RESUMO: O presente trabalho objetiva analisar a crescente influência dos precedentes judiciais no sistema jurídico brasileiro. Primeiramente, examinou-se o conceito das expressões precedente e jurisprudência, abordando-se a utilização de tais expressões no Brasil. Em seguida, analisou-se as principais reformas legislativas responsáveis pela valorização do precedente judicial no sistema jurídico brasileiro, verificando-se a possível causa, consequências e os valores envolvidos em tal processo, passando-se, finalmente, ao exame de posicionamento doutrinário que sustenta a adoção dos precedentes obrigatórios/vinculantes, abordando-se, por isso, as técnicas de superação [flexibilização] das decisões provenientes dos órgãos jurisdicionais. O tema escolhido justifica-se pela ascensão dos precedentes em um sistema de preponderância das leis escritas, mudança verificada por meio de sucessivas alterações legislativas que criaram diversos mecanismo de resolução mecanizadas de ações processuais, conferindo aos magistrados prerrogativas de pôr fim às controvérsias baseando-se, às vezes unicamente, em entendimentos estabelecidos em decisões anteriores. Diante disso, conclui-se que aos juízes e tribunais cabe a responsabilidade de estarem atentos às novas mudanças e aos anseios da sociedade, primando não apenas pela concretude da celeridade, mas por todos os valores essenciais ao exercício da função jurisdicional.
Palavras-chave: Precedentes Judiciais. Jurisprudência. Valorização dos precedentes.
INTRODUÇÃO
Pautado originariamente nos preceitos do civil law, o sistema jurídico brasileiro tem assistido, ao longo dos anos, ao inegável crescimento da importância dos precedentes judiciais, instituto jurídico de primazia nos países originários da common law. A elevada demanda processual tem exigido respostas mais céleres do poder judiciário, ensejando a criação de mecanismos de resolução sumária e mecanizada dos litígio submetidos aos órgãos jurisdicionais.
De fato, observa-se muito frequentemente a criação, por lei, de mecanismos processuais que põem à disposição dos magistrados um amplo leque de possibilidades de resolução de conflitos, outrora inexistentes. Por sua vez, muitas dessas reformas legislativas autorizam que os tribunais julguem se baseando exclusivamente em interpretação delimitada em momento anterior pelo próprio judiciário, suprimindo, por vezes, etapas processuais previstas para elucidação de pontos controvertidos.
Desse modo, a jurisprudência se tornou ponto de referência na elaboração de conceitos e institutos jurídicos. Em razão disso, autores chegam a sustentar que o Brasil, atualmente, adota um sistema híbrido, no qual subsistem características advindas do civil law e da common law.
Evidentemente, pela relevância do tema e dos valores envolvidos, esse fenômeno de valorização da atividade judicial levanta inúmeras discussões. A excessiva busca por celeridade, no intuito de otimizar o trabalho dos magistrados, pode acabar por ferir outros valores de igual relevância. É de clareza meridiana que a abreviação do tempo de tramitação de processos por meio da supressão de procedimentos, que, por vezes, descarta a análise do próprio mérito das demandas, pode suprimir, igualmente, a efetividade dos provimentos judiciais. Há doutrinadores que defendem, inclusive, que o corte de etapas processuais pode acabar sacrificando o próprio contraditório.
Diante disso, a aparente facilidade de por fim a uma relação processual com a mera reprodução de entendimento estabelecido em momento anterior exige dos magistrados cautela e, principalmente, maturidade para saber identificar as hipóteses em que as decisões outrora proferidas podem ser estendidas aos casos vindouros, sob pena do sistema ser aplacado por uma avalanche de decisões desprovidas de eficácia e justiça.
Logo, é de extrema pertinência o estudo do tema proposto, devendo lhe ser dispensado a atenção devida.
Não obstante, se mostra relevante demonstrar a gradual evolução do papel que a jurisprudência tem exercido no brasil, apontando as respectivas leis que aumentaram sua importância em nosso meio jurídico, sem ter a pretensão, contudo, de esgotar exaustivamente todos os dispositivos legais existentes nesse sentido.
Sobreleva, ainda, destacar posicionamento doutrinário que defende a adoção de um sistema de precedentes vinculantes, de forma que se faz importante descrever as técnicas de superação [flexibilização] dos provimentos obrigatórios, notadamente o distinguishing e o overruling, geralmente utilizadas nos países oriundos da common law.
Advirta-se, por fim, que no presente trabalho não foram analisados os dispositivos do novo CPC, uma vez que a nova codificação ainda não encontra-se em vigor.
1 PRECEDENTE E JURISPRUDÊNCIA
Inicialmente, cumpre analisar os conceitos de precedente e jurisprudência, destacando, desde já, que alguns doutrinadores pregam que tais expressões seriam nitidamente distintas, de aplicação variável às nuances do sistema no qual são utilizadas.
Nesse sentido, Michele Taruffo sustenta que:
quando se fala em precedente se faz normalmente referência a uma decisão relativa a um caso particular, enquanto que quando se fala da jurisprudência se faz normalmente referência a uma pluralidade, frequentemente bastante ampla, de decisões relativas a vários e diversos casos concretos.[1]
De acordo com o magistério de Taruffo, nos sistemas pautados na utilização do precedente seria possível identificar a decisão paradigma, pois apenas ela seria mencionada como tal na fundamentação do caso sucessivo, de modo que a possibilidade de aplicá-la ou não aos casos similares seria averiguada por meio da adequação fática do anterior ao posterior. De outra sorte, nos sistemas de tradição eminentemente jurisprudencial, haveria referência a várias decisões no corpo da sentença - ou provimento diverso -, dificultando a distinção de qual delas seria realmente importante ou necessária.[2]
Nesse contexto, para Tarrufo a aplicação do precedente pressupõe necessariamente o exame das circunstâncias de fato que o originaram, asseverando que:
Fica claro que a estrutura fundamental do raciocínio que sustenta e aplica o precedente ao caso sucessivo é fundada na análise dos fatos. Se esta análise justifica a aplicação ao segundo caso da ratio decidendi aplicada ao primeiro, o precedente é eficaz e pode determinar a decisão do segundo caso. Note-se que, quando se verificarem estas condições, um só precedente é suficiente a fundamentar a decisão do caso sucessivo.[3]
Na contramão, ao tecer comentários sobre a jurisprudência, sustenta que:
O emprego da jurisprudência tem características bastante diversas. Primeiramente, falta a análise comparativa dos fatos, ao menos na grandíssima maioria dos casos. Aqui, o problema depende daquilo que em verdade “constitui” a jurisprudência: trata-se, como se sabe, sobretudo dos enunciados elaborados pelo departamento competente que existe junto à Corte de Cassação. A característica mais importante dos enunciados é que se trata de formulações verbais, concentrada em uma ou em poucas frases, que tem por objeto regras jurídicas.[4]
Ademais, embora o autor seja de origem italiana, referindo-se, assim, ao procedimento adotado na Corte de seu país de origem, tal asserção acerca das características da jurisprudência pode ser enquadrada com perfeição na realidade jurídica brasileira, de sistema similar aquele, na qual a fundamentação dos elementos decisórios pauta-se em enunciados de ementas dos julgados paradigmas, não raro utilizados sem a devida adequação fática que autorizariam a reprodução do entendimento ou tese anterior.
Com essa linha de pensamento, Taruffo desenvolve a ideia de uma distinção de natureza quantitativa e qualitativa entre precedente e jurisprudência. No tocante ao aspecto quantitativo, prega que o precedente se configura por uma única decisão extensível a todos os casos similares, enquanto a jurisprudência remeteria a uma série de julgados, concernentes a inúmeros casos concretos. Em relação ao aspecto qualitativo, sustenta que o precedente cria um parâmetro que pode ser aplicado a todas as hipóteses cujos fatos sejam semelhantes, enquanto na jurisprudência a ausência de comparação entre os fatos e a utilização de várias decisões constituiriam óbice à identificação do que realmente seria o precedente.[5]
Reforçando esse raciocínio, Ricardo Tavares Baraviera, embora não distingua precedente de jurisprudência, reputa as decisões judiciais como regras reguladoras de casos concretos e, em assim sendo, “se o caso em análise não for similar ao do precedente, não há que se falar em interpretação, mas em não aplicação”.[6]
Desse modo, Ricardo Baraviera critica a utilização de enunciados ou ementas como manifestação de entendimentos jurisprudenciais perfeitamente acabados, ausente de verificação criteriosa acerca das especificidades de cada caso, decorrente da valorização dos precedentes pelo Código de Processo Civil, afirmando que a:
Consequência inevitável da globalização, o plano cultural, é a circulação dos modelos jurídicos de civil law e de common law. Nesse sentido, o ordenamento constitucional-processual brasileiro, mediante reformas recentes, vem adotando mecanismos que privilegiam o uso da jurisprudência como técnica de agilização processual.[7]
Ressalte-se, outrossim, que as causas e os instrumentos estimuladores do prestígio em ascensão da jurisprudência serão devidamente descritos e definidos nos capítulos seguintes, nos quais se mencionará, ainda, as possíveis consequências desse importante movimento.
Não obstante, muito embora precedente e jurisprudência possam ter acepções distintas em virtude das características dos sistemas aos quais aludem [anglo-saxônico ou romano-germânico], no presente trabalho serão abordadas como expressões sinônimas – ou seja, decisões proferidas por órgãos jurisdicionais -, a fim de facilitar a compreensão e o estudo da ascensão da atividade judicial em um sistema jurídico de tradição eminentemente codificadora.
2 ASCENSÃO DOS PRECEDENTES NO BRASIL
2.1 Avanço da importância dos precedentes no Brasil [panorama legislativo e doutrinário]
Importante que se inicie o desenvolvimento do presente capítulo com uma afirmação do professor italiano Michele Taruffo:
Cumpre destacar, antes de tudo, a grande importância que o emprego do precedente e da jurisprudência ocupa na vida do direito de todos os ordenamentos modernos. Pesquisas desenvolvidas em vários sistemas jurídicos tem demonstrado que a referência ao precedente não é há tempos uma característica peculiar dos ordenamentos do common law, estando agora presente em quase todos os sistemas, mesmo os de civil law.[8]
Inegavelmente, o poder judiciário tem exercido papel fundamental na formação do pensamento jurídico pátrio, interferindo em áreas anteriormente impenetráveis à tutela estatal e, com isso, suas decisões são logicamente tão importantes para o ordenamento como jamais foram, quebrando paradigmas e servindo de importante instrumento de efetivação das garantias e direitos constitucionais, sem mencionar a influência que possuem na formação de conceitos e institutos jurídicos.
Cabe aqui demonstrar o papel que a jurisprudência tem exercido no direito pátrio ao longo dos anos, sendo relevante que se aponte algumas reformas na legislação – a título ilustrativo – que de alguma forma aumentam o prestígio e a força dos precedentes em nosso país.
Muito embora a estrutura básica do direito brasileiro advenha dos primados da cultura romano-germânica e, portanto, do civil law, não vem de hoje a importância que os precedentes desempenham no direito brasileiro. Barbosa Moreira, citando Rodolfo de Camargo Mancuso, observa que:
Tem variado bastante entre nós, ao longo dos anos, o peso da jurisprudência sobre o sentido em que deve julgar o juiz. O velho direito lusitano conheceu a figura dos “assentos”: um colegiado de desembargadores (a “Mesa grande”) fixava o entendimento que se devia dar à determinada ordenação, e que se inscrevia no “livro da Relação”, “para depois não vir em dúvida”. Daí em diante, o magistrado que deixasse de observar aquele entendimento sujeitava-se até a ser suspenso. O instituto subsistiu por muito tempo: consoante o art. 2° do Código Civil Português, “nos casos declarados na lei”, poderiam os tribunais “fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral”. Esse dispositivo, contudo, foi revogado pelo DL 329-A, de 12.12.1995.[9]
Nesse sentido, Barbosa Moreira afirma, seguidamente, que já na Constituição Republicana de 1891, havia disposição no sentido de que as justiças federal e estadual deveriam consultar reciprocamente os julgados uma da outra ao se depararem com casos cuja resolução estivesse submetida à aplicação de lei estadual ou federal.[10]
Em verdade, de acordo com mencionado autor, a jurisprudência sempre teve sua parcela de peso no direito brasileiro, chegando mesmo a asseverar que:
[…] a jurisprudência nunca perdeu por completo o valor de guia para os julgamentos. Ainda onde se repeliu, em teoria, a vinculação dos juízes aos precedentes, estes continuaram na prática a funcionar como pontos de referência, sobretudo quando emanados dos altos órgãos da Justiça. Em nosso país, quem examinar os acórdãos proferidos, inclusive pelos tribunais superiores, verificará que, na grande maioria, a fundamentação dá singular realce à existência de decisões anteriores que hajam resolvido as questões de direito atinentes à espécie sub iudice.[11]
Nos idos dos anos de 1960 foi criada a súmula oriunda da jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal, idealizada sob o fundamento de diminuir o número de processos que tramitavam no judiciário e, malgrado não tivesse, à época, efeitos vinculantes, exercia grande influência no convencimento do próprio órgão e dos tribunais inferiores.[12]
Referindo-se ao fenômeno da ascensão da atividade jurisdicional, Denis Donoso afirma que “[...] longe de ser uma novidade, se isoladamente considerados, sua importância dentro do sistema tem subido muitos degraus rapidamente, porque se tornaram fundamento para abreviação de procedimentos”.[13]
Em trabalho publicado alguns anos depois da promulgação da última Constituição Federal, Bueno Filho sustentou, à época, que havia uma forte tendência à valorização dos precedentes em questões constitucionais, utilizando-se, para exemplificar sua tese, da Emenda Constitucional n° 3, de 17/03/93, a qual estatuiu a Ação Declaratória de Constitucionalidade, conferindo eficácia vinculante e erga omnes [contra todos] às decisões do Supremo Tribunal Federal tomadas nesse sentido, efeitos já atribuídos às Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade.[14]
Merece menção, ainda, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental [ADPF], ação criada pela Constituição de 1988 e posteriormente regulamentada pela lei n° 9.882/99, a qual, muito embora distinta das Ações Declaratórias em razão do seu caráter residual, com estas guarda semelhanças, principalmente no que concerne aos seus efeitos, oponíveis a todos.
No mesmo trabalho, Bueno Filho, então juiz do Tribunal Regional Federal de São Paulo, defende o respeito das instâncias ordinárias aos precedentes emanados dos tribunais superiores, afirmando que “a nossa falta de atenção às mudanças do panorama constitucional, no que tange aos precedentes, é com certeza um dos maiores fatores de atravancamento do Judiciário, em especial da Justiça Federal”.[15]
Como se vê, no final do século XX já havia no Brasil juristas que, sensíveis ao fenômeno do acúmulo de processos observado nos órgãos judiciais, capaz de comprometer a própria função jurisdicional, defendiam a utilização e o respeito aos precedentes como uma das possíveis soluções para esse problema. Ressalte-se que a valorização dos precedentes como forma de se prestigiar a celeridade será abordada com mais afinco em tópico próprio.
Mais recentemente, algumas reformas no Código de Processo Civil fomentaram a utilização dos precedentes, aumentando, inclusive, o poder do relator para decidir, sem apreciação do órgão colegiado, acerca da matéria que lhe é submetida.
Vale destacar, a seguir, algumas alterações legislativas que, de uma forma ou de outra, sob um fundamento ou outro, aumentaram a influência da jurisprudência e ampliaram a margem de poder dos tribunais, ficando de logo ressaltado que não se pretende analisar exaustivamente todos os dispositivos existentes a esse respeito, mas tão somente realizar uma abordagem exemplificativa de tais comandos legais.
Nesse sentido, a lei 9.139/95, modificando o art. 557, do CPC, atribuiu aos Tribunais a possibilidade de negar seguimento – isto é, inadmitir a causa sem analise de mérito – a recurso que esteja em desconformidade com súmula do próprio Tribunal ou de Tribunal Superior.[16]
Nessa mesma linha, a lei 9.756/98, que acrescentou o parágrafo 1°-A ao art. 557, do CPC, atribuiu, desta vez, poderes ao relator não apenas para negar seguimento ao recurso utilizando-se de súmula, mas para dar-lhe provimento – ou seja, com julgamento de mérito – na hipótese em que a decisão recorrida esteja em dissonância de enunciado de súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal Superior.[17] Desta sorte, tal dispositivo foi além e possibilitou que o mérito da demanda fosse sumariamente decidido pelo relator até mesmo com base em entendimento não sumulado de Tribunal Superior.
Saliente-se que a súmula que se estar a falar não é apenas a vinculante, mas a não vinculante também e, dessa forma, ainda nesse caso é possível ao relator que dela se utilize para, de plano, não conhecer do mérito recursal, ou, no outro caso, julgar diretamente o seu mérito, sem que seja necessário submeter a causa ao órgão colegiado.
Foi criada, também, a denominada súmula impeditiva de recurso, introduzida no ordenamento jurídico pela lei n° 11.276/06, pela qual o juiz de primeiro grau, ao analisar a apelação interposta, exercendo o primeiro juízo de admissibilidade, poderá negar seguimento ao recurso se a sentença prolatada estiver em consonância com súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça.[18]
De igual sorte, o art. 285-A, do CPC, inserido pela lei n° 11.277/2006, confere ao juiz monocrático o poder de sentenciar a demanda antes de sequer ser citado o réu, bastando que a matéria deduzida seja unicamente de direito e que haja precedentes do próprio juízo no sentido de declarar a improcedência em casos análogos, de sorte que a sentença do caso predecessor será reproduzida.[19] Embora possa parecer que o contraditório foi sacrificado, assim não deve ser entendido, uma vez que a causa decidida com base nesse dispositivo será inevitavelmente favorável ao réu, não lhe sendo imputado nenhum prejuízo.
De acordo com o art. 102, parágrafo 3°, da CF/88, o recurso extraordinário perante o Supremo Tribunal Federal apenas será conhecido se demonstrada for a repercussão geral da matéria aventada no recurso, dispositivo posteriormente regulamentado pelo pela lei n° 11.418/2006, acrescentando os arts. 543-A e 543-B, do CPC. Pela expressão repercussão geral entende-se as questões que ultrapassem a esfera de interesse subjetivo das partes, demonstrando relevância na ordem econômica, política, social ou jurídica.[20]
Vale acrescentar que é o próprio Supremo Tribunal Federal, ao receber a pretensão recursal do litigante, que disporá se a matéria objeto de determinada causa possui ou não a repercussão geral - ressalvada a hipótese de recurso que combata decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do próprio Supremo, hipótese em que a matéria, por expressa dicção legal, terá repercussão geral -, negando-lhe seguimento acaso não vislumbre a existência de relevância social, econômica, política ou jurídica. Interessante notar que os recursos posteriores que versarem acerca de matéria idêntica a que teve anteriormente negada a repercussão geral serão liminarmente indeferidos.[21]
Porém, talvez a mais importante – e mais polêmica - dessas alterações tenha se dado com a Emenda Constitucional n° 45, de 2004, na medida em incorporou o art. 103-A na CF/88 - regulamentada pela lei 11.417/2006 -, que instituiu a tão discutida e muitas vezes criticada súmula vinculante, a ser editada pelo Supremo Tribunal Federal em questão constitucional pacificada, e, uma vez publicada, vinculará todos os demais tribunais, superiores ou não, bem como os órgãos da administração pública direta e indireta, de todas as esferas, que a ela prestarão respeito, sob pena de reclamação constitucional.[22]
Adotando posicionamento pragmático e, não se pode negar, realístico, Donoso obtempera que essas modificações na legislação processual “[...] sugerem uma tendência de aproximação do nosso sistema (civil law) ao sistema da common law, criando um terceiro sistema (que se pode denominar misto)”.[23]
Por conseguinte, não é necessário uma percepção acurada para se enxergar que o objetivo primordial da maioria dessas alterações legislativas recentes foi o de conferir maior celeridade à tramitação processual, suprimindo procedimentos e dando poderes aos magistrados para resolver o litígio sem necessidade de percorrer todas as fases processuais comuns. Também é de fácil percepção que a adoção de um sistema de respeito aos precedentes pode assegurar certa coerência e segurança jurídica aos jurisdicionados, evitando pronunciamentos destoantes dos tribunais relativamente ao mesmo tema debatido.
No entanto, é preciso estar atento para a outra face dessa realidade: a aparente facilidade de julgar-se uma causa com a mera reprodução da decisão anterior, muitas vezes sem analisar o próprio mérito, abreviando-se, com isso, o tempo de duração do processo, pode levar os órgãos judiciais a cair na tentação de esquecer da existência de outros valores tão importantes quanto a presteza da tutela jurisdicional, a exemplo da efetividade e do contraditório.
Destarte, tais mecanismos de valorização da jurisprudência exigem dos tribunais certa cautela, pois sua utilização de modo descriterioso pode ensejar julgamentos injustos ou desprovidos de eficácia. Aqui, a expressão tutela ineficaz é utilizada para designar aquelas decisões que se utilizam de questão meramente processual, de excessivo rigor formal, para extinguir ações ou negar seguimento a recursos, não proporcionando às parte, no mais das vezes, a resposta de mérito que ansiavam ao demandar a proteção estatal.
De todo modo, é necessário que os magistrados tenham maturidade para reconhecer as hipóteses em que esses mecanismos efetivamente devem ser aplicados.
Diante disso, surge a necessidade de estabelecer critérios a fim diminuir as possibilidades de julgamentos que, embora céleres, não se prestem a oferecer uma tutela jurisdicional completa, assim entendida aquela que dá uma resposta definitiva ao jurisdicionado sobre a questão de direito material deduzida em juízo, ou seja, de mérito.
3.2. Conflito de valores: Celeridade e segurança jurídica X efetividade das decisões judiciais e contraditório amplo. Considerações acerca do princípio Constitucional da razoável duração do processo
Na hodierna conjuntura do sistema judicial brasileiro, a aplicação estanque dos preceitos oriundos da cultura civilista mostrou-se inócua a socorrer as ânsias da crescente demanda processual. As milhares de ações que congestionam as varas e gabinetes do poder judiciário, pondo em risco a própria prestação jurisdicional, exigiram a criação de alguns dos citados mecanismos de reprodução de decisões judiciais antecedentes, visando, acima de tudo, abreviar o tempo de tramitação processual.
Prova disso é o Comentário de Daniel Favaretto Barbosa à então recém promulgada Emenda Constitucional n° 45/2004, muitas vezes taxada de reforma do judiciário, ao explanar que “de fato, rápida leitura nos dispositivos da emenda revela a preocupação do constituinte derivado em estabelecer normas voltadas à implementação de garantias e mecanismos destinados a conferir maior celeridade e efetividade ao processo [...]”.[24]
Nesse diapasão, percebe-se que a celeridade está sendo alçada a valor de grande importância, mais e mais visado pelo ordenamento jurídico, mesmo que para isso, em algumas situações, seja necessário sacrificar outros valores de igual significância para os jurisdicionados.
Seguindo esse raciocínio, Danoso assevera que com a utilização desses mecanismos são favorecidas “a celeridade e economia processual, o que está em absoluta compatibilidade com o comando constitucional de razoável duração do processo [art. 5°, LXXVIII, da Constituição]”.[25]
No entanto, no que pertine especificamente ao valor “contraditório”, estabelece o autor que:
o efeito colateral de tais medidas, porém, pode ser sentido no instante em que o contraditório é – ou pode ser – comprometido. A utilização de técnicas que sintetizam o curso processual, como regra, só ocorre à custa do sacrifício deste valor.[26]
Mencionado autor afirma, por sua vez, que essas técnicas de utilização dos precedentes “representam uma redução do contraditório, rigorosamente porque se aplica, de forma quase mecânica, um equação que resultou da experiência judiciária de outros casos idênticos e da qual os coadjuvantes de ações vindouras não participaram”.[27]
Em outro momento, ao tecer comentários sobre características peculiares à questão da reserva de plenário, estabelecida no art. 97, da Constituição Federal – dispositivo que condiciona a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, pelos tribunais, ao voto da maioria absoluta de seus membros -, o mesmo autor afirma que:
os precedentes que ensejam a simplificação do procedimento, vale o destaque, foram formados em outros casos, sem a participação dos protagonistas das futuras relações processuais. O contraditório cedeu espaço, com base na experiência de outros casos, à celeridade.[28]
Em verdade, o autor considera que esses diversos dispositivos de aplicação dos precedentes acarretam uma redução do contraditório, na medida em que as partes do caso em que o precedente irá ser aplicado não participaram da relação processual anterior, na qual o entendimento transmitido foi consolidado.[29]
Nesse ponto, necessário que se abra parêntese para uma breve consideração acerca do princípio constitucional do contraditório. Segundo nos ensina Didier, o contraditório pode ser tomado em sua acepção formal e substancial. Formalmente, o contraditório se traduziria na simples manifestação da parte no processo, na possibilidade de ser ouvida e ter garantida sua participação na relação processual deduzida em juízo. Em sua dimensão substancial, o contraditório, muito mais do que a simples manifestação, significaria o poder da parte de efetivamente influenciar no convencimento do órgão julgador.[30]
Levando-se em conta a classificação de contraditório feita por Didier, observa-se que, na linha de raciocínio de Donoso, o contraditório seria prejudicado em sua dupla acepção, pois o sujeito do litígio em pauta, além de não ter sido parte na relação processual em que o precedente foi formado, não teve, muito menos, oportunidade de influir em sua construção.
Acrescente-se que Donoso não é contrário à mitigação do contraditório nesses casos, pois muitas vezes o pleno exercício desse direito constitucional representaria apenas um impensado desperdício de energia do judiciário, uma vez que, dentre outros fatores, essa teria sido uma opção legislativa legítima, alcançada por meio de válido sopesamento entre economia, celeridade e apego demasiado ao contraditório.[31]
Ademais, a valorização da jurisprudência possui, ainda, o viés da segurança jurídica. Por esse prisma, não se pode negligenciar o fato de que os precedentes, se aplicados de maneira adequada, favorecem o tratamento isonômico às relações de origem fática idênticas, evitando, assim, decisões díspares dos tribunais em relação a situações semelhantes. A esse respeito, Estefânia Barbosa, em sua tese de doutoramento, declara que “[...] a uniformidade do direito é essencial para que se garanta a igualdade de tratamento entre casos similares, o que é possível mediante a analogia entre um caso e outro”.[32]
De fato, o sistema de utilização dos precedentes possibilita ao jurisdicionado certa previsibilidade quanto ao resultado de sua situação jurídica, diante da certeza de que a ela será aplicado entendimento semelhante ao adotado em situações anteriormente decididas pelo judiciário.[33] Logo, o respeito às decisões tomadas pelos tribunais converge, de certa maneira, para a segurança jurídica.
Entretanto, os mecanismos de resolução em massa dos processos, se utilizados de forma desmensurada, pode, ao invés de resguardar a segurança jurídica, atentar contra ela, pois, se o entendimento adotado na decisão que se toma como paradigma for injusto ou equivocado, o equívoco será estendido aos casos posteriores, causando, do mesmo modo, a insegurança que se objetivava evitar.
Por fim, é oportuno anotar comentários ao princípio da razoável duração do processo. Expressamente previsto no inciso LXXVIII, do art. 5°, da Constituição Federal, assim como na Convenção Americana de Direitos Humanos, o princípio da razoável duração do processo, consoante prega Didier, decorre do princípio do devido processo legal e veda ações retardatárias e indevidas no processo.[34]
Segundo afirma Didier em sua obra, para Corte Europeia de Direitos Humanos, fatores como a complexidade da matéria, o comportamento das parte no decorrer do processo e a atuação do Estado Juiz seriam parâmetros aptos para determinar se um processo teve ou não duração razoável.[35]
Acrescenta Didier, no entanto, que a razoável duração do processo não consagra um princípio da celeridade, tendo em vista que “[...] o processo não tem de ser rápido/célere: o processo deve demorar o tempo necessário e adequado à solução do caso submetido ao órgão jurisdicional”.[36]
Para o autor, o direito ao devido processo legal pressupõe necessariamente determinados atos que devem ser cumpridos, a exemplo do contraditório, da dilação probatória e dos recursos, o que acaba por atrasar a marcha processual e prejudicar a celeridade. Nesse ponto, o insigne jurista distingue nitidamente a razoável duração do processo, garantia constitucionalmente assegurada, da celeridade, uma vez o direito a um processo de duração razoável não teria por tradução precisamente a velocidade, mas carregaria em seu âmago a proibição a dilações indevidas e protelatórias, sem o descarte dos atos necessários à resolução da controvérsia.[37]
Como brilhantemente declara Didier, “é preciso fazer o alerta para evitar discursos autoritário, que pregam a celeridade como valor. Os processos da Inquisição poderiam ser rápidos. Não parece, porém, que se sinta saudade deles”.[38]
É evidente que o jurisdicionado, ao buscar a satisfação de seu interesse junto ao poder judiciário, visa, acima de tudo, que o direito por si afirmado seja analisado e julgado, de forma efetiva, para que seu estado de incerteza seja resolvido. Tal julgamento a contento pressupõe uma serie de etapas, nas quais há colheita de provas, ouvida de testemunhas, perícias e demais técnicas processuais aptas a provar o direito alegado, respeitando-se o devido processo legal.
Após todos esses procedimentos, acaso sobrevenha sentença desfavorável ao autor, ele ainda poderá interpor recurso ao tribunal, no exercício do direito ao duplo grau de jurisdição assegurado pela Constituição Federal, possibilitando que um colegiado de julgadores dele conheça e, eventualmente, corrija erros cometidos pelo juízo singular. Mas, se o relator, ao receber seu recurso, a ele negue seguimento em razão de um requisito de admissibilidade que não foi atendido pelo recorrente – em virtude, por exemplo, de questão sumulada por tribunal superior -, sem analisar as especificidades do caso, será que o judiciário estará realmente prestando uma tutela jurisdicional efetiva à matéria que lhe foi submetida? Não se pode negar que a qualidade da decisão é tão importante quanto a velocidade em que ela é proferida. A máxima da produção não pode se sobrepor de modo absoluto à qualidade.
A morosidade é, de fato, um sério problema arraigado no judiciário brasileiro, e medidas igualmente sérias devem ser tomadas para se tentar minorar a crise crônica de letargia que contaminou tão importante poder. No entanto, as medidas, antes de serem tomadas, devem passar por uma análise criteriosa de outros valores que serão inegavelmente comprometidos. Deve-se lembrar que os jurisdicionados tem o direito a um processo eficaz, porém, a eficácia não está salvaguardada apenas no tempo de tramitação dos processos, mas, igualmente, na efetividade das decisões que são proferidas.
Por isso mesmo, cabe ao magistrado ter a maturidade e a consciência para aplicar os precedentes da forma mais correta possível, nas hipóteses em que realmente se adequem aos casos seguintes, zelando pela celeridade e qualidade de suas decisões, utilizando-se dos mecanismos processuais disponíveis da maneira mais adequada possível, sob pena de a reprodução mecânica das decisões judiciais se tornar uma arma capaz de voltar-se contra inúmeros outros valores essenciais à manutenção de um sistema eficaz.
Não se está, com isso, é bom que se ressalte, a profanar levianamente todos as reformas processuais que visaram dotar o judiciário de maior rapidez, sendo certo que esse não é o objetivo do presente trabalho. O que se pretende é buscar uma reflexão sobre todos os valores envolvidos e, não se pode olvidar, quando se busca em demasia um objetivo, outros, por vezes, são abandonados.
No próximo tópico, será analisada a possibilidade - talvez não muito remota - da adoção de uma teoria dos precedentes obrigatórios no Brasil, ocasião em que serão abordadas algumas técnicas de utilização, revisão e superação dos precedentes, próprias dos sistemas que adotam a common law.
3. Evolução para o precedente obrigatório: técnicas adequadas à coerência do sistema [distinguishing e overruling]
Como se tentou demonstrar no capítulo pretérito, várias reformas legislativas têm difundido ostensivamente a utilização dos precedentes como mecanismos de resolução processual em massa. Neste tópico, porém, a intenção não será catalogar a legislação que fomenta o uso dos precedentes, nem listar as causas do fenômeno, mas refletir a possibilidade de uma eventual evolução para uma teoria dos precedentes obrigatórios. Por isso, serão analisadas, também, algumas técnicas utilizadas nos países que pregam o respeito à jurisprudência como instrumentos de garantia da segurança e coerência do sistema.
Na atual conjuntura judicial brasileira, embora a súmula vinculante editada pelo Supremo Tribunal Federal seja a única jurisprudência de observação obrigatória para os demais órgãos judiciários e administrativos – à exceção das decisões do Supremo em sede de controle concentrado de Constitucionalidade -, fortes argumentos podem ser levantados a favor da adoção de um sistema de respeito aos precedentes.
De fato, não seria mais absurdo defender a tese de adoção de um sistema de observância dos precedentes, ainda que em menor grau do que o vigorante nos países filiados ao common law. Talvez essa seja uma possível evolução natural para a qual se encaminha o direito brasileiro e, no futuro, quem sabe, os precedentes capazes de vincular outras decisões sejam estabelecidos em maior número. Certamente, a isso se contrapõem diversas críticas e argumentos contrários, em razão dos inúmeros valores envolvidos.
Necessário acrescentar que a expressão respeito aos precedentes, ou precedentes vinculantes/obrigatórios, designa o grau de vinculação dos julgadores aos entendimentos fixados na ratio decidendi de decisões anteriores, em contraponto ao conceito de precedentes meramente persuasivos. Dessa forma, considerar um precedente obrigatório gera, inevitavelmente, a conclusão de que decisões posteriores deverão seguir o entendimento outrora estabelecido na decisão paradigma que lhe seja correspondente.[39]
A favor dos precedentes obrigatórios, Guilherme Marinoni considera o respeito às decisões judiciais meio para fortalecer a segurança jurídica e evitar decisões díspares acerca de matérias idênticas.[40] Assim declara o autor:
A segurança jurídica, postulado na tradição do civil law pela estrita aplicação da lei, está a exigir o sistema de precedentes, há muito estabelecido para assegurar a segurança jurídica no ambiente do common law, em que a possibilidade de decisões diferentes para casos iguais nunca foi desconsiderada e, exatamente por isso, fez surgir o princípio, inspirador do stare decisis, de que os casos similares devem ser tratados do mesmo modo (treat like cases alike).[41]
Isso porque, de acordo com a visão de Marinoni, por ser a lei passível de incontáveis interpretações possíveis, poderiam os diversos órgãos jurisdicionais atribuir a uma mesma espécie normativa significados distintos, dando solução diversa a casos semelhantes, infringindo, com isso, a previsibilidade do ordenamento jurídico. Por essa razão, sustenta que valor segurança jurídica apenas seria plenamente alcançado com o tratamento isonômico dado aos jurisdicionados pelo judiciário.[42]
Interessante, ainda, é o posicionamento do mencionado autor quando confrontado com a possibilidade do precedente tido como vinculante malferir a liberdade dos magistrados e seu livre convencimento, nesse sentido se manifestando:
Como é óbvio, o juiz ou o tribunal não decidem para si, mas para o jurisdicionado. Por isso, pouco deve importar, para o sistema, se o juiz tem posição pessoal, acerca de questão de direito, que difere da dos tribunais que lhe são superiores. O que realmente deve ter significado é a contradição de o juiz decidir questões iguais de forma diferente ou decidir de forma distinta da do tribunal que lhe é superior. O juiz que contraria a sua própria decisão, sem a devida justificativa, está muito longe do exercício de qualquer liberdade, estando muito mais perto da prática de um ato de insanidade. Enquanto isto, o juiz que contraria a posição do tribunal, ciente de que a este cabe a última palavra, pratica ato que, ao atentar contra a lógica do sistema, significa desprezo ao poder judiciário e desconsideração para com os usuários do serviço jurisdicional.[43]
Logo, Marinoni não considera o precedente obrigatório como instituto transgressor da liberdade dos juízes, mas como instrumento de efetivação da igualdade de tratamento perante o judiciário. É, portanto, favorável à regra do stare decisis, surgida no common law [como visto em tópicos passados] para garantir a segurança do ordenamento e a coesão do sistema.[44]
Importante ressaltar que o precedente vinculante, nos moldes do common law, deve necessariamente observar o grau hierárquico do juízo prolator. Com isso se quer dizer que os tribunais superiores não estão obrigados a seguir a decisão dos tribunais de grau inferior. Entretanto, todos os juízos, salvo situações excepcionais, ficariam vinculados às suas próprias decisões.[45]
Por outro lado, acaso o Brasil, no futuro, acolhesse as proposições de Marinonni e caminhasse ao encontro de um sistema de respeito aos precedentes, ainda que, possivelmente, em menor grau do que o adotado nos países do common law, algumas técnicas de superação de entendimentos deveriam ser observadas, há muito utilizadas nos países que cultuam a atividade jurisdicional.
Nesse passo, os países oriundos do common law, sensíveis à possibilidade de evolução das relações sociais e dos conceitos jurídicos, com o objetivo de flexibilizar o sistema, evitando, assim, que entendimentos ultrapassados por novos argumentos prevaleçam e perpetuem-se infinitamente, adotam as técnicas do overruling e do distinguishing. Utilizando essas técnicas de flexibilização dos precedentes, os magistrados afetos ao common law não são obrigados a decidir, em todas as situações, de acordo com decisões outrora proferidas por si ou pelos tribunais superiores. [46]
Segundo nos ensina Didier, o distinguishing seria um método comparativo em que se verifica uma distinção entre o caso que gerou o precedente e o litígio submetido posteriormente ao judiciário. Essa distinção poderia se dar em virtude da não coincidência entre as circunstâncias de fato em que se baseou a ratio decidendi do precedente e as que permeiam o caso que se quer decidir ou, ainda, em razão da existência de alguma particularidade que torne inadequado aplicar o que fora estabelecido no caso anterior.[47]
Afirma o autor que a correspondência absoluta entre os fatos que balizaram o precedente e os que deram ensejo ao caso posterior é de difícil ocorrência. Logo, ainda que constatada alguma diferença fática, poderia o magistrado aplicar a ratio decidendi do precedente ao litígio ulterior[48]. Citando Tucci, Didier assevera que, verificada a distinção entre os casos, duas situações seriam possíveis:
[…] (i) dar à ratio decidendi uma interpretação restritiva, por entender que peculiaridades do caso concreto impedem a aplicação da mesma tese jurídica outrora firmada (restrictive distinguishing), caso em que julgara o processo livremente, sem vinculação ao precedente; (ii) ou estender ao caso a mesma solução conferida aos casos anteriores, por entender que, a despeito das peculiaridades concretas, aquela tese jurídica lhe é aplicável (ampliative distinguishing).[49]
Dessa forma, no distinguishing, o magistrado, nos dizeres de Estefânia Barbosa, afasta o entendimento estabelecido na decisão anterior “porque seus fatos são distintos, materialmente diferentes, daqueles do caso que está para ser decidido”.[50]
Por outro lado, o overruling é uma técnica pela qual a tese adotada no precedente é abandonada em detrimento de novos fundamentos argumentativos, superando-se o entendimento anterior e adotando-se um novo. Entretanto, é imprescindível uma fundamentação, por parte do órgão julgador, que explicite o porque do dispositivo do precedente ter se tornado ultrapassado.[51]
Estefânia Barbosa acrescenta que o overruling não contraria os fundamentos do stare decisis, configurando-se apenas um método que prevê o descarte de uma decisão equivocada ou em desacordo com a realidade atual, de maneira a prestigiar o direito em evolução e lhe confirmar a preponderância sobre o precedente.[52]
Manifestando-se acerca da diferença entre o distinguishing e o overruling, Estefânia Barbosa leciona que:
Enquanto a distinção (distinguishing) entre um caso e outro pode ser compreendida como um modo de emenda em alguns casos específicos, a superação de precedente (overruling) é um modo de revogar a decisão anterior e substituí-la por uma nova, e, portanto, é considerada frequentemente como uma iniciativa mais radical.[53]
Em contrapartida, é importante que se diferencie, ainda, o overruling do overriding. No overrinding há somente uma revogação parcial do precedente, limitando-se sua abrangência em função de um princípio ou de uma regra.[54]
Finalmente, interessa evidenciar que a possibilidade de superação de um precedente não significa ausência de reverência à decisão outrora proferida, tendo em vista que, tanto no distinguishing quanto no overruling, o magistrado deverá fazer menção expressa ao precedente que será afastado ou revogado, explicitando de modo inequívoco as razões pelas quais irá adotar outro posicionamento[55]. Sobre o assunto, merece transcrição as exatas palavras de Estefânia Barbosa:
A integridade não significa apenas coerência entre as decisões, é mais que isso, exige o respeito ao passado, mas este respeito não significa imutabilidade dos precedentes. Os precedentes podem ser alterados e mesmo assim pode-se garantir a integridade da decisão judicial se, quando do julgamento e da revogação do precedente, o juiz respeita o passado, justifica sua mudança ou justifica a não aplicação daquele caso concreto. Ou seja, a coerência deve-se dar com a totalidade do sistema e não apenas com a decisão anterior.[56]
Logo, não se pode negar que, mesmo diante de um sistema em que as decisões judiciais vinculam a atividade jurisdicional no tocante aos casos vindouros, ainda assim é possível que o entendimento posto possa ser alterado e descartado, garantindo, de certa forma, maior segurança aos jurisdicionados.
Contrariamente à doutrina dos precedentes vinculantes, pode-se formular críticas de elevado valor. Questionamentos de variadas naturezas podem ser colocados, tais como o engessamento do judiciário, ofensa à liberdade decisória dos magistrados e falibilidade de um sistema que, sob a pretensão de garantir a igualdade formal, acabe por sacrificar a igualdade substancial.[57]
Enfim, na realidade brasileira, o já citado acúmulo de processos que assolam o judiciário, somado à dinamicidade das relações sociais e ao crescente número de dispositivos legais que conferem aos tribunais cada vez mais prerrogativas, podem, eventualmente, levar à instituição de um sistema que adote a teoria dos precedentes vinculantes.
Cabe aos magistrados brasileiros, assim, adquirem maturidade para lidar com as mudanças ocorridas no universo jurídico, familiarizando-se com alguns institutos próprios de um sistema que valoriza os precedentes, sensíveis não apenas aos reclamos de um valor específico, mas a todos que o ordenamento jurídico visa resguardar.
CONCLUSÃO
Como se viu, os precedentes judiciais ocupam, atualmente, um lugar de destaque no meio jurídico brasileiro. As inúmeras reformas ocorridas na legislação atribuíram ao judiciário prerrogativas antes inexistentes, possibilitando aos magistrados, mais e mais, julgar os processos tramitantes em suas varas ou gabinetes pautando-se, às vezes exclusivamente, em decisões outrora prolatadas em casos semelhantes.
Diante disse, se mostrou de grande relevância o estudo das reformas legislativas que alçaram o judiciário à posição que hoje ocupa em nosso país. Sem a intenção de descrever exaustivamente todos os dispositivos legais existentes, objetivou-se demonstrar o porque do título do presente trabalho não mais soar estranho aos ouvidos de quem o escuta. Viu-se, com isso, as inúmeras possibilidades de resolução de conflito postas à disposição do judiciário, sendo-lhe possível, por exemplo, não examinar o mérito de um conflito fundamentado, por vezes, apenas em outra decisão, a depender da análise do caso concreto.
Por outro lado, não se pode olvidar que o principal vetor de todas essas inovações foi a premente necessidade de dotar o sistema de celeridade. De fato, o crescimento da demanda processual põe em risco a eficiência da tutela jurisdicional, gerando a possibilidade do poder judiciário cair em descrédito, o que existe dos juízes e tribunais, assim, resposta mais rápidas.
Entretanto, o ponto de maior importância para o presente trabalhe talvez tenha sido o choque de valores ocasionado por essa nova realidade. Consoante tentou-se deixar claro, a incessante busca do sistema por celeridade pode acarretar o esquecimento de outros valores tão importantes quanto para os jurisdicionados.
Sem dúvida, todas as alterações legislativas citadas no decorrer do presente artigo privilegiam a celeridade e, de certa forma, favorecem a segurança jurídica. Todavia, algumas dessas reformas dão aos magistrados a prerrogativa de por fim ao processo sem que o mérito seja analisado. Desse modo, a efetividade e a justiça das decisões judiciais corre o risco de ser comprometida, pois os jurisdicionados, além de um provimento célere, almejam, acima de tudo, que à sua situação de desconforto seja dada uma solução justa, o que apenas seria satisfatoriamente alcançado por um provimento meritório. A máxima da produção não deve excluir a qualidade da tutela jurisdicional.
Por sua vez, foi esclarecido que, na aplicação de decisões anteriores, deve ser analisado, necessariamente, se as circunstâncias fáticas do caso que deu origem ao precedente se amoldam aos fatos em torno do qual gira o caso que se quer decidir e, apenas nesse caso, o magistrado estará autorizado a reproduzir a ratio decidendi contida naquele.
Por fim, foi analisada a possibilidade do brasil vir a evoluir, gradativamente, para um sistema de precedentes vinculantes. Nesse sentindo, foi visto posicionamento doutrinário que defende que a segurança jurídica apenas seria efetivamente resguardada diante da coerência das decisões judiciais. Em virtude dessa possível evolução, foram descritas as técnicas de superação dos precedentes, existentes nos países filiados ao common law, notadamente, o distinguishing e o overruling.
Enfim, de toda forma, sendo o judiciário o centro dessas mudanças, a ele é atribuída a responsabilidade de fornecer aos jurisdicionados uma tutela jurisdicional que prestigie a a celeridade, a justiça e a efetiva, compatibilizando todos os valores que o ordenamento visa proteger. Cabe aos magistrados, portanto, diante da realidade que se impõe, ter a sensibilidade para identificar as hipóteses em que o entendimento estabelecido na decisão anterior [precedente] possa ser – ou não - aplicados aos casos ulteriores.
REFERÊNCIAS
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TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Revista de Processo, São Paulo, v. 199, ano 36, p. 139-155, set. 2011.
[1] TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Revista de Processo, São Paulo, v. 199, ano 36, p. 139-155, set. 2011, p. 142.
[2] Ibid.
[3] Ibid., p. 143.
[4] Ibid., p. 143.
[5] Ibid.
[6] BARAVIERA, Ricardo Tavares. Da aplicação dos precedentes jurisprudenciais. Revista de Direito da ADVOCEF, Porto Alegre, n. 10, p. 135-147, set. 2010, p. 143.
[7] CAMBI, 2009 apud BARAVIERA, Ricardo Tavares. Da aplicação dos precedentes jurisprudenciais. Revista de Direito da ADVOCEF, Porto Alegre, n. 10, p. 135-147, set. 2010, p. 143.
[8] TARUFFO, Michele, op. cit., p. 140.
[9] MANCUSO, apud MOREIRA, José Carlos Barbosa. Súmula, jurisprudência, precedente: uma escala e seus riscos. Revista Síntese de Direito Civil Processual Civil, São Paulo, n. 35, p. 5-16, mai./jun. 2005, p. 5.
[10] Ibid.
[11] Ibid., p. 6.
[12] Ibid.
[13] DONOSO, Denis. Um novo princípio contraditório. Análise da constitucionalidade das técnicas de massificação de soluções e da escalada da importância do precedente judicial. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, n. 73, p. 22-35, abr. 2009, p. 22.
[14] BUENO FILHO, Edgard Silveira. Os precedentes no direito brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 716, p. 24-26, jun. 1995.
[15] Ibid., p. 24.
[16] Ibid.
[17] Ibid.
[18] DONOSO, Denis, op. cit.
[19] Ibid.
[20] Ibid.
[21] Ibid.
[22] Ibid.
[23] Ibid., p. 26.
[24] FAVARETTO BARBOSA, Daniel. “Reforma do judiciário”, celeridade do processo e as “súmulas vinculantes”: considerações para uma análise crítica da EC 45/2004. Revista de Processo, São Paulo, n. 138, p. 92-111, ago. 2006, p. 93.
[25] DONOSO, Denis, op. cit..
[26] Ibid., p. 22.
[27] DONOSO, Denis, op. cit., p. 27.
[28] Ibid., p. 28.
[29] Ibid.
[30] DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 12. ed. Salvador: Podivm, 2010.
[31] DONOSO, Denis, op. cit.
[32] BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Stare decisis, integridade e segurança jurídica: reflexões críticas a partir da aproximação dos sistemas de common law e civil law na sociedade contemporânea. 2011. 264 f. Tese (Doutorado em Direito). - Pontífica Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2011, p. 180.
[33] Ibid.
[34] DIDIER JUNIOR, Fredie, op.cit.
[35] Ibid.
[36] Ibid., p. 59.
[37] Ibid.
[38] Ibid., p. 59.
[39] MADEIRA, Daniela Pereira. A força da jurisprudência. In: FUX, Luiz (Org.). O novo Código de Processo Civil brasileiro: Direito em experiência. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 531.
[40] MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law e a necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Coord.). Teoria do Processo: panorama doutrinário mundial. Salvador: Jus Podivm, 2010.
[41] Ibid., p. 588.
[42] Ibid.
[43] Ibid., p. 560.
[44] Ibid.
[45] Ibid.
[46] MADEIRA, Daniela Pereira, op. cit.
[47] DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. 2. ed. Salvador: Podivm, 2008.
[48] Ibid.
[49] TUCCI, apud DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. 2. ed. Salvador: Podivm, 2008, p. 353.
[50] BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz, op. cit., p. 194.
[51] DIDIER JUNIOR, Fredie, 2008, op.cit.
[52] BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz, op. cit.
[53] Ibid., p. 196.
[54] DIDIER JUNIOR, Fredie, 2008, op.cit.
[55] BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz, op. cit.
[56] Ibid., p. 192-193.
[57] Ibid.
Advogado. Graduado pelo Centro Universitário Christus (turma de 2012.1). Aprovado nos seguintes concursos: Procurador do Estado do Paraná e Procurador do Município de Salvador.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Wilmer Cysne Prado e Vasconcelos. Ascensão do precedente judicial no sistema jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 fev 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45913/ascensao-do-precedente-judicial-no-sistema-juridico-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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