RESUMO: O presente artigo visa realizar uma abordagem de dois temas de extrema relevância no ordenamento jurídico pátrio: a Teoria do Fato Consumado e o Princípio da Confiança. Tais institutos encontram-se intimamente ligados, especialmente tendo em vista o elemento temporal causado pela dilatação e mora do poder judiciário em solucionar casos concretos. Ao lado desses institutos, tem-se, ainda, a força normativa dos princípios, que deve ser levada em consideração para a solução dos casos concretos. Seria possível invocar o fato consumado quando, verdadeiramente, há uma relação de confiança, e mais, quais os limites? Este será o tema abordado no presente estudo.
PALAVRAS-CHAVE: Fato consumado. Princípio da confiança legítima. Posse em concurso público. Ponderação.
ABSTRACT: This article aims to make a two addressing issues of extreme importance in the Brazilian legal order : the Fact Theory consummated and the Trust Principle. Such institutes are closely linked, especially in view of the temporal element caused by dilation and lives of the judiciary in resolving specific cases. Alongside these institutions , there is also the legal force of the principles that should be taken into consideration for the solution of concrete cases . It would be possible to invoke the fait accompli when, truly, there is a trust , and more, what are the limits ? This will be the subject of this study.
KEYWORDS: Fait accompli. Principle of legitimate expectations. Possession in a public contest. Weighting.
1 INTRODUÇÃO
Confiança significa "esperança firme em alguém, em alguma coisa".
O princípio da confiança, por sua vez, pauta-se na ideia de confiança recíproca e tem origem na jurisprudência alemã. Para o referido instituto, a previsibilidade de determinada situação deverá ser "temperada" pela aludida confiança recíproca, gerada por uma situação ou mesmo pelo decurso do tempo. Teríamos um instituto que muito se aproxima do instituto da boa-fé objetiva, conforme será visto em sequência.
Pedro Lenza, em sua obra clássica (2014), transcreve o enigmático caso do Município baiano de Luís Eduardo Magalhães, tendo em vista o desmembramento da cidade de Barreiras.
O julgamento da ADI 2240, noticiado no Informativo de Jurisprudência 427/STF, consagrou diversos princípios, tais como o princípio da confiança, além da chamada força normativa dos fatos e o princípio da situação excepcional consolidada. Desde o aludido julgamento, o Pretório Excelso vem mitigando e "temperando" a letra fria da norma/lei no cotejo da situação fática e do contexto presentes, sempre com vistas à manutenção da ordem e segurança jurídicas.
A teoria do fato consumado leva em consideração justamente um dos argumentos adotados pelo julgado acima descrito, qual seja, a situação excepcional consolidada. Como se depreende da simples leitura, não é toda e qualquer situação jurídica que tem o condão, per si, de perpetuar determinado estado jurídico. Deve estar presente uma transcendência da normalidade, algo que exceda o habitual e mesmo o esperado, de sorte que um tratamento diferenciado se justifique.
Para a aplicação desses institutos, há de ser feita uma ponderação de interesses, visando uma minimização de prejuízos e uma compatibilização de direitos. Os direitos fundamentais ganham especial caráter normativo a partir do neoconstitucionalismo.
Julgados recentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça vêm admitindo ou rechaçando a noção de consumação dos fatos/ da situação excepcional consolidada. No entanto, por razões de ordem prática, algumas situações ganham especial atenção dos operadores do direito. Estes serão os pontos abordados no presente explanatório, de forma alinhada com a doutrina abalizada e tendências jurisprudenciais pátrias.
2 ENQUADRAMENTO NORMATIVO
2.1 Constituição de 1988, neoconstitucionalismo e modulação de efeitos
Com efeito, a Lei Fundamental de 1988 representou um marco para o constitucionalismo brasileiro.
Nunca na história do Brasil houve um texto constitucional tão comprometido com os princípios, que assumiram uma faceta até então inimaginável. Os chamados direitos e garantias fundamentais foram sobrelevados. É certo que, antes dele, a Constituição de 1946 representou, para a época, um avanço no ordenamento brasileiro, porém de forma mais restrita.
Recheada por uma enorme carga axiológica e repleta de emoções, a Magna Carta de 1988 representou uma verdadeira cruzada para o constitucionalismo brasileiro, exprimindo a força e a emoção de um poder constituinte, que, embora ainda contaminado pelo regime autoritário ditatorial, buscou inovação e efetivação de uma série de políticas públicas inerentes às necessidades de um novo Estado que estava por surgir.
Nesse “novo sistema”, o intérprete tornou-se, pois, coparticipante do processo de criação do direito, completando o trabalho do legislador ao fazer valorações de sentidos para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções possíveis.
A eficácia da lei maior propaga seus efeitos para os mais diversos campos do direito e da sociedade. A passagem da Constituição para o centro do ordenamento jurídico representa a grande força da mudança de paradigmas do direito administrativo na atualidade. A supremacia da Lei Maior propicia a impregnação da atividade administrativa pelos princípios e regras nela previstos, ensejando uma releitura dos institutos e estruturas da disciplina pela ótica constitucional.
O neoconstitucionalismo se desenvolve em nosso país, como supramencionado, desde a promulgação da Carta Constitucional de 1988. A partir desse momento histórico, a norma fundamental ganhou projeção e efetivação até então jamais vistas.
A constitucionalização do direito é, também, um fenômeno que merece estudo, sobretudo por ser marcada por três características básicas: normatividade, superioridade e centralidade. São os pilares do chamado neoconstitucionalismo. Todo ordenamento jurídico deve ser visto sob a ótica dessa nova premissa.
Nesse contexto, assume elevada importância a preservação do princípio da segurança jurídica, garantia fundamental consagrada na Constituição Republicana. O referido ideal de segurança vem sendo invocado em casos que envolvem a chamada teoria do fato consumado e o princípio da confiança, no sentido de que a segurança justificaria a "perpetuação de situações", que, a rigor, deveriam ser desconstituídas.
Note-se, assim, o lugar de destaque que assumem os princípios desenvolvidos nesse período constitucional, em especial, quanto à solução dos chamados hard cases.
Nessa senda, Pedro Lenza (2014), citando a doutrina de Karl Larenz, assevera que o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição do excesso e, ainda, serve de interpretação para todo o ordenamento jurídico pátrio.
Ora, quando o operador do direito resta em uma situação de conflito entre princípios fundamentais de igual relevância no ordenamento jurídico, não há solução apriorística a ser dada. O que há, em verdade, é uma real necessidade de se esquentar a letra fria da lei perante situações jurídicas excepcionais, tais como nos casos que envolvem a chamada teoria do fato consumado e que, por via de consequência, tangenciam a teoria da confiança.
Note-se que existem em nosso ordenamento jurídico outras situações que o princípio da segurança impõe a adoção de soluções atípicas. Pode ser citado, a título exemplificativo, o caso da modulação dos efeitos na decretação de inconstitucionalidade (ADI), in verbis:
Lei n° 9868. Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o STF, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
A teoria do fato consumado e a situação excepcional consolidada estão em consonância com a mens legis contida no dispositivo acima transcrito. Diversos julgados vêm norteando a atuação do julgador e do aplicador do direito, conforme será visto adiante. Causa estranheza, no entanto, as soluções episódicas que têm sido adotadas em julgamentos recentes.
2.2 O tema na Jurisprudência
Os ministros do Superior Tribunal de Justiça possuem entendimento consolidado de que a "teoria do fato consumado" deve ser aplicada apenas em situações excepcionalíssimas, nas quais a inércia da Administração ou a mora do poder judiciário deram ensejo a que situações precárias se perpetuassem no tempo (Ministro Caio Meira, RMS 34.189). Entretanto, haveria interesses sociais além de jurídicos. A ministra Eliana Calmon, por exemplo, afastou a aludida teoria em relação a provimentos de natureza precária (RESP. 1.189.485), como aqueles que envolvem posse em cargo público em decorrência de provimento judicial.
O decurso do tempo, sob o olhar do Superior Tribunal de Justiça, merece especial atenção em casos de relevância prática, veja-se: i) caso envolvendo aluno aprovado em vestibular (REsp 1.244.991) e matrícula por força de liminar; ii) aprovação no exame da Ordem dos Advogados do Brasil e direito de permanência em seus quadros (REsp 1213843). A permanência em virtude de posse precária também é admitida pela Corte, conforme já visto. Fica, entretanto, afastada a consumação do fato em casos envolvendo situação contrária à lei (REsp 1.333.588).
No Mandado de Segurança 15.473, a 1ª seção do STJ aplicou a teoria do fato consumado ao reverter a situação de uma auditora fiscal que, após 15 anos de posse concedida através de medida liminar, teve o mérito da demanda julgado improcedente pelo TRF da 2ª região. Na ocasião, o Ministro Humberto Martins apontou que "3. No caso sob exame, o colegiado ampliou o seu entendimento para o sentido de que deve ser concedida integralmente a ordem, em atenção ao longo lapso temporal envolvido, além de ponderar que a negativa de ordem ensejaria mais danos ao servidor e à Administração Pública que sua concessão", ou seja, houve a aplicação da teoria da consumação (e da estabilização dos efeitos) nesse caso específico.
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, vem afastando a teoria do fato consumado em diversas situações, em especial no caso de candidatos aprovados e nomeados por força de decisão judicial precária. Julgado sob o rito do artigo 543-B do Código de Processo Civil, o RE 608482/RN cristalizou o entendimento de que o princípio da confiança legítima não pode ser utilizado para a invocação da teoria do fato consumado.
No caso concreto, pontuou-se a desnecessidade de devolução dos valores recebidos pelo agente, tendo em vista o caráter alimentar das parcelas. Na ocasião, foram invocadas a ausência de boa-fé, a ciência da provisoriedade da decisão e a violação do princípio da confiança ante a "ilegalidade" da situação. A novidade repousa na sistemática da repercussão geral, que vincula os julgamentos dos tribunais inferiores. Pontua-se, por fim, que o STJ também tem precedentes pela ininvocabilidade do fato consumado nas posses envolvendo liminares (AgRg no RMS 42.386/GO). Controversas as questões.
3 DESAFIOS À VISTA
O "grande problema" do fenômeno da aproximação com o Common Law é exatamente a fluidez exagerada concedida ao sistema. Por muitas vezes, os princípios garantem uma fluidez necessária e desejada ao sistema jurídico; noutro passo, não existe regra geral standard a ser adotada. Desse modo, um caso que poderia ensejar a aplicação da teoria do fato consumado hoje pode seguramente ser revertido em instância superior por determinada Corte que anteriormente promovia entendimento em sentido contrário.
Estar-se-ia, então, desfazendo o desfazimento que foi evitado justamente com o objetivo de promover a segurança jurídica. Resultado: a emenda é pior do que o soneto.
As regras do jogo não são claras, conforme pontua Fredie Didier Jr., no que denomina de Teoria da Katchanga. Esta, no entendimento do eminente jurista baiano, é um jogo de regras pouco definidas. É possível entrar e sair do jogo sem saber ao certo quais normas devem ser observadas. É exatamente o que vem ocorrendo em muitos julgados proferidos em nosso país.
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, vem afastando a aplicação do fato consumado em casos envolvendo a posse precária, como no caso dito alhures. Isto porque, em agosto de 2014, foi julgado o RE 608482/RN.
Destarte, restou salientado que a consumação do fato não deverá ser aplicada nos casos de posse precária em concursos públicos. Na ocasião, consignou-se que o princípio da confiança legítima, também objeto do presente estudo, deve ser afastado nos casos de posse não definitiva. Principais argumentos: o indivíduo sabia da precariedade de sua nomeação, além de não ter agido de boa-fé.
Ocorre que, em virtude do princípio da eticidade, a boa-fé se presume e a má-fé carece de prova, como bem leciona Flávio Tartuce (2015). À luz dessa ideia, faz-se imperativo responder à seguinte questão: Como é possível aduzir a má-fé de um indivíduo que exerce regularmente suas funções, de forma produtiva, ao longo de quinze anos, enquanto aguarda o julgamento de um mandado de segurança (ao fim, julgado improcedente)? Haveria concorrência de culpas? A demora do julgamento, por si própria, teria como consequência necessária a inversão do ônus da prova?
Outra questão de ordem prática aduzindo a destituição de servidor empossado liminarmente é exatamente a (in)segurança envolvendo os atos por ele praticados até que seja proferido o julgamento final de seu processo.
Note-se que, no Recurso Extraordinário 635.739, de Relatoria do Ministro Gilmar Mendes, o STF reafirmou o entendimento de que "estaria afastada" a modulação dos efeitos em casos práticos envolvendo a teoria do fato consumado.
É clara, portanto, a jurisprudência do STF a respeito dessa questão: sopesando os valores e interesses em conflito, faz preponderar, sobre o interesse individual do candidato, advogando a proteção da confiança legítima, o peso maior do interesse público na manutenção dos elevados valores jurídicos que, de outra forma, ficariam sacrificados.
Inegavelmente, existem interesses privados envolvidos em casos desse jaez, inclusive tendo em vista que a posse se deu através de provimento liminar obtido através de ação judicial inter partes, de caráter eminentemente subjetivo. Por outro lado, existe também um interesse público e coletivo. Isto porque, via reflexa, há comprometimento das relações travadas entre o agente público, a Administração e os administrados. Haveria mácula aos princípios da segurança jurídica e da duração razoável do processo.
O julgamento supra foi proferido sob a sistemática da Repercussão Geral e, portanto, deverá ser aplicado a centenas de casos que até então se encontravam sobrestados nos respectivos tribunais de origem. Para ilustrar as repercussões de tal entendimento, imagine-se o seguinte caso prático: magistrado empossado via liminar que vem a ser revogada posteriormente. Questiona-se: houve mácula ao princípio do juiz natural? Decisões proferidas por aquele juiz, até então, devem ser reputadas como legítimas e válidas?
Conforme visto, as respostas não podem ser dadas de forma simples. É indispensável uma análise casuística, ou, ao menos, uma padronização minimamente racional de entendimento.
4 CONCLUSÃO
Os princípios possuem força normativa que se irradia por todo o ordenamento jurídico pátrio. Por um lado, são responsáveis por evitar a fossilização de entendimentos, garantindo a fluidez do sistema; por outro, promovem, por vezes, uma "katchanga” real, na medida em que não é possível traçar ao certo as formas de suas aplicações.
As teorias do fato consumado e a teoria da confiança são exteriorizações de diversos princípios constitucionais e infraconstitucionais, implícitos e explícitos.
Os casos envolvendo concursos públicos devem ser analisados, geralmente, sob a ótica do elemento tempo, tendo em vista que decisões precárias são proferidas e vigoram livremente durante anos, até que advenha posterior revogação ou reforma promovida pelo poder judiciário.
Ora, se por um lado o julgador dispõe do chamado livre convencimento motivado, por outro fica promovida também a inconsistência do sistema quando um magistrado entende de uma maneira e o tribunal (inclusive de instância superior) de outra. Isso porque os agentes empossados praticam atos que também repercutirão de forma direta na esfera jurídica dos administrados/ particulares.
Nesse cenário, tem-se que melhor seria prevalecer a utilização da técnica da ponderação, não de forma abstrata e genérica, mas episódica e concreta.
É evidente que os tribunais pátrios estão abarrotados de processos que aguardam julgamento há anos. Não se pode, no entanto, imputar o ônus da mora de maneira automática e exclusiva ao administrado, como ocorreu no julgado pronunciado pelo Supremo Tribunal Federal sob a sistemática da Repercussão Geral. Isso porque os atos praticados pelos agentes públicos geram efeitos dentro e fora da estrutura da Administração.
A título de exemplo (notável) da solução ora proposta, é possível citar o julgamento recente pelo Superior Tribunal de Justiça do REsp 1425943, o qual tratou de caso envolvendo posse de animal silvestre. Nesse caso, valeu-se o julgador de verdadeira ponderação, de forma que a aplicação do "fato consumado" se mostrou medida menos gravosa do que a desconstituição da situação então vigente. Isso porque, os fatos produzem força normativa que deve ser considerada para a solução do caso concreto, afastando-se a solução consagrada na letra fria da lei.
O(a) agente que exerce suas atribuições com zelo e profissionalismo, ainda que tenha sido empossado mediante provimento liminar, deve ter sua situação avaliada casuisticamente, devendo, salvo melhor juízo, prevalecer a teoria do fato consumado, o princípio da confiança e da situação excepcional consolidada, prestigiando-se, sobremaneira, os princípios da segurança jurídica, da duração razoável do processo, além da boa-fé.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARNEIRO, Luis Sérgio de Souza. Fato consumado, princípio da confiança e jurisprudência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 mar 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46095/fato-consumado-principio-da-confianca-e-jurisprudencia. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
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