RESUMO: Com a Reforma Agrária o Estado passou a promover a redistribuição de terras com o objetivo de oportunizar o melhor aproveitamento das grandes propriedades, bem como possibilitar uma destinação que de fato atendesse aos princípios da justiça social e ao aumento da produtividade. Nessa perspectiva, a Reforma Agrária contribuiu para a relativização do direito à propriedade, consagrado na atual Constituição Brasileira, a fim de promover a efetivação do Princípio da Função Social da Propriedade, também celebrado na atual Constituição Federal. Posto isso, tem-se a Reforma Agrária, portanto, como um movimento social voltada a garantir a promoção do bem-estar da coletividade em detrimento de interesses particulares.
PALAVRAS-CHAVE: Reforma Agrária; Função Social da Propriedade; Estado; Desigualdade; Distribuição de terra.
1 INTRODUÇÃO
A concentração de grandes propriedades na mão de um número limitado de pessoas, bem como sua inutilização em decorrência da impossibilidade de se aproveitar espaços extensos de terra, contribuiu para a criação de uma política voltada a sua distribuição. Nessa perspectiva, a Constituição Federal de 1988 buscou inserir no exercício do direito à propriedade alguns requisitos capazes de garantir sua plena utilização, bem como a efetivação de sua função social.
Nessa perspectiva, a Reforma Agrária objetiva garantir a efetivação do direito à propriedade, traduzido no exercício de sua função social, política e econômica, buscando, ainda, atender aos anseios sociais da coletividade, estimulando, através da desapropriação dessas áreas, a sua redistribuição, a fim de permitir o seu melhor aproveitamento e a utilização dos recursos que dela podem ser extraídos.
Desse modo, pode-se perceber que a Reforma Agrária surgiu como um movimento social responsável por possibilitar a redistribuição de extensas porções de terras que não apresentavam nenhuma destinação ou utilidade. Com efeito, vale mencionar que tal política serviu para modificar a estrutura agrária do país, antes voltada à concentração de terras na mão de um pequeno número de pessoas, permitindo, desse modo, o melhor aproveitamento desses espaços.
2 A REFORMA AGRÁRIA NO BRASIL
Historicamente o problema relacionado à má distribuição de terra começou a ocorrer em 1530 com a criação das capitanias hereditárias e do sistema de sesmarias. Nesse período houve a divisão de grandes porções de terras, as quais foram doadas a fim de que fossem administradas por um pequeno número de pessoas, fato esse que ajudou a definir por muitas décadas a estrutura fundiária no país.
Em 1822, com a independência do Brasil, a demarcação de imóveis rurais ocorreu através da lei do mais forte. Nesse contexto, vale destacar a criação da Lei das Terras em 1850, a qual serviu para legalizar e contribuir ainda mais com o processo de concentração de terras. Sob tais assertivas, Silvia Opitz, informa que
A formação da propriedade rural no Brasil começou com a colonização portuguesa, que distribuiu o território em capitanias hereditárias que tinham extensões enormes. Com isso criou-se uma sociedade de latifundiários que somente foi tocada com a Lei das Terras de 1850, mas sem ferir o direito adquirido (2011, p. 190).
Com a instauração da República, em 1889, a situação ainda era a mesma, o poder política atrelava-se ao poder agrário, pois, eram os donos dos latifúndios quem dominava a política no país. Foi apenas no final da década de 1950 e início da década de 1960 que a situação agrária no Brasil começou a ser amplamente discutida e a tomar novos contornos.
A instauração da República, em 1889, um ano e meio após a libertação dos escravos, tampouco melhorou o perfil da distribuição de terras. O poder político continuou nas mãos dos latifundiários, os temidos coronéis do interior. Apenas no final dos anos 50 e início dos anos 60, com a industrialização do País, a questão fundiária começou a ser debatida pela sociedade, que se urbanizava rapidamente[1].
Voltada a combater essa cultura agrária baseada no acúmulo de terras, a Reforma Agrária começou a ser delineada no país com a promulgação da Lei 4.504 de 1964 – Estatuto da Terra, a qual foi responsável por regular os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais, bem como por estabelecer os fundamentos da Reforma Agrária e da Política Agrária, conforme aduz o artigo 1º da referida norma.
Posto isto, a Lei 4.504/1964, conceitua Reforma Agrária em seu artigo 1º, § 1º, como sendo “um conjunto de medidas para promover a melhor distribuição da terra mediante modificações no regime de posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social, desenvolvimento rural sustentável e aumento de produção” [2]. Nessa perspectiva, pode-se perceber que suas principais funções baseiam-se na descentralização e democratização da estrutura fundiária, produção de alimentos, geração de renda, entre outros.
A Reforma Agrária inaugurou uma nova política voltada a combater as desigualdades existentes no campo através da distribuição de terras, o Estatuto da Terra ganhou amplitude e eficácia, culminando, inclusive, com o reconhecimento de alguns de seus dispositivos na Constituição Federal de 1988, fato esse que validou os novos ideais agrários emergentes.
3 O DIREITO À PROPRIEDADE
Com a previsão constitucional do direito à propriedade, tal direito foi elevado à categoria de direito fundamental. Ocorre que com a Constituição Federal de 1988 houve a inclusão de requisitos necessários à promoção da plena satisfação desse direito.
A atual Carta Política do Brasil prevê em seu artigo 5º, caput, e inciso XXII, ser a propriedade um direito de todos os indivíduos, sinalizando, outrossim, em seu artigo 184 a possibilidade de desapropriação de imóveis rurais, para fins de reforma agrária, quando os mesmos não estiverem atingindo sua função social. Nessa perspectiva, Cristiano Chaves ensina que
A garantia do direito de propriedade não se limita por consequência ao direito real, mas também incide em direitos obrigacionais, de conteúdo patrimonial. O conteúdo constitucional da propriedade (art. 5º XXII) abrange em seu manto os bens corpóreos e incorpóreos (art. 5º, XXII, XXIII e XXIX) que podem constituir objeto do direito desde que redutíveis a dinheiro. Em qualquer caso, a propriedade constitucionalmente tutelada será apenas aquela que revela adimplemento de sua função social (art. 5º, XXIII) (2014, p. 230).
A plenitude no exercício do direito à propriedade está atrelada à observância dos requisitos relativos à função social da propriedade estabelecidos no artigo 186 da Constituição Federal, requisitos esses também previstos no artigo 2º, § 1º, do Estatuto da Terra.
Ademais, o artigo 185 da Carta Política evidencia quais os parâmetros que inviabilizam a desapropriação para fins de reforma agrária ao descrever que
Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:
I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra;
II - a propriedade produtiva.
Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social.[3]
Nessa senda, faz-se oportuno salientar que a desapropriação está condicionada, ainda, ao pagamento de justa e prévia indenização à pessoa expropriada, não se constituindo, pois, em um procedimento arbitrário e apto a ensejar a redução patrimonial do indivíduo, como bem explicita Marques, na seguinte assertiva: “Na verdade, a prevalência do interesse público sobre o particular, que justifica a criação do instituto em análise, não deve ensejar a redução patrimonial do indivíduo, dele se retirando, pura e simplesmente, um bem, sem o correspondente reparo ao desfalque sofrido” (2011, p. 144).
O direito de propriedade é uma garantia constitucional que legitima a posse e o uso de determinada propriedade, desde que atenda sua função social. Diante disso, pode-se perceber que a possibilidade de intervenção do Estado no exercício desse direito baseia-se fundamentalmente na necessidade de se promover a destinação social inerente ao seu aproveitamento.
4 O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
O Princípio da Função Social da Propriedade surgiu através do artigo 2º, § 1º do Estatuto da Terra e foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, buscando promover a utilização das propriedades rurais, além de orientar as condutas capazes de promover uma destinação social adequada aos ditames da lei.
A função social da propriedade está prevista no artigo 5º, XXIII da Constituição Federal e atribui ao exercício do direito à propriedade algumas obrigações necessárias a sua promoção, além de garantir a observância de três elementos que a fundamentam, quais sejam, o econômico, o social e o ecológico.
Nesse contexto, coube ao artigo 186 da Constituição Federal o reconhecimento dos critérios necessários ao atendimento da função social da propriedade, já elencados no artigo 2º, § 1º do Estatuto da Terra,
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.[4]
Com a intervenção do Estado no exercício do direito à propriedade buscou-se promover a efetivação dessa norma constitucional, bem como de todas as normas voltadas à tutela dos direitos do homem, haja vista o fato do direito à propriedade estar associado a diversas garantias que o norteiam, a exemplo, o direito à vida, à igualdade, à dignidade, à alimentação, entre outros. Nesse aspecto, cabe mencionar a lição de Cristiano Chaves sobre esse tema,
Cumpre visualizar um Direito Civil constitucional, no qual princípios de caráter superior e vinculante criam uma nova mentalidade, erigindo como direitos fundamentais do ser humano a tutela de sua vida e de sua dignidade. Essas normas de grande generalidade e grau de abstração impõem inúmeros deveres extrapatrimoniais nas relações privadas. Os limites da atividade econômica e a função social dos direitos subjetivos passam a integrar uma nova ordem pública constitucional e devem ser encarados como meios de ampla tutela aos direitos essenciais do ser humano (2014, p. 264).
Nessa perspectiva, calha reiterar o disposto no artigo 184 da Carta Política de 1988, o qual prevê a possibilidade de desapropriação de imóvel rural que não atende a sua função social,
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei[5].
Sob essa questão, tem-se a desapropriação, como o principal mecanismo de efetivação da Reforma Agrária no país, sendo ela amplamente utilizada como garantia do cumprimento das normas que regulam essa política agrária.
Com efeito, pode-se perceber que a adoção do Princípio da Função Social da Propriedade objetivou garantir os interesses da coletividade, os quais devem ser considerados em detrimento dos interesses individuais, a fim de possibilitar o bem-estar de um número maior de indivíduos que compõe a sociedade.
5 A REFORMA AGRÁRIA COMO MOVIMENTO SOCIAL RESPONSÁVEL PELA EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
A Reforma Agrária baseia-se em um movimento social criado para promover a distribuição de terras, e com o escopo de garantir a efetividade da função social da propriedade e a redução das desigualdades no âmbito rural.
Historicamente os movimentos sociais sempre serviram como forma de reinvindicação de direitos ou para demonstrar insatisfação com determinadas situações
Os movimentos sociais constituem um verdadeiro exercício de cidadania necessário e capaz de influenciar fortemente no combate às desigualdades sociais e na aplicação das normas legais. Nessa perspectiva, Cecília Peruzzo[6] esclarece o que leva à construção de tais movimentos, bem como o que os fundamenta, ao informar que
Movimentos sociais populares são articulações da sociedade civil constituídas por segmentos da população que se reconhecem como portadores de direitos, mas que ainda não são efetivados na prática. Esses movimentos se organizam na própria dinâmica de ação e tendem a se institucionalizar como forma de consolidação e legitimação social.
A problemática social que se perfaz em torno desse movimento atrela-se ao fato de que há grandes porções de terras concentradas nas mãos de um número limitado de pessoas, as quais acabam muitas vezes sendo esquecidas e inutilizadas, sem nenhum tipo de destinação ou uso. Nesse sentido, a luta pela redistribuição dessas propriedades vem tentar corrigir essa cultura latifundiária, além de promover a justiça social e o desenvolvimento da economia.
Como resultado da política da Reforma Agrária, surgiu o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, o qual luta pela redistribuição das propriedades que encontram-se concentradas nas mãos de um número pequeno de indivíduos e que não apresentam nenhum tipo de destinação social. Sobre essa questão, faz-se mister colacionar a seguinte assertiva,
O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) é um dos mais importantes movimentos sociais do Brasil, tendo como foco as questões do trabalhador do campo, principalmente no tocante à luta pela reforma agrária brasileira. Como se sabe, no Brasil prevaleceu historicamente uma desigualdade do acesso a terra, consequência direta de uma organização social patrimonialista e patriarcalista ao longo de séculos, predominando o grande latifúndio como sinônimo de poder. Desta forma, dada a concentração fundiária, as camadas menos favorecidas como escravos, ex-escravos ou homens livres de classes menos abastadas teriam maiores dificuldades à posse da terra[7].
Nessa perspectiva, esse movimento busca dar efetividade a um direito já reconhecido pela atual Constituição Federal, mas que ainda encontra limitações em seu exercício.
A insatisfação com a situação agrária no país é uma realidade explicitada através de diversos meios, sejam eles movimentos sociais, discursos, livros, ou afins. Nessa senda, Cristóvão Buarque, em sua obra “Reaja”, convoca seus leitores a reagir contra a situação agrária do país trazendo um apelo social em relação à postura que se deve tomar no que tange a essa questão, conforme demonstra a seguinte leitura “Reaja contra a maldade da estrutura agrária que sobrevive cercando terras sem homens e deixando de fora homens sem terra, sem emprego, sem comida” (2012, p.17).
Isto posto, tem-se que a distribuição das terras improdutíveis objetiva promover o seu melhor aproveitamento, o seu uso e, consequentemente, contribuir para a efetivação de sua função social, bem como para o aumento da produtividade, com o intuito de garantir o desenvolvimento da economia nesse setor.
A garantia do direito à propriedade está atrelada à efetivação de sua função social, haja vista, tratar-se de um direito fundamental voltado a promover não só o interesse individual, mas, principalmente o interesse da coletividade. Nessa perspectiva, observa-se que a constitucionalização do direito à propriedade fundamentou a necessidade de se garantir o bem-estar dos indivíduos em detrimento do interesse particular, objetivando o atendimento de interesses maiores, atribuindo ao exercício desse direito uma valoração socialmente útil.
6 CONCLUSÃO
A Reforma Agrária surgiu como um mecanismo capaz de permitir a modificação da estrutura agrária do país, a qual foi, por muitas décadas, alicerçada em uma política latifundiária voltada, basicamente, ao acúmulo de terras. Nessa perspectiva, buscou-se atender ao princípio social da propriedade, em que pese a necessidade de se promover o desenvolvimento agrário e a redução das desigualdades nesse setor.
O Estado passou a intervir nas questões relacionadas ao direito à propriedade para garantir o correto aproveitamento de grandes extensões de terra que se concentravam nas mãos de poucos. Nesse aspecto, a Reforma Agrária objetiva distribuir as terras que não têm nenhuma destinação, ou seja, que não atendem a sua função social, a fim de que pudessem servir as suas reais finalidades, que são a justiça social e o aumento da produtividade.
Diante das discussões acima abordadas, pode-se concluir que a Reforma Agrária, como movimento social voltada a garantir a melhor distribuição de terras e seu melhor aproveitamento, é de grande valia, pois, além de possibilitar o desenvolvimento de seus beneficiários, ainda, contribui para a efetivação da função social da propriedade.
REFERÊNCIAS
BUARQUE, Cristóvão. Reaja. São Paulo: Garamond, 2012.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais. 10 ed. São Paulo: Editora JusPodivm, 2014.
MARQUES, Benedito Ferreira. Direito agrário brasileiro. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2011.
OPTIZ, Silvia C. B.; OPTIZ, Oswaldo. Curso completo de direito agrário. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
[1]História da Reforma Agrária. http://www.incra.gov.br/reformaagraria_historia. Acessado em 04/06/2015.
[2] Reforma Agrária. http://www.incra.gov.br/reformaagraria. Acessado em 25.05.2015.
[3] Constituição Federal de 1988. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acessado em 26/05.2015.
[4] Constituição Federal de 1988. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acessado em 26/05.2015.
[5] Constituição Federal de 1988. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acessado em 26/05.2015.
[6] PERUZZO, Cecília M. Krohling. Movimentos sociais, cidadania e o direito à comunicação comunitária nas políticas públicas. Vol. 11. Revista Fronteiras – Estudos Midiáticos, janeiro/abril de 2009.
[7]Paulo Silvino Ribeiro. http://www.brasilescola.com/sociologia/mst.htm. Acessado em 04/06/2015.
Bacharelanda em direita pela Faculdade Ages.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTANA, Mariana Carolina Cruz de. A reforma agrária como movimento social responsável pela efetivação do Princípio da Função Social da Propriedade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 ago 2015, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45056/a-reforma-agraria-como-movimento-social-responsavel-pela-efetivacao-do-principio-da-funcao-social-da-propriedade. Acesso em: 22 nov 2024.
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