RESUMO: Estuda-se o modo de atuação de uma jurisdição constitucional que se pretenda democrática. Analisa-se como a situação se encontra na doutrina em aparente exclusão recíproca entre teorias substancialistas e procedimentalistas. Verifica-se a compreensão que entende equivocada por parte da doutrina em proceder com uma análise apriorística na qualificação como correta desta ou daquela teoria. Indica-se uma posição que considera adequada e que deve ser avaliada apenas no caso concreto, como base nas necessidades e possibilidades de participação e realização dos direitos fundamentais dos intérpretes. Para exemplificar tudo o que restou defendido no artigo, homenageia-se Ronald Dworkin com a nomeação de seu Juiz Hércules para uma corte constitucional, onde este irá se deparar com casos constitucionais ainda mais difíceis que os casos civis a que estava acostumado, situação na qual poderá contar com as novas figuras desta corte: o intérprete Hermes e o juiz Zeus. Por fim, serão analisados dois casos julgados no Supremo Tribunal Federal, a fim de verificar os erros e acertos de nossa corte constitucional na prática do que se restou defendido.
Palavras-chave: jurisdição constitucional, pós-positivismo jurídico, democracia, substancialismo, procedimentalismo, interpretação judicial.
A doutrina, de um modo geral (nacional e estrangeira), em posição que aqui compreende equivocada, em regra defende a existência de duas posições específicas e inconciliáveis na compreensão do papel e da atuação de uma jurisdição constitucional. Assim é que muitos autores seriam apresentados como substancialistas e outros como procedimentalistas, conforme as posições de cada eixo teórico acerca de qual deve ser o papel de uma jurisdição constitucional. Em regra ainda é feita a defesa de uma das correntes citadas como superior, em detrimento da outra.
Na doutrina brasileira, muito enfaticamente se verifica essa distinção com base nos escritos de Lenio Luiz Streck[1], senão vejamos:
Contemporaneamente, o papel da Constituição, sua força normativa e o seu grau de dirigismo vão depender da assunção de uma das teses (eixos temáticos) que balizam a discussão: de um lado, as teorias procedimentais e, do outro, as teorias materiais-substanciais. Parece não haver dúvidas de que esse debate é de fundamental importância para a definição do papel a ser exercido pela jurisdição constitucional. A toda evidencia, as teses materiais colocam ênfase na regra contramajoritária (freios às vontades de maiorias eventuais), o que, para os substancialistas, reforça a relação Constituição-democracia: para os procedimentalistas, entretanto, isso enfraquece democracia, pela falta de legitimidade da justiça constitucional. Uma jurisdição constitucional interventiva “coloniza” o mundo da vida, na acepção da Habermas, corifeu da teoria procedimental do direito.
Assim, a compreensão da contraposição entre teorias substancialistas e procedimentalistas, parece ser feita de modo apriorístico. Até mesmo seus defensores podem ser assim definidos com base na compreensão que possuem sobre o papel da jurisdição constitucional.
Em síntese, as teorias substancialistas[2] defendem uma atuação mais ativa da jurisdição constitucional na perspectiva de uma defesa material e conteudística dos direitos fundamentais, justificando sua tese em grande medida pela necessidade de tal atuação ante a inefetividade da Constituição e a omissão dos poderes legislativo e executivo.
Por outro lado, as teorias procedimentais[3], procuram por meio do procedimento, uma jurisdição constitucional que proteja a democracia e obstaculize um ativismo judicial antidemocrático e arbitrário, permitindo uma maior participação da sociedade na teoria da decisão, quando esta for possível.
Aqui pode ser acrescentada uma diferenciação, até agora não presente na doutrina, que certamente modificará a forma de tratar tal distinção. Acredita-se que, em realidade, não é assim que deve passar a relação entre teorias substancialistas e procedimentalistas e suas aplicações na teoria da decisão de uma jurisdição constitucional.
Em todas as leituras detalhadas que são feitas nas abordagens e defesas, seja de doutrinas substancialistas, seja de doutrinas procedimentalistas, verifica-se a presença de certos aspectos que justificam em maior medida ou em menor medida a defesa desta ou daquela teoria, o que permite com base nos próprios autores a construção do raciocínio proposto. É como se a ideia já estivesse presente em entrelinhas, restando ser sistematizada e explicitada.
Assim, v. g. Lenio Luiz Streck (2011, p. 81) indica que sua defesa da teoria substancialista “assume maior visibilidade em face da notória inefetividade da constituição e da omissão dos poderes legislativo e executivo” e em outro trecho afirma “entendo difícil sustentar as teses processuais-procedimentais em países como o Brasil, em que parte dos direitos fundamentais continua incumprida”.
Assim é possível questionar: seria mais fácil então sustentar teorias procedimentais em países (e por que não dizer situações) cujos direitos fundamentais estivessem efetivados?
Ronald Dworkin (2010, p. 133), ao tratar dos casos difíceis, sustenta que os juízes devem decidir com base em argumentos de princípios e não em argumentos de política, vez que as “decisões sobre políticas devem ser operadas através de um processo político criado para oferecer uma expressão exata dos diferentes interesses que devem ser levados em consideração”.
No entanto, se considerarmos que quando autor trata dessa questão ele afirma estar voltado para os “casos civis” (2010, p. 132) e consideramos na mesma medida que uma Jurisdição Constitucional no mais das vezes é convocada a tomar em consideração argumentos de política, não seria adequado que nesses casos uma resposta correta deveria ser encontrada “por meio de um processo político criado para oferecer uma expressão exata dos diferentes interesses que devem ser levados em consideração”?
Por fim, e com Peter Häberle (1997, p. 45), podemos afirmar que “peculiar reflexão demandam as leis que provocam profundas controvérsias no seio da comunidade [...] cabe ao Tribunal a tarefa de zelar para que não se perca o mínimo indispensável da função integrativa da Constituição”. Poderia o tribunal não considerar o debate público?
Essas questões foram colocadas não a fim de gerar respostas imediatas, mas ao contrário, a fim de auxiliar na percepção de que tais respostas não devem ser dadas de forma antecipada.
De inicio, e para evitar acusações de tendenciosidade, afirmo como corretas ambas as correntes. Tanto posicionamentos procedimentalistas quanto posicionamentos substancialistas podem ter aplicabilidade em certa medida, mas, e aqui a exposição da tese defendida neste artigo, não se deve defender que o posicionamento de uma Corte Constitucional, ou de um jurista ou de uma teoria substancialista ou procedimentalista, seja correta de forma abstrata e sem estar em atuação.
Para que se firme a tese: apenas quando da atuação da jurisdição constitucional, apenas diante de um caso que lhe é apresentado é que deve ser possível afirmar qual posicionamento deve ser adotado, novamente talvez se apresente a questão do Daisen heideggeriano[4]. A forma de atuação e o papel da jurisdição constitucional e sua relação com a proteção da democracia e com a proteção dos direitos fundamentais deve ser definido apenas quando situado (aí).
A fim de que logo se inicie a explicação do entendimento esposado afirma que é a atuação em um determinado caso que deve ser compreendida como procedimentalista ou substancialista, e nessa atuação, a depender do contexto em que se situe, tanto uma como a outra estarão corretas, podendo inclusive a utilização de uma ou de outra se dar de forma gradativa e não exclusiva.
Assim, não é uma corrente ou outra que é correta, mas será ela adequada ou não conforme o caso apresentado. Eis o que entende não se encontrar explícito na doutrina.
Apenas a título de exemplo, em uma atuação da jurisdição constitucional que ocorra em um contexto histórico-social onde os direitos fundamentais dos participantes envolvidos não tenham sido efetivamente realizados, certamente não haverá a possibilidade de participação exigida pelas teorias procedimentais de modo que será necessária e democrática uma postura substancial e ativa da jurisdição constitucional.
Por outro lado, em um contexto inverso e com os direitos fundamentais plenamente realizados, ocorrendo uma dada situação onde a possibilidade (e até a realização efetiva) de participação esteja plenamente configurada, pode ocorrer uma hipótese onde a verdadeira proteção dos direitos fundamentais, bem como da própria democracia, apenas seja realizada por meio de uma postura mais procedimental da jurisdição constitucional, permitindo que se escutem os envolvidos.
A partir do próximo tópico será possível compreender de forma mais analítica esse critério de proteção de direitos fundamentais que, conforme se verá, não deve ser generalizado para o contexto de um país como faz a doutrina, mas sim analisado a partir da situação dos intérpretes[5], como um ser-aí, em cada caso apresentado.
Três critérios serão apresentados ainda sem qualquer pretensão de esgotar as hipóteses de aplicação de uma ou outra corrente, mas, para ressaltar que a forma de atuação e o papel da jurisdição constitucional devem ser compreendidos como modificáveis em infinitos níveis, na medida das possibilidades e necessidades dos intérpretes, totalmente alteráveis conforme a presença destes no tempo, no espaço e no contexto.
O que vem sendo defendido desde o inicio é que a forma de atuação e o papel de uma jurisdição constitucional, dentro da estrutura democrática, não devem ser definidos abstratamente.
Nesse contexto, para ratificar o entendimento e de logo iniciar a verificação de uma possibilidade classificatória não exaustiva, é possível apontarmos algumas outras considerações que devem ser feitas, de modo a verificar, em um dado caso, qual deve ser postura a ser adotada por uma jurisdição constitucional, se mais ativa e substancial ou se mais autocontrolada e procedimental.
Essa questão, que inclusive serviu de exemplo no item anterior, pode ser mais bem analisada. Inicialmente, deve-se ressaltar que mesmo os autores procedimentalistas afirmam o fato de que tal compreensão da atuação de uma jurisdição constitucional pressupõe que determinada comunidade já se encontre em determinado nível de evolução de sua democracia, possibilitando de fato a participação das esferas públicas nos debates constitutivos de sua história. Habermas por exemplo trata da restrição de sua teoria sob a expressão da necessidade de um “mundo da vida racionalizado”, assim nos fala o autor:
a formação de uma sociedade dinâmica de pessoas privadas implica, não somente o contexto de uma cultura política livre, mas também uma esfera privada intacta, o que equivale a dizer que ela necessita de um mundo da vida já racionalizado. (HABERMAS, 2011, p. 106)
Sem dúvida tal questão também é pressuposta pelo mesmo autor, quando, ao tratar de sua fundamentação dos direitos com base na teoria do discurso (HABERMAS, 2012, p. 160) entende necessária a proteção de “direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecológicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento em igualdade de chances” dos demais direitos fundamentais, entre os quais o autor inclui os direitos de participação na vida política.
Esse aspecto que desponta indiretamente, tanto para autores substancialistas como para autores procedimentalistas, neste artigo, aparece de forma sistematizada. Essa hipótese pode ser melhor explicitada e, com arrimo Peter Häberle, é que será feita ao darmos uma passo adiante.
Segundo Peter Häberle é possível a existência de uma variação na intensidade do controle de constitucionalidade, conforme a medida de participação dos diferentes grupos na interpretação constitucional. Em suas palavras, “um minus de participação deve levar a um plus de controle constitucional” (HÄBERLE, 1997, p. 46).
Assim, é possível constatarmos na prática constitucional que, em muitos casos, determinadas matérias podem ter tido uma maior grau de discussão nas diversas esferas públicas e privadas. Ainda quando não se tem por completo, em determinada nação, um mundo da vida racionalizado ou uma efetiva proteção dos direitos fundamentais de forma ampla e irrestrita, podem haver situações que, por motivos diversos (v.g. interesse populacional na matéria envolvida, grau de organização e especialização de certos grupos sociais), pode ter ocorrido um debate suficiente acerca da matéria e que não deve ser desconsiderado pela corte constitucional.
Por esse critério, é necessário observar a situação de evolução da defesa dos direitos fundamentais no contexto geral da comunidade política, mas também é necessário observar o contexto particular do caso envolvido para verificar, em que medida, as deficiências gerais de proteção dos direitos fundamentais, ou ausência destas, podem ter influenciado na (im)possibilidade de participação na formação da opinião e da vontade na matéria.
Assim, podem haver casos onde se justificará em maior ou menor medida uma atuação da jurisdição constitucional de cunho substancialista ou procedimentalista, conforme as necessidades e possibilidades dos intérpretes na realização de seus direitos fundamentais no caso concreto.
Em uma outra vertente de diferenciação e com base em similaridades que se verifica nas obras de Ronald Dworkin e Jürgen Habermas sobre a teoria da norma, é possível se realizar outra análise.
Assim, para Ronald Dworkin (2010, p.35), é possível falar em argumentos de princípios e argumentos de política, os quais se encontrariam dentro do conceito de princípios em sentido amplo e que se distinguiriam das regras (único padrão do direito positivista). Enquanto para Jürgen Habermas (2012, p. 142) os diferentes tipos de argumentos podem ser agrupados como morais, pragmáticos e ético-politicos.
A teoria habermasiana trabalha com o conceito de argumentos morais e pragmáticos o que, na teoria dworkiana[6], se apresentam nos padrões de princípios strictu sensu.
Por outro lado, Jürgen Habermas trabalha ainda com as classificações de argumentos ético-políticos, os quais fundamentam a escolha dos objetivos mesmos. Também esses argumentos podem ser encontrados em Ronald Dworkin, em conceito aproximado do que este denomina por políticas.
Seguindo doravante apenas a terminologia de Ronald Dworkin, mas guardadas as similaridades acima entendidas é possível afirmar que, para o autor, a decisão judicial precisa ser tomada com base em argumentos de princípio e não de políticas.
Ronald Dworkin (2010, p. 133), ao tratar dos casos difíceis, sustenta que os juízes devem decidir com base em argumentos de princípios e não com base em argumentos de política, vez que, as “decisões sobre políticas devem ser operadas através de um processo político criado para oferecer uma expressão exata dos diferentes interesses que devem ser levados em consideração”.
Ocorre que o autor trata dessa distinção em uma análise para os “casos civis” (2010, p. 132). Devemos considerar que uma jurisdição constitucional, sobretudo (mas não apenas) no controle concentrado, no mais das vezes é convocada a tomar em consideração argumentos de política. Para resolver essa situação, que é um verdadeiro caso difícil, novamente com o autor, a jurisdição constitucional deve assegurar que sua decisão legitime “um processo político criado para oferecer uma expressão exata dos diferentes interesses que devem ser levados em consideração”.
Aqui se encontra posta outra forma de análise que pode indicar uma atuação da Jurisdição Constitucional mais substancialista ou procedimentalista.
Caso a corte julgue um caso que lhe é apresentado com base em argumentos de princípio estes, sendo suficientes para oferecer a resposta correta, a questão poderá adotar uma atuação mais substancialista sem ferir qualquer estrutura democrática vez que tratando-se de direitos já consagrados esse problema não aparece (DWORKIN, 2010, p. 133). Por outro lado, caso seja imprescindível o uso de argumentos políticos, uma maior procedimentalização se faz necessária para a legitimação da atuação da jurisdição constitucional.
Assim, podem haver casos onde se justificará em maior ou menor medida uma atuação da jurisdição constitucional de cunho substancialista ou procedimentalista, conforme as necessidades e possibilidades das espécies de argumentos utilizados pelos intérpretes no caso apresentado.
Uma outra análise que pode ser colocada, diz respeito diretamente a matéria posta em discussão, assim é que algumas matérias podem provocar um profundo nível de dissenso na comunidade política em geral. Assim, com Peter Häberle (1997, p. 45), podemos afirmar que “peculiar reflexão demandam as leis que provocam profundas controvérsias no seio da comunidade [...] cabe ao Tribunal a tarefa de zelar para que não se perca o mínimo indispensável da função integrativa da Constituição”.
Certamente também se aplica aqui a situação onde Ronald Dworkin ao tratar de questões de moralidade política (2010, p.192) se dirigindo ao juiz entende ser “um poderoso lembrete de que ele pode muito bem errar nos juízos políticos que emite, e que deve, portanto, decidir os casos difíceis com humildade.”
Nesse sentido, nos casos de grande dissenso moral e político, a jurisdição constitucional deve buscar uma atuação que permita maior participação da sociedade civil para se manter aberta a uma função integrativa da constituição, bem como para evitar erros de juízo político. Ao contrário, em questões com menos nível de dissenso, poderá a jurisdição constitucional adotar posicionamentos mais substancialistas.
Assim, também podem haver casos onde se justificará em maior ou menor medida uma atuação da Jurisdição Constitucional de cunho substancialista ou procedimentalista conforme o nível de dissenso do caso apresentado.
Por fim, além de repetir tratar-se a enumeração (três análises descritas) de mera indicação de hipóteses destinadas a sustentar a tese, não buscando qualquer esgotamento das possibilidades de distinção, eis que entende estas tenderem ao infinito, deve esclarecer ainda que tais distinções não devem também ser tomadas de forma isolada.
O direito possui complexidade tal que impede qualquer análise descontextualizada e apriorística. No entanto, tais indicações podem se constituir em sólidos rumos na direção da definição da forma de atuação e do papel da jurisdição constitucional.
Indubitavelmente a obra de Ronald Dworrkin se apresenta entre as que mais contribuíram para a fundamentação deste trabalho. Seu recente falecimento, quando ainda em análises preliminares para a elaboração deste estudo, mostrou imprescindível a presente homenagem, que, embora muito singela para os merecimentos de homenageado, é o que se encontra à disposição dos muitos limitados conhecimentos de quem presta.
Homenagendo o criador na pessoa da criatura é possível propor que o juiz dworkiano, o filósofo Hércules[7], seja nomeado juiz de uma corte constitucional. Lá chegando verifique que os casos constitucionais podem ser ainda mais difíceis que os casos civis a que estava acostumado a decidir.
Ele se depara com a necessidade de, em determinadas situações, lançar mão de argumentos de política. Mas isso não lhe parece certo. Nunca seria correto. É necessário decidir com base em argumentos de princípio! Mas Hércules não consegue resolver satisfatoriamente as questões apresentadas, percebendo que a decisão proferida agora não resolve apenas a defesa de uma das partes que afirma possuir algum direito subjetivo, em regra agora se decide e cria o próprio direito objetivo.
Hércules percebe que suas decisões podem ter efeitos imediatos não apenas para partes de um processo, mas para toda sua nação, tendo força de objetivos políticos. Salta aos seus olhos a necessidade de que os atingidos por sua decisão possam de algum modo contribuir com ele.
Especialmente nas questões que precisam ser decididas com base em argumentos de política, bem assim as decisões que envolvam matéria de grande dissenso na comunidade política, necessitam de uma participação mais ativa dos atingidos com tais decisões.
Neste momento Hércules, como um bom filósofo, logrou estudar obras jurídicas e filosóficas que o guiassem em sua nova missão e assim descobriu que pode possuir bons auxiliares em sua atividade de juiz de Tribunal Constitucional. Assim lhe são apresentados: um para sua corte, o intérprete Hermes[8] e um juiz em regra ausente nas sessões, cuja importância em regra não é considerada nas deliberações, o juiz Zeus[9].
Hércules descobre o juiz Zeus, que é o juiz de onde emana todo o poder de que dispõe a jurisdição de Hércules, e não só ela, mas todos os poderes de sua nação. Ele percebe que seu papel enquanto juiz de um Tribunal Constitucional é ser um instrumento por meio do qual Zeus exerce o poder. Zeus continua sendo o detentor desse poder e por isso deve ser respeitado e ouvido.
Hércules descobre que o primeiro e mais importante ato de Zeus foi o envio de uma carta com sua vontade e com recomendações sobre o que é necessário para que sua vontade seja observada. Hércules descobre ainda que, após o envio dessa carta, Zeus passa a se comunicar de forma difusa, complexa e oscilante e esse é um dos motivos de ser desconsiderado. Mas não se pode esquecer, Zeus ainda existe.
No entanto, os representantes de Zeus possuem o papel de continuar a atualizar a escrita da carta Zeus, sempre respeitando sua vontade inicial e que foi desenvolvida ao longo do tempo, mas sem desprezar sua vontade atual, ainda que difusa, complexa e oscilante.
Hércules, em seu papel de apresentar a vontade de Zeus, percebe que, em muitos momentos, a vontade de Zeus se permite ser observada com menos dificuldade de modo que pode ouvi-la, seja por meio da leitura de sua carta e atualizações feitas por seus representantes, seja mesmo em cotejo com a voz de Zeus, por ele mesmo, que se dá a escutar de forma mais clara.
Mas há situações em que Hércules entende que precisa de ajuda para compreender a voz de Zeus em determinado caso que lhe é apresentado. Hércules verifica então que pode contar com Hermes, um expert em Zeus e em temas que permitem facilitar compreender sua voz. Hermes, compreendendo melhor a vontade de Zeus pode, com base nos conhecimentos específicos que possui, auxiliar Hércules em sua atividade de ouvir e atualizar a voz de Zeus ao longo da história.
Hermes pode ser chamado por Hércules para atuar de forma escrita, de forma oral ou conforme a necessidade se apresentar. Em regra Hermes possui um conhecimento especializado que auxiliará Hércules em sua atividade de compreender a real e atual voz de Zeus em um dado caso.
Assim, Hércules verificará que sua jurisdição constitucional poderá atuar de diversas formas onde ao menos três delas aparecem de forma bastante clara.
Poderá atuar sem maiores ajudantes quando verificar que a voz de Zeus não pode ser ouvida, seja por que se encontra distorcida ou emudecida, seja por que alguma dificuldade de Zeus não lhe permite expressar sua voz de forma evidente. Nesse caso Hércules irá buscar a carta de Zeus e as atualizações feitas pelos representantes de Zeus para garantir acima de tudo as mínimas condições para que Zeus possa viver com dignidade para assim reafirmar sua voz.
Poderá atuar com auxilio de Hermes quando verificar que esse auxílio permitirá de forma eficaz compreender a voz de Zeus em um dado contexto, mas sempre, e isso é muito importante, também a partir de sua carta.
Por fim, caso seja necessário e possível ouvir a voz de Zeus deve Hércules prezar para que essa voz (que inclui sua carta) seja ouvida na maior medida possível, pois todo poder emana de Zeus.
Assim, Hércules não atuará sempre de um modo ou de outro modo. Com base em sua capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade (DWORKIN, 2010, p. 165), requisitará, ou não, o auxílio necessário, seja para Hermes seja para Zeus, seja para os dois conjuntamente, a fim de resolver seus casos constitucionais difíceis. Hércules atuará conforme as necessidades e possibilidades sua, de Hermes e de Zeus.
A Jurisdição Constitucional Brasileira está cada vez mais se adequando à busca de um neoconstitucionalismo que democratize o debate constitucional na forma do que vem sendo defendido neste artigo.
Certamente muitos passos foram dados, em especial por meio de avanços jurisprudenciais e até mesmo por meio de alterações legislativas de que são exemplo as leis nºs 9.868/99 e 9.882/99, ao prever a possibilidade de em “caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria”.
Trata-se da consagração no direito brasileiro das audiências públicas e da participação do Amicus Curiae no debate constitucional realizado na própria Corte, muito ligados à concepção de Peter Häberle (1997, p. 20).
No entanto, também não há dúvidas, muito ainda precisa caminhar a jurisdição constitucional pátria no sentido de compreender a exata medida de sua forma de atuação e de seu papel no arranjo institucional brasileiro, de modo que a análise de dois casos julgados pela corte, podem ajudar sobremaneira à compreensão de toda a temática abordada neste trabalho.
O Supremo Tribunal Federal (STF) analisou conjuntamente as Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 29 e nº 30 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.578, todas versando sobre a Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010, que alterou a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, diploma legal que, editado em observância do art. 14, §9º, da Constituição de 1988, estabelece hipóteses de inelegibilidades.
Em apertadíssima síntese, a qual entende suficiente aos limites do presente artigo, a Lei Complementar em questão acrescentava como condição de inelegibilidade a existência de condenação colegiada ainda que não transitada em julgado, o que de logo lhe fez ser confrontada com diversos princípios e em especial com o princípio da presunção de inocência[10].
Nessa explanação inicial deve-se ainda ressaltar que a Lei Complementar em referência decorreu (dentre outros projetos que lhe foram apensados) de um Projeto de Lei (nº 518/09) decorrente de iniciativa popular subscrita por cerca de dois milhões de assinaturas[11], denotando uma intensa mobilização de uma esfera pública civil.
Importante questão para os limites do nosso trabalho foi o modo como restaram debatidos os argumentos de princípio envolvidos, em especial, o princípio da presunção de inocência[12] (ou cláusula de não culpabilidade conforme termo mais técnico).
Assim, dois entendimentos restaram opostos. Para 7 (sete) dos ministros (Marco Aurélio, Ayres Brito, Ricardo Levandowsky, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa e Luiz Fux) o princípio da presunção de inocência não se aplicava ao caso, em regra sob a justificativa de que sua aplicação se apresentava distante da matéria eleitoral, devendo sua aplicabilidade estar voltada a seara penal e campos correlatos.
Para os outros 4 (quatro) ministros (Cesar Peluso, Celso de Mello, Gilmar Mendes e Dias Toffoli) o princípio da presunção de inocência deveria ser aplicado ao caso.
O trecho de um dos votos que consideraram inaplicável o princípio da presunção de inocência pode explicar muito bem como se passa uma argumentação com base em princípios conforme o defendido neste artigo, senão vejamos:
Portanto, mesmo na jurisprudência desta Corte em matéria penal verificamos que o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade cedia diante de decisão condenatória proferida por órgão colegiado. Assim, se durante quase duas décadas essa Corte considerou possível o afastamento do princípio da presunção da não-culpabilidade mesmo em seu campo próprio de incidência que é o Direito Penal, é incompreensível que se queira, nesse momento de consternação com os rumos que vem tomando a política nacional, fazer o caminho inverso, isto é, subtrair esse princípio do seu campo próprio de aplicação e trazê-lo de empréstimo para o domínio eleitoral... (BRASIL, 2012, p. 61)
Do inteiro teor do voto se pode verificar que a aplicação do princípio da presunção de inocência à seara eleitoral não encontrava guarida na história institucional[13] (na concepção de Ronald Dworkin) escrita pelos intérpretes da constituição ao longo do tempo.
Aplicar o princípio da presunção de inocência ao presente caso não faz parte do romance escrito em cadeia que constitui o estado brasileiro. Sua aplicação ao caso não guardaria coerência com o ordenamento como um todo, o direito não seria considerado a teia inconsútil (DWORKIN, 2010, p. 181) da concepção dworkiana e aqui não existiria qualquer força gravitacional de precedentes, vez que, em uma rápida análise, se permite verificar que não são semelhantes as órbitas penal e eleitoral para a aplicação do princípio em análise.
Quando alguns ministros apresentaram oposição a essa compreensão de princípio, enfrentam o grande problema da discricionariedade em sentido forte, muito presente em crítica de Jürgem Habermas (2012, p. 315) à interpretação do Tribunal Constitucional Federal Alemão ao considerar, seguindo doutrina de Robert Alexy, princípios como valores.
A não compreensão do papel dos princípios e de uma luta contra uma discricionariedade (em sentido forte) nesse momento da nossa história jurídica, impede qualquer passo seguinte na busca por se alcançar uma teoria da decisão em uma jurisdição constitucional democrática.
A teoria dworkiana neste ponto parece nos fornecer um bom caminho a ser trilhado e certamente, se não afirmada expressamente como aplicada ao caso da ADI 4.578, o foi, e para o bem da coerência e integridade do sistema jurídico pátrio.
O caso em estudo revela ainda uma atuação procedimental da jurisdição constitucional brasileira, não sob a ótica de uma sociedade aberta defendida por Peter Häberle, de uma “academical self-restraint” (HÄBERLE, 1997, p. 55), mas sim, seguindo um caminho que mais se aproxima da atuação defendida por Jürgen Habermas, onde um poder comunicativo gerado em uma esfera pública civil (HABERMAS, 2012, p. 190) alcança ser considerado e institucionalizado nas instâncias centrais do poder político.
Assim é que, em praticamente todos os votos (mesmo os que insistiram em decidir contrariamente, onde por todos cite-se o, nesse particular, extenso voto do Ministro Gilmar Mendes) de algum modo se considerou como aspecto relevante o fato da grande mobilização da sociedade ao redor do processo legislativo e até mesmo das manifestações de decisões da própria corte (STF) quando dos julgamentos da ADPF 144 e do RE 633.703 acerca de matérias correlatas.
Em trecho de voto do relator, por exemplo, foi afirmada tal condição: "...foi intensa a mobilização social que culminou na reunião de mais de dois milhões de assinaturas e a apresentação do Projeto de Lei Complementar nº 518/09".
Trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes permite verificar a forte influência gerada pela opinião pública mesmo nos votos dos que a ela foram contrários:
O argumento de que a lei é de iniciativa popular não tem peso suficiente para minimizar ou restringir o papel contramajoritário da Jurisdição Constitucional. É compreensível a ação das várias associações e das várias organizações sociais tendo em vista a repercussão que esse tema da “ficha-limpa” tem na opinião pública. Sabemos que, para temas complexos em geral, há sempre uma solução simples e em geral errada. E para esse caso a população passa a acreditar que a solução para a improbidade administrativa, para as mazelas da vida política, é a Lei da Ficha Limpa. A partir daí há, na verdade, a tentativa de aprisionar, o que nos dificulta enormemente a missão nesta Corte, como em outros casos, porque acabamos tendo de nos pronunciar de forma contramajoritária, claro, tendo em vista a opinião pública, segundo as pesquisas manifestadas de opinião. Mas a missão desta Corte é aplicar a Constituição, ainda que contra a opinião majoritária. Esse é o ethos de uma Corte Constitucional. (BRASIL, 2012, p.129)
Trecho do voto do Ministro Ricardo Levandowsky expressa ainda o próprio apoio institucional no legislativo e no executivo, ressaltando assim a presença dos longos debates em torno da questão, senão vejamos:
Mas, permito-me fazer apenas umas brevíssimas considerações apenas para que a minha participação não passe in albis, dizendo que esta Lei Complementar 135 é uma lei, como todos sabem, que surgiu da iniciativa legislativa popular, e foi apoiada por mais de um milhão e quinhentas mil assinaturas. Ademais disso, recebeu apoio de igual número de assinaturas por meio da internet, apoios, portanto, que foram formalizados pela internet; mereceu aprovação unânime das duas Casas do Congresso Nacional, depois de longos debates. Quinhentos e três deputados, oitenta e um senadores, o Congresso Nacional em peso sufragou essa lei, e mais, foi sancionada pelo Presidente da República, passando, evidentemente, pelos órgãos técnicos de assessoria do Poder Executivo, sem o veto. Portanto, nós estamos diante de um diploma legal que conta com o apoio expresso, explícito dos representantes da soberania nacional. (BRASIL, 2012, p.217)
Não há duvidas de que o resultado do julgamento se consubstancia no prestígio de uma atuação procedimental da jurisdição constitucional brasileira na maior abertura possível à sociedade de intérpretes, e em um tema onde tal atuação é por demais necessária, pois quem mais deveria escolher os critérios para ser representante que os próprios representados? Um outro representante não poderia mudar essa resposta. Foi assim que decidiu o STF atuando de forma que entendemos procedimental.
A ação direta de inconstitucionalidade nº 3.510/DF foi proposta pelo Procurador-Geral da República contra artigo 5º da Lei Federal nº 11.105 (Lei de Biossegurança) de 24 de março de 2005. Referido artigo permitia, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento.
Na defesa da constitucionalidade da lei afirmou-se que a mesma encontrava guarida constitucional “com fulcro no direito à saúde e no direito de livre expressão da atividade cientifica”.
A condução da ação direta de incostitucionalidade foi amplamente divulgada vez que, pela primeira vez na história, se realizou uma audiência pública em um processo levado à jurisdição constitucional brasileira, também foi admitida a participação de diversas entidades por meio de Amicus Curiae, através de manifestações escritas e mesmo orais.
Uma das questões que mais podem colaborar com as últimas linhas deste artigo se refere a uma procedimentalização que muitas vezes ocorre apenas de modo formal (e aqui não há redundância). Assim, entre as críticas que foram levantadas acerca da atuação da jurisdição constitucional no caso em apreço, seria que, em que pese todos os elogios à democratização da jurisdição constitucional que foram lançados nos votos dos Ministros, pouco pareceu que os argumentos apresentados (nas manifestações orais ocorridas nas audiências e nas manifestações escritas pelos Amicus Curie) tenham sido considerados pelos juízes da corte em seus votos.
De forma muito especial em um dos argumentos levantado por escrito e oralmente por ocasião de Audiência Pública pelo então Amicus Curiae Luis Roberto Barroso[14]. Segundo os memoriais apresentados e a sustentação oral realizada, um dos argumentos lançados dizia respeito à expressiva votação no Congresso que culminou com a aprovação da Lei. Assim se manifestou o Amicus Curie:
O Congresso Nacional aprovou as pesquisas com células-tronco embrionárias por 96% do Senado Federal e 85% a Câmara dos Deputados, após amplo debate público. Praticamente todos os partidos apoiaram a lei, aí incluídos o PT, o PSDB, o PMDB, o então PFL (hoje Democratas), o PDT e inúmeros outros. O Presidente da República sancionou expressamente a lei, atestando sua constitucionalidade e sua adequação ao interesse público. As principais instituições científicas do país apóiam as pesquisas com células-tronco embrionárias, aí incluídas a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a Federação das Sociedades Brasileiras de Biologia Experimental, a Academia Brasileira de Ciências, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, dentre outras. O Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência – CONADE, ao lado de dezenas de entidades da sociedade civil, apóia a lei e a continuidade das pesquisas. Os mais importantes veículos de imprensa do país, de maneira inequívoca, se manifestaram a favor a lei, inclusive em editoriais. A opinião pública do país, conforme aferida em pesquisa do IBOPE amplamente divulgada, é expressivamente favorável (BARROSO, 2009, p.8).
Recorde-se que toda essa defesa ocorreu em um processo onde pela primeira vez na história institucional de uma corte constitucional se realizou audiências públicas e em torno de tema complexo de difícil apreciação, tanto técnica quanto moralmente. A sociedade sentia que poderia estar influenciando os centros do poder por meio de uma democratização do debate constitucional e isso parecia estar acontecendo. No entanto, apenas parecia.
Aqui não quer discutir o acerto ou desacerto do entendimento que restou firmado nesse caso, mas, o que torna o julgado impressionante é o modo como os ministros ao exararem seus votos, em amplos elogios ao procedimento adotado, não consideraram, em grande medida, os argumentos lançados pela sociedade, restando uma atuação da corte que poderia ser classificada como uma sociedade formalmente aberta de intérpretes.
Se com a Audiência Pública se resolve em parte uma mudez da sociedade no processo constitucional, não resolve o problema (muito maior) da surdez dos intérpretes em sentido estrito.
Acerca do argumento lançado pelo então Amicus Curiae, Luis Roberto Barroso, acima indicado ele, no mais das vezes, restou esquecido pelos ministros em seus votos e, quando considerados, o foram conforme argumentação abaixo, transcrita de um dos votos dos Ministros[15], em franca desconsideração ao procedimento:
Finalmente, Senhor Presidente, e ainda como observação preliminar, a se tomar não apenas quanto a esse, mas em relação a qualquer julgamento de controle abstrato de constitucionalidade, preocupa-me o que foi aqui afirmado por um dos ótimos advogados que assomaram a tribuna, na inicial desse julgamento. Segundo o que anotei nas alegações lançadas da tribuna, afirmou um dos eminentes procuradores, que, no presente julgamento, não teria muito a fazer este Supremo Tribunal, pois não haveria um vazio legislativo sobre a matéria. A questão resumir-se-ia na indagação que poderia ser assim traduzida: que legitimidade teria o Poder Judiciário para afirmar inconstitucional uma lei que o Poder Legislativo votou, o povo quer e a comunidade científica apoia? No Estado Democrático de Direito, os Poderes constituídos desempenham a competência que lhes é determinada pela Constituição. Não é exercício de poder, é cumprimento de dever. Ademais, não imagino que um cidadão democrata cogite querer um juiz-Pilatos dois mil anos depois de Cristo ter sido crucificado porque o povo assim queria. [...]É com o só compromisso com a Constituição que há de atuar esse Supremo Tribunal, neste como em qualquer outro julgamento. O juiz faz-se escravo da Constituição para garantir a liberdade que ao jurisdicionado nela é assegurado. (BRASIL, 2008, p. 329)
Resta clara a compreensão da eminente Ministra de que a constituição garante liberdade ao jurisdicionado apenas no sentido que se poderia atribuir esse direito de forma negativa ou no máximo como um cliente[16]. Mas é possível questionar: e a liberdade de influenciar, o direito de participação política; e a compreensão de interpretação que considera o intérprete como aquele que vive a norma; e própria evolução que consagra a nova hermenêutica?
O problema é que, especialmente em casos como esse, alguma futura (ou mesmo atual) composição do STF é que pode querer crucificar toda a sociedade e o fará a um só golpe (a palavra é mesmo essa), e nesse caso a quem será possível recorrer?
Assim e com Dworkin (2010, 192) se dirigindo ao juiz, casos como esse são “um poderoso lembrete de que ele pode muito bem errar nos juízos políticos que emite, e que deve, portanto, decidir os casos difíceis com humildade”.
Foi possível verificar como a doutrina apresenta a distinção entre as teorias que discorrem sobre a forma de atuação de uma jurisdição constitucional.
Nesse sentido, verificou-se que a distinção entre teorias/autores substancialistas e teorias/autores procedimentalistas não pode ser feita aprioristicamente, pois a teoria adequada deve variar conforme as necessidades e as possibilidades dos intérpretes, no sentido häberliano da palavra.
Assim, em alguns casos será mais adequada uma atuação da Jurisdição Constitucional mais substancialista e em outros casos será mais adequada uma atuação mais procedimentalista.
Compreende-se assim que a discussão não deve ser qual teoria (ou qual autor) é a melhor. Tanto uma como outra pode ser mais adequada, conforme as necessidades/possibilidades dos intérpretes.
Como base em uma homenagem a Ronald Dworkin, foi possível verificar exemplificativamente como se passa a questão, inclusive na conciliação entre teorias substancialistas e procedimentalistas.
Por fim, da análise de dois casos constitucionais julgados no STF, foi possível verificar como se passa a questão em nosso país, assim indicando criticamente as adequações e inadequações na compreensão da Jurisdição Constitucional brasileira, tanto na aplicação dos princípios quanto na forma de atuação da corte.
O debate acerca da democratização da atuação da Jurisdição Constitucional é certamente tema que permanecerá não resolvido, em todo caso, ao menos para a análise de como as coisas se encontram atualmente espera humildemente ter contribuído.
BARROSO, Luis Roberto. A fé na ciência: constitucionalidade e legitimidade das pesquisas com células-tronco embrionárias. 2009. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso .com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/a_fe_na_ciencia.pdf.>. Acesso em: 30 abr. 2013.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510/DF. Brasília, DF, 2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/ PesquisarInteiroTeor.asp#resultado> Acesso em: 30 abr. 2013.
______ . Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.578/DF. Brasília, DF, 2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiro Teor/PesquisarInteiroTeor.asp#resultado> Acesso em: 30 abr. 2013.
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica da argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
DWORKIN, Ronald. Levando o direito a sério. Tradução Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: A sociedade aberta dos intérpretes da constituição pluralista e procedimental da constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre a facticidade e validade, volume I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. 2. Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012.
______ . Direito e democracia entre a facticidade e validade, volume II. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011.
OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. In: Doxa, Cuadernos de Filosofia del Derecho, n. 14, Alicante, 1993.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso : constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
______ . Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
[1] Lenio Luiz Streck (2011, p.84) apresenta extensas listas de autores substancialistas e pricedimentalistas tanto na doutrina nacional quanto na doutrina estrangeira. Entre os substancialistas cita entre muitos v. g. Mauro Cappelletti e Ronald Dworkin e entre os procedimentalistas Jürgen Habermas e John Hart Ely. O próprio autor Lenio Luiz Streck se apresenta como defensor do substancialismo.
[2] Ronald Dworkin (2010, p.165), por exemplo, através da criação de um juiz fictício, o juiz Hércules, apresenta-nos seu modo de encontrar a resposta correta para a teoria da decisão. As decisões do seu modelo de juiz são tomadas com base em argumentos de princípio (e não de política) o que, segundo o autor, não exigiria um processo político criado para oferecer uma expressão exata dos diferentes interesses envolvidos.
[3] Peter Häberle (1997, p. 19) e Jürgen Habermas (2012, p. 190), também a título exemplificativo, nos apresentam distintas propostas procedimentais para uma teoria da decisão. Aquele, ao estudar os participantes da interpretação, defende uma abertura da sociedade dos intérpretes. Assim não apenas os juízes são interpretes em sentido estrito, mas não são os únicos intérpretes. As ideias de Häberle ganharam grande ressonância no Brasil na forma do que ocorre com as Audiências Públicas e com a participação de Amicus Curiae em processos, ambos já realidade na prática dos tribunais brasileiros. Jürgen Habermas, por outro lado e por meio de uma reconstrução do direito propõe um sofisticado estudo teórico a indicar como a sociedade civil pode influenciar os centros do poder no que denomina transformação do poder comunicativo em poder administrativo, tendo como médium o direito. Isso implicará em uma Jurisdição Constitucional que seja defensora do processo democrático.
[4] Pelo conceito de Daisen o mundo não é dado como um conjunto de objetos (enquanto seres entificados conforme preconizava a metafísica) com os quais posteriormente se relacionaria ao lhe dar funções e significados. As coisas já possuem significados e se manifestam como coisas enquanto inseridas em um conjunto maior de significados de que o Daisen já dispõe. Para aprofundar a matéria veja-se no Brasil Lenio Luiz Streck (2009, p.198) e Maria Margarida Lacombe Camargo (2003, p. 53).
[5] Palavra utilizada na concepção ampliada de Peter Häberle (1997, p. 20);
[6] Guardadas distinções que o autor deste trabalho entende serem periféricas.
[7] Para fundamentar sua tese de existência de respostas corretas em casos difíceis Ronald Dworkin apresenta-nos o seu modelo de Juiz, o filósofo Hércules. Conforme anota o autor “eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas, a quem chamarei de Hércules” (DWORKIN, 2010, p. 165)
[8] Hermes é aqui referido de modo distinto do que foi indicado François Ost (1993, pp. 170-194).
[9] De logo afirma que, com essa metáfora não pretende considerar o povo ou os cidadão como a figura personalizada de um Deus. Em verdade tal erro nunca seria admitido pelo próprio Jürgen Habermas (2012), que é o autor em quem se espelha para a criação da metáfora. No entanto, guardadas tais considerações e buscando acima de tudo homenagear Ronald Dworkin, verificou ser essa a figura (em especial pelo poder), que analisada em conjunto com o intérprete Hermes, melhor se adequaria à sociedade aberta de intérpretes de matriz habermasiana no contexto de auxilio ao Juiz Hércules.
[10] Vale ressaltar que, por meio da ADPF nº 144, referida matéria já havia sido objeto de debate no STF, quando ainda ausente Lei Complementar que tratasse da matéria, onde foi decidido que o princípio da presunção de inocência deveria ser aplicado ao caso.
[11] Conforme texto do Acórdão
[12] Manter-se-á esta denominação em detrimento da denominação mais técnica por ter sido mais usualmente utilizada no julgamento.
[13] O julgamento da ADPF 144, conforme voto do relator, por outro ângulo, poderia se apresentar na teoria dos erros de Ronald Dworkin (2010, p. 184).
[14] Hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal.
[15] Voto da Ministra Carmem Lúcia (BRASIL, 2008).
[16] Concepção que em Jurgen Habermas (2012) é características de mundos da vida colonizados.
Pós-graduado em Direito do Estado pela Faculdade Baiana de Direito. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC. Aprovado nos concursos para ingresso nas carreiras de Procurador do Estado do Piauí (2015), Procurador do Município de Salvador-BA (2016) e Procurador do Município de Nossa Senhora do Socorro - SE (2014). Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GALDINO, Matheus Souza. Teorias substanciais e teorias procedimentais em uma jurisdição constitucional: uma proposta por uma resposta correta e democrática Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 fev 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46052/teorias-substanciais-e-teorias-procedimentais-em-uma-jurisdicao-constitucional-uma-proposta-por-uma-resposta-correta-e-democratica. Acesso em: 22 nov 2024.
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