RESUMO: Muitas vezes podem surgem conflitos nas relações de trabalho, que podem envolver uma categoria de trabalhadores e uma categoria econômica. Uma das formas mais utilizadas de solução desses conflitos coletivos é por meio de um dissídio coletivo, ou seja, da intervenção do estado para que haja uma pacificação desses conflitos. A Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, deu nova redação do artigo 114, parágrafo segundo, da Constituição Federal, estabelecendo que para a propositura do dissídio coletivo de natureza econômica tenha-se um “comum acordo”. Tal exigência criou inúmeros problemas para a propositura da ação e consequentemente trouxe diversas divisões doutrinárias e jurisprudenciais que ainda continuam sem uma definição certa e sem uma segurança à sociedade.
Palavras-chave: dissídio coletivo; exigibilidade; anuência prévia.
INTRODUÇÃO
Emenda Constitucional nº 45, aprovada em 8 de dezembro de 2004, que trouxe inúmeras alterações ao Poder Judiciário.
Dentre as principais inovações, tem-se o assunto referente à propositura dos dissídios coletivos de natureza econômica, especialmente com relação à exigência de "comum acordo" para seu ajuizamento.
A participação do Estado na solução dos conflitos coletivos do trabalho, e a validade do surgimento de uma ação que depende da anuência da parte contrária para sua propositura, são questões levantadas por doutrinadores e juízes.
Discute-se ainda a natureza jurídica do consentimento da parte suscitada, o momento de sua manifestação para o trâmite da ação coletiva, e principalmente a afronta ou não do direito subjetivo de ação garantido constitucionalmente.
1. DOS CONFLITOS COLETIVOS OU INDIVIDUAIS
Duas são as espécies básicas de conflitos estudados pelo direito do trabalho: o conflito coletivo e o individual. Neste último, o trabalhador e o empregador são considerados individualmente na divergência de interesses, bem como o próprio contrato de trabalho será analisado de forma individual a fim de superar suas controvérsias.
Ao contrário do conflito individual, o coletivo é mais abrangente, mais amplo. Abarca um grupo de empregadores ou trabalhadores, de forma que serão discutidos interesses gerais do grupo, o que não significa que não apareçam fatos sobre os contratos individuais. Destarte, nos conflitos coletivos há um vínculo subjetivo entre as partes, entre os sujeitos do conflito que serão considerados abstratamente no desenrolar do procedimento, seja ele judicial ou não.
Tendo surgido um conflito, este poderá ser resolvido mediante duas formas, nos ensinamentos do Professor Amauri Mascaro Nascimento (2008): a autocomposição ou a heterocomposição: “Há autocomposição quando as próprias partes, diretamente, o solucionam. Haverá heterocomposição quando, não sendo resolvidos pelas partes, os conflitos são solucionados por um órgão ou uma pessoa suprapartes.”
Dentro da heterocomposição, existem as técnicas de jurisdição do Estado e a arbitragem. Nesta, impera a autônima da vontade das partes, onde são criadas regras particulares e de comum acordo entre os interessados que indicam os árbitros que analisarão e prolatarão uma decisão para a controvérsia. Já no caso da jurisdição, o Estado detém o poder para aplicar o direito no caso concreto, para fixar normas e condições de trabalho, e é comumente usada depois de tentada a negociação direta e a arbitragem facultativa sem êxito, que traz como consequência a submissão do conflito à Justiça do Trabalho através do dissídio coletivo.
2. DO DISSÍDIO COLETIVO
1.1 Do conceito
Primeiramente é necessário se ter em mente que o dissídio coletivo é uma ação judicial onde os sindicatos e as empresas são as partes envolvidas. O dissídio coletivo é assim caracterizado pela indeterminação dos indivíduos a que a sentença vai ser aplicada. Não se considera o contrato de trabalho individualmente, mas a dirimir as controvérsias que surgem ao redor do mesmo.
Busca-se a tutela de interesses gerais de determinada categoria, com o intuito, por exemplo, de gerar novas condições de trabalho e de remuneração. Assim, são procuradas soluções para questões que não puderam ser resolvidas pela negociação direta entre empregadores e empregados.
Nesse processo de negociação pela via jurisdicional, os trabalhadores geralmente são representados por sua organização sindical, entrementes podem ser representados por uma comissão ou por um representante não sindical.
Cabe lembrar que não há uma substituição processual no dissídio coletivo, mas há uma legitimação ordinária do sindicato, já que a representação é algo inerente ao sindicato, nos termos do artigo 513, a, da CLT (BRASIL, 1943).
“Art. 513. São prerrogativas dos sindicatos:
a) representar, perante as autoridades administrativas e judiciárias, os interesses gerais da respectiva categoria ou profissional liberal ou interesses individuais dos associados relativos à atividade ou profissão exercida;”
2.2 Da classificação
Os dissídios quanto a sua finalidade podem ser de natureza econômica ou jurídica. Os de natureza jurídica, também conhecidos como dissídios coletivos de direito, são ajuizados para sanar divergência na aplicação ou interpretação de determinada norma jurídica, onde o objeto é a obtenção de uma norma, convenção ou sentença normativa. Já os dissídios econômicos criam normas e condições de trabalho que vão regulamentar os contratos individuais de trabalho, como no caso de cláusulas de reajustes salariais ou de garantia de estabilidade no emprego. Há ainda os chamados dissídios coletivos de natureza mista, onde podem ser postulados concomitantemente a constituição de normas e a declaração de abusividade do movimento de greve por exemplo.
A sentença no dissídio coletivo econômico terá natureza constitutiva quando criar as regras para a categoria. No caso do dissídio coletivo de direito, sua natureza será apenas declaratória.
2.3 Do procedimento no dissídio coletivo
O dissídio coletivo trata-se de uma ação de competência originária dos Tribunais Regionais do Trabalho, onde estes procederão a conciliação e o julgamento dos dissídios instaurados na sua jurisdição. Cabe lembrar que, caso a base territorial sindical seja superior à da jurisdição do Tribunal Regional do Trabalho, a competência será do TST.
Em caso de instauração de dissídio Coletivo, será designada de audiência de conciliação e instrução, onde o Juiz Presidente apresentará uma proposta às partes envolvidas. Sem aceitação da referida proposta, será designado um Juiz Relator para o processo, que o analisará e formalizará seu voto a ser submetido à Sessão Especializada em Dissídios Coletivos dos Tribunais Regionais do Trabalho.
Empós, tal sessão especializada julgará o processo com base no voto do Relator e na manifestação do Ministério Público do Trabalho e prolatará uma Sentença Normativa que obrigará as partes envolvidas.
Como nos dissídios individuais, existem alguns pressupostos processuais nos dissídios coletivos, como a inexistência de litispendência como fato impeditivo do ajuizamento da ação; inexistência de norma coletiva em vigor; prazo de ajuizamento, que normalmente é dentro de 60 dias que antecedem a data-base da categoria; negociação coletiva prévia; edital de convocação da assembleia geral da categoria, ata da referida assembleia, lista de presença dos empregados à assembleia, informação do quorum estatutário mínimo da assembleia e número total de associados ao sindicato, certidão da DRT de fracasso da negociação coletiva.
3. O poder normativo e seus limites na justiça do trabalho
A Emenda Constitucional 45 de 2.004 alterou o parágrafo 2º do artigo 114 da CR/88 (BRASIL, 1988), que passou a vigorar com a seguinte redação:
“(...)
§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.”
Com a nova redação veio também a discussão acerca da extinção do poder normativo na justiça do trabalho.
Para simples compreensão, estabelece-se primeiramente a definição do poder normativo como sendo a possibilidade de que o Judiciário Trabalhista crie novas condições de trabalho nos dissídios coletivos, além daquelas mínimas já previstas em lei. Assim, o poder normativo não pode ser confundido com jurisdição, mas sim uma atribuição anômala, de natureza legislativa, que foi dada ao Poder Judiciário para gerar novas condições de trabalho.
Partindo de tal definição, Sergio Pinto Martins (MARTINS, 2006) ensina que o poder normativo encontra-se mantido com limites mesmo com a Emenda Constitucional n. 45/2004, devendo ser respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente. Para este, não poderia a Justiça do Trabalho decidir o conflito sem estabelecer normas e condições de trabalho.
Entretanto, a atual redação do parágrafo 2º do artigo 114 da CR/88, não mais menciona que a Justiça do Trabalho pode estabelecer normas e condições de trabalho conforme constava na redação anterior.
É nesse sentido que alguns defendem que restou suprimido o poder criativo atribuído aos Tribunais Trabalhistas apresentando algumas razões para tal: o §2º do atual art. 114, ao dispor que a Justiça do Trabalho deve “decidir o conflito”, em lugar de “estabelecer normas e condições”, traz diferenças como, por exemplo, o fato de que a prestação jurisdicional será entregue dentro dos limites da controvérsia sem jamais criar normas e condições.
Nesse sentido, os tribunais do trabalho não poderiam criar ou estabelecer normas quando decidirem, o que faria com que a atividade da Justiça do Trabalho assumisse o caráter de arbitragem pública.
O jurista Marcos Fava (COUTINHO; FAVA, 2005) é um dos que coaduna com tal tese, assim dizendo:
"A expressão ‘estabelecer normas, repetida nas Constituições de 1946, 1967, na Emenda 01 de 1969 e na Carta Cidadão de 1988, foi extirpada pela Emenda 45, o que aniquila o poder de criar normas. Aos Tribunais do Trabalho, quando provocados por ambas as partes, de comum acordo, decidirão o dissídio coletivo econômico, baseando seu pronunciamento com observância das garantias mínimas legais e nas cláusulas que já vigeram entre as partes litigantes.
(...)
Com efeito, ao retirar da Constituição Federal a autorização dos Tribunais para ‘estabelecer normas’, a Reforma do Judiciário subtraiu o alicerce criativo da Justiça Laboral.
(...)
Se não há raiz constitucional a permitir a transposição da atividade típica do Legislativo ao Judiciário, inexiste poder normativo da Justiça do Trabalho"
Sobretudo, se mostrou como uma conclusão mais correta aquela indicadora que o poder normativo da Justiça do Trabalho não foi extinto com a Emenda Constitucional n. 45 de 2004, principalmente pelo fato de que não poderia esta justiça especializada respeitar as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho e as convencionadas anteriormente, sem que pudesse estabelecer novas normas e condições de trabalho.
4. A anuência prévia para o dissídio coletivo
Como já visto a Emenda Constitucional 45 de 2.004 alterou o parágrafo 2º do artigo 114 da CR/88. Até que viesse tal Emenda, bastava que se comprovasse a tentativa frustrada de negociação coletiva, mas agora se tem mais um requisito a ser cumprido, “o comum acordo”.
De acordo com a literalidade do parágrafo 2º do artigo 114 da CR/88, o dissídio coletivo se sujeitaria ao consenso de ambas as partes envolvidas para que pudesse ser ajuizado, isto é, as partes deveriam anuir em ser processados para que o dissídio fosse admitido.
Conforme nos ensina o ilustre doutrinador Amauri Mascaro Nascimento (NACIMENTO, 2008), a dependência do acordo comum no ajuizamento do dissídio coletivo fez com que fosse perdida a sua unilateralidade. Tal fato é muito controvertido, principalmente pelo fato de que existe uma forte cultura de solução judicial para os conflitos econômicos.
Alguns entendimentos se mostram no sentido de que a vontade do Legislador desejava incluir a exigência do comum acordo com o objetivo de estimular às negociações coletivas, e por fim, se não houver acordo para o caminho judicial, a única via será a greve. É alegado ainda que não existiria mais lugar para a intervenção do Estado-juiz na solução dos conflitos coletivos.
Entretanto, a inconstitucionalidade do referido dispositivo acabou por ser alegada, sob o argumento de que o novo requisito representaria ofensa ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, já que estaria ferindo o direito de ação assegurado constitucionalmente.
Nesse diapasão, foram ajuizadas Ações de Declaração de Inconstitucionalidades (ADINs) movidas por entidades sindicais de trabalhadores, argumentando a violação do inciso XXXV do art. 5º da Constituição.
Na ADIN de número 3.432-4/600 – DF, o Procurador-Geral da República emitiu parecer discordando da alegada inconstitucionalidade do preceito, conforme se verifica na ementa descrita abaixo:
“Ação direta de inconstitucionalidade em face do § 2° do art. 114 da Constituição, com a redação dada pelo art. 1° da Emenda Constitucional n° 45, de 8 de dezembro de 2004. O poder normativo da Justiça do Trabalho, por não ser atividade substancialmente jurisdicional, não está abrangido pelo âmbito normativo do art. 5° inciso XXXV, da Constituição da República. Assim sendo, sua restrição pode ser levada a efeito por meio de reforma constitucional, sem que seja violada a cláusula pétrea que estabelece o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário”
Nos termos do referido parecer, no dissídio coletivo as decisões emitidas são legislativas em sua substância, no sentido de que não há um conflito propriamente dito para evitar reparar lesão a direito reconhecido pelo ordenamento jurídico.
Alguns doutrinadores, como José Luciano de Castilho Pereira, Pedro Carlos Sampaio Garcia, Otavio Brito Lopes, de igual forma sustentam a constitucionalidade do dispositivo no sentido de que o poder normativo existente na Justiça do Trabalho não é equivalente ao poder jurisdicional do judiciário, o que faria com que não pudesse se falar em vedação ao acesso à jurisdição. Argumenta-se que a sentença normativa seria formalmente uma sentença, mas materialmente uma lei.
Em outras palavras, estes defendem que o ajuizamento de dissídio de natureza econômica nada teria de jurisdicional, já que se trata de exercício do poder normativo pelos tribunais do trabalho. Sustentam que não há violação ao direito constitucional de acesso à jurisdição tendo em vista que não há manifestação de jurisdição no exercício do poder normativo. Argumentam por fim que não se tratando de atividade jurisdicional pelo Estado, o julgamento de dissídios coletivos de natureza econômica com a exigência de "comum acordo", não representaria ofensa ao princípio constitucional da inafastabilidade de acesso à jurisdição.
Assim, percebe-se que aqueles que defendem a constitucionalidade da anuência prévia, consideram que é mantido o poder normativo da Justiça do Trabalho, ponderando ainda que no dissídio coletivo econômico se discutem meros interesses das categorias, formados em reivindicações econômicas e sociais. Para estes, não haveria ofensa a direito, e sim tentativa de melhoria das condições de trabalho dos membros das categorias.
Já os defensores da inconstitucionalidade da nova exigência argumentam que a propositura da ação em comum acordo transfere o direito de ação ao réu, tendo em vista que este último só teria sua ação em trâmite se assim desejasse. Ademais, se há discordância na negociação coletiva, não haveria comum acordo para ajuizar dissídio coletivo.
Sergio Pinto Martins (MARTINS, 2006) defende que deve ser feita uma interpretação sistemática conforme a Carta Magna, sem a exclusão da apreciação do Judiciário em caso de lesão ou ameaça de direito conforme artigo 5°, XXXV, da CF/88.
Esse também é o ensinamento do jurista Arnaldo Süssekind (SÜSSEKIND, 2005):
[...] o artigo 5º, XXXV, da Constituição, como cláusula pétrea, assegura o direito da entidade sindical, uma vez malograda a negociação coletiva, de ajuizar o dissídio coletivo, ainda que sem a concordância da entidade patronal – garantia que se harmoniza com o prescrito no art. 8º, III, do ordenamento constitucional É clarividente que em caso de não concretização das negociações coletivas e da arbitragem, não haverá animosidade suficiente para propositura de um dissídio coletivo de comum acordo. Tal situação pode até levar a perpetuação do conflito com grandes repercussões sociais, pelo fato de haver uma exigência quase que impraticável e impossível de se satisfazer. Ora, com impasse nas negociações coletivas, não haverá por conseqüência um acordo mútuo para ajuizamento de dissídio coletivo.
É fácil perceber que com tal exigência estaríamos admitindo como pressuposto a concordância da parte contrária para que a ação seja movida contra ela, o que não parece nada razoável.
Tem-se assim que a condição de comum acordo, somente traria a instigação para a solução mediante a greve, já que estaria inviabilizado o dissídio econômico pela via pacífica, o que por conseqüência deixaria graves repercussões na comunidade.
Tendo em vista essa grande dificuldade na instauração do dissídio por mútuo acordo, e diante da indefinição acerca da inconstitucionalidade da exigência, muitos Tribunais vêm aceitando os dissídios suscitados unilateralmente pelos sindicatos, assegurando o acesso ao judiciário. Nesse sentido:
“DISSÍDIO COLETIVO – AJUIZAMENTO DE COMUM ACORDO – AJUIZAMENTO UNILATERAL – POSSIBILIDADE – CF – ART. 8º, III X
EC – 45/2004, ART. 114, PARÁGRAFO 2º COMPREENSÃO – Possível o ajuizamento unilateral do dissídio coletivo porque foi mantido mais que o poder normativo, ou seja, o inciso III do artigo 8º da Constituição, quer dizer, a defesa pelo sindicato de interesses - E não de direitos - Coletivos - E não meramente individuais - Em questões judiciais. Trocando em miúdos, dissídio coletivo de iniciativa do sindicato
Para a defesa das reivindicações da coletividade representada. Se o adversário recusa a arbitragem privada e também a jurisdicional, o conflito se mantém e os interesses dos trabalhadores, de melhores condições de salário e de trabalho, com apoio na ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e social, que tem como base o primado do trabalho e como objetivo o bem-estar e a justiça social, são lesados, sem que se permita o acesso ao Poder Judiciário para defendê-las, como assegura a Constituição, no inciso XXXV do artigo 5º. (TRT 2ª R. – DC 00012/2005-2 – (2005001595) – SDC – Rel. p/o Ac. Juiz Jose Carlos da Silva Arouca – DOESP 09.08.2005)”
“EMENTA: DISSÍDIO COLETIVO - EMENDA CONSTITUCIONAL 45/2004
DESNECESSIDADE DA ANUÊNCIA DA PARTE CONTRÁRIA PARA O AJUIZAMENTO - A Carta Magna de 1988 é um conjunto de princípios e regras que deve ser analisado de forma harmônica para que se cumpra o seu projeto de Constituição Cidadã, no processo de sedimentação do Estado Democrático de Direito previsto em seu art. 1.º, cujo inciso IV erige, como um dos seus fundamentos, "os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa". Neste contexto, afirmar-se que a nova regra constitucional (pela inclusão da expressão "comum acordo" no art. 114, § 2.º) retirou da Justiça do Trabalho o poder de julgar o dissídio coletivo importaria em elastecer ainda mais o abismo existente entre o projeto constitucional e a realidade atual dos fatos. Isto porque tal instituto jurídico tem o papel justamente de, sob os auspícios de um julgamento eqüitativo, estabilizar os conflitos entre o capital e o trabalho, contribuindo para que os dois fundamentos da República - valores sociais do trabalho e da livre iniciativa - tornem-se compatíveis, ao menos em termos pragmáticos, no conflito que se apresenta. Também não há como se entender, racionalmente, qual seria o objetivo de transformar a Justiça do Trabalho em mais um árbitro, eis que a norma permite o ajuizamento do dissídio se as partes previamente se recusarem à arbitragem, instituto que, historicamente, constitui forma extrajudicial de decisão de conflitos. De todo modo, a própria expressão "dissídio" não se compactua com o "comum acordo" - onde há conflito de interesses não existe acordo. Por fim, se o legislador constituinte derivado pretendesse, efetivamente, extirpar o poder normativo, deveria tê-lo feito de forma expressa, indene de dúvidas, pois tal mudança representaria a revisão brusca do referido contexto constitucional regente das relações entre trabalho e capital, culminando, em última análise, na real possibilidade de supressão de todos os direitos conquistados pelas categorias profissionais ao longo de anos de luta, ao mero talante dos sindicatos patronais ao não concordarem com o ajuizamento do dissídio.” (TRT3 – DC 00318-2005-000-03-00-7. DJM 10.6.2005)
Como essa não se trata de uma posição pacífica, inúmeras discussões ainda vão ser estabelecidas entre os doutrinadores e os juristas, em âmbito judicial e extrajudicial, para melhor tentar resolver os conflitos de interesses, mas continua prevalecendo no TST e grande maioria da doutrina que não se tem inconstitucionalidade na exigência do comum acordo, tendo em vista que o poder normativo da Justiça do Trabalho não é atividade substancialmente jurisdicional e, portanto, não ofende o direito de acesso à jurisdição.
4.1 Da natureza jurídica do “comum acordo”
Ainda não há um consenso sobre a natureza jurídica do "comum acordo" para a propositura do dissídio coletivo. Alguns ponderam a existência de uma condição da ação e outros um pressuposto processual ou de procedibilidade para a instauração do dissídio.
O doutrinador Humberto Theodoro Junior (1993, p.75) ensina o conceito de cada um:
“Os pressupostos, portanto, são dados reclamados para a análise de viabilidade do exercício do direito de ação, sob o ponto de vista estritamente processual. Já as condições da ação importam o cotejo do direito de ação concretamente exercido com a viabilidade abstrata da pretensão de direito material. Os pressupostos, em suma, põem a ação em contato com o direito processual, e as condições de procedibilidade põem-na em relação com as regras do direito material”
Portanto, sem os pressupostos processuais, a relação processual não se estabelece ou não se desenvolve validamente, já as condições da ação são requisitos a serem observados depois de estabelecida regularmente a relação processual, para que o juiz possa solucionar o mérito.
Conforme o sub-procurador-geral do trabalho Edson Braz da Silva (SILVA, 2005) o comum acordo se trata de condição específica da ação por entender que não se deve exigir excessiva formalidade processual na propositura do dissídio.
Nesse mesmo sentido foi o acórdão publicado no Diário da Justiça da União de 29.09.2006, no processo TST-DC 165049/2005-000-00-00. Vejamos:
“DISSÍDIO COLETIVO. PARÁGRAFO 2.º DO ART. 114 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. EXIGIBILIDADE DA ANUÊNCIA PRÉVIA. Não demonstrado o comum acordo, exigido para o ajuizamento do Dissídio Coletivo, consoante a diretriz constitucional, evidencia-se a inviabilidade do exame do mérito da questão controvertida, por ausência de condição da ação, devendo-se extinguir o processo, sem resolução do mérito, à luz do art. 267, inciso VI, do CPC.Preliminar que se acolhe.Vistos, relatados e discutidos estes autos de Dissídio Coletivo n.º TST-DC-165049/2005-000-00-00.4, em que figuram como Suscitante SINDICATO NACIONAL DOS AERONAUTAS, e como Suscitada VARIG LOGÍSTICA S/A”.
Não obstante, grande parte da doutrina coaduna com o entendimento acima transcrito, entendendo que comum acordo no ajuizamento do Dissídio Coletivo Econômico significa um pressuposto processual, onde diante de sua inexistência, haverá uma decisão para extinguir o feito por indeferimento da petição inicial, sem resolução da lide.
4.2 Do momento da manifestação do comum acordo
Não bastassem as inúmeras discussões acerca da expressão “comum acordo” estabelecida no § 2° do artigo 114 da CF/88, ainda subsiste a indefinição acerca do momento em que deve ser manifestado o comum acordo para que o dissídio coletivo possa ter continuidade válida.
Um primeiro entendimento pondera que o mútuo consenso pode ser aferido posteriormente ao ajuizamento do dissídio, isto é, na resposta do suscitado. Entendem que o comum acordo não precisa ser prévio, pode se mostrar expressamente ou tacitamente e fazendo assim com que a inicial não fosse indeferida de plano. Por esta visão, caso não se tenha a manifestação expressa da parte suscitada, o juiz mandaria citar esta para que se manifeste, e somente no caso de recusa forma, a inicial seria indeferida.
Grande parte dos tribunais tem se pronunciado nesse sentido. Veja-se abaixo uma dessas manifestações:
EMENTA: DISSÍDIO COLETIVO - AJUIZAMENTO SEM A CONCORDÂNCIA DA PARTE CONTRÁRIA (ART. 114, PARÁGRAFO 2o., DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988) - CONSEQUÊNCIA. O disposto pelo art. 114, parágrafo 2o., da Lei Magna, não deve ser interpretado de modo literal e isolado, e sim sob a ótica da interpretação lógica e conjunta do ordenamento jurídico. O que emana do referido dispositivo constitucional é que as partes detêm a faculdade de ajuizar dissídio coletivo em caso de recusa da parte contrária em proceder à negociação coletiva ou à arbitragem ou na hipótese de malogro das tentativas conciliatórias, sob pena de, a se pensar o contrário, dar-se ensejo à violação do direito de ação constitucionalmente garantido (CF, art. 7o., inc. XXXV). Ademais, a participação do suscitado na audiência de conciliação e instrução perante este Tribunal e, bem assim, nas reuniões com o suscitante perante a Delegacia Regional do Trabalho, representa a concordância tácita com o presente dissídio coletivo. (TRT 3ª Região – Seção Especializada de Dissídios Coletivos - Proc. DC 00474-2006-000-03-00-9 – Relator Juiz Sebastião Geraldo de Oliveira – DJMG de 25.8.2006, p. 2).
Vislumbra-se que não pode o suscitado em dissídio coletivo usar de má-fé ou abusar de um direito, pelo que assim defendem alguns que a recusa ao ajuizamento dessa ação deve ser fundamentada. Assim entende Júlio Bernardo do Carmo, juiz vice-corregedor do TRT da 3ª Região, que acrescenta ainda que em havendo recusa de consentimento da categoria econômica para o ajuizamento conjunto do dissídio coletivo de natureza a parte prejudicada poderia ajuizar o dissídio coletivo e requerer de forma incidental o suprimento judicial da recusa da categoria econômica contraposta.
Sobretudo, está não é uma posição única em relação ao tema, existindo ainda aqueles que defendem a instauração do dissídio coletivo precedido pelo comum acordo.
Nesse posicionamento se mostra a seguinte decisão:
EMENTA: CONFLITO COLETIVO DE TRABALHO - PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO - EMENDA CONSTITUCIONAL No. 45 - NOVA REDAÇÃO DO ART. 144 - INTELIGÊNCIA DA EXPRESSÃO " DE COMUM ACORDO" PARA O AJUIZAMENTO DO DISSÍDIO COLETIVO DE NATUREZA ECONÔMICA. A Carta Magna, em seu art. 114, parágrafos 1o., 2o., e 3o., estabeleceu mudanças substanciais no Poder Normativo da Justiça do Trabalho, ao prescrever, de maneira clara e enxuta, que, frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros. (...). No que tange ao dissídio coletivo de trabalho de índole econômica, a expressão "de comum acordo", utilizada pelo constituinte, não pode dar azo à que o intérprete faça tábua rasa de autêntico pressuposto da jurisdição coletiva. "Comum acordo", por mais que se repugne a fórmula adotada pela Constituição, significa manifestação ou declaração de vontade das partes envolvidas no conflito coletivo de trabalho. De conseguinte, trata-se de ato volitivo, bilateral ou multilateral, em determinada direção, para que produza certos resultados jurídicos, ordenados pela lei: arbitragem pública, via julgamento pelos Tribunais do Trabalho.(grifo nosso). Teleologicamente, o wishful thinking do legislador foi no sentido de privilegiar a autonomia privada coletiva, outorgando cada vez mais importância e responsabilidade aos seres coletivos, principais atores na busca de um ponto de equilíbrio entre o capital e o trabalho, na perspectiva de uma sociedade pós-moderna, baseada na informação e nitidamente globalizada. (...). Em se tratando, portanto, de competência anômala do Poder Judiciário, uma vez que não é sua função típica ditar normas jurídicas, não resta ulcerado o texto constitucional, à medida que institui pressuposto para o exercício do poder normativo. (TRT 3ª Região – Seção Especializada de Dissídios Coletivos - Proc. DC 01426-2005-000-03-00-7 – Relator Juiz Luiz Otávio Linhares Renault – DJMG de 15.6.2006, p. 5).
Para aqueles que coadunam com tal decisão, em não havendo esse comum acordo restará às partes insistir na negociação coletiva até que alcancem uma solução, vez que não estará aberta a via do dissídio coletivo. Em caso do desacordo permanecer, restará aos trabalhadores a utilização do instrumento de greve, direito cujo exercício é assegurado no artigo 9º da Constituição da República.
CONCLUSÃO
No intuito de gerar novas condições de trabalho, os dissídios coletivos são ajuizados perante a Justiça do Trabalho, especificamente nos Tribunais Regionais do Trabalho, por serem ações de competência originária.
Com a Emenda n°. 45/2004 surgiram inúmeras discussões sob diversos aspectos, como por exemplo, a extinção ou não do poder normativo na justiça do trabalho tendo em vista a nova redação do artigo 114, § 2º da Constituição de 1988. A jurisprudência e a doutrina se dividiram, mas tem-se mostrado bastante adequado a conclusão que o poder normativo da Justiça do Trabalho foi mantido com a nova redação, e juntamente com ele, a criação de novas condições de trabalho no ajuizamento dos dissídios coletivos.
Ainda no foco da Emenda n°. 45/2004, constatou-se que foi incluída a expressão "comum acordo" para que pudesse ser ajuizado o dissídio coletivo de natureza econômica.
A aludida nova redação condicionou o ajuizamento do dissídio coletivo de natureza econômica ao comum acordo das partes envolvidas, e a inconstitucionalidade do referido dispositivo acabou por ser alegada, sob o argumento de que o novo requisito representaria ofensa ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, já que estaria ferindo o direito de ação assegurado constitucionalmente.
Muito se discutiu, e ainda se discute sobre o tema, mas verificou-se que essa alteração nada trouxe de inconstitucional, tendo em vista que o poder normativo não se confunde com a jurisdição, mas se trata de uma atuação de natureza legislativa a cargo do Poder Judiciário.
Por se tratar de um pressuposto processual, a inexistência da anuência prévia no dissídio coletivo acaba por culminar uma decisão com a extinção do feito sem resolução da lide, ainda que subsistam posições divergentes.
Acerca o momento em que deve ser manifestado o referido comum acordo, duas posições de contrastam, uns com a possibilidade do acordo tácito e outros com a exigência de acordo prévio e com assinatura conjunta da petição inicial. Vislumbrou-se que deve ser feita uma interpretação lógica e conjunta do ordenamento jurídico sob pena de se estar ferindo princípios básicos e elementares do direito, para assim possibilitar que o comum acordo possa se mostrar expressamente ou tacitamente.
Por fim, tendo em vista os princípios que norteiam todo ordenamento jurídico, caso as partes não cheguem à solução de autocomposiçao, restará como último instrumento de pressão o exercício do direito de greve pelos empregados, que é assegurado constitucionalmente.
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SÜSSEKIND, Arnaldo. Do ajuizamento dos dissídios coletivos. Revista LTr. v. 69, n. 9, p. 1031-1032, set. 2005
advogada inscrita na OAB do Paraná, atuante desde 2008; Pós graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Arthur Thomas em Londrina-Pr.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DéBORAH DE MEIRA MáLAQUE, . Dissídio Coletivo: Exigibilidade de anuência prévia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 mar 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46165/dissidio-coletivo-exigibilidade-de-anuencia-previa. Acesso em: 22 nov 2024.
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