RESUMO: A partir da proteção ambiental e do consumidor é analisada a legislação sobre a rotulagem dos alimentos produzidos a partir de organismos geneticamente modificados.
Palavras-chaves: Ambiente – Consumidor – Transgênicos – OGMs – Alimentos – Rotulagem.
A matéria referente aos alimentos e ingredientes alimentares que contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados é tratada pela Lei federal n° 11.105/05 (Lei de Biossegurança) e Decretos federais n° 4.680/03 e n° 5.591/05.
De acordo com o artigo 40 da Lei 11.105/05 os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal “que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM ou derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, conforme regulamento”.
O Decreto 4.680/03, anterior à lei de Biossegurança, regulamentou o direito à informação, assegurado pela Lei no 8.078, de 1990, e determinou em seu artigo 2° que na comercialização de alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal “que contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados, com presença acima do limite de um por cento do produto,” (grifo nosso) o consumidor deverá ser informado da natureza transgênica do mesmo.
Já o Decreto 5.591/05, que regulamenta a Lei de Biossegurança, estabelece no artigo 91 que os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM e seus derivados “deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, na forma de decreto específico” (grifo nosso). Vale ressaltar que não há menção aqui ao mínimo de 1% da composição do produto, apenas referindo-se a um decreto específico.
Nota-se que o Decreto 4.680/03, anterior à Lei de Biossegurança, é menos protetivo do que ela, na medida em que restringe o direito à informação do consumidor ao limite da presença de OGMs acima de 1% do produto.
Interessante lembrar que já foi julgada procedente uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, declarando a inconstitucionalidade da Lei n° 14.861/05 do Estado do Paraná, que determinava que o consumidor fosse informado da presença, em qualquer porcentagem, de ingredientes geneticamente modificados no produto a ser adquirido.
Referida Lei do Estado do Paraná, mais protetiva ao consumidor, foi declarada inconstitucional, pois, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, ao exigir que o consumidor seja informado da presença, em qualquer porcentagem, de ingredientes geneticamente modificados no produto a ser adquirido, a lei em questão extrapolou os limites da competência suplementar do Estado para legislar em matéria de produção, consumo e proteção e defesa da saúde, como reza o artigo 24, V e XII, da Constituição Federal, uma vez que não adaptou a norma federal existente às peculiaridades locais, mas sim criou norma geral confrontante com o artigo 2° do Decreto Federal 4.680/03, que estabelece a necessidade de informação da natureza transgênica do produto apenas na comercialização de alimentos e ingredientes alimentares cuja presença de organismos geneticamente modificados esteja acima de um por cento.
Houveram manifestações nos autos no sentido de que, no mérito, a discussão diz respeito à seara da proteção ao consumidor, no seu direito à informação, previsto nos artigos 5°, XXXII, e 170, V, da Carta Magna e no artigo 48 do ADCT. E que, nos termos do artigo 24, §1°, V, da CF, a norma geral em matéria de proteção ao consumidor é o Código de Defesa do Consumidor, que alcança qualquer produto, seja ele transgênico ou não, e cuja regulamentação foi pretendida pela lei estadual em questão.
Ainda, houve argumento do Governador do Paraná, de que o Decreto Federal 4.680/03 afastou-se da norma geral de proteção ao consumidor, da Lei de Biossegurança e do Decreto 5.591/05, pois a fixação da obrigatoriedade de informação somente a partir do percentual mínimo de um por cento de transgenia no produto não atende às exigências do Código de Defesa do Consumidor, que prevê como publicidade enganosa por omissão, a ausência de informação de dado essencial do produto, como o é a sua composição transgênica, porém, tais argumentos não foram considerados.
O entendimento do Supremo Tribunal Federal na presente questão foi o de que não houve lacuna a ser preenchida pela norma estadual.
A relatora proferiu voto entendendo que a lei estadual buscou regular de forma paralela o que já estava disciplinado em lei federal, suprimindo a tolerância de até um por cento de transgenia no produto ofertado na sua rotulagem. O legislador local extrapolou a autorização constitucional que, na sistemática da competência concorrente, objetiva o preenchimento de lacunas acaso verificadas na legislação federal. Assim, julgou procedente o pedido formulado e declarou inconstitucional a lei estadual. Os demais ministros, por unanimidade, acompanharam o voto da relatora.
Não foi considerado que a proteção à saúde e ao direito à informação, que é previsto não somente na legislação consumerista, como também na legislação ambiental pátria, inclusive constitucionalmente, estaria melhor amparada pela lei estadual do que pela lei federal.
Aliás, vários são os argumentos desfavoráveis à previsão do artigo 2° do Decreto 4.680/03, conforme a seguir expostos.
O direito à informação é um direito difuso à informação verdadeira. A Lei de Biossegurança não restringe a 1% o direito à informação do consumidor. Nem poderia fazê-lo, pois a proteção ao direito à informação está prevista constitucionalmente em diversos dispositivos, a saber: art. 5°, XIV, XXXIII, XXXIV, alínea “b” e art. 225, § 1°, IV, todos da CF.
Também a lei que cuida da política nacional do meio ambiente trata do direito à informação em diversos dispositivos, tais como: arts. 4°, V, 6°, §3° e 9°, VII, X e XI, 10°, §1°, todos da Lei 6.938/81.
Ora, a questão envolvida na rotulagem dos alimentos que contenham OGMs é, não apenas consumerista, mas também relacionada ao direito à sadia qualidade de vida, e, portanto, também uma questão ambiental.
Assim, vale ressaltar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu art.19 prevê: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
Também a Declaração de Estocolmo protege o direito à informação em dois princípios – Princípios 19 e 20, a saber:
Princípio 19:
“(...) É igualmente essencial que os meios de comunicação de massas evitem contribuir para a deterioração do meio ambiente humano e, ao contrário, difundam informação de caráter educativo sobre a necessidade de protegê-lo e melhorá-lo, a fim de que o homem possa desenvolver-se em todos os aspectos.” (grifo nosso)
Princípio 20
“Devem-se fomentar em todos os países, especialmente nos países em desenvolvimento, a pesquisa e o desenvolvimento científicos referentes aos problemas ambientais, tanto nacionais como multinacionais. Neste caso, o livre intercâmbio de informação científica atualizada e de experiência sobre a transferência deve ser objeto de apoio e de assistência, a fim de facilitar a solução dos problemas ambientais.(...)” (grifo nosso)
A Declaração do Rio, documento internacional relevante na legislação ambiental, prevê nos princípios 10, 18 e 19:
Princípio 10:
“A melhor maneira de tratar questões ambientais e assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo deve ter acesso adequado a informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar de processos de tomada de decisões. Os Estados devem facilitar e estimular a conscientização e a participação pública, colocando a informação à disposição de todos. Deve ser propiciado acesso efetivo a procedimentos judiciais e administrativos, inclusive no que diz respeito à compensação e reparação de danos.” (grifo nosso)
Princípio 18
“Os Estados devem notificar imediatamente outros Estados de quaisquer desastres naturais ou outras emergências que possam gerar efeitos nocivos súbitos sobre o meio ambiente destes últimos. Todos os esforços devem ser empreendidos pela comunidade internacional para auxiliar os Estados afetados.”
Princípio 19
“Os Estados devem prover oportunamente, a Estados que possam ser afetados, notificação prévia e informações relevantes sobre atividades potencialmente causadoras de considerável impacto transfronteiriço negativo sobre o meio ambiente, e devem consultar-se com estes tão logo quanto possível e de boa fé.”
A Lei 9.795/99, que trata da educação ambiental, disciplina em seu art. 5°, inciso II, que “são objetivos fundamentais da educação ambiental: II – a garantia de democratização das informações ambientais;”
Os artigos 6°, III, 31 e 37, §1° do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), também tratam do direito à informação:
Art.6° São direitos básicos do consumidor:
...
III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como os riscos que apresentem.
ART. 31 - A oferta e a apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidade, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.
ART. 37 - É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.
...
§ 1º - É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.
O princípio da precaução, existente no direito ambiental, também está sendo desconsiderado pela norma vigente.
O chamado princípio da cautela, ou precaução, está relacionado à incerteza científica. Ele antecede a prevenção, pois fundado na ideia de não se correr riscos, até porque a precaução é tomada mesmo sem saber se existem os riscos. Se já são conhecidos, trata-se de preveni-los.
Regulado pelo princípio 15 da Rio/92, que prevê:
Princípio 15: “Para proteger o meio ambiente medidas de precaução devem ser largamente aplicadas pelos Estados segundo suas capacidades. Em caso de risco de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não deve servir de pretexto para procrastinar a adoção de medidas efetivas visando a prevenir a degradação do meio ambiente”.
Também dispõe a respeito desse princípio a Lei 6.938/81 (Lei de Política Nacional do Meio Ambiente), em seus artigos 2° e 5°.
Considerando todos esses fundamentos apontados, questiona-se o teor do artigo 2° do Decreto 4.680/03, pois não atende às normas constitucionais que tratam da proteção ao consumidor e ao meio ambiente (artigo 225 da CF), já que o consumidor, para ter a informação verdadeira respeitada precisa saber exatamente o que contém o produto que é colocado no mercado. Da forma que estabelece o referido Decreto, o consumidor fica sem direito à informação se o produto contiver 0,99% de OGM ou menos em sua composição. Retira-se do consumidor a possibilidade de escolha em consumir ou não um produto transgênico.
Assim, diante de todo o exposto, entendemos que a questão da rotulagem dos alimentos que contenham OGMs carece de regulamentação que atenda melhor aos interesses constitucionalmente protegidos do meio ambiente e do consumidor, o que parece estar distante de acontecer, pois, ao revés, tramita um projeto no Senado Federal, projeto de Lei da Câmara n° 34, de 2015, que, se aprovado, acarretará em maior retrocesso ainda à questão.
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Mestre e doutoranda em Direito das Relações Sociais pela PUC de São Paulo, professora de direito civil e de direito ambiental, advogada. Autora do livro Resumo jurídico de direitos reais, volume 19. São Paulo: Quartier Latin, 2004 (a venda na internet)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JARDIM, Luciana Chiavoloni de Andrade. A rotulagem dos alimentos que contenham organismos geneticamente modificados em face da proteção ambiental e do consumidor Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 mar 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46175/a-rotulagem-dos-alimentos-que-contenham-organismos-geneticamente-modificados-em-face-da-protecao-ambiental-e-do-consumidor. Acesso em: 22 nov 2024.
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