RESUMO: O presente artigo se propõe a analisar a função social da propriedade, assegurada pela Carta Magna, e sua extensão aos institutos possessórios, especificando o conceito da “função social da posse” e trazendo à tona a posição da doutrina e jurisprudência a respeito da imprescindibilidade de tal função para a concessão da tutela jurisdicional possessória.
Palavras-chave: Direito de propriedade. Função social. Posse. Tutela jurisdicional possessória.
INTRODUÇÃO
É certo que a Constituição Federal e o Código Civil trazem ao ordenamento jurídico pátrio o direito de propriedade intimamente ligado à chamada “função social da propriedade”.
Nesse contexto, exsurge entendimento a defender que tal função social pode ser estendida ao correlato instituto da posse e, por conseguinte, influenciaria diretamente à concessão da tutela jurisdicional possessória, configurando um novo pressuposto para as ações de reintegração e manutenção de posse, bem como do interdito proibitório. Este estudo direciona-se, portanto, a analisar tal entendimento sob o ponto de vista doutrinário e jurisprudencial.
DESENVOLVIMENTO
No direito contemporâneo, não mais se concebe a propriedade como um direito ilimitado como o era no direito antigo. Na lição de Delaiti de Melo:
Com o advento da Constituição da República de 1988, a propriedade foi inserida com um direito fundamental do cidadão, devendo ser observada sua função social. Nesse sentido, reza o artigo 5.º, XXIII, que a propriedade atenderá a sua função social.[1]
O próprio Código Civilista dispõe, em seu artigo 1.228, que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
Nessa esteira, Loureira esclarece contundentemente:
Em suma, não obstante o direito individual de propriedade não deixe de merecer a tutela jurídica, inclusive de ordem constitucional, deve ceder passagem em confronto com o interesse maior da coletividade. Destarte, pode o proprietário ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por utilidade pública ou interesse processual. A coisa pode ser ainda reivindicada pelo poder público, em caso de perigo iminente (v. g., guerra, enchentes, requisição de imóvel para abrigo de pessoas desalojadas por catástrofes naturais etc.). Obviamente, o proprietário tem direito à indenização justa. [2]
A posse, nos termos do artigo 1.196 do CC, nada mais é que o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes ä propriedade, tratando-se da exteriorização da propriedade, ou seja, a visibilidade da propriedade.
Sendo assim, não é demais entender que a posse também deve se sujeitar aos deveres decorrentes do princípio da função social.
Pensar em sentido contrário seria considerar, a título de exemplo, a absurda hipótese de um locador, que detém o uso do bem imóvel temporariamente, não necessitar preservar o ecossistema presente em uma fazenda locada, já que somente ao proprietário/locatário seria imputado tal dever. Assim, Zavascki pontua: “bem se vê, destarte, que o princípio da função social diz respeito mais ao fenômeno possessório que ao direito de propriedade.” [3]
A propósito, leciona Didier:
Se a tutela processual da posse serve à tutela do titular do domínio, se esse domínio não é digno de proteção jurídica, porquanto em desacordo com o “modelo constitucional do direito de propriedade”, não poderá receber proteção o instrumento de realização desse mesmo direito: a posse. Fala-se, então em uma função social da posse.[4]
A Constituição Federal de 1988 não tratou de maneira expressa a função social da posse como fez com a função social da propriedade no art. 5º, inciso XXIII. Para Flavio Tartuce, a função social da posse está implícita no nosso Código Civil, interpretação esta extraída com base nos arts. 1.238, parágrafo único; 1.242, parágrafo único; e 1.228, § 4º e 5º.[5]
Tais artigos dizem respeito à usucapião imobiliária, que o legislador reconheceu como uma posse qualificada pela função social. Assim, pode-se dizer que “a função social da posse (...) além de atender à unidade e completude do ordenamento jurídico, é exigência da funcionalização das situações patrimoniais, especificamente para atender as exigências de moradia, de aproveitamento do solo, bem como aos programas de erradicação da pobreza, elevando o conceito da dignidade da pessoa humana a um plano substancial e não meramente formal.” [6]
Trata-se de uma forma melhor de se “efetivar os preceitos infraconstitucionais relativos ao tema possessório, já que a funcionalidade pelo uso e aproveitamento da coisa juridiciza a posse como direito autônomo e independente da propriedade, retirando-a daquele estado de simples defesa contra o esbulho para se impor perante todos.”[7]
Nessa linha de entendimento, ao trazer o instituto da função social para o contexto das ações possessórias, passa-se a entender que estas, além dos requisitos previstos no artigo 927 do CC, devem obedecer a um requisito implícito, derivado de uma interpretação sistemática de normas constitucionais e civilistas, conforme esclarece Didier:
(...) deste modo, pode-se afirmar que a Constituição de 1988 criou um novo pressuposto para a obtenção da proteção processual possessória: a prova do cumprimento da função social. Assim, o art. 927 do CPC, que enumera os pressupostos para a concessão da proteção possessória, deve ser aplicado como se ali houvesse um novo inciso (o inciso v), que se reputa um pressuposto implícito, decorrente do modelo constitucional de proteção da propriedade. A correta interpretação dos dispositivos constitucionais leva à reconstrução do sistema de tutela processual da posse, que passa a ser iluminado pela exigência da observância da função social da propriedade. [8]
Fábio Konder Comparato acrescenta:
Com relação aos demais sujeitos privados, o descumprimento do dever social de proprietário significa uma lesão ao direito fundamental de acesso à propriedade, reconhecido doravante pelo sistema constitucional. Nessa hipótese as garantias ligadas normalmente à propriedade, notadamente a de exclusão de pretensões possessórias de outrem, devem ser afastadas. (...) Quem não cumpre a função social da propriedade perde as garantias, judiciais e extrajudiciais, de proteção da posse, inerentes à propriedade, como o desforço privado imediato e as ações possessórias. A aplicação das normas do Código Civil, nunca é demais repetir, há de ser feita à luz dos mandamentos constitucionais, e não de modo cego e mecânico, sem atenção às circunstâncias de cada caso. [9]
Tal entendimento já vem sendo sustentado pelos tribunais pátrios há considerável tempo, estendendo-se até os julgados mais recentes, conforme se denota dos seguintes acórdãos:
PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. LIMINAR. CONFLITO AGRÁRIO. INTERVENÇÃO PRÉVIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. NECESSIDADE. PROPRIEDADE. FUNÇÃO SOCIAL. AUSÊNCIA DE PROVA. LIMINAR REVOGADA. - Não se conhece de preliminar de carência de ação quando o tema envolve-se com o mérito da liminar, concedida em ação possessória. - A intervenção prévia do Ministério Público nas ações que revelam o conflito agrário é indispensável, mesmo antes de ser examinando o pedido de liminar em ação de reintegração de posse. - A tutela de urgência em ação possessória não pode ser concedida quando o autor omite-se em demonstrar que a propriedade que possui atende a função social exigida pela Constituição da República. Preliminares não conhecidas e agravo provido.[10]
AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE - IMÓVEL NÃO REGULARIZADO - MELHOR POSSE - INVERSÃO DO CARÁTER ORIGINÁRIO DA POSSE - POSSIBILIDADE - INÉRCIA DO ESBULHADO - PERDA DA PROTEÇÃO POSSESSÓRIA - OCUPAÇÃO DE BOA-FÉ - EXERCÍCIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE - POSSE JUSTA - OCUPAÇÃO CONSERVADA - SENTENÇA MANTIDA. 1) - Afirmando as partes serem legítimas possuidoras de imóvel litigioso, não regularizado, ambas possuindo justo título e boa-fé, deve se dar o julgamento da ação possessória em favor daquele que detém a melhor posse. 2) - apesar do artigo 1.203 do código civil estabelecer que a posse mantém-se com o mesmo caráter que com que foi adquirida, possível se mostra a inversão ou interversão da posse injusta em justa, oriunda de fatores externos em razão da omissão daquele que deveria exercer o direito de reaver o bem por considerável período de tempo e também em razão da função social da propriedade e da posse, princípio tem significativa prevalência no ordenamento jurídico atual. 3) - inerte o autor, por mais de 05 (cinco) anos, em tomar providências para reaver o bem, sujeita-se à perda da proteção de sua posse sobre o bem em face do ocupante que destina efetiva função social à posse. 4) - comprovado que os réus exercem no imóvel, de forma mansa, pacífica e duradoura, suas atividades empresariais de venda de refeições e de venda de produtos de informática, dando destinação e função social à posse, bem como que adquiriram os direitos de posse mediante justo título, além de não praticarem qualquer ato de clandestinidade, precariedade ou violência, evidente se mostra a boa-fé e a justa posse, devendo haver proteção possessória em seu favor, por conservarem a melhor posse sobre o bem. 5) - recurso conhecido e não provido.[11]
CONCLUSÃO
Do exposto, conclui-se que a função social da propriedade, com amparo constitucional, deve ser interpretada extensivamente de forma a abranger também o instituto da posse, entendida como o instrumento de realização da propriedade.
Sob essa ótica, a tutela processual da posse, por meio das chamadas ações possessórias, disciplinadas nos arts. 920 a 933 do CPC, imprescinde de um novo pressuposto: a prova do cumprimento da função social, entendimento este sufragado pela doutrina civilista e pela jurisprudência dos tribunais pátrios.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse e sua consequência frente à situação proprietária. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002.
DE MELO, José Mário Delaiti. A função social da propriedade. Disponível em:<http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12660>. Acesso em: 6 de jan. de 2016.
DIDIER, Fredie. A função social da propriedade e a tutela processual da posse. Disponível em: <http://direitosreais.files.wordpress.com/2009/03/a-funcao-social-e-a-tutela-da-posse-fredie-didier.pdf>. Acesso em: 6 de jan. de 2016.
KOMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. In A questão agrária e a justiça, São Paulo, RT, 2000.
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Direitos reais à luz do Código Civil e do Direito Registral. São Paulo: Método, 2004.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. São Paulo: Editora Método, 2011.
ZAVASCKI, Teori Albino. “A tutela da posse na Constituição e no projeto do Novo Código Civil”. A reconstrução do direito privado. Judith MartinsCosta (org.). São Paulo: RT, 2002.
[1] DE MELO, José Mário Delaiti. A função social da propriedade. Disponível em:<http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12660>. Acesso em: 6 de jan. de 2016.
[2] LOUREIRO, Luiz Guilherme. Direitos reais à luz do Código Civil e do Direito Registral. São Paulo: Método, 2004, p 116.
[3]ZAVASCKI, Teori Albino. “A tutela da posse na Constituição e no projeto do Novo Código Civil”. A reconstrução do direito privado. Judith MartinsCosta (org.). São Paulo: RT, 2002, p. 844.
[4] DIDIER, Fredie. A função social da propriedade e a tutela processual da posse. Disponível em: <http://direitosreais.files.wordpress.com/2009/03/a-funcao-social-e-a-tutela-da-posse-fredie-didier.pdf>. Acesso em: 6 de jan. de 2016, p. 13.
[5] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. São Paulo: Editora Método, 2011, p. 762.
[6] ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse e sua consequência frente à situação proprietária. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 40.
[7] Idem.
[8]DIDIER, Fredie. Op. cit. , p. 14.
[9] KOMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. In A questão agrária e a justiça, São Paulo, RT, 2000, p. 145-146 (grifo nosso).
[10] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. AI 425.429-9, Rel. Juiz Alberto Vilas Boas, 2ª Câmara Cível, j. em 25.11.2003, DJMG 07.02.2004 (grifo nosso).
[11] BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. APC 20120111021477, Relator Luciano Moreira Vasconcellos, Data de Julgamento: 12/03/2014, 5ª Turma Cível, Data de Publicação: 19/03/2014, Pág.: 176 (grifo nosso).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: XIMENES, Eduardo Araujo Rocha. A relevância da função social na concessão da tutela jurisdicional possessória Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 fev 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45984/a-relevancia-da-funcao-social-na-concessao-da-tutela-jurisdicional-possessoria. Acesso em: 22 nov 2024.
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