RESUMO: Este trabalho pretende expor a problemática da coisa julgada inconstitucional, instituto denominado assim pela doutrina, referindo-se à coisa julgada baseada em decisão com fundamento em lei, posteriormente declarada, inconstitucional. O estudo inicia-se através do estudo da coisa julgada inconstitucional, expondo os princípios norteadores da coisa julgada como o da segurança jurídica, objetivando alcançar o fim do litígio e a estabilidade da decisão, levantando assim a discussão da relativização deste princípio e a modulação dos efeitos da sentença para que se prevaleça a justiça das decisões. Por fim, ressaltando a divergência doutrinária em relação ao instituto da coisa julgada inconstitucional e a necessidade de relativização desta para não se eternizar julgados que são contrárias à Constituição, desta forma eternizando uma injustiça.
Palavras-chave: Coisa Julgada; Supremacia da Constituição; Controle de Constitucionalidade; Segurança Jurídica; Coisa Julgada Inconstitucional.
Sumário: Introdução. 1 O princípio da segurança jurídica. 2 A coisa julgada inconstitucional. 3 Efeitos da coisa julgada inconstitucional e a relativização do princípio da segurança jurídica em detrimento da coisa julgada. Considerações Finais. Referências.
Introdução
O objetivo deste artigo é estudar a coisa julgada inconstitucional e com isso a possibilidade da flexibilização da coisa julgada.
Dessa forma, contribui o presente estudo para a discussão que se afirma na atualidade acerca da necessidade de uma nova dimensão para o Direito, não limitado somente à lei, interpretado muito além de uma visão puramente mecanicista. Tal certeza se baseia na importância da dimensão axiológica dos princípios – aspecto fundamental para que se alcance a justiça das decisões.
Assim, será tratado a coisa julgada inconstitucional, analisando o princípio da segurança jurídica, o conceito doutrinário do instituto, seus efeitos, apresentando assim a possibilidade de relativização, modulação e flexibilização para garantir a justiça das decisões e a supremacia constitucional.
Para a execução do artigo realizar-se-á uma pesquisa bibliográfica do tipo exploratória, a partir do método de abordagem dedutivo.
1 O princípio da segurança jurídica
A República Federativa do Brasil é constituída em seu regime político em um Estado Democrático de Direito, como preconizado pelo artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – (CRFB/88), garantindo assim a todos direitos e garantias, fundadas em normas e princípios fundamentais.
Cunha Júnior e Novelino (2010, p.10) trazendo o conceito de Estado Democrático de Direito aduzem que
A noção de Estado democrático de direito está indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais, porquanto se revela um tipo de Estado que busca uma profunda transformação do modo de produção capitalista, com o objetivo de construir uma sociedade na qual possam ser implantados níveis reais de igualdade e liberdade.
Fazuoli (2002, p.84) diz estar a democracia no meio da expressão Estado Democrático de Direito para qualificar o Estado e intermediar sua relação com o Direito. E completa “só através da democracia se atingirá o direito pelo qual o Estado e também a sociedade civil devem se pautar”.
Mendes, Coelho e Branco (2008) informam que em decorrência dos princípios correlacionado no artigo 1º da CRFB/88 que fundamentam o Estado Democrático de Direito outros se derivam, propiciando aos cidadãos plenos direitos.
Completando o entendimento Mendes, Coelho e Branco(2008, p. 149):
[...] entende-se como Estado Democrático de Direito a organização política em que o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes, escolhidos em eleições livres e periódicas, mediante sufrágio universal e voto direto e secreto, para o exercício de mandatos periódicos, como proclama, entre outras, a Constituição brasileira. Mas ainda, já agora no plano das relações concretas entre o Poder e o indivíduo, considera-se democrático aquele Estado de Direito que se empenha em assegurar aos cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos, mas também e sobretudo dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos.
Esses direitos salvaguardados aos cidadãos se materializam através das leis, normas e princípios, sendo estes essenciais para a garantia dos direitos individuais e coletivos.
Evidencia-se desta forma a importância dos princípios constitucionais para o ordenamento jurídico brasileiro, sendo norteadores para interpretação das leis e normas, bem como para a efetivação do direito, preenchendo até mesmo lacunas deixadas pelo legislador.
Machado (2005) informa que no ordenamento jurídico brasileiro a lei é a principal fonte do direito, sendo que para o entendimento e a aplicação desta é fundamental destacar o valor dos princípios. É o que preconiza o artigo 4º da LINDB: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. (BRASIL, 1942).
Segundo Barroso (2001,p.149), os princípios constitucionais servem de início para a interpretação da Constituição e completando
O ponto de partida do intérprete há que ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. A atividade de interpretação da Constituição deve começar pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie.
Diante de garantias constitucionais da interpretação da norma constitucional e da democracia, faz-se necessário a observância de um específico princípio, sendo este o da segurança jurídica, pois não se alcança democracia e se resguarda direito sem obtenção de segurança nas relações jurídicas. Assim, Ávila (2004, p. 295) conceitua o princípio da segurança jurídica, dizendo que:
O princípio da segurança é constituído de duas formas. Em primeiro lugar, pela interpretação dedutiva do princípio maior do Estado de Direito (art. 1º). Em segundo lugar, pela interpretação indutiva de outras regras constitucionais, nomeadamente as de proteção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (art. 5º, XXXVI) e das regras da legalidade (art. 5º, II e art. 150, I), da irretroatividade (art. 150, III, a) e da anterioridade (art. 150, III, b). [...] Em todas essas normas a Constituição Federal dá uma nota de previsibilidade e de proteção de expectativas legitimamente constituídas e que, por isso mesmo, não podem ser frustradas pelo exercício da atividade estatal.
Nesse paradigma, observa-se que o princípio da segurança jurídica é o cerne do estado Democrático de Direito, um princípio que tem como fundamento trazer equilíbrio às relações jurídicas.
Mendes, Coelho e Branco (2008, p. 487) preceituam que mudanças no sistema jurídico suscitam observância da segurança jurídica, afirmando que a “idéia de segurança jurídica torna imperativa a adoção de cláusulas de transição nos casos de mudança radical de um dado instituto ou estatuto jurídico”.
Ávila (2006) informa que o princípio da segurança jurídica é o resultado da interpretação indutiva da legalidade, anterioridade e irretroatividade, significando o dever de busca do estado de previsibilidade, confiabilidade e estabilidade, mas, exatamente por isso, muitas vezes será a exigência da estabilidade que irá exigir a flexibilização da exigência da lei.
Percebe-se então, a relevância deste princípio, pois é através dele que se garante a estabilidade nas relações jurídicas, para que mudanças não venham a proporcionar instabilidades e nem suscitar questionamentos a litígios já solucionados.
No entanto, tal princípio vem sendo questionado em situações de inconstitucionalidade, pois a soberania da Constituição é princípio maior que rege todo o direito brasileiro, suscitando desta forma, o debate sobre ser possível relativizar a segurança jurídica em caso de decisões baseadas em leis declaradas inconstitucionais, a chamada coisa julgada inconstitucional.
2 A coisa julgada inconstitucional
Atualmente, a coisa julgada é tratada fundamentalmente como garantia constitucional, previsto no artigo 5º, inciso XXXVI, da CRFB/88.
Neves (2010) afirma que a necessidade do instituto denominado coisa julgada, faz-se necessária para dar estabilidade às decisões, tornando a sentença imodificável. A prolação da sentença, sempre ocorrerá independente da natureza do processo, sendo esta suscetível a recurso. Exaurindo-se todas as vias de recurso, ocorre, assim, o trânsito em julgado.
Trata-se a coisa julgada de uma cláusula pétrea da CRFB/88, no entanto, ocorrem momentos em que decisões judiciais são proferidas com fundamento em leis que estão em desacordo com a CRFB/88, tornando a coisa julgada em coisa julgada inconstitucional.
Uma lei declarada inconstitucional traz um problema, pois esta produziu efeitos no sistema jurídico e litígios podem ter sidos solucionados. Geram-se assim incertezas, pois a decisão baseada na lei agora inconstitucional deve ser desconstituída para que não ofenda a CRFB/88. Nesse sentido, Beraldo (2005, p. 187) afirma:
[...] a coisa julgada foi criada para trazer, principalmente, segurança jurídica à sociedade. No entanto, a partir do momento em que se torna possível a convalidação no tempo de uma decisão inconstitucional, temos que, aí sim, exsurgirão insegurança e incerteza entre nós.
Iniciando a discussão do instituto da coisa julgada inconstitucional, faz-se necessário conceituá-lo.
Segundo Neves (2010, p.508), “trata-se da possibilidade de sentença de mérito transitada em julgado causar uma extrema injustiça, com ofensa clara e direta a preceitos e valores constitucionais fundamentais”.
Para Câmara (2005, p. 133), a coisa julgada inconstitucional é aquela cujo “conteúdo da sentença ofende a Constituição da República”, esclarecendo ainda que “a inconstitucionalidade é o mais grave vício que pode acometer um ato jurídico”.
Mascaro (2010, p. 182) elucida as modalidades de inconstitucionalidade da coisa julgada:
As três modalidades principais de inconstitucionalidade da coisa julgada seriam a decisão que viola direta e imediatamente preceito ou princípio constitucional, a decisão que aplica uma norma inconstitucional, e a decisão que não aplica determinada norma sob o pretexto de sua inconstitucionalidade, quando este vício é inexistente.
Passa-se então à discussão em torno da garantia dada pelo legislador constituinte à coisa julgada.
Machado (2005, p. 84) afirma que “o cerne da discussão reside em saber se esta previsão constitucional abarca a imutabilidade e a intangibilidade da coisa julgada, como direitos fundamentais e como cláusulas pétreas da Constituição”, ressalta ainda que “não pode ser conferida interpretação tão ampla ao referido dispositivo constitucional”.
Nesse sentido, Nascimento, Theodoro Júnior e Faria (2011, p.173) posicionam-se dizendo que o legislador constituinte intencionou em proteger a coisa julgada apenas de nova lei, sendo a imutabilidade e a indiscutibilidade concebida por lei ordinária. E acrescentam:
[...] a preocupação do legislador constituinte foi apenas a de pôr a coisa julgada a salvo dos efeitos de lei nova que contemplasse regra diversa de normatização da relação jurídica objeto de decisão judicial não mais sujeita a recurso, como uma garantia dos jurisdicionados. Trata-se, pois, de tema de direito intertemporal em que se consagra o princípio da irretroatividade da lei nova.
Beraldo (2005, p. 223), em consonância com o exposto, afirma que “a proteção da coisa julgada pela Constituição é apenas com relação à vedação de uma lei posterior não poder retroagir e modificar o julgado”, [...] “a decadência do direito de atacar a coisa julgada é regra infraconstitucional; não pode sobrepor-se à própria ordem constitucional, na qual todos os direitos se fundam”.
Ressaltam-se assim posicionamentos doutrinários diversos em que uma corrente traz o entendimento de que a coisa julgada tem como garantia a não irretroatividade de lei, e a outra corrente informa que a coisa julgada é imutável após o seu trânsito em julgado, mesmo sendo uma decisão baseada em lei inconstitucional.
Marinoni (2010, p.69) afirma que a coisa julgada resguarda a segurança das relações, garante o fim do litígio, prevalecendo assim o efeito de imutabilidade das decisões:
A coisa julgada expressa a necessidade de estabilidade das decisões judiciais, vistas como atos de positivação do poder, motivo pelo qual, se há sentido em garantir a sua imodificabilidade diante do Legislativo, é mais evidente ainda a imprescindibilidade de se tutelar a sua irretroatividade em relação ao Judiciário. Se a decisão judicial, embora inviolável pelo Legislativo, pudesse ser livremente negada exatamente por aquele que a produziu, não existiria a segurança jurídica indispensável ao Estado de Direito.
Por outro lado, Dinamarco (2001) preconiza que a ordem constitucional não tolera que se eternizem injustiças a pretexto de não eternizar litígios. Nesse sentido é que se chega à relativização da coisa julgada, pois uma lei inconstitucional não pode ser alicerce de uma decisão. Entretanto, tem um conflito entre dois grandes princípios de importante relevância para o ordenamento jurídico brasileiro, qual seja, a segurança jurídica e a garantia do direito justo ou justiça das decisões.
A proteção à coisa julgada tem como alicerce o princípio já explicado que é o da segurança jurídica, no entanto, deve verificar a extensão da aplicabilidade de tal princípio quando em confronto com a também consagrada justiça das decisões.
Wambier e Medina (2003) afirmam que “a razão de ser da proteção constitucional da coisa julgada é a segurança jurídica, mas entende que em determinadas situações esse princípio deveria ser relativizado, em nome de outros, mais relevantes para aquele momento”, como a efetividade e a justiça da decisão.
A segurança jurídica como propósito da Constituição, segundo Canotilho (1998, p.252) afirma que “a clareza e a transferência dos atos do poder, de forma que, em relação a eles, o cidadão veja garantida a proteção dos efeitos jurídicos dos seus próprios atos”.
No entender de Delgado (2002, p.107), as decisões contrárias à Constituição nunca terão força de coisa julgada e “poderão ser a qualquer tempo desconstituídas, porque praticam agressão ao regime democrático no seu âmago mais consistente que é a garantia da moralidade, da legalidade, do respeito à Constituição e da entrega da justiça”.
Desta maneira, a declaração de inconstitucionalidade de uma lei produz efeitos que modificam a norma jurídica, consequentemente afetando a coisa julgada que foi baseada em lei declarada inconstitucional. Ocorrendo assim divergências doutrinárias, pois a lei garante que a coisa julgada não pode ser afetada, contudo sendo mantida a sua imutabilidade pode gerar um conflito entre a segurança jurídica e a justiça das decisões judiciais.
3 Efeitos da coisa julgada inconstitucional e a relativização do princípio da segurança jurídica em detrimento da coisa julgada
A coisa julgada tem como objetivo pôr fim ao litígio e garantir sua imodificabilidade, no entanto, quando fundada em uma lei inconstitucional, gera instabilidade, pois fere a CRFB/88, abalando assim sua supremacia.
Machado (2005) esclarece que a sentença que viola a Constituição deve ser considerada nula, afirma ainda que seus efeitos acarretariam uma quebra da ordem constitucional e do Estado Democrático de Direito.
Completam o pensamento acima Nascimento, Theodoro Júnior e Faria (2011, p. 187):
Uma decisão judicial que viole a Constituição, ao contrário do que sustentam alguns, não é inexistente. Não há na hipótese de inconstitucionalidade mera aparência de ato. Sendo desconforme à CF o ato existe se reúne condições mínimas de identificabilidade das características de um ato judicial. Mas, contrapondo-se à exigência absoluta da ordem constitucional, falta-lhe condição para valer, isto é, falta-lhe aptidão ou idoneidade para gerar os efeitos para os quais foi praticado. Assim embora existente, a exemplo do que se dá com a lei inconstitucional, o ato judicial é nulo, estando sujeito, em regra geral, aos princípios aplicáveis a quaisquer outros atos jurídicos inconstitucionais.
Ressalta-se o quanto é complexo o tema abordado, pois compromete a estabilidade de todo o contexto do ordenamento jurídico.
Nesse sentido, percebe-se o quanto delicados se tornam os institutos da coisa julgada inconstitucional e da segurança jurídica. Dessa forma, explica Beraldo (2005, p. 186):
A segurança e a certeza jurídicas apenas são passíveis de salvaguardar ou validar efeitos de atos desconformes com a Constituição quando o próprio texto constitucional expressamente admite. Fora de tais situações, repete-se, os valores da segurança e da certeza não possuem força constitucional autônoma para fundamentarem a validade geral de efeitos de atos inconstitucionais.
Observa-se que a coisa julgada inconstitucional não deve prevalecer, pois esta não é superior à CRFB/88, é o que afirma Machado (2005, p. 125):
[...] a coisa julgada não é em si mesma um efeito e não tem dimensão própria, mas a dimensão dos efeitos da sentença sobre os quais incida, é forçoso que ela não se imponha quando os efeitos da sentença se mostram impossíveis juridicamente por contrariarem a ordem constitucional.
No entanto, faz-se necessária a busca de uma solução no que se refere à coisa julgada inconstitucional, devendo-se obter um consenso para melhor chegar a um desfecho em que se salvaguardem os preceitos fundamentais do Direito, sendo este o da supremacia da Constituição.
Mascaro (2010) explica a coisa julgada inconstitucional afirmando que esta é fundada nos casos de ofensa à CRFB/88 e nos casos de declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), cujo efeito é em regra ex tunc, adentrando assim na possível relativização deste efeito. E completa afirmando:
[...] a interpretação da legislação se dá com vistas a assegurar o sistema vigente, ao passo que as anteriormente apontadas demonstram um suposto conflito existente entre a Carta Magna e a lei, de forma que sempre se ficaria com a lei superior; daí, portanto, o surgimento de teorias de relativização da coisa julgada pelo conflito com a Constituição. (MASCARO, 2010, p.86/87)
No entanto, sabe-se que para se desconstituir a coisa julgada é preciso ingressar com a ação rescisória, sendo que esta tem prazo de 2 (dois) anos, conforme estabelece o artigo 495 do Código de Processo Civil; após passado este prazo não mais poderia ser desconstituído mesmo sendo uma decisão com fundamento inconstitucional, eternizando assim uma injustiça, pois não se tem atualmente no ordenamento jurídico brasileiro lei que regule os casos em que o surgimento da coisa julgada inconstitucional ultrapasse o prazo da ação rescisória.
Desse modo, prevalece o entendimento que após esse período não mais se pode promover nenhuma ação que desconstitua a coisa julgada, ainda que inconstitucional, o que parece um contra-senso, conforme aponta Santos (2004, p. 6):
[...] num Estado de Direito Democrático não se pode conviver com sentenças inconstitucionais, sob pena de ofensa à soberania, à justiça, à moralidade e afronta às garantias do cidadão. Assim, não se pode permitir que tudo isso aconteça em nome de uma segurança, que não deve ser examinada, a não ser como espelho de uma boa justiça, impedindo a impugnação de uma coisa julgada inconstitucional, a nível de recurso, ou rescisória, de prazos esgotados.
Nesse paradigma, é que se levanta a questão de relativização do princípio da segurança jurídica, para que não se eternizem decisões baseadas em leis inconstitucionais, sendo a coisa julgada um dos pilares da segurança jurídica.
Como afirma Mascaro (2010, p. 205):
[...] a coisa julgada é um princípio constitucional que garante a segurança jurídica das relações. Por outro lado, por ser um instituto de limitação temporal, assim como o são o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, podem surgir construções consideradas pela sociedade em conflito com a justiça.
Nascimento, Theodoro Júnior e Faria (2011, p.207) afirmam que “a coisa julgada inconstitucional é nula e, como tal, não se sujeita a prazos prescricionais ou decadenciais”, preceituam ainda que não se devam garantir incertezas, não podendo estabelecer a segurança jurídica somente entendida na regra positiva, dependendo sim de certeza e validade de seus efeitos. E acrescentam Nascimento, Theodoro Júnior e Faria (2001, p.112):
Sendo razoável supor que a segurança jurídica configura, no plano axiológico, um valor alto do sistema jurídico, não menos verdade é que ela não pode ser utilizada como uma garantia de insegurança. Por justo motivo, não pode ser ela elevada ao patamar de imutabilidade, sem restrições de qualquer ordem. Equivoca-se aquele que pensa ser a fórmula da inalterabilidade da sentença a solução para o problema referente ao fim da controvérsia, pela imposição de uma segurança inexistente.
Assim, busca-se sustentação para a relativização da coisa julgada e a modulação dos efeitos da sentença declaratória de inconstitucionalidade para alcançar um objetivo maior que é a justiça.
Beraldo (2005, p. 190) ressalta alguns pontos justificando a necessidade de relativização da coisa julgada:
[...] a necessidade de se relativizar a coisa julgada material decorre de vários motivos, quais sejam: a) estamos numa época em que se busca justiça nas decisões, e não é justo eternizar uma decisão inconstitucional com o argumento de preservação dos efeitos decorrentes da auctoritas rei judicatae; [...].
Santos (2004) elucida que mesmo que inicialmente não se possa afastar a segurança que contorna a coisa julgada, não se deve repudiar o preceito de relativizar a coisa julgada em desacordo com a Constituição, pois o fato de ser irrecorrível não apaga a inconstitucionalidade, não podendo ser absoluta a segurança jurídica imposta a este instituto.
Cunha Júnior e Novelino (2010, p.57) trazem o posicionado do STF em relação à coisa julgada inconstitucional:
No tocante a coisa julgada inconstitucional, o STF tem se posicionado no sentido de que a manutenção de soluções divergentes sobre o mesmo tema enfraqueceria a força normativa da Constituição, revelando-se contrária ao princípio da máxima efetividade. Por essa razão, se uma decisão judicial transitada em julgado conferiu uma interpretação à norma constitucional diversa daquela posteriormente adotada pela Corte Suprema, esta decisão poderá ser objeto de ação rescisória. Em se tratando de matéria constitucional, não se aplica a Súmula 343 do STF (“Não cabe ação rescisória por ofensa a literal dispositivo de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”).
Completando o entendimento, Nascimento, Theodoro Júnior e Faria (2011, p. 203/205) trazem a orientação do STF com o julgamento RE (AgR) 328.812/AM, rel. Min. Gilmar Mendes.
No que tange à inaplicabilidade da Súmula 343/STF, tenho reiteradamente observado nesta Corte que este verbete precisa ser revisto. Refiro-me, especificadamente, aos processos que identificam matéria contraditória à época da discussão originária, questão constitucional, bem como jurisprudência superveniente fixada, em favor da tese do interessado. [...] No âmbito específico do inciso V, o propósito imediato é o de garantir a máxima eficácia da ordem legislativa em sentido amplo. Para isto, permite-se a excepcional rescisão daqueles julgados em que o magistrado violou, nos termos do CPC, “literal disposição de lei”. [...] A violação à literal disposição de lei obviamente contempla a violação às normas constitucionais, o que poderia ser considerado como um tipo de violação “qualificada”. [...] Indaga-se: nas hipóteses em que esta Corte fixa a correta interpretação de uma norma infraconstitucional, para o fim de ajustá-la à ordem constitucional, a contrariedade a esta interpretação do Supremo Tribunal, ou melhor, a contrariedade à lei definitivamente interpretada pelo STF em face da Constituição ensejaria a utilização da ação rescisória? [...] Penso que sim. Penso que aqui há uma razão muito clara e definitiva para a admissão das ações rescisórias. [...] Nesse ponto, penso que é fundamental lembrar que nas decisões proferidas por esta Corte temos um tipo especialíssimo de concretização da Carta Constitucional. E isto certamente não equivale à aplicação da legislação infraconstitucional. A violação à norma constitucional, para fins de admissibilidade de rescisória, é sem dúvida algo mais grave que a violação à lei. [...] De fato, negar a via da ação rescisória para fins de fazer valer a interpretação constitucional do Supremo importa, a rigor, em admitir uma violação muito mais grave à ordem normativa. [...] Se por um lado a rescisão de uma sentença representa certo fator de instabilidade, por outro não se pode negar que uma aplicação assimétrica de uma decisão desta Corte em matéria constitucional oferece instabilidade maior, pois apresenta uma violação a um referencial normativo que dá sustentação a todo o sistema.
Destarte, no Estado Democrático de Direito deve prevalecer a Supremacia da Constituição, estando as decisões judiciais em conformidade com a Lei Maior que é a Constituição. A ordem jurídica é composta de um equilíbrio das suas relações devendo sempre garantir a justiça, pois hierarquicamente observa-se a Supremacia da Constituição e não a coisa julgada.
Nesse paradigma, observa-se que a modulação dos efeitos da sentença ou a relativização da coisa julgada flexibiliza o instituto da coisa julgada em caso de inconstitucionalidade, suscita indagações e posicionamentos para que não se eternizem injustiças, mas com toda moderação para continuar mantendo a segurança nas relações jurídicas.
Considerações Finais
A CRFB/88 trouxe como garantia constitucional o instituto da coisa julgada, salvaguardando de nova lei, impossibilitando que se rediscuta a matéria já decidida, prevalecendo o princípio da não retroatividade.
O direito brasileiro tem na CRFB/88 a sua Lei Maior, devendo as demais leis estar em consonância com esta, sob pena de ser retirada do sistema jurídico por força do princípio da supremacia da Constituição.
Nesse paradigma, para ter validade a hierarquia das normas constitucionais faz-se necessário a previsão pelo ordenamento jurídico do controle de constitucionalidade.
Contudo, ressalta-se a problemática deste estudo após a declaração de inconstitucionalidade de lei e seus efeitos em torno de sentenças, já transitadas em julgado, proferidas com base em determinada lei, agora inconstitucional, situação a qual se atribui a denominação de coisa julgada inconstitucional.
Desta maneira, observa-se que não há ação prevista no ordenamento jurídico brasileiro para desconstituir a coisa julgada quando já transcorrido o prazo decadencial para propositura da ação rescisória, mesmo que esta esteja baseada em lei inconstitucional, suscitando assim a questão de como legitimar uma decisão, agora inconstitucional frente ao princípio da justiça das decisões, para que não se tenha sentenças que vão em desacordo com a Constituição.
Em regra, a declaração de inconstitucionalidade gera efeitos ex tunc, passando a lei inconstitucional ser um ato inexistente, devendo ser desconstituído qualquer ato baseado nesta lei inconstitucional, para que a supremacia constitucional seja preservada, e mantida a justiça das decisões, logo a coisa julgada inconstitucional deveria ser revista a qualquer tempo nesses casos, sendo esta a primeira corrente adotada por parte da doutrina jurídica brasileira.
No entanto, outra corrente doutrinária levanta o debate que a coisa julgada por questões de segurança jurídica deve ser mantida, atribuindo a declaração de inconstitucionalidade efeito ex nunc, podendo também modular os efeitos desta declaração, ou seja, que a declaração de inconstitucionalidade não alcance a coisa julgada e sim venha a gerar efeitos futuros, mantendo imutável a coisa julgada mesmo esta sendo contrária a Constituição.
Contudo, é uma temática delicada, pois as relações jurídicas necessitam de estabilidade, as partes precisam da solução do litígio e do seu fim, conferindo a esta relação a segurança jurídica que é um dos princípios basilares do direito brasileiro. No entanto, não hierarquizando os princípios, mas ponderando um sistema jurídico coeso, para um concreto Estado de Democrático de Direito, deve-se sempre imperar a justiça nas decisões e o respeito ao princípio da soberania da Constituição, relativizando assim o princípio da segurança jurídica.
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WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada: hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
Advogada. Pós-Graduada em Direito Público comênfase em Direito Processual e Militar pelas Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros - MG. Pós-Graduada em Didática e Metodologia do Ensino Superior pela Universidade Estadual de Montes Claros - MG. Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros - MG. Bacharel em Sistemas de Informação pela Faculdade de Computação de Montes Claros -MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIEIRA, Ingrid Freire da Costa Coimbra. A coisa julgada inconstitucional e a relativização do princípio da segurança jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jan 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45836/a-coisa-julgada-inconstitucional-e-a-relativizacao-do-principio-da-seguranca-juridica. Acesso em: 22 nov 2024.
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