RESUMO: A produção das relações no espaço urbano é uma questão que ocupa um ponto central na pauta de discussões da sociedade contemporânea. Dentre suas características basilares, subleva-se a gestão e organização da Cidade. Esta incita a necessidade social de construção de uma estrutura capaz de promover a ordem pública, gerando, em contrapartida, igualdade no exercício e fruição das benesses do espaço urbano. Contudo tal organização espacial deve também responsabilizar-se por não agravar a situação de segregação etno-espacial e de desigualdade socioeconômica presente nos sistemas sociais atuais. O artigo em questão busca analisar os reflexos do perfil ideológico da política estatal sobre o espaço urbano e suas implicações no exercício do direito à cidade, mitigando os estigmas que limitam as possibilidades do habitar e que obstam o exercício de tal direito à cidade.
Palavras-chave: Direito à Cidade, Urbanismo, Espaço Urbano.
1 PROLEGÔMENOS DA CONSOLIDAÇÃO DO ESPAÇO URBANO COMO OBJETO DO DIREITO À CIDADE
O processo de urbanização no Brasil, agravado com a explosão demográfica das últimas três décadas, gerou uma série problemas que se atrelaram ao espaço e resultaram na depreciação da qualidade de vida. Segundo Afonso da Silva ela “deteriora o ambiente urbano. Provoca a desorganização social, com carência de habitação, desemprego, problemas de higiene e saneamento básico. Modifica a utilização do solo e transforma a paisagem urbana”.[1]
A Cidade é o espaço da vida, do cotidiano, da materialização dos processos e formas de viver da maioria da população brasileira. Esta estrutura, marcada pelos avanços e deformações do modo de vida humano – que vão do desenvolvimento tecnológico à destruição do meio-ambiente e da difusão da comunicação e da interação interpessoal à segregação espacial – requer uma organização, um planejamento, que possibilite uma base estável ao desenvolvimento humano da nação.
Com vistas a este desiderato, o legislador constituinte estabeleceu, nos arts. 182 e seguintes da Constituição Federal, os parâmetros da política urbana nacional. Com o objetivo de regulamentar os parâmetros, gerais, contidos na norma constitucional, foi elaborada a Lei 10.257/2001, denominada Estatuto das Cidades.
O Estatuto, em seu art. 2ª, inciso I, dispõe que a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, garantindo o direito a cidades sustentáveis, entendida como: “o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transportes, aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para o presente e futuras gerações”[2].
O objetivo primeiro é ter uma cidade sustentável, ou seja, apropriada a fornecer a seus habitantes as condições mínimas de bem-estar, segurança, vida saudável [...] deve ter infraestrutura urbana, ou seja, transporte, trabalho, lazer e, em geral, serviços públicos.[3]
O Estatuto também ressalva em seu artigo 2º a importância de uma gestão democrática da cidade, inciso I, e o planejamento de seu desenvolvimento de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano, inciso II, com vistas a destinar equipamentos urbanos e comunitários que atendam aos interesses da população de modo geral, respeitando suas especificidades.
A Lei orienta as políticas municipais voltadas à organização urbana em âmbito local, que devem seguir, dentre outros princípios o respeito ao direito à cidade. Política que regionalmente se faz com a os instrumentos de política urbana contidos em um plano, chamado Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, obrigatório para os municípios com mais de vinte mil habitantes.
O Direito à Cidade, assim, é um dos direitos sociais presente na Constituição Federal de 1988, no artigo 6º, reforçado com a Emenda Constitucional nº 26/2000, regulamentado pelo Estatuto da cidade e materializado através do Plano Diretor de Desenvolvimento urbano. Um direito que se consubstancia com a disponibilização e materialização de serviços e estruturas sociais necessárias à vida da população no ambiente urbano. Neste sentido, Cavallazzi define o direito à cidade como:
A expressão do direito à dignidade da pessoa humana, o núcleo de um sistema composto por um feixe de direitos que inclui o direito à moradia – implícita a regularização fundiária -, à educação, ao trabalho, à saúde, aos serviços públicos – implícito o saneamento -, ao lazer, à segurança, ao transporte público, à preservação do patrimônio cultural, histórico e paisagístico, ao meio ambiente natural e construído equilibrado – implícita a garantia do direito a cidades sustentáveis como direito humano na categoria dos interesses difusos.[4]
Saule Júnior, apud, Zélia Jardim compreende o direito à cidade como:
Os direitos inerentes às pessoas qu vivem nas cidades de ter condições dignas de vida, de exercitar plenamente a cidadania, de ampliar os direitos fundamentais (individuais, econômicos, sociais, políticos e ambientais), de participar da gestão da cidade, de viver num ambiente ecologicamente equilibrado e sustentável.[5]
A questão é: como promover o direito à cidade num espaço urbano sem segurança pública, ou em que a segurança tenha o viés segregacionista de restringir o acesso da população às estruturas e aos espaços da cidade?
Enquanto a resposta é discutida a cidade está, cada vez mais, buscando soluções distorcidas através de guetos, que restringem o direito à cidade, ou seja: à liberdade e ao acesso à estrutura urbana pública constante no espaço da cidade, que, em princípio, reserva o viés democrático e universalista, imprescindível para a interação interpessoal e o desenvolvimento da cidade.
2 PLANEJAMENTO URBANO: O ESTATUTO DAS CIDADES COMO INSTRUMENTO DE INCLUSÃO URBANA
Salvador atualmente possui uma população de aproximadamente dois milhões e setecentos mil habitantes, distribuídos numa área de setecentos quilômetros quadrados, com uma densidade populacional de cerca de quatro mil habitantes por quilometro quadrado.[6] Uma densidade populacional consideravelmente alta que gera uma série de dificuldades de ordem sócio-ambiental, impondo a necessidade de uma gestão urbana inclusiva, eficaz e democrática.
Além da densidade demográfica, a capital baiana sofre com problemas típicos da falta de gestão do espaço urbano. Estes são perceptíveis com a ausência ou na inadequação das habitações, na carência e no sucateamento dos transportes públicos, na sobrecarga nas vias de trânsito, na inacessibilidade aos serviços públicos e na crise da segurança pública.
Neste contexto, surge a necessidade de reverter ou, no mínimo, mitigação desta evidente crise urbana soteropolitana. Uma das alternativas está inserida no contexto da gradativa qualificação da urbanização, com a imediata eficácia de um Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano democrático e com vistas ao bem-estar social da população.
Urbanização que pode ser definida como um processo em que a população urbana passa a ser maior que a rural num determinado âmbito territorial, como já dito. Como ciência e método de adequação e instrumento de planejamento de tal transformação surge o urbanismo, que através, principalmente, das políticas públicas institui a organização necessária ao desenvolvimento sustentável da cidade.
Faz-se, neste sentido, imprescindível a intervenção estatal através da urbanificação, processo de correção e reorganização urbana, contida numa proposta de planejamento urbano para construção de um espaço habitável. O poder público é o principal responsável por ordenar a cidade e a atividade urbanística é de natureza eminentemente pública que é exercida conforme o estabelecido em Lei, no caso do Brasil, a Lei 10.257/2001, o Estatuto da Cidade.
O Estatuto da Cidade nasce da necessidade de dar eficácia e consolidação de um direito fundamental, o direito à cidade. A Constituição Federal possui traz dispositivos que evidenciam a base para a construção de uma política urbana, assim, o art. 21, inciso XX, expõe que compete à União:
Art. 21 [...] XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos.[7]
Assim, cabe à União direcionar a política urbana, estabelecendo os parâmetros a serem seguidos pelos planos locais municipais. O Município apresenta papel central na gestão do espaço citadino, pois o art. 182 da Constituição estabelece que a política urbana deve ser executada pelo governo municipal:
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.[8]
O texto constitucional também ressalva a responsabilidade do governo estadual na questão urbana. Assim, apesar de ter na União a figura responsável pelo estabelecimento de regras gerais que determinam um caráter de organização interurbano, e no Município a competência da gestão política local, ao Estado compete legislar concorrentemente com a União sobre direito urbanístico e auxiliar a organizar e o planejamento das áreas urbanas disponibilizando, principalmente, funções públicas necessárias à coletividade. Neste sentido, o art. 24, inciso I, da Constituição descreve:
Art. 24 [...] I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico.[9]
Assim, tem-se um sistema constitucional voltado à política urbana que pressupõe a necessária participação de todos os entes federativos, estando a execução sobre a competência maior do governo municipal, e o Estatuto da Cidade como a lei regulamenta os instrumentos e planos de tal atividade.
O Estatuto da Cidade estabelece normas que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.[10]Em seu art. 2º, estabelece que a Política Urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.
O Estatuto, nos incisos do art.2º, também estabelece as diretrizes gerais para a Política Urbana nacional, dentre outras destacam-se: I - a garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social; IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais; IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização; X – adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais.[11]
3 POSSIBILIDADES AO EXERCÍCIO DA CIDADANIA NA CIDADE
Os Planos Urbanísticos são os principais instrumentos utilizados para materializar as diretrizes da política urbana, Afonso da Silva considera que são “um processo técnico instrumentado para transformar a realidade existente no sentido de objetivos previamente estabelecidos”[12]. O art. 4º do Estatuto da Cidade expõe alguns instrumentos de tal política, dando relevo aos planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social; o planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões; o plano diretor e o plano de desenvolvimento econômico e social.[13]
Os planos urbanísticos se inserem na política urbana regional que é executada através dos Municípios, com a constituição do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, obrigatórios para as cidades com mais de vinte mil habitantes. O art. 182, 1º, da Constituição dispõe que o PDDU é “o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.”[14]
O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar da sociedade local. O art. 39 do Estatuto da Cidade evidencia que o PDDU deve assegurar o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas.
O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador foi instituído pela Lei Municipal nº 7.400/2008. O Plano decorreu de um intenso processo de movimentação política, sendo caracterizado pelos reclames da população que se sentiu ausente das discussões necessárias à sua construção.
O PDDU soteropolitano, malgrado toda discussão quanto ao seu processo de construção, conseguiu formar seu conteúdo com base na formação principiológica inerente ao Estatuto da Cidade. O texto do Plano consagra como princípios fundamentais da política urbana de Salvador valores e direitos importantes, que ganharam evidência com a Constituição de 1988 e hoje estão contidos num núcleo fundamental aos Direitos Humanos.
Assim, estão presentes como princípios da política urbana municipal a dimensão da:
I - função social da cidade, que corresponde ao direito à cidade para todos, o que compreende os direitos à terra urbanizada, moradia, saneamento básico, segurança física e psicossocial, infra-estrutura e serviços públicos,mobilidade urbana, ao acesso universal aos espaços e equipamentos públicos e de uso público, educação, ao trabalho, cultura e lazer, ao exercício da religiosidade plena e produção econômica; II - a função social da propriedade imobiliária urbana; III - o direito à cidade sustentável, propiciando o desenvolvimento socialmente justo, ambientalmente equilibrado e economicamente viável, visando a garantir qualidade de vida para as gerações presentes e futuras; IV - a eqüidade social, que implica no reconhecimento e no respeito às diferenças entre pessoas e grupos sociais, e na orientação das políticas públicas no sentido da inclusão social de grupos, historicamente, em situação de desvantagem e da redução das desigualdades intraurbanas; V - o direito à informação, que requer transparência da gestão, mediante a disponibilização das informações sobre a realidade municipal e as ações governamentais, criando as condições para o planejamento e a gestão participativos, assegurando a clareza da informação sobre o patrimônio físico e imaterial do Município; VI - a gestão democrática da cidade, que incorpora a participação dos diferentes segmentos da sociedade em sua formulação, implementação, acompanhamento e controle, fortalecendo a cidadania.[15]
Contando com o direcionamento de tais princípios, o Governo Municipal estabeleceu como objetivos para as ações urbanísticas, dentre outros, a integração, no processo de desenvolvimento do Município, o crescimento socioeconômico, a qualificação do espaço urbano para atendimento à função social da cidade; a conservação dos atributos ambientais e a recuperação do meio ambiente degradado; a adequação e o adensamento populacional à capacidade da infra-estrutura existente e projetada, otimizando sua utilização e evitando a sobrecarga ou ociosidade das redes de atendimento público; e a promoção da gradativa regularização urbanística e fundiária dos assentamentos precários, revertendo o processo de segregação espacial no território do Município.[16] Assim, podemos evidenciar que o PDDU traz no art.94 que são objetivos relacionados aos serviços urbanos básicos:
Articular as políticas públicas municipais de assistência social no sentido de promover a inclusão das populações de baixa renda, prevenindo situações de risco social [...] combater a criminalidade, mediante articulações com as diversas instâncias governamentais para implementação de políticas de segurança pública e de inserção social, garantindo a integridade do cidadão, dos grupos sociais e do patrimônio por meio de ações preventivas, educativas e de fiscalização, no âmbito da competência municipal.
Neste contexto, o Município assume uma parcela de responsabilidade quanto à promoção da Segurança Pública, considerando-a como elemento intrínseco e necessário ao desenvolvimento urbano que deve estar contido nas ações que direta ou transversalmente buscam dar solidez ao direito à cidade.
Com tal entendimento o PDDU traz um capítulo destinado à Segurança Pública, considerando-a em seu art. 123 como dever do Estado e direito e responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservação da ordem pública, assim como à incolumidade e o patrimônio das pessoas. Seguiu, assim, o conteúdo do caput do art. 144 da Constituição Federal.
O Plano não especificou os órgãos municipais que seriam utilizados à segurança pública, no entanto delineou as ações que seriam concretizadas neste labor. O art. 123 dispõe que o Município atuaria na prevenção situacional e social, § 1º; a situacional envolveria medidas direcionadas a modificação do ambiente urbano com a redução de fatores de risco à segurança do cidadão, § 2º; a social envolveria medidas direcionadas à intervenção nas condições sociais, culturais, econômicas e educacionais, que possam estar relacionadas ao aumento de fenômenos ligados à sensação de insegurança e à criminalidade, § 3º.[17]
Traz também no Art. 124 as diretrizes para a segurança pública, quais sejam:
I - desenvolvimento de ações visando a alteração dos fatores físicos do ambiente urbano geradores de insegurança e violência, tais como a urbanização de áreas precárias, requalificação de espaços degradados, iluminação de logradouros e demais espaços públicos; II - intervenção nas condições sociais, econômicas, culturais e educacionais das comunidades, com o objetivo de reduzir a ocorrência de elementos propulsores da violência e criminalidade, por meio de ações como a geração de trabalho e renda, educação para a paz, ampliação das oportunidades de recreação e lazer, mediante programas específicos orientados para as comunidades carentes; III - prevenção e enfrentamento das situações de violência relacionadas a gênero, orientação sexual, raça/etnia e geração, mediante a criação de juntas comunitárias de conciliação e orientação; IV - implementação de ações destinadas ao envolvimento e participação das comunidades na discussão e solução dos problemas locais de segurança e criminalidade; V - desenvolvimento e implementação de política de segurança no trânsito, com abordagem interdisciplinar e interinstitucional; VI - articulação com o governo estadual para promover adequação do serviço de segurança pública às demandas e especificidades de cada comunidade.[18]
Evidente a existência de um importante corpo normativo voltado à melhoria da condição urbana, estando aí inclusos elementos caracterizadores da civilidade como a educação, o trabalho e a habitação, como instrumento à garantia da segurança pública. É um pressuposto que a segurança não se constrói exclusivamente com a atuação repressiva exercida através da polícia, mas por uma rede intergovernamental e intersetorial que objetive suprir as lacunas que geram a insegurança coletiva.
O PDDU que passou a vigorar em 2008, embora seja um importante instrumento para a gestão democrática da cidade, assim como para redução das desigualdades decorrentes do processo de urbanização acelerada e não planejada de Salvador, ainda carece de materialidade.
O próprio Plano prevê a existência de um controle periódico a fim de aferir sua implementação, operacionalidade e eficácia. Embora três anos seja considerado um período diminuto para uma efetiva diminuição de um problema criado gradativamente durante décadas, a praxis do processo de urbanização atual da cidade de Salvador se mostra num caminho desviante do proposto pelo PDDU.
O que se observa quanto à disposição espacial urbana é o aumento da segregação e das desigualdades sócio-urbanas por meio da omissão ou redução da gestão política do espaço da cidade. Por um lado a cidade foi loteada e submetida ao poder econômico das corporações empresariais voltadas à construção empreendimentos comerciais e de estruturas habitacionais, fundadas na separação do restante da cidade e na auto-suficiência.
Num outro ponto, as necessidades estruturais dos bairros periféricos e suburbanos da cidade aumentaram progressivamente, com o abandono e o descaso da gestão municipal. O Município não ofertou, para a estrutura urbana as melhorias e os serviços essenciais ao gozo do direito à cidade, limitando-se a promover o mínimo existencial a tais áreas e atuar corretivamente sobre os problemas espaciais mais evidentes e menos complexos.
O que se observa é o acentuado processo de segregação territorial que acompanha a exclusão social de grupos de indivíduos que são forçados a viver em espaços depredados pelo processo de urbanização nas periferias e nos subúrbios de Salvador. Bauman analisa que este é um fenômeno mundial, decorrente da intensa globalização, que tende a formar guetos e agravar as desigualdades e, consequentemente, a sensação de insegurança na sociedade.[19]
A gestão urbana é um desafio - numa sociedade que experimenta a presença da segregação espacial e da desigualdade sócio-racial - essencial não só a mitigação da criminalidade e à constituição da ordem pública, mas à promoção da democracia e da sustentabilidade de um ambiente apto a concretização de outros direitos fundamentais à população. Neste sentido, Edésio Fernandes analisa que:
a promoção de condições eficientes de gestão urbano-ambiental que também sejam comprometidas com a consolidação da democracia constitui um dos maiores desafios enfrentados pelos principais agentes políticos e sociais neste século. Tal desafio é ainda mais significativo nos países em desenvolvimento como o Brasil, dada a complexidade dos problemas resultantes, dentre outros fatores, da combinação entre urbanização intensiva, degradação ambiental, desigualdades socioeconômicas e exclusão sócio-espacial.[20]
Vê-se, portanto, que o crescimento vertiginoso das cidades brasileiras, em paralelo com a falta de recepção das mesmas, criou um quadro de profunda desigualdade. O Estatuto da Cidade e o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano se mostram como instrumentos de política urbana aptos a mitigar gradativamente os reflexos desta desigualdade, como a questão da segurança.
4 CONCLUSÃO
Assim, cumpre destacar que a política urbana, desenvolvida pelo município, deve ser universal e isonômica – abrangendo os diversos espaços contidos na cidade de Salvador – e executada por planejadores urbanos, urbanistas, com fulcro na redução da segregação urbana. A atuação do serviço de segurança pública direto sobre a questão urbana só agrava a situação de exclusão e marginalização, favorecendo a criação de guetos.
É na cidade que se estabelecem as relações básicas à sobrevivência humana em sociedade. Nela são construídas estruturas sociais, que consubstanciam direitos, e se interligam, definindo o nível de cidadania da população: habitação, trabalho, educação, saúde etc.
A cidade é o palco onde se evidenciam as desigualdades entre os indivíduos segundo a posição que ocupam na sociedade. Ela é constituída, de um lado, por áreas nobres que evidenciam um melhor perfil de desenvolvimento humano e tecnológico, assim como é o ambiente que, de outro lado, dispõe de autoconstruções, barracos e palafitas, situação que demonstra as condições de desigualdade presentes na distribuição da propriedade geoespacial.
Nela, o Estado finca as raízes de sua ideologia, do seu controle e de sua soberania. Nas cidades, o Estado se impõe como órgão legítimo a fazer valer, através de seus órgãos, diversas formas de controle social, dentre as quais se destaca o direito de punir, que restringe a liberdade individual na busca de uma suposta ordem coletiva.
É na cidade que, atualmente, se experimenta uma experiência rentável, crítica, combatida e temida, denominada “Guerra Urbana”[21]. Guerra que tem, no espaço urbano, o seu campo de batalha e na contenção de parte da população o seu objetivo. Tal contenção, como se pode esperar, favorece a segregação, exclusão e a formação de guetos, ou seja, formação de um aparelho socioespacial de segmentação e de controle etnorracial[22]. É importante observar, em termos de segregação na cidade, que estes aparelhos, os guetos, são concebidos tanto por alguns que se sentem vítimas de uma criminalidade crônica quanto por outros que são reprimidos e reclusos nas prisões sem muros dos espaços degradados da cidade. E é justamente através da cidade que se pode vislumbrar a constituição deste tipo de segregação que se dá a partir do sentimento de insegurança na própria cidade.
Ademais, nestes espaços incidem as forças estatais destinadas à segurança pública, ao combate da criminalidade. Forças policiais são divididas e orientadas conforme uma divisão espacial, são fixadas em bases comunitárias em alguns bairros, saem em diligências e operações destinadas a abrir ou “tomar” espaços. Enfim, o ambiente da cidade está intrinsecamente ligado à segurança pública, sendo o planejamento urbano democrático[23], então, instrumento indispensável a sua construção com cidadania.
Neste sentido, faz-se relevante traçar uma breve consideração sobre o surgimento e fatores que caracterizaram a urbanização das cidades. Neste sentido, é importante abordar o perfil de formação urbana soteropolitana e os instrumentos de planejamento urbano aptos a mitigação das desigualdades socioespaciais e a fruição do direito à cidade.
REFERÊNCIAS
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[1] SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros 2010. p. 27.
[2] ANGER, Anne Joyce. (Org.) Vade Mecum Universitário de Direito. Coleção de Leis 2010. 8ª ed. São Paulo: Reedel, 2010. p. 1145.
[3] OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Comentários ao Estatuto da Cidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 22.
[4] CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. O Estatuto Epistemológico do Direito Urbanístico Brasileiro: possibilidades e obstáculos na tutela do direito à cidade. IN: COUTINHO, Ronaldo. e BONIZZATO, Luigi. (orgs.) Direito da Cidade: Novas Concepções Sobre as Relações Jurídicas no Espaço Social Urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 56.
[5] JARDIM, Zélia Leocádia da Trindade. Regulamentação da Política Urbana e Garantia do Direito à Cidade. IN: COUTINHO, Ronaldo. e BONIZZATO, Luigi. (orgs.) Direito da Cidade: Novas Concepções Sobre as Relações Jurídicas no Espaço Social Urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 98.
[6]BRASIL. IBGE. Cidades. IN: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1. Acesso em 25 de maio de 2011.
[7] BRASIL. Constituição Federal (1988) IN: http://www.planalto .gov.br/ccivil_03/ constituicao/ constitui%C3%A7ao.htm. Acessado em 25 de maio de 2011.
[8] Idem.
[9] BRASIL. Constituição Federal (1988) IN: http://www.planalto .gov.br/ccivil_03/ constituicao/ constitui%C3%A7ao.htm. Acessado em 25 de maio de 2011.
[10] BRASIL. Decreto Lei 10.257/2001.IN: http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/LEIS_2001/L10257.htm. Acesso em 25 de maio de 2011.
[11] BRASIL. Decreto Lei nº 10257/2001. IN: http://www.planalto.gov.br /ccivil/leis/LEIS_2001/ L10257 .htm. Acesso em 25 de maio de 2011.
[12] SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 89.
[13] BRASIL. Decreto Lei nº 10257/01. op.cit., Acessado em 25 de maio de 2011.
[14] BRASIL. Constituição Federal (1988) IN: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao /constitui%C3%A7ao.htm. Acessado em 25 de maio de 2011.
[15] SALVADOR. Lei nº 7.400/2008. IN: http://www.desenvolvimentourbano.salvador.ba.gov.br/. Acesso em 25 de maio de 2011.
[16] Idem.
[17]SALVADOR. Lei 7400/2008. IN: http://www.desenvolvimentourbano.salvador.ba.gov.br/. Acesso em 25 de maio de 2011.
[18] SALVADOR. Lei 7400/2008. IN: http://www.desenvolvimentourbano.salvador.ba.gov.br/. Acesso em 25 de maio de 2011.
[19] BAUMAN, Zigmunt. op. cit., p. 15.
[20] FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil: Uma Introdução. IN: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. P. 11.
[21] BAUMAN, Zigmunt. Confiança e Medo da Cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 41.
[22] WACQUANT, Loic. As duas Faces do Gueto. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 09.
[23] Planejamento Urbano vinculado aos princípios da equidade, ou seja, com a justa distribuição dos benefícios, encargos/ônus decorrentes da atuação urbanística. IN: CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. O Estatuto Epistemológico do Direito Urbanístico Brasileiro: Possibilidades e obstáculos na tutela do direito à cidade. IN: COUTINHO, Ronaldo. e BONIZZATO, Luigi. (orgs.) Direito da Cidade: Novas Concepções Sobre as Relações Jurídicas no Espaço Social Urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 63.
Advogada. Mestre em Direito Público - Universidade Federal da Bahia. Professora de Direito Penal e Processo Penal da Universidade Católica de Salvador e da Fascal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Natália Petersen Nascimento. A construção da cidadania através da ordem urbana: a regulamentação da questão urbana como fundamento ao Direito à Cidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 dez 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45746/a-construcao-da-cidadania-atraves-da-ordem-urbana-a-regulamentacao-da-questao-urbana-como-fundamento-ao-direito-a-cidade. Acesso em: 22 nov 2024.
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