Resumo: o presente artigo pretende lançar um olhar feminista sobre os crimes perpretados contra as mulheres durante a guerra, mostrando como as diferenças de gênero são essenciais para se compreender as relações de poder que regem os conflitos armados. Ao final, busca elucidar uma resposta aos grandes problemas atuais na busca de uma solução que beneficie as mulheres que se encontram nestas situações.
Palavras-chave: feminismo, crime, guerra, mulheres, gênero.
1. Introdução
Existe uma grande discussão teórica a respeito dos conflitos armados e da moralidade na guerra. Será que a guerra pode ser moral? Tem como ela se desenvolver sem se basear em uma ideologia? E o Direito Humanitário? É seu dever se preocupar com guerras que ocorram de maneira imoral? Ele é realmente feito apenas de regras com o intuito de diminuir as consequências do combate, ou é de alguma forma relacionada com fatores extrínsecos?
Acredita-se aqui que o Direito Humanitário, da mesma forma que o Direito Penal e qualquer outra construção normativa que objetiva controlar uma dada população em um certo momento histórico, não se abstém de ser formado, mesmo não intencionalmente, por elementos externos determinados por fatores sociais, morais e culturais que regem uma sociedade.
Pimentel (2008) apresenta uma perspectiva sociológica do crime a partir dos estudos de Durkheim, dizendo que crime seria uma conduta que ofende os sentimentos coletivos, formados a partir do alto grau de semelhança entre os indivíduos, que fazem com que a personalidade individual seja absorvida pelo grupal. Assim, o próprio conceito de crime seria construído por aqueles que pensam igual, se sentem da mesma forma em relação ao mundo, mas especialmente aqueles que têm a capacidade institucional de fazê-lo: quem está no poder.
Uma das ideologias que está presente institucionalmente e que rege o Direito Humanitário é a ideologia do gênero, que separa homens e mulheres por fatores sociais pré-constituídos e convencionalmente universais, ontológicos e metafísicos: o intitulado patriarcado. O patriarcado coloca a mulher em posição inferior quando comparada aos homens, por sua forma física e sua biologia diferenciada.
O Direito Penal brasileiro, por exemplo, institui em suas bases crimes prórpios de mulheres exatamente por sua base biológica. É o caso do infanticídio, cujo polo ativo se dá apenas por mulheres, e o aborto que se consume apenas em pessoas do sexo feminino. Nos dois casos o gênero está presente nos próprios tipos penais e na jurisprudência pátria.
O intuito do presente artigo é apresentar algumas formas de violência física e simbólica que o patriarcado usa para se manter durante a guerra, pondo em questão sua validade e seus efeitos sobre os gêneros no Direito Humanitário.
2. A violência engendrada
Como os conflitos armados são espaços predominantemente masculinos, tanto nas esferas inferiores de quem combate, quanto nas mais altas hierarquias, que vão dos generais até os presidentes, a guerra é um espaço de perpetuação de condutas tipicamente masculinas, tendo em vista que o socialmente correto e doutrinado é que os homens se provem cada vez mais homens diantes dos mesmos de sua espécie.
Sobre isso, Chinkin (2014) explica que:
Conflict creates a free-fire zone, a sort of free for all in which pre-existing ideas about women as inferior, and other discriminatory […] ideas may be given free expression by frequently all male groups of soldiers and other combatents. (p. 678)
Sendo a guerra um espaço próprio para condutas agressivas, se espera que hostilidades sejam praticada de forma indiscriminada (até um certo limite) tanto com homens quanto com mulheres. Acontece que as violências experienciadas por mulheres e homens são completamente distintas. Até mesmo as normas internacionais que regem o Direito Humanitário, que em sua maioria são dúbias e nebulosas, nos casos de violência contra a mulher são claras.
Chinkin (2014) afirma que:
Women and men, girls and boys all suffer gender-based violence. Such violence is directed at a person because of his ou her gender. For instance men sustain specific harms such as disappearances and deliberate killings in great numbers than woman, while woman disproportionately experience sexual violence. […]
Children are forcibly abducted into military units where their subsequent experience is likely to be gendered: boys may be required to become child soldiers and girls are likely to have to perform domestic tasks and become subject to sexual violence. (pp. 675-176)
As diferentes formas de violência podem ser explicadas pelos distintos papeis que os homens e as mulheres exercem normalmente durante um conflito armado: os homens vão para o combate, matar o inimigo, lutar pela liberdade do seu país, enquanto as mulheres servem aos homens enquanto estes controem uma nação mais livre e segura. Assim, os homens são mais propícios a morrerem assassinados e as mulheres a sofrerem algum tipo de violência sexual, já que os homens precisam liberar a tensão sexual que fora contida por períodos muito longos.
3. O controle dos corpos femininos por meio da violência
Muitos são os tipos de violência física perpetrados contra mulheres durante um conflito armado: violência sexual, estupro, mutilação genital, esterilização forçada, gravidez forçada, casamento forçado, prostituição. Percebe-se que a maioria dos crimes cometidos contra mulheres são sexuais. Isso mostra como o próprio papel do sexo feminino seria contruído para saciar os desejos masculinos.
O estupro é um dos crimes mais cometidos durante a guerra. Pesquisas mostram que no genocídio de Ruanda em 1994 entre 250.000 e 500.000 mulheres foram estupradas; já no conflito de Bosnia-Herzegovina, nos anos 90, o número variou de 20.000 a 50.000; em Bangladesh, no ano de 1971, foram 200.000 mulheres violentadas.
O estupro também pode ser realizado em conjunto com outros crimes. No casamento forçado, por exemplo, as mulheres são obrigadas a satisfazer sexualmente seus maridos enquanto estão com eles. Faz parte da sua condição de mulher e da sua obrigação como esposa. Também pode ser cometido antes de uma mutilação, tortura ou mesmo assassinato. Podem gerar um filho indesejado ou uma filha indesejada, o que, por sua vez, constitui outro crime de guerra: a gravidez forçada.
A gravidez forçada não é só uma medida drástica por envolver o ato sexual não consentido e um bebê indesejado, o qual a mãe terá que carregar pelo resto da vida como lembrança do agressor. O termo é utilizado quando não há nenhuma medida abortiva ou nenhum método que impeça a gestação, e quando o homem usa da gravidez para acabar com uma etnia ou raça, tornando seus descendentes mestiços.
Já os casamentos forçados são aqueles realizados sem cerimônia oficial, quando a família não estava envolvida no matrimônio, em que as mulheres eram obrigadas a realizarem tudo aquilo que os maridos mandassem. Por pior que a situação fosse, o casamento era uma maneira de se certificar que ao se entragar a um homem, não seria abusada por todos os outros. É comum as família conduzirem suas filhas a um homem em troca de dinheiro e proteção, para que as meninas não fiquem sozinhas a mercê da sorte e da piedade dos outros.
Sobre o casamento forçado, Chinkin (2014) assevera que:
In Sierra Leone too ‘women and girls were systematically [...] abducted in circumstances of extreme violence, compelled to move along with the fighting forces from place to place, and coerced to perform a variety of conjugal duties including regular sexual intercourse, forced domestic labour such as cleaning and cooking for the “husband”, endure forced pregnancy and to care for and bring up children of the “marriage”’. (p. 679)
Mesmo após a guerra, mesmo depois de serem libertas dos seus supostos maridos, as mulheres se encontram em uma situação de rejeição e exclusão. O estigma de ter sido capturada para realização de tarefas domésticas e sexuais para o inimigo continua para o resto de suas vidas, da mesma forma que o preconceito que as acompanha.
E Chinkin (2014) continua em relação às tarefas domésticas realizadas obrigatoriamente por mulheres em situação de cárcere:
It is noteworthy that typical ‘women’s roles’ (cooking, cleaning) were recognized as forced labour and gendered aspects of enslavement. Assignment of domestic tasks to women can be seen as everyday, natural, and as too mundane to be considered of as constituting crimes against humanity. Forced labour is more readily associated with such atrocities as building the Burmese railway or factory labour, but at Nuremberg it was held that sending 500.000 women domestic labouers to Germany to relieve German wives of German farmers also constituted slave labour. (p. 688)
Mister se vai observar que quando em cárcere, as mulheres são obrigadas a realizarem tarefas domésticas, como cozinhar, lavar roupa e limpar a casa (além das obrigações sexuais). O termo correto a se usar é escravidão. As mulheres se tornam escravas do seus donos que se auto denominam “maridos”.
Os crimes contra mulheres que ocorrem durante a guerra, como apresentado acima, são completamente diferentes daqueles praticados contra outros homens. E a raiz do problema é muito maior do que apenas uma necessidade básica de reprodução, de ter relações sexuais ou de manter a casa limpa: a maior dificuldade exposta é a descostrução social dos papeis de gênero. Essa é a base de todas as violências perpetradas contra as mulheres.
4. Princípio da distinção: uma questão de gênero
O objetivo dos combatentes em uma guerra é apenas o de enfraquecer as forças miliatres inimigas. Para que isso ocorra de forma legal, criou-se o princípio da distinção, que separa os que podem ser atingidos dos que não podem. Assim, os militares que estejam ativos devem seguir certas regras que os distinguem das outras pessoas, como usar um distintivo ou um uniforme e estar sempre com as armas a mostra para não surpreender suas vítimas.
Sobre a distinção dos combatentes, Deyra (2011) ensina:
Certas pessoas não podem ser implicadas nas hostilidades, da mesma forma aliás que também não podem nelas participar. As limitações rationae personae explicam-se pelo facto de serem os Estados que fazem a guerra em função das suas necessidades político-estratégicas e não as pessoas, geralmente vítimas dos seus efeitos. Desta forma, só os combatentes têm direito de atacar o inimigo ou de lhe resistir; enquanto atacantes estão submetidos a proibições e enquanto vítimas de um ataque têm certas obrigações. (p. 53)
Combatente seria todo aquele que não participa diretamente das hostilidades. Os cidadãos que não se encontram nas Forças Armadas podem ser combatentes no momento em que efetivamente ajudam na batalha. Mulheres, crianças e idosos não são considerados combatentes. Neste sentido, de acordo com Deyra, mulheres, crianças e idosos são as vítimas que não escolheram estar ou não no conflito armado.
Já Kinsella (2006), apresenta uma visão completamente diferente a respeito do princípio da distinção. Ela acredita que as relações que se formam na guerra são gendradas. Neste perspectiva, os homens devem exercer suas finalidades de “guardas” e “protetores da casa” e as mulheres precisam ocupar seus espaços de “frágeis” e “donzelas em perigo”. Essa seria a base da diferença entre os civis e os combatentes:
I argue that it is precisely the distinction between combatant and civilian that warrants critique: discourses of gender do not simply denote the difference of combatant and civilian, but produce that difference-one that lies at the foundation of the laws of war. (p. 167)
E continua, criticando a atual posição do Direito Internacional quanto à divisão da população entre os que lutam e os que esperam:
We learn from the ICRC commentaries on the IV Convention that there are "certain categories of the population who, by definition, take no part in the fighting": Civilians are identifiable because their "shared suffering, distress, or weakness" makes them incapable of bearing arms, fighting, or taking an active part in the hostilities. Those whose "shared suffering, distress or weakness" identifies them as civilians are "children, women, old people, the wounded and the sick." Significantly, suffering, distress and weakness is now the index and proof of innocence. Moreover, suffering, distress, and weakness establish children, women, old people, the wounded, and the sick as harmless, worthy of the protection and benevolence of the combatant and of the law. (p. 183) (grifos da autora)
A partir de uma visão feminista do Direito Humanitário e fazendo uma retrospectiva a respeito da distinção entre civis e combatentes ao longo da história, a autora mostra como as mulheres foram inferiorizadas pelos homens ao serem consideradas incapazes de carregar uma arma e lutar, por causa de sua fragilidade, fraqueza e inocência. Foram comparadas com crianças, velhos e doentes, os quais apresentam características físicas que realmente os impedem de lutar.
Por sua capacidade de reprodução, as mulheres são subjugadas, tanto pelos crimes que só ocorrem devido a essas características biológicas quanto pelo senso comum construído por muito tempo de que não são capazes de planejar estratégias, traçar metas ou lutar em campo aberto.
5. Conclusão
A violência contra a mulher se encontra mascarada nos conflitos armados. Durante muito tempo não se considerava o estupro como crime de guerra, mas como uma consequência natural do ambiente de hostilidade. Após muitos anos o Direito Humanitário começou a considerar como delitos de guerra as ações que comprometessem a “honra” e a “reputação” da família. Só em 1990 que a violência sexual, por si, começou a ser tratada como crime, não como prejudicial à honra, mas como agressão à própria sexualidade da vítima.
O maior problema a ser enfrentado é a difusão das atribuições que homens e mulheres devem realizar em uma dada sociedade. Assim, mesmo saindo de áreas guerreadas, mesmo se afastando das zonas de combate, as mulheres ainda podem se encontrar face a face com violências não só simbólicas, mas físicas. Muitos são os casos de mulheres que fugiram da guerra para zonas de refugiados e foram estupradas lá, por aqueles que deveriam protegê-las.
Acredita-se que o primeiro passo para confrontar o sistema do patriarcado é punir os agressores de forma dura e contínua. Não adianta condenar um como exemplo e deixar os outros continuarem com as investidas. Ainda são poucos os julgamentos de violência sexual contra as mulheres nos conflitos armados. Isto prova que ainda temos muito que percorrer para se chegar a uma sociedade justa, mesmo durante a guerra.
Mas mais do que punir: precisamos reeducar nossa população a respeito da naturalização da violência contra a mulher. Necessitamos de estudos a respeito da origem dos abusos. Não podemos nos calar. Devemos ensinar aos combatentes que as mulheres são civis não pelas suas qualidades de mãe e dona de casa, mas por serem pessoas que merecem respeito e consideração. O ideal seria que houvesse conferências sobre crimes de guerra, sobre as regras dos conflitos armados e especialmente sobre a desconstrução do papel da mulher, para ninguém fosse criticado por optar por uma conduta pouco usual aos olhos da sociedade.
6. Bibliografia
CHINKIN, C. Gender and armed conflict. In CLAPHAM, A & GAETA, P. (Eds). International law in armed conflict. United Kingdom: Oxford University Press, 2014. p. 675-699.
Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Promulga o Código Penal. Brasília. 1890. Recuperado em 23 de novembro, 2015, de http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html.
DEYRA, M. Direito Internacional Humanitário. Portugal: Procuradoria-Geral da República, 2001.
HOLMES, R. L. Can war be morally justified? The just war theory. In_____. On war and morality. Princeton: Princeton University Press, 1989. p. 146-182.
KINSELLA, H. M. Gendering Grotius: Sex and Sex Difference in the Laws of War. Political Theory. Thousand Oaks, vol. 34, n. 2, 2006. p. 161-191.
PIMENTEL, E. Criminologia e feminismo: um casamento necessário. Mundos sociais: saberes e práticas, Lisboa, n. 429, 2008.
Estudante de Direito da UnB, ex-estagiária do STJ, no gabinete da Ministra Maria Thereza de Assis Moura e atual estagiária da Defensoria Pública da União.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BORGES, Maria Paula Benjamim. Direito Humanitário: uma visão baseada no gênero Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 fev 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46056/direito-humanitario-uma-visao-baseada-no-genero. Acesso em: 22 nov 2024.
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