RESUMO: É fato comum, em razão da inércia do ente público tributante, a pendência de processo administrativo fiscal por tempo superior ao estipulado pelo Código Tributário Nacional como suficiente para ocasionar a prescrição ou a decadência tributárias. O presente trabalho propõe uma análise acerca da possibilidade de utilizar-se o instituto da prescrição intercorrente como meio hábil a tutelar a razoável duração destes processos administrativos, impedindo que o contribuinte seja submetido a uma verdadeira imprescritibilidade do crédito tributário. Para tanto, são apresentados princípios constitucionais, regras infraconstitucionais e precedentes judiciais que corroboram a tese favorável à existência da prescrição intercorrente administrativa. Porém, não se olvida o presente estudo de analisar o principal argumento contrário à existência da prescrição intercorrente administrativa, qual seja, a impossibilidade de fluxo do prazo prescricional na pendência de reclamação ou recurso administrativo.
Palavras-chave: Prescrição; Decadência; prescrição Intercorrente; Processo Administrativo Fiscal; Razoável Duração do Processo.
1. Introdução.
O presente trabalho busca analisar a possibilidade de aplicação do instituto da prescrição intercorrente no bojo de processos administrativos fiscais que tramitam perante as fazendas públicas federais, estaduais, municipais e distrital.
A análise pauta-se na investigação de princípios constitucionais – especialmente do princípio da razoável duração do processo –, normas-regra infraconstitucionais e entendimentos jurisprudenciais que legitimam a aplicação da prescrição intercorrente nos feitos administrativos fiscais.
Contudo, importa também analisar a prescrição e a decadência tributárias, bem como os seus “dies ad quem” e “dies a quo”, posto que são colocados pelos estudiosos do tema como principais óbices à aplicação da prescrição intercorrente a processos administrativos fiscais.
2. Fundamentos que legitimam a Prescrição Intercorrente Administrativa.
A imensa maioria dos manuais que tratam de Direito Processual Civil traz, dentre as suas primeiras lições, considerações sobre a Instrumentalidade do Processo. Assim também se faz no presente trabalho, buscando-se trazer, de pronto, a premissa de que o processo deve servir ao direito material a fim de proporcionar a concretização deste último.
Ressalve-se, contudo, que não pode o processo ser visto como mero instrumento - no sentido pejorativo da palavra - do direito material. É o que advertia o professor Calmon de Passos, afirmando que direito material e processo são uma só figura, indissociáveis.
Estabelecida tal premissa, parte-se para o mergulho sobre o processo administrativo fiscal, que no seu sentido estrito[1] se destina à constituição e determinação do crédito tributário para posterior cobrança por parte do ente tributante. Ou seja, levando-se em conta o sentido estrito de processo tributário sugerido pelo professor Hugo de Brito Machado, resta claro que o processo administrativo fiscal se revela como verdadeiro instrumento indissociável do direito material que possui o ente tributante de instituir, fiscalizar e arrecadar tributos.
Entretanto, não há dúvidas quanto ao fato de que a relação processual envolve outros direitos, tais como o direito constitucional ao pleno exercício do contraditório e da ampla defesa por parte do contribuinte, conforme artigo 5º, LV da Constituição Federal, e o direito à razoável duração do processo, também trazido pela Constituição Federal, mas no seu artigo 5º, inciso LXXVIII.
Para o tema em debate ganha relevância o princípio constitucional da razoável duração do processo, que não pode ser considerado como uma verdadeira apologia à celeridade, mas sim como uma garantia constitucional umbilicalmente ligada ao devido processo legal[2] e à efetividade[3], figurando como garantia ao “tempo necessário e adequado à solução do caso submetido ao órgão jurisdicional”[4], ou seja, a uma duração que permita a prática de todos os atos necessários à efetivação dos direitos fundamentais e princípios processuais, garantindo assim que, de fato, o processo instrumentalize o direito material nele discutido.
Portanto, o direito à razoável duração do processo não se presta apenas a tutelar direitos fundamentais das partes que compõem a relação processual, mas também a concretizar o processo como figura indissociável do direito material, como instituto de efetivação de direitos.
Para o advogado que atua perante as fazendas públicas e também para o Contribuinte, a razoável duração do processo se mostra como ideal um tanto quanto utópico em face de processos administrativos fiscais que costumam perdurar por cinco, seis, sete anos, ou até mesmo por mais de uma década.
Entretanto, não só a Constituição Federal busca impedir tal situação através de princípios como os do devido processo legal, da efetividade e da razoável duração, como normas-regra infraconstitucionais fornecem instrumentos capazes de efetivar o disposto no artigo 5º, LXXVIII da Carta da República.
Como exemplo, destaca-se o disposto no artigo 24 da Lei Federal 11.457/07, que dispõe sobre a administração tributária federal:
Art. 24. É obrigatório que seja proferida decisão administrativa no prazo máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias a contar do protocolo de petições, defesas ou recursos administrativos do contribuinte.
Merece destaque também o disposto no § 3º da Instrução Normativa nº 1.300/12 relativamente ao pedido de compensação administrativa com base em decisão judicial transitada em julgado:
Art. 82. Na hipótese de crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado, a Declaração de Compensação será recepcionada pela RFB somente depois de prévia habilitação do crédito pela DRF, Derat, Demac/RJ ou Deinf com jurisdição sobre o domicílio tributário do sujeito passivo.
§ 3º No prazo de 30 (trinta) dias, contados da data da protocolização do pedido ou da regularização de pendências de que trata o § 2º, será proferido despacho decisório sobre o pedido de habilitação do crédito.
Portanto, inequívoco é o fato de que o legislador infraconstitucional, seguindo a lógica instituída pelo legislador constitucional através de princípios como os da efetividade, do devido processo legal e da duração razoável do processo, oferece instrumentos aptos a garantirem não só o respeito às citadas normas constitucionais, mas também à instrumentalidade do processo.
Porém, uma vez desrespeitada a razoável duração do processo, de que instrumentos pode se valer o Contribuinte para tutelar os seus direitos e garantias constitucionais?
Certamente salta aos olhos a possibilidade de impetração de Mandado de Segurança em face da autoridade coatora integrante do ente tributante que tenha desrespeitado o direito líquido e certo à razoável duração do feito administrativo tributário, ou ao julgamento em 360 (artigo 24 da Lei 11.457/07) ou até mesmo 30 dias (artigo 82, § 3º da Instrução Normativa número 1.300/12), se for o caso.
Aliás, este foi o objeto do Mandado de Segurança número 0018632-34.2013.403.6100, distribuído perante a Justiça Federal do Estado de São Paulo e que culminou com a determinação, ainda em sede liminar, ao Delegado da Receita Federal do Brasil de Julgamento, no sentido de que, no prazo máximo de dez dias, fosse proferida decisão no feito administrativo parado há mais de dois anos.
Frise-se, entretanto, que não só a impetração de Mandado de Segurança buscando o pronto julgamento do feito administrativo vem se revelando como instrumento hábil a tutelar o direito fundamental do Contribuinte à razoável duração do processo administrativo.
No vanguardista Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo, há precedentes, como a Apelação número 59603816-6, no sentido de reconhecer a decadência do direito do Fisco de efetuar o lançamento do crédito tributário em casos onde, por inércia do ente tributante responsável pela condução do processo administrativo fiscal, o feito fique parado por tempo superior ao quinquênio trazido pelo artigo 173, I do Código Tributário Nacional.
No mesmo Tribunal encontra-se precedente no sentido de reconhecer a prescrição intercorrente administrativa quando o ente tributante se mantiver inerte na pendência de processo administrativo tributário por prazo superior aos cinco anos trazidos pelo artigo 174 do Código Tributário Nacional como suficientes para fulminar a pretensão de cobrança do crédito tributário.
Assim:
PRESCRICAO INTERCORRENTE NO PROCESSO ADMINISTRATIVO. ART.151, III, CTN. DURANTE A RECLAMACAO OU RECURSO ADMINISTRATIVO, ESTA SUSPENSA A EXIBILIDADE DO CREDITO ADMINISTRATIVO, NAO CORRENDO PRESCRICAO. ENTRETANTO, QUANDO SE ESTA DIANTE DE INCOMUM INERCIA, COM A PARALIZACAO INCOMPREENSIVEL DO PROCEDIMENTO DURANTE SETE ANOS, SOB PENA DE SE ACEITAR A PROPRIA IMPRESCRITIBILIDADE, NAO HA COMO DEIXAR DE RECONHECER A PRESCRICAO. CASO EM QUE, DE RESTO, A AUTUACAO DECORREU DE PRESUNCOES DOS AGENTES FISCAIS, CONTRARIADAS POR CONFIAVEL PROVA DOCUMENTAL. NAO E POSSIVEL AO FISCO FECHAR OS OLHOS A DADOS PLENAMENTE CONFIAVEIS E OBJETIVOS, COMO ESTOQUE DE PRODUTO E SUA MOVIMENTACAO, PREFERINDO FIAR-SE EM SUPOSICOES. APELO PROVIDO POR AMBOS OS MOTIVOS.
(Apelação Cível Nº 597200054, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Armínio José Abreu Lima da Rosa, Julgado em 23/12/1998).
Importante a ressalva que o sobredito Acórdão faz quanto ao fato de que, na pendência de recurso ou reclamação administrativa, resta suspensa a exigibilidade do crédito tributário. Isto porque, como sabido, a prescrição é instituto que fulmina uma pretensão, não atingindo o próprio direito, logo, a prescrição atinge, no presente caso, a pretensão do ente tributante cobrar judicialmente o crédito tributário.
3. Análise à luz da Prescrição e Decadência tributárias.
Em casos onde o ente tributante não pode exercer a pretensão de cobrança do crédito, certamente é razoável que se conclua que também não deva correr o prazo prescricional. E da leitura do artigo 151, III do Código Tributário conclui-se que, de fato, a pendência de impugnação ou recurso em processo administrativo impede que o Fisco possa exercer a sua pretensão de cobrar o crédito, razão pela qual também se entende não fluir o prazo prescricional previsto no artigo 174 do CTN.
Portanto, por respeito à técnica e aos conceitos lógico-jurídicos e jurídico-positivos que compõem o nosso ordenamento, há de se concluir que, inicialmente, não há que se falar em prescrição da pretensão de cobrança do crédito tributário em situações de prolongada inércia do ente tributante responsável por conduzir o processo administrativo.
Quanto à decadência, considere-se que tal instituto fulmina o próprio direito creditório do ente tributante, e não apenas a sua respectiva pretensão. Ademais, conforme artigo 173, I do Código Tributário Nacional, é verificada a decadência quando transcorridos cinco anos contados do primeiro dia do exercício seguinte ao que poderia o Fisco ter realizado a constituição do crédito tributário.
Portanto, uma vez regularmente constituído o crédito tributário, observado o quinquênio supracitado, jamais se poderá falar em decadência do direito creditório fiscal.
Acrescente-se ainda o fato de que o crédito tributário é regularmente constituído com o ato de lançamento. Tal ato pode ser desafiado por meio de impugnação administrativa, porém, a mesma não desconstitui, a princípio, o crédito tributário, sendo necessário para tanto que seja proferido julgamento definitivo dando-lhe provimento.
Logo, a inauguração da fase litigiosa do processo administrativo não obsta a constituição do crédito tributário. Caso contrário, seria teratológica a previsão contida no artigo 151, III do Código Tributário no sentido de que a impugnação ou recurso administrativo suspende a exigibilidade do crédito tributário.
Diante disto, há de se concluir que também fere o ordenamento jurídico a decisão que reconheça a decadência de direito creditório tributário – após o regular ato de lançamento – em virtude da injustificada e duradoura inércia do ente tributante na pendência de processo administrativo tributário.
Feitas estas considerações, cumpre chamar atenção para o fato de que a prescrição que fulmina a pretensão decorrente do direito material (prevista no artigo 174 do Código Tributário Nacional) não se confunde com a denominada prescrição intercorrente.
Isto porque a prescrição intercorrente é fenômeno tipicamente processual, tendo o seu termo inicial e o seu termo final compreendidos no bojo do processo e verificando-se quando ocorrerem simultaneamente a inércia do ente público na condução do processo e a estagnação do feito por lapso temporal igual ou superior aos previstos em lei.
Assim:
A prescrição intercorrente é a que ocorre no curso da Execução, quando, interrompido o prazo prescricional pelo ajuizamento do feito, deixar o Fisco de promover o andamento efetivo da execução. Nesse sentido, a prescrição intercorrente possui dies a quo e ad quem fixados dentro da execução fiscal.
A expressão intercorrente se refere à situação na qual a prescrição, anteriormente interrompida, volta a correr durante o processo. Não se confunde, pois, com a prescrição iniciada após a constituição definitiva do crédito[5].
Acrescente-se, ainda, que além da prescrição intercorrente se identificar como fenômeno tipicamente processual, os seus fundamentos são extraídos do artigo 40 da Lei de Execuções Fiscais, do caráter instrumental do processo e dos princípios da segurança jurídica, do devido processo legal, da efetividade e da razoável duração do processo. São estes fundamentos constitucionais pautados no ideal de justiça que permitem que a prescrição intercorrente seja aplicada não só no bojo de execuções fiscais, mas também em processos judiciais de natureza distinta e até mesmo em processos administrativos.
Destaque-se, inclusive, que tais fundamentos constitucionais levaram o Supremo Tribunal Federal a reconhecer, por meio de entendimento contido no enunciado 327 da sua súmula, a aplicação da prescrição intercorrente em feitos de natureza trabalhista[6]. Tais fundamentos também legitimam a norma insculpida no artigo 1º, § 1º da Lei 9.873/99[7], que prevê expressamente a aplicação da prescrição intercorrente no bojo de processos administrativos que fiquem paralisados por mais de três anos.
4. Conclusão.
Diante do exposto, conclui-se pela possibilidade de aplicação da prescrição intercorrente no bojo de processos administrativos fiscais como meio para a proteção dos contribuintes ante o risco de uma verdadeira imprescritibilidade da pretensão arrecadatória estatal, sendo legitimado pelo imperativo de justiça, pelos princípios constitucionais do devido processo legal, da efetividade, da segurança jurídica, da razoável duração do processo e pela necessidade de se garantir a instrumentalidade do processo.
Para tanto, é preciso que se faça a ressalva de que a prescrição intercorrente é fenômeno que se opera dentro do processo, com dies a quo e dies ad quem compreendidos no ínterim processual, não se confundindo, portanto, com a prescrição ou com a decadência tributárias trazidas pelos artigos 174 e 173 do Código Tributário Nacional, respectivamente.
Referências:
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CAIS, Cleide Previtalli. O Processo Tributário. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
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HAIDAR, Raul. “Processos Administrativos Tributários devem terminar em prazo razoável”. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-fev-22/justica-tributaria-processo-administrativo-tributario-terminar-prazo-razoavel. Acessado em: 27/02/2016.
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SCOCUGLIA, Livia. “Duração Razoável – Justiça obriga Receita Federal a julgar imediatamente”. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-mar-05/justica-obriga-receita-federal-julgar-processo-administrativo-imediatamente. Acesso em: 27/02/2016.
SILVA, Paolo Stelati M. “STJ diz que há prescrição se processo administrativo ficar parado por mais de 3 anos”. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI208249,91041-STJ+diz+que+ha+prescricao+se+processo+administrativo+ficar+parado+por. Acesso em: 27/02/2016.
[1] Conforme nos ensina o professor Hugo de Brito Machado no seu “Curso de Direito Tributário”; 36ª ed; São Paulo. Malheiros. 2015. Pg. 459/460.
[2] (Previsto no artigo 5º, LIV da Constituição Federal.)
[3] Princípio intrínseco à cláusula do devido processo legal e que impõe que o direito material discutido seja efetivado, caso de fato tal direito exista e encontre amparo no ordenamento jurídico, sob pena de total desvirtuamento do instituto do processo.
[4] DIDIDER Jr., Fredie. “Curso de Direito processual Civil – Introdução ao Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 15 ed. Salvador: Jus Podivm, 2013, v. 1. p. 69.
[5] MADOGLIO, Leydiane Gadelha Moreira. “Prescrição Intercorrente na Execução Fiscal. Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,prescricao-intercorrente-na-execucao-fiscal,53269.html. Acessado em: 27/02/2016.
[6] Frise-se que o tema não é pacificado no âmbito da jurisprudência e doutrina trabalhista, uma vez que se discute, por exemplo, a legalidade e constitucionalidade de convivência deste instituto com o jus postulandi. Porém, no sentido de ser possível a aplicação da prescrição intercorrente a processos trabalhistas: TRT da 23ª Região; Processo: 00173.2002.005.23.00-4 AP; Julgado em: 09/12/2014; Publicado em: 15/12/2014; Relatora Beatriz Theodoro.
[7] Esta Lei trata de processos administrativos em que se discuta o exercício de ação punitiva estatal, razão pela qual há resistência na aplicação destes dispositivos a processos administrativos fiscais.
Advogado do Nelson Wilians e Advogados Associados/BA. Bacharel em Direito pela Universidade Salvador. Pós-graduando em Direito Tributário no INSPER/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FARIAS, Felipe Paradella de Britto. A Prescrição Intercorrente como ferramenta de tutela da razoável duração dos Processos Administrativos Fiscais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 mar 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46271/a-prescricao-intercorrente-como-ferramenta-de-tutela-da-razoavel-duracao-dos-processos-administrativos-fiscais. Acesso em: 22 nov 2024.
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