1. Introdução
O presente artigo tem o escopo de analisar o texto de Marcelo Neves a Constitucionalização Simbólica e Desconstitucionalização Fática: mudança simbólica da Constituição e permanência das estruturas reais de poder.
Antes de iniciar a discussão sobre a permanência ou mudança das Constituições, faz-se necessário explicar sobre alguns tipos de Constituições. O texto ora em análise, classifica dois tipos: Constituições normativistas e Constituições nominalistas.
2. Mutação nas Constituições normativistas
As Constituições normativistas são aquelas que interferem de forma relevante nas relações reais de poder. Esse tipo de Constituição admite a possibilidade de mudanças. A respeito dessas mudanças, podem-se verificar dois tipos: mudanças que afetam diretamente o texto e mudanças que afetam o sentido normativo da Constituição.
Em relação a mudanças no texto, ainda pode ser feita outra diferenciação em dois processos. A primeira é uma mudança que é feita de acordo com os procedimentos previstos na Constituição, o que se chama de reforma constitucional. Ainda é possível classificar as reformas em emenda (atingem o texto de forma mais específicas) e revisão (mais abrangentes, genéricas). A segunda é uma mudança que é feita através de uma ruptura como ordenamento jurídico constitucional, que pode ser feita através de uma revolução ou simplesmente por motivos políticos.
Sobre o último caso, a mudança do texto de uma Constituição ocasionada por uma revolução é diferente da ocasionada por motivos políticos. Logicamente, ambos atuam modificando a Constituição sem seguir os procedimentos preestabelecidos, acarretando uma ruptura com o conteúdo da ordem jurídica anterior. Porém, no caso da alteração por motivos políticos, há uma continuidade política entre os agentes da antiga e da nova ordem em torno do conteúdo, o que de forma alguma acontece no caso de uma revolução, na qual a ruptura é brusca em todos os aspectos.
No que tange às mudanças que afetam o sentido normativo da Constituição, da mesma forma podem ser realizadas duas possibilidades: mudanças provenientes da interpretação-aplicação constitucional e mudanças resultantes da práxis política. Sobre o primeiro tipo de alteração, que é devido ao modo de interpretar, é preciso ressaltar que a hermenêutica atual faz com que o intérprete, no momento em que ele dê o sentido normativo a partir dos textos jurídicos, leve também em consideração os fatores histórico-sociais nos quais ele está inserido. Ou seja, existem vários valores envolvidos no momento da interpretação-aplicação. Já em relação à mudança decorrente da práxis política, é importante frisar que devido às relações de poder, o modo como se comporta a sociedade e o Estado, podem requerer transformações na Constituição, já que há sempre a necessidade de acrescentar situações novas nela ou retirar as que já estão em desuso.
3. Mutação nas Constituições Nominalistas
Analisar o problema da mutação nas Constituições Nominalistas apresenta um maior grau de dificuldade do que nas normativistas. Nelas, o texto constitucional não se relaciona tão intimamente com a realidade, havendo uma grande diferença entre ambos. Primeiramente, não há uma total aplicabilidade do texto normativo à realidade. Essa situação é o que Marcelo Neves denomina “desconstitucionalização fática” ou “concretização desconstitucionalizante”.
Esse é um grande problema que atinge principalmente os países periféricos, como o Brasil. O que ocorre, nas próprias palavras de Marcelo Neves, é uma degradação semântica do texto constitucional no processo de sua concretização. Diversos fatores, dentre eles o econômico, político, familiar, de boas relações, influenciam diretamente na concretização normativo-jurídica do texto constitucional.
Daí ser válido o argumento que há uma alopoiese do direito nesse contexto. Ora, aqui o texto constitucional não apresenta imunidade aos diversos sistemas sociais. Pelo contrário, há uma quebra da autonomia operacional do sistema jurídico. A desconstitucionalização, portanto, é exatamente essa fragilidade do código jurídico, o que acarreta “na sua incapacidade de generalização congruente e a falta de autonomia/identidade consistente de uma esfera de juridicidade”[1], pois acabam existindo inúmeras formas de interpretá-lo.
Conforme diz Häberle, “nos processos, de interpretação da Constituição, estão potencialmente envolvidos todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadão e grupos”. Entretanto, quando ocorre a concretização desconstitucionalizante, o texto constitucional acaba sendo separado dos agentes estatais e cidadãos, pois não há uma esfera pública pluralista, o que acarreta uma “distância” entre as expectativas dos indivíduos da sociedade e dos órgãos estatais.
A principal consequência da concretização desconstitucionalizante é a manutenção das relações sociais de poder. Numa Constituição como a brasileira, por exemplo, tida como uma das mais bem elaboradas do mundo, se houvesse um acordo com o seu modelo textual, ocorreria na sociedade profundas transformações.
4. “Constitucionalização” como mudança simbólica da Constituição
A desconstitucionalização fática é um requisito indispensável da constitucionalização simbólica. Toma-se o exemplo de um corrupto que se prevalece de determinado texto constitucional para burlar alguma imposição constitucional. Nesse contexto, há uma desconstitucionalização fática, pois existe uma distorção entre o que foi consagrado constitucionalmente e a sua aplicação no contexto fático. Dessa forma, a Constituição é tomada pelo corrupto apenas de forma simbólica, para servir aos seus interesses.
A discussão sobre a constitucionalização simbólica desenvolve-se a partir do debate sobre legislação simbólica. Essa última está relacionada com a distinção entre variáveis instrumentais, expressivas e simbólicas das ciências sociais. As funções instrumentais implicam numa relação meio-fim, uma tentativa de realizar seus objetivos mediante a ação. Já na função expressiva, há uma confusão entre o agir e a satisfação da respectiva necessidade. Por último, a simbólica é caracterizada pelo seu sentido mediato e latente. É importante ressaltar que essas três funções estão sempre presentes na sociedade. Porém, ocorre que, dependendo do contexto, há uma predominância de uma a outra.
No sistema jurídico as variáveis instrumentais e simbólicas encontram-se vinculadas. Dessa forma, para haver a concretização das normas constitucionais é necessário que ocorra a interação entre esses dois componentes. A legislação simbólica se diferencia justamente pela hegemonia da função simbólica, o que explica a decadência da função jurídico-instrumental.
5. Considerações finais
Antes de pôr fim a esse trabalho, é importante fazer mais uma ressalva. Uma das consequências dessa problemática é a generalização das relações de subintegração e sobreintegração. Entende-se por subintegrados aqueles indivíduos componentes das camadas populares “marginalizadas”; e por sobreintegrados, o grupo privilegiado, que detém o controle das relações sociais.
Destarte, em relação aos subintegrados há uma ilusão que eles estão “excluídos” do ordenamento jurídico. Na realidade, o que ocorre é que lhes faltam as condições reais de exercer os direitos fundamentais constitucionalmente declarados, ao mesmo tempo em que não estão liberados dos deveres e responsabilidades impostas pelo aparelho coercitivo estatal[2]. Por isso, numa rápida análise dessa situação, é fácil reparar que a maioria deles são devedores, indiciados, denunciados, réus, condenados etc. Em consequência do referido, eles veem a Constituição só nos seus efeitos restritivos da liberdade e o aparelho estatal na sua atividade repressiva.
Já em relação aos sobreintegrados ocorre o contrário. Com o apoio da burocracia estatal, desenvolvem suas ações bloqueantes da reprodução do Direito. Ou seja, se o texto constitucional for favorável aos seus interesses, eles o aproveitam para seus fins, como o exemplo do corrupto supracitado. Caso a Constituição não seja favorável, impondo limites as suas ações políticas, ela é simplesmente posta de lado. Portanto, a Constituição, para essa camada social detentora do poder, não atua como “limite” do agir jurídico-político, mas sim como uma oferta que, conforme a eventual constelação de seus interesses, será usada, desusada ou abusada por eles[3].
O agir e o vivenciar normativo desses dois grupos, portanto, fazem implodir a Constituição como ordem básica da comunicação jurídica. Dessa forma, como já anteriormente dito, ela deixa de atuar como mecanismo de autonomia operacional do Direito, sendo deformada durante o processo concretizador por força de interesses particularistas e econômicos de uma minoria social, que visa a manter o status quo.
Isso tudo nos remete novamente à chamada constitucionalização simbólica. A insuficiente concretização normativa do texto constitucional vincula-se intimamente com a função político-ideológica que pretende a manutenção das relações de subintegração e sobreintegração.
Diante de tal contexto, portanto, na medida em que se amplia a falta de concretização normativa do texto constitucional, intensifica-se a desconfiança por parte dos indivíduos da sociedade em relação ao Estado, exatamente como ocorre no Brasil. Como conseqüência, tem-se o cinismo dos sobreintegrados e a apatia dos subintegrados, dando espaço para uma desordem social.
6. Referências
NEVES, Marcelo. Constitucionalização Simbólica e Desconstitucionalização Fática: mudança simbólica da constituição e permanência das estruturas reais de poder. Trabalho apresentado à XV Conferência da Ordem dos Advogados do Brasil, realizada em Foz do Iguaçu , de 04 a 08 de setembro de 1994.
NEVES, Marcelo. Do pluralismo jurídico à miscelânia social: o problema da falta de identidade da(s) esfera(s) de juridicidade na modernidade periférica e suas implicações na América Latina. Anuário do Mestrado em Direito. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, CCJ, Faculdade de Direito do Recife. 1993.
[1] NEVES, Marcelo. Constitucionalização Simbólica e Desconstitucionalização Fática: mudança simbólica da constituição e permanência das estruturas reais de poder. Trabalho apresentado à XV Conferência da Ordem dos Advogados do Brasil, realizada em Foz do Iguaçu, de 04 a 08 de setembro de 1994.
[2] NEVES, Marcelo. Do pluralismo jurídico à miscelânia social: o problema da falta de identidade da(s) esfera(s) de juridicidade na modernidade periférica e suas implicações na América Latina. Anuário do Mestrado em Direito. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, CCJ, Faculdade de Direito do Recife. 1993.
[3] Idem.
Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco em 2013.2; Pós Graduada em Direito Público pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus; Pós Graduada em Direito Administrativo pelo Instituto Elpídio Donizetti.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BORGES, Clarissa Pereira. Análise sobre o texto Constitucionalização Simbólica e Desconstitucionalização Fática: mudança simbólica da Constituição e permanência das estruturas reais de poder de Marcelo Neves Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 jan 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45812/analise-sobre-o-texto-constitucionalizacao-simbolica-e-desconstitucionalizacao-fatica-mudanca-simbolica-da-constituicao-e-permanencia-das-estruturas-reais-de-poder-de-marcelo-neves. Acesso em: 22 nov 2024.
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