eclosão da Revolução Francesa, seguida da Declaração dos Direitos do Homem e das Declarações dos Estados Americanos, ao firmarem sua independência da Inglaterra, tem-se mais claramente o surgimento das constituições liberais.
A atual Constituição Federal brasileira trouxe inovação em relação às suas antecessoras ao fixar o título dos direitos fundamentais antes do referente à organização do Estado, denotando sua importância frente à nova ordem democrática estabelecida no país, além de tutelar os direitos coletivos e difusos e impor deveres ao lado de direitos individuais e coletivos.
Ao estabelecer a noção jurídica do que vem ser direitos e garantias fundamentais, Uadi Lammêgo Bulos assim se posiciona:
Ao se utilizar da locução direitos fundamentais do homem, quer-se aduzir, com seu emprego, o complexo de prerrogativas e institutos inerentes à soberania popular, que garantem a convivência digna, livre e igualitária de qualquer indivíduo, independente do credo, raça, origem ou cor. Os direitos são fundamentais, porque sem eles os seres humanos não têm base normativa para ver realizadas, no plano concreto, suas aspirações e desejos viáveis de tutela constitucional. Ademais, são fundamentais, porque sem eles a pessoa humana não se realiza, não convive, e, em alguns casos, nem sobrevive. Como ficaria a igualdade, a legalidade, a liberdade, o respeito à dignidade, a tutela do patrimônio sem a constitucionalização, em bases legislativas sólidas, desses direitos impostergáveis da pessoa humana? (BULLOS, 2012, p. 87).
Os direitos fundamentais dada a sua importância para a sustentação do Estado Democrático Brasileiro apresentam como principais características: a imprescritibilidade, haja vista que não desaparecem pelo com decurso do tempo, tampouco deixam de ser exigíveis pela falta de uso; a inalienabilidade, na medida em que não são passíveis de transferência a outrem, sendo, portanto, intransferíveis e inegociáveis; a irrenunciabilidade, via de regra, os direitos fundamentais não podem ser objeto de renúncia, mesmo que não sejam utilizados adequadamente; a inviolabilidade, como são direitos constitucionalmente garantidos os direitos fundamentais não podem ter sua observância restringida por normas infraconstitucionais ou por atos de autoridade pública.
Ainda, no que tange às características dos direitos fundamentais tem-se a universalidade, vez que esses abrangem todos os indivíduos, se estendendo a todas as parcelas da população, independente de sua nacionalidade, cor, raça, credo ou convicção política; e a complementaridade ou limitabilidade traço presente na medida em que os direitos fundamentais não devem ser interpretados isoladamente e sim de maneira conjunta de modo a alcançar os objetivos da constituição, amenizando eventual colisão, vez que não se constituem direitos absolutos.
Tradicionalmente os direitos fundamentais são classificados por dimensões ou gerações, de acordo com o momento histórico de seu surgimento, porém independente da geração todos são igualmente tratados.
A primeira geração dos direitos fundamentais destaca as obrigações negativas, dando ênfase ao princípio da liberdade, correspondendo ao modelo clássico de Constituição. Apresentam-se como limites impostos à atuação do Estado e representam os meios de defesa das liberdades individuais.
Os direitos fundamentais de primeira dimensão surgiram a partir das revoluções burguesas do século XVIII, notadamente da Revolução Francesa (1789) e têm como exemplo o direito à liberdade de locomoção, à vida, à propriedade, à inviolabilidade de domicílio e de correspondência, dentre outros.
Já os direitos fundamentais de segunda geração acentuam o princípio da igualdade e correspondem aos direitos sociais. Representam uma prestação positiva do Estado em prol dos menos favorecidos pela ordem social e econômica.
Pode-se afirmar que a segunda geração dos direitos fundamentais surgiu a partir da luta da classe social dos trabalhadores e teve suas primeiras aparições na Constituição Americana de 1917 e na Constituição Alemã de 1919. O salário mínimo, a aposentadoria, a previdência social, o décimo terceiro salário e as férias remuneradas são exemplos de direitos sociais contemplados nos direitos fundamentais de segunda categoria.
A terceira geração dos direitos fundamentais corresponde aos direitos de fraternidade, consagrando os princípios da solidariedade e da fraternidade. Constituem-se em direitos novos voltados à proteção dos interesses de um determinado grupo.
Os direitos fundamentais de terceira geração tiveram como marco inicial o constante conflito travado em razão de processos de industrialização e urbanização nos quais a tutela jurídica voltada apenas para a proteção dos direitos individuais não se mostrava adequada à solução das celeumas.
A Constituição Federal de 1988 foi a primeira constituição brasileira a inserir em seu texto a proteção dos direitos difusos e coletivos, sendo esses definidos no Código de Defesa do Consumidor. São exemplos de direitos fundamentais de terceira geração o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à defesa do consumidor, à paz, à autodeterminação dos povos, ao patrimônio comum da humanidade, e outros.
A doutrina moderna aponta ainda para a existência da quarta geração dos direitos fundamentais, esses decorrentes do processo de globalização econômica, tais como direito à democracia e à informação, contudo o tema ainda não se encontra pacificado.
Inicialmente os direitos fundamentais apresentavam como destinatários somente as pessoas naturais haja vista que a primeira geração desses direitos consagrava as limitações impostas ao Estado em favor dos indivíduos, contudo, atualmente, com o avanço do ordenamento jurídico constitucional a pessoas jurídicas também são consideradas titulares de direitos fundamentais, inclusive o próprio Estado.
Ademais, considerando que a supremacia da Constituição Federal encontra-se atrelada à soberania do Estado, pode-se afirmar que os direitos fundamentais aplicam-se a todos que se encontram em solo brasileiro, independente da nacionalidade ou se residentes ou em trânsito no país.
Traço marcante vislumbrado na disciplina dos direitos fundamentais apresenta-se no artigo 5º, § 1º, da Carta Magna, que estabelece que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Contudo, na prática, constata-se a existência de direitos fundamentais de eficácia limitada, ou seja, dependentes de regulamentação para produção de efeitos, abrindo azo para o ajuizamento, conforme o caso, de mandado de injunção e ação inconstitucionalidade por omissão para sua efetiva implementação.
Igualmente destaca-se que os direitos fundamentais não apresentam um rol taxativo e sim uma categoria jurídica aberta, passível de diversas interpretações voltados à compreensão de seu conteúdo, que pode sofrer variações em razão do momento histórico e político de vivência.
Lado outro, muito embora seja flagrante a importância dos direitos fundamentais para a garantia do Estado Democrático de Direito sublinha-se o fato de que esses possuem natureza relativa, encontrando limites nos demais direitos constitucionalmente regulados, o que enfatiza a ausência de seu caráter absoluto.
Nesse mesmo diapasão, constata-se que a própria Lei Fundamental apresenta restrições legais ao exercício dos direitos e garantias fundamentais que se sustentam na necessidade da garantia do interesse público.
1.1 Dos Direitos e Garantias Individuais e Coletivos e dos Direitos Sociais (Direito à Saúde)
Dentro do rol de direitos e garantias fundamentais, conforme acima explanado, apresentam-se os direitos individuais e coletivos, os direitos sociais, a nacionalidade e os direitos políticos, sendo certo que o direito fundamental por excelência é o direito à vida, haja vista que sua ausência inviabiliza o exercício dos demais.
O direito fundamental à vida pode ser reconhecido sob o aspecto biológico, que visa a proteção da integridade física e psíquica, bem como sob um aspecto mais amplo, que busca garantir condições a existência humana digna através do oferecimento de condições materiais e espirituais mínimas de sobrevivência.
Dessa forma destaca-se a importância dos direitos fundamentais para o exercício da cidadania e para a garantia da dignidade da pessoa humana, e de um modo geral, de todos os fundamentos e objetivos da Republica Federativa do Brasil.
A título de enriquecimento, cabe trazer à baila as lições de Uadi Lammêgo Bulos:
A dignidade da pessoa humana é o valor constitucional supremo que agrega em torno de si a unanimidade dos demais direitos e garantias fundamentais do homem, expressos nesta Constituição. Daí envolver o direito à vida, os direitos pessoais tradicionais, mas também os direitos sociais, os direitos econômicos, os direitos educacionais, bem como as liberdades públicas em geral (BULLOS, 2012, p. 58).
Como é sabido o artigo 5º traz em seu bojo a maioria dos direitos individuais e coletivos, apresentando em seu caput cinco direitos fundamentais básicos que serão objeto de desdobramentos no decorrer do texto constitucional, sendo eles: o direito à vida, o direito à liberdade, o direito à igualdade, o direito à segurança e o direito à propriedade.
Lado outro os direitos sociais, como já acima apontado, reconhecidos como direitos fundamentais de segunda geração, constituem-se em liberdades positivas de observância obrigatória pelo Estado Democrático de Direito, e têm assento constitucional nos artigos 6º a 11 da Carta Magna, merecendo destaque o fato de que o direito à saúde é regulado nos artigos 196 a 200.
Dessa feita a Carta Magna ao prelecionar sobre o direito à saúde dispõe que essa é direito de todos e dever do Estado, que a garantirá através de políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e do acesso universal e igualitário às ações e serviços públicos de saúde.
Atesta ainda a Constituição Federal que as ações e serviços públicos de saúde são de relevância pública, sua disciplina será efetivada através de lei regulamentadora, bem como que sua execução poderá ser feita diretamente pelo Poder Público ou através de terceiros.
No Brasil a saúde pública é implementada através do SUS – Sistema Único de Saúde, regulamentado Lei 8.080/90 e por normas específicas, exteriorizadas através de portarias e atos do Ministério da Saúde. O SUS é financiado com recursos do orçamento da seguridade social da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, além de outras fontes de custeio vinculadas.
A assistência à saúde é livre à iniciativa privada, sendo permitido às instituições privadas participaram de forma complementar do SUS, através da celebração de contrato de direito público ou convênio, com prioridade de participação para entidades filantrópicas e sem fins lucrativos, sendo vedada a destinação de recursos públicos para auxílio ou subvenção a instituições privadas com fins lucrativos.
A Carta Maior proíbe a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no Brasil, à exceção dos casos expressamente autorizados por lei.
No que tange à remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento o texto constitucional explicita que as condições e requisitos serão estabelecidos através de lei, proibindo expressamente todo e qualquer tipo de comercialização. Lei específica também disciplinará a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados.
Bem assim tem-se que através da Magna Carta de 1.988, também conhecida como Constituição Cidadã, inúmeros direitos foram garantidos aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, contudo muitas vezes as normas garantidoras perdem sua eficácia frente a desorganização e incompetência da Administração Pública.
Especificamente nos casos envolvendo o direito à saúde muitos são os desdobramentos de seu não atendimento na seara judicial, haja vista que muitas vezes somente com determinação judicial as ações e serviços públicos serão implementados.
II - DO SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE
2.1Dos Antecedentes Históricos
O Brasil no período colonial não primou pela organização do espaço social não se voltando o aparelho do Estado para as relações de saúde envolvendo a sociedade, sendo certo que somente a partir do século XX tiveram início as políticas públicas de saúde.
Com a modernização trazida pela Proclamação da República em 1889 a medicina passou a ser vista como importante parceira para geração de riquezas na medida em que através da implementação de políticas sanitárias estaria garantida a melhora das condições de saúde individual e coletiva.
Contudo tem-se o Estado Novo como um marco para o surgimento das políticas públicas sociais, com o estabelecimento de leis trabalhistas, merecendo destaque a criação no ano de 1933 do primeiro Instituto de Aposentadoria e Pensões – IAPM, da classe dos marítimos, que garantia aos beneficiários aposentadoria, pensão por morte, assistência médica e socorros farmacêuticos.
Já com a promulgação da Constituição de 1946 a saúde pública pautou-se por uma estrutura centralizada com múltiplos programas e serviços verticalizados para implementação de campanhas e ações sanitárias, merecendo destaque a criação, em 1953 do Ministério da Saúde, a efetivação da campanha nacional contra a lepra e a erradicação de demais doenças, tais como a malária, além da realização da 3ª Conferência Nacional de Saúde, em 1963.
Contudo, com o declínio da democracia e a vigência dos governos militares, no período de 1964 e 1984, acentuou-se o predomínio financeiro das instituições previdenciárias e a crescente mercantilização da saúde pública, que se tornou conservadora e ineficiente.
Mas décadas de 70 e 80, com a intensificação dos movimentos sociais, que também contestavam o sistema de saúde governamental e pugnavam pela democratização do sistema, dada as flagrantes deficiências aliadas à crise previdenciária, foi criado o Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária (CONASP), que tinha por atribuição a organizar e racionalizar a assistência médica, além de moralizar todo o sistema de saúde pública.
A referida moralização do sistema público de saúde efetivou-se através da implementação das Ações Integradas de Saúde (AIS) que trouxe relevantes avanços da rede básica ambulatorial, na contratação de recursos humanos, na articulação com os serviços municipais e na revisão da participação dos serviços privados.
Com fim do regime militar e o advento da Nova República as questões do movimento sanitário passaram a ouvidas e efetivadas, notadamente, com a convocação da 8ª Conferência Nacional de Saúde, na qual restou constatada a necessidade de reformulação profunda do sistema público de saúde, com a ampliação do conceito de saúde e sua correspondente ação institucional.
Dentre os pontos relevantes tratados na referida conferência nacional destacam-se a discussão referente à natureza do sistema de saúde, se público ou privado; a definição do conceito de saúde como “resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acessos aos serviços de saúde”, conceito esse que serviu alicerce para a elaboração da Constituição Federal vigente, elaborada pela Assembléia Nacional Constituinte.
Destaca-se ainda dentre os debates ocorridos na 8ª Conferência Nacional de Saúde o envolvendo a unificação do INAMPS com o Ministério da Saúde e, principalmente, a aprovação da criação do Sistema Único de Saúde – SUS, que se constituiu como um novo arcabouço institucional e selou definitivamente a separação entre previdência e a saúde.
2.2 A Constituição Federal e o Sistema Único de Saúde
Ao dispor sobre o direito à saúde a Constituição Federal estabelece que esse é dever Estado, nesse caso entenda-se Estado em sentido amplo, abrangendo como só o governo federal, como também os demais entes federativos, estados e municípios e distrito federal.
O Sistema Único de Saúde tem assento constitucional, contudo sua regulamentação é disciplinada pela Lei 8080/90, que preleciona sobre as condições de promoção, proteção e recuperação da saúde, além de basilar a regulação das ações e serviços públicos de saúde em todo o território nacional.
A lei 8080/90, também conhecida como lei orgânica da saúde, dispõe ainda sobre a organização, direção e a gestão do SUS, definição das competências e das atribuições das três esferas de governo, funcionamento e participação complementar dos serviços privados de assistência à saúde, política de recursos humanos e recursos financeiros, gestão financeira, planejamento e orçamento.
Outro importante instrumento legal aplicado ao SUS é a lei 8142/90, que trata da participação da comunidade na gestão do sistema, instituindo as conferências de saúde e os conselhos de saúde, além dispor sobre transferências intergovernamentais recursos financeiros na área da saúde.
Como é sabido a Constituição Federal ao definir a saúde como direito social dispõe expressamente:
Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Definida a saúde e a assistência aos desamparados como direitos sociais constitucionais e, dotando-os da característica da fundamentalidade, o artigo 196 da mesma Carta Magna identificou a responsabilidade do Poder Público por sua manutenção, decretando in verbis:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Elevou a Constituição Federal de 1988, pela primeira vez na história brasileira, a saúde à condição de direito fundamental, acompanhando os exemplos pioneiros da Carta italiana de 1984 e o Texto português.
Antes, porém, o País já subscrevera a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU), e suas disposições, segundo as quais, a saúde resta reconhecida como direito fundamental ao asseverar que é condição necessária à vida digna. Portanto, merece proteção como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana.
A própria Constituição da República cuidou, ainda, de tutelar o direito ao acesso dos cidadãos a todos as ações, procedimentos e serviços preventivos ou curativos. É o que se verifica do comando constitucional inserto no art. 198:
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais.
Uma vez erigida a princípio fundamental a dignidade do homem, a disposição constitucional que garante o direito à saúde possui, portanto, plena e imediata eficácia, sendo auto-aplicável, conforme previsão expressa insculpida no parágrafo 1º do art. 5º da própria Magna Carta:
§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
Não se constitui em mera norma programática. Não significa mera promessa de atuação estatal. Insere-se dentre as prestações positivas do Estado, enunciadas pela Carta Magna e que possibilitam melhores condições de vida, objetivando a equiparação das desigualdades sociais.
A lei orgânica da saúde, lei 8080/90, dispõe:
Art. 2º. A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado promover as condições indispensáveis ao seu bom exercício.
Parágrafo 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.
Ao direito de acesso universal a todas as ações e serviços de saúde foi destinada tamanha importância pelo legislador, que foi erigido ao patamar de objetivo do SUS a implementação de política econômica no sentido de dar-lhe efetividade:
Art. 5º. São objetivos do Sistema Único de Saúde:
(...)
II – a formulação de políticas de saúde destinadas a promover, nos campos econômico e social, a observância do disposto no parágrafo 1º do art. 2º desta lei.
Ademais, dentre os princípios elencados pelo legislador no art. 7º da referida legislação, tem-se:
Art. 7º. (...)
I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
II – integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema.
Tais dispositivos infraconstitucionais realizam a integração das normas constitucionais garantidoras do direito à saúde – integração legislativa esta tão propalada pelos doutrinadores como necessária para a plena e imediata eficácia do direito fundamental à saúde, a fim de que se possa reconhecer um direito subjetivo do cidadão.
Assim, tanto o direito fundamental constitucionalmente previsto, como sua posterior regulamentação pelo legislador ordinário, obrigam o Poder Público a disponibilizar à população a execução de todas as ações e serviços indispensáveis ao tratamento médico de enfermos, em todos os níveis de complexidade.
Por seu turno, a Constituição deste Estado de Minas Gerais, a exemplo do Texto Maior, circunscreveu o dever do Estado em promover a saúde, mediante políticas sociais e econômicas, com dignidade, gratuidade e boa qualidade, ex vi do artigo 186.
Por fim, e não menos importante, sob a ótica consumerista, a legislação exige que o serviço público prestado seja pautado pela adequação, eficiência e segurança, na forma do comando inserto no art. 6º, inciso X, da Lei nº 8.078/90 - Código de Defesa do Consumidor.
O legislador foi além, e outorgou ao cidadão um direito público subjetivo de acesso ao serviço de saúde, portanto oponível e exigível, inclusive em Juízo, consoante o art. 22 do CDC, cuja transcrição se faz mister:
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigadas a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código.
Assim, descumprido o dever pelo Poder Público, a exigência de sua satisfação pela via jurisdicional é inafastável, em face ao próprio comando constitucional inserto no art. 5º, inciso XXXV.
Neste diapasão, não é cabível qualquer argumentação, claramente falaciosa, no sentido da ingerência indevida da sindicância jurisdicional em esfera outorgada ao Poder Legislativo, vez que o direito de acesso integral e universal aos meios de saúde foi objeto de intensa regulação legislativa.
Sequer se pode falar em invasão de competência administrativa pois, em sendo determinado o dever legal de prestar serviço de saúde integral, ao administrador não resta margem de discricionariedade para decidir-se pelo descumprimento e escolher, em última instância, quem deve viver e quem deve morrer.
Na conformidade com a lição retro certo é que para o administrador, não se disponibiliza liberdade para decidir cumprir ou descumprir normas constitucionais ou infraconstitucionais, pelo que a implementação da política de saúde integral pode e deve ser garantida pela via judicial.
2.3 A Garantia dos Direitos Fundamentais frente à Teoria da Reserva do Possível
A teoria da reserva do possível ou cláusula da reserva do possível tem origem na doutrina alemã e tem servido de meio para restringir direitos fundamentais diante da impossibilidade de o poder público satisfazer todas as carências sociais.
Os estudiosos do direito comparado têm alertado quanto à necessidade de cautela na aplicação da teoria da reserva do possível com vistas a que essa não sirva de meio para proteger o erário em detrimento dos cidadãos, devendo ser avaliadas para sua efetiva aplicação as particularidades que envolvem o contexto socioeconômico e cultural de nosso país e do Estado alienígena de seu surgimento.
A teoria da reserva do possível busca o afastamento da responsabilidade estatal, na maioria das vezes omissiva, sob a alegação de o Estado possuir capacidade financeira limitada frente às necessidades sociais, por questões que de ordem orçamentária, em completo desamparado do direito à saúde e do princípio da dignidade da pessoa humana.
Como é sabido tem assento do princípio da razoabilidade e na premissa de que as necessidades sociais são ilimitadas não havendo meios de o Estado efetivar todas as medidas políticas para a plena satisfação.
Contudo, em nosso país a teoria da reserva do possível tem sido utilizada de maneira equivocada servindo de limite para a plena efetivação dos direitos fundamentais dada a alegação de impossibilidade financeira aliada à ausência de previsão orçamentária, apresentando-se como justificativa para a ineficiência estatal.
Segundo o entendimento da Promotora de Justiça do Estado de Minas Gerais Nívia Mônica da Silva, a Teoria Reserva do Possível apresenta-se da seguinte maneira:
Num contexto muito diferente, no entanto, a reserva do possível vem-se assentando como panacéia contra todas as ações dirigidas a garantir os direitos sociais dos cidadãos sob vários argumentos.
Em geral, valendo-se da tradicional concepção de que apenas os direitos sociais são prestacionais e, por isso, exigem uma contraprestação de ordem financeira do Estado para sua implementação, argumenta-se que a concretização desses direitos está a depender de previsão e efetiva disponibilização financeiro-orçamentária. Logo, a aplicação da teoria da reserva do possível, tal como introduzida no ordenamento pátrio, tende a afastar a exigibilidade jurídica dos direitos sociais, sem maiores questionamentos quanto a cada hipótese em concreto. Nem sequer se cogita da obrigação que o ente estatal tem de, na condição de devedor de determinada prestação, comprovar a inexistência de provisionamento para executar a política pública correlata a esta prestação ou, ainda, o dever de prestar contas dos recursos já investidos nas políticas e nos programas previamente definidos com prioritários. (De Jure, 2011, 393-394).
O Supremo Tribunal Federal no intuito de modular os efeitos da aplicação da teoria da reserva do possível à realidade orçamentária, sem negar efetividade aos direitos sociais, tem entendido que a cláusula de reserva só poder ser aplicada em caso de comprovação de insuficiência de recursos financeiros pelo Estado, vez que as necessidades sociais são ilimitadas e os recursos orçamentários são escassos.
Destarte a Suprema Corte pondera que ao Poder Público não é lícito manipular indevidamente os recursos públicos como forma de criar obstáculo ilegítimo em face dos cidadãos em franco desrespeito da garantia do fornecimento do mínimo existencial e em busca da desoneração do cumprimento de obrigações constitucionais.
Ademais as matérias de competência orçamentária, que também têm assento constitucional, são de competência privativa do Poder Executivo, sendo esse responsável pela elaboração das leis orçamentárias, das definições das políticas públicas e das áreas prioritárias para a alocação da receita, inserindo-se tal competência da seara da discricionariedade administrativa.
Porém não se pode perder de vista que ao Poder Executivo não é legítimo se esconder sob manto da discricionariedade administrativa para elaboração do orçamento público divorciado das necessidades sociais, criando verdadeiros entraves à efetivação máxima dos direitos fundamentais e sociais, acarretando aos cidadãos a incumbência de acionar o Poder Judiciário para satisfação de seus direitos constitucionais.
Bem assim, tem-se que o administrador não detém discricionariedade para julgar a oportunidade e conveniência para implementação de políticas públicas voltadas à ordem social constitucional dada sua vinculação às disposições previstas na Carta Magna e na legislação extravagante, que têm por finalidade a justiça social.
Nesse diapasão, a título ilustrativo, merecem destaque os seguintes julgados do Supremo Tribunal Federal:
ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA “RESERVA DO POSSÍVEL”. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXISTENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO). (STF - ADPF: 45 DF , Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 29/04/2004, Data de Publicação: DJ 04/05/2004 PP-00012 RTJ VOL-00200-01 PP-00191)
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. REPERCUSSÃO GERAL PRESUMIDA. SISTEMA PÚBLICO DE SAÚDE LOCAL. PODER JUDICIÁRIO. DETERMINAÇÃO DE ADOÇÃO DE MEDIDAS PARA A MELHORIA DO SISTEMA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIOS DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DA RESERVA DO POSSÍVEL. VIOLAÇÃO. INOCORRÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.(STF - RE: 642536 AP , Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 05/02/2013, Primeira Turma, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-038 DIVULG 26-02-2013 PUBLIC 27-02-2013)
Desta feita na mesma linha de entendimento do Supremo Tribunal Federal os demais órgãos do Poder Judiciário têm adotado o entendimento de que para o Estado alegar a teoria da reserva possível necessário se faz a comprovação da exaustão financeira do ente público a justificar o desatendimento da demanda, o que dentro da análise do caso concreto mostra-se quase impraticável frente ao montante arrecadado em tributos.
Atualmente o sistema judiciário brasileiro tem dado procedência à maioria das ações envolvendo o direito à saúde, sendo que em mais de noventa por cento dos casos há deferimento da tutela antecipada, merecendo destaque o fato de que a maioria dos feitos se voltam ao fornecimento de medicamentos.
Destaca-se, ainda, que em mais de noventa por cento das ações judiciais para efetivação do direito à saúde os usuários encontram-se sob o pálio da assistência judiciária, denotando que o perfil dos cidadãos envolvidos nessas lides são carentes e necessitam que o Estado lhes garanta o mínimo existencial.
Os magistrados brasileiros, em que pese a ausência de conhecimento técnico na área médica e também da estrutura do sistema público de saúde, têm se valido de estratégias para melhor assegurar a adequação de suas decisões na medida em que condicionam seu o deferimento das medidas à apresentação de declaração e relatórios médicos de profissionais do SUS, exames indicativos da condição urgência, além de documentos que comprovem que o tratamento padronizado pelo sistema público não está sendo oferecido ou se apresenta ineficaz para tratamento do agravo de saúde em análise.
Diante do quadro apresentado com a crescente judicialização da saúde em nosso país tem-se por certo que tal não se constrói por culpa ou má fé dos cidadãos, e sim, no mais das vezes, por desídia do poder público que deixa de prestar a assistência a que é obrigado legalmente ou se nega a reconhecer os avanços técnicos que deveriam incorporar os serviços prestados.
Conforme se vislumbra dos dados históricos observa-se que a judicialização da saúde teve surgimento na década de noventa com a identificação de milhares de casos de HIV/AIDS, ocasião em que os cidadãos passaram a buscar a terapia retroviral. Porém, com a devida adoção das medidas político-administrativas consistente na incorporação dos protocolos clínicos pertinentes pelo poder público, nos dias atuais, essa demanda judicial é inferior a cinco por cento.
Conclui-se, portanto, que em que pese o reconhecimento do impacto financeiro ocasionado pelo atendimento dos comandos judiciais para garantia do direito à saúde, e muitas do direito fundamental a vida, cabe ao Estado promover estudos para atualização de seu sistema de saúde de forma que possa atender adequadamente a demanda social a um custo infinitamente menor do vem arcando através das decisões judiciais, que com freqüência, dada a urgência do caso concreto, não permite sequer a realização de procedimento licitatório para buscar melhores condições de preço e pagamento.
Pontofinalizando, não se pode perder de vista a cautela que se deve adotar quando o deferimento desses requerimentos judiciais frente à reconhecida força da indústria de medicamentos, insumos, órteses e próteses, porém em momento algum a Constituição Federal pode ser relegada ao segundo plano e ter seus comandos desobedecidos.
O que se vê no cenário atual é que o Poder Judiciário tem decidido em favor dos cidadãos e fundamentado seus decretos nos direitos e garantias constitucionais, desde que o usuário apresente elementos a ensejar confiança em suas alegações, necessidade da tutela jurisdicional e desatendimento ou ineficácia da assistência prestada pelo SUS.
Destarte, a judicialização da saúde é um tema que demanda profunda análise na medida em que não pode servir de instrumento para inviabilização do sistema público de saúde prestigiando o interesse individual em detrimento do interesse coletivo, contudo, diante da urgência apresentada no caso concreto não se vislumbra outro caminho ao Poder Judiciário senão a proteção da vida e da dignidade da pessoa humana, cabendo ao Estado no âmbito de suas competências buscar o constante aperfeiçoamento das ações e serviços públicos de saúde prestados à sociedade.
2.4 Do Manejo dos Remédios Constitucionais na Defesa do Direito à Saúde
Como bem apontado são diversos os meios legais e procedimentais estabelecidos para defesa dos direitos fundamentais em razão das ilegalidades e arbitrariedades cometidas pelo Poder Público.
Contudo, dentro de nosso estudo nos interessa apontar quais desses institutos são utilizados para defesa do direito à saúde, ou seja, quais dessas ações são mais comumente manejadas na judicialização da saúde com vistas ao acesso a medicamentos, insumos, leitos e demais tratamentos dos diversos agravos apresentados pela população.
Ao cidadão lesado inúmeros são os caminhos a serem percorridos, contudo, no mais das vezes busca-se a atuação de instituições públicas, a exemplo do Ministério Público e da Defensoria Pública, vez que ambas detêm legitimidade, dentre outras, para propositura de Ação Civil Pública.
Lado outro, é possível ao usuário das ações e serviços públicos de saúde de valer-se do mandado de segurança individual haja vista que o direito à vida e à saúde é direito líquido e certo, contudo, dada a recorrente hiposuficiência financeira o ajuizamento desse remédio constitucional é menos freqüente, notadamente no interior do país.
Ademais nenhum óbice se apresenta para propositura de ação popular, mandado de segurança coletivo e até mesmo ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, guardados, por óbvio, os regramentos específicos de legitimidade, para defesa do direito à saúde, porém, como já apontado no caso de mandado de segurança individual, além da carência econômica dos lesados, a sociedade brasileira ainda se mostra desconhecedora da Constituição e, portanto, pouco combativa na seara dos direitos transindividuais.
No cenário judicial brasileiro o que se apresenta é um excessivo número de ações individuais intentadas para solução de casos concretos em detrimento da defesa do interesse coletivo, que em muito otimizaria o trabalho do Judiciário e minimizaria as lacunas assistenciais do sistema único de saúde.
Ademais os Magistrados no mais das vezes conhecedores das celeumas envolvendo as políticas públicas de saúde e diante da flagrante urgência dos casos apresentados não têm outra saída senão deferimento dos pedidos em sede liminar, mesmo sabendo do impacto negativo da gestão pública coletiva.
Pontofinalizando constata-se que a judicialização da saúde se materializa mais freqüentemente em nosso país através de ações individuais que enfocam casos concretos e que dada a ineficiência do sistema público crescem vertiginosamente, vez que apresentam se materialmente legítimas e indicativas de grave violação aos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos.
Nesse diapasão surge grande divergência doutrinária e jurisprudencial acerca do desrespeito à consagrada teoria de tripartição dos poderes e princípio da separação dos poderes, ventilando-se a possibilidade da indevida ingerência do poder judiciário nos demais poderes, porém conforme bem apontado pela eminente Ministra do Supremo Tribunal Federal Carmem Lúcia Antunes Rocha em sessão plenária da na referida corte: “A Administração Pública vale exatamente o quanto valem os homens que a compõem”.
Bem assim, depreende-se que a atitude do Poder Judiciário não está de nenhuma forma voltada para o mérito do ato, que nada mais é do que o juízo de valor legitimamente exercido pelo administrador em relação à oportunidade e conveniência da prática desse e sim pela efetiva implementação dos direitos fundamentais dos cidadãos, muitos vezes ofuscados por atos administrativos abusivos e contrários ao ordenamento jurídico.
Nesse sentido, entende Celso Antônio Bandeira de Mello:
Exposta a significação da discricionariedade administrativa, sem em nada lhe sonegar a verdadeira densidade e consistência lógica, percebe-se que se trata necessária e inexoravelmente de um poder demarcado, limitado, contido em fronteiras requeridas até por imposição racional, posto que, à falta delas, perderia o cunho de poder jurídico. Com efeito, se lhe faltassem diques não se lhe poderia inculcar o caráter de comportamento intralegal. (Bandeira, 2009, 963).
Isso posto, com a ruptura do liame legal que guarnece o ato administrativo por ação ou omissão do poder público caberá ao Poder Judiciário proceder à sua análise de modo a não feri-lo e causar uma desnecessária invasão no mérito do ato, mas somente se voltando para a eficácia das normas garantidas dos direitos fundamentais, conforme assegurado pela Constituição Federal.
A Constituição Federal de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã, elencou inúmeros direitos e garantias individuais e coletivos, dentre eles o direito à vida e à saúde, assim como preleciona que os direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
Especificamente com relação ao direito à saúde a Carta Magna também o disciplinou em seção própria, estabelecendo o acesso universal e igualitário, além de atendimento integral a todos os cidadãos.
Muito embora o texto constitucional apresente-se de maneira cristalina atualmente em nosso país os cidadãos se deparam com a ineficiência prestação de serviços públicos de saúde ocasionando o ajuizamento de imenso número de ações voltadas à garantia de seu direito fundamental à vida e à saúde.
Noutra vertente, com o escopo de se esquivar de sua competência legal o Estado tem invocado a teoria da reserva do possível sob a alegação de que as necessidades sociais são infindáveis e os recursos financeiros são limitados por força do regramento conferido ao orçamento público.
Porém, em que pese os esforços despendidos pelo Poder Público e a par de todo o desenvolvimento deste estudo, nota-se que não há justificativa aceitável para a negativa de efetivação de direitos fundamentais, notadamente quando flagrante a urgência da prestação jurisdicional demandada aliada à comprovação de que as ações oferecidas pelo sistema único de saúde se mostraram ineficazes, ou até mesmo inexistente, para tratamento do agravo de saúde suportado pelo cidadão.
Noutro vértice destaca-se que a maioria das ações judiciais envolvendo o direito à saúde é de natureza individual, não se podendo negar que o cumprimento das decisões judiciais certamente impacta de maneira negativa no sistema público de saúde, e reflexamente em toda a coletividade, na medida em que o Estado tem de arcar com os custos de insumos e tratamentos não contratualizados e no mais das vezes a preço comum de mercado.
Contudo, diante da ineficiência estatal na prestação de serviços públicos, notadamente do direito à saúde, em que pese o reconhecimento das inconveniências do atendimento de demandas judiciais, a efetivação dos direitos fundamentais jamais poderia ser relegada a segundo plano em franco ataque ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Pontofinalizando, conclui-se que a procedência das demandas judiciais tem preservado a vida e garantido melhores de recuperação e sobrevivência a muitos usuários do sistema público de saúde, sendo certo que o Poder Judiciário, mesmo com a adoção das devidas cautelas, não tem se furtado à sua missão constitucional de interpretar e aplicar a Lei, sem nenhum embargo ao princípio constitucional fundamental da separação dos poderes.
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Graduada em Direito pela Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC/BARBACENA. Oficiala de Justiça - TJMG 2003/2010. Analista do Ministério Público de Minas Gerais 2010.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Fernanda Iatarola Barbosa. Judicialização da Saúde Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 ago 2015, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44933/judicializacao-da-saude. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: JAQUELINA LEITE DA SILVA MITRE
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Por: Hannah Sayuri Kamogari Baldan
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