RESUMO: Neste artigo, serão destacados os argumentos jurídicos mais relevantes apresentados pelos entes federados nas defesas das ações de saúde, bem como, a conceituação de políticas públicas com as respectivas implicações do referido conceito. De fato, os defensores do erário apresentam a mais vasta argumentação, a exemplo daquela que versa sobre a “reserva do possível”, na qual é aduzido que a escassez dos recursos públicos conduz a uma limitação na prestação dos serviços, não podendo, entretanto, isto ser considerado inconstitucional, uma vez que o funcionamento dos serviços públicos deverá ser analisado de acordo com as limitações do Estado. O Governo tem aduzido ainda, que o custeio de tratamentos de alto custo, utilizando-se de verba destinada à saúde, pode acarretar sérios prejuízos à prestação contínua do serviço público de saúde ordinário. Diante deste panorama, o presente estudo pretende sintetizar e trazer à discussão o posicionamento dos entes federados, os quais têm se valido de sua ampla capacidade de litigar judicialmente, ora para discutir legitimamente os limites do dever estatal, ora para tentar justificar a falha na política pública de saúde.
Palavras-chave: Direito à saúde. Política pública de saúde. Judicialização. Defesa estatal. Artigo 196 da CF/88.
1. A discricionariedade e o conceito de políticas públicas
Com a evolução dos modelos de Estado, grande parte das atribuições estatais está concentrada na efetivação de direitos prestacionais, implicando na necessidade de realizar decisões e concretizar ações que visem solucionar os problemas de determinada sociedade. Deste modo, denota-se que as políticas públicas representam um conjunto organizado que busca a coordenação dos meios estatais para a efetivação de fins determinados politicamente e de grande importância para a sociedade.
Ilustrando e dissecando o conceito de políticas públicas, de acordo com os elementos que as compõem, argumenta o catedrático cearense Nagibe de Melo Jorge Neto:
Como destacamos no capítulo segundo, o conceito de política pública com o qual trabalhamos, se compõe de três elementos, sendo dois deles necessários e um acidental: o primeiro e principal elemento é (a) a ação, o fazer estatal orientado, mediata e imediatamente, para a consecução de (b) um fim, um objetivo, uma meta, ou seja, a efetivação dos direitos fundamentais. Esse fim é o segundo elemento, o qual pode, todavia, estar implícito. O terceiro elemento, que é eventual, podendo estar ou não presente, é o (c) programa ou planejamento previamente estabelecido. Com efeito, as ações estatais nem sempre são determinadas ou planejadas por um prévio programa de ação. (grifou-se)[1]
Isto posto, para que possamos entender melhor o argumento de que haveria certa intromissão do Poder Judiciário nas atribuições dos outros poderes, objeção esta aventada nas defesas dos entes federados (que será apresentada a seguir), devemos, desde já, consignar que existe distinção entre as políticas públicas e as questões meramente políticas. Exemplificando as questões puramente políticas temos a declaração de guerra, a celebração da paz, a decretação de estado de defesa e de estado de sítio, nomeação e exoneração de Ministros de Estado, etc. São temas desta natureza que podem ser caracterizados como essencialmente políticos, evitando-se o controle jurisdicional.
De fato, estas questões puramente políticas, por estarem protegidas pela discricionariedade constitucionalmente atribuída ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo, não são passíveis de influência judicial. Contudo, ressalve-se que esta discricionariedade não se revela absoluta, posto que deverá sempre estar pautada pelos parâmetros e limitações em certos campos de atuação definidos por nossa Carta Magna.
Razão pela qual, toda vez em que o agir do Estado transgredir norma constitucional, desrespeitando os direitos nela estabelecidos, a intervenção judicial se mostrará tão pertinente quanto necessária, sem, entretanto, haver a substituição das atividades de tais poderes pelo Judiciário. Em outras palavras, temos que o Judiciário poderia invalidar normas e atos que fossem contrários à efetivação do direito à saúde, ou, até mesmo, estabelecer o cumprimento de metas que reflitam a efetiva prestação de tal direito, mas não poderia o próprio Poder Judiciário escolher os meios para a consecução da efetiva prestação do direito à saúde.
Para uma melhor ilustração, tome-se a hipótese de litígio em que o Ministério Público ingresse judicialmente com ação civil pública, questionando a ineficácia do atendimento terciário à saúde em determinado município, posto que a demora para a realização de tal atendimento acaba por gerar graves prejuízos à sociedade. Nesta hipótese exemplificativa, caso haja decisão pela procedência da referida ação, não caberá ao Poder Judiciário determinar por quais meios (criação de novo hospital, realização de concurso público, redistribuição de pacientes para outras unidades nosocomiais) deverá ser solucionado tal problema, cabendo-lhe estabelecer objetivos a serem cumpridos, a exemplo da redução para um número máximo de minutos em que o paciente deverá ser atendido, respeitada, logicamente, a triagem inerente a este tipo de atividade.
De todo modo, o magistrado deverá levar em linha de conta que o Poder Executivo e o Poder Legislativo possuem importante licença para escolher as políticas públicas que serão adotadas para a efetivação de direitos fundamentais, remetendo ao conceito de discricionariedade de meios. Segundo tal ideia, o Poder Executivo e o Poder Legislativo, diferentemente do Judiciário, poderão optar, planejar e realizar as políticas públicas que melhor efetivem os direitos fundamentais. Com isso, o Poder Judiciário deverá garantir a implementação de tais direitos, deixando para os demais Poderes a decisão sobre como estes direitos fundamentais, e dentre eles, o direito à saúde, serão implementados.
2. Os argumentos mais recorrentes nas defesas dos entes federados
A seguir, abordar-se-á, os argumentos levantados nas defesas dos entes federados em face dos litígios judiciais de saúde, apresentando-se, por oportuno, as fontes jurídicas sob as quais tais argumentos se fundam, tudo sob a ótica argumentativa da Administração Pública.
a) Descabimento da tese de responsabilidade solidária entre os entes federados que compõem o SUS, considerando a previsão constitucional da organização hierarquizada do sistema único de saúde (art. 198)
Inicialmente, urge tecer algumas considerações acerca da tese alegada pelos entes federados sobre o descabimento da responsabilidade solidária entre os mesmos, entes estes que compõem o SUS no que tange à prestação de serviços de saúde à população usuária do sistema.
O art. 198 da Constituição Federal de 1988 afirma que os serviços de saúde são prestados de forma regionalizada e hierarquizada[2]. Ora, conforme as boas regras da hermenêutica clássica, tal enunciado normativo tem uma razão de ser, visto que a Constituição Federal não disporia desnecessariamente a respeito de algo. Logo, nota-se, a partir desse mandamento constitucional, que a organização do Sistema Único de Saúde, inclusive sua descentralização, tem por objetivo uma melhor prestação dos serviços de saúde à população e a promover, com isso, maior efetivação dos direitos fundamentais consagrados pela Carta Magna.
Ao se adotar a tese da solidariedade, nesse âmbito, sem uma maior análise do funcionamento do sistema de saúde brasileiro, acaba-se por dificultar a distribuição dos medicamentos à população, visto que já existem instrumentos que garantem a organização do fornecimento de medicamentos pelos entes federativos, conforme prevê a CF/88, dentre eles, a Política Nacional de Medicamentos - Portaria 3.916/98 GM – expedida pelo Ministério da Saúde.
Há, portanto, um equilíbrio no que diz respeito à aquisição e distribuição dos medicamentos, sendo determinado para cada ente o fornecimento dos medicamentos de acordo com sua capacidade orçamentária. Não sendo razoável, portanto, o Poder Judiciário contrariar o estabelecido nessas portarias, sob pena de gerar-se um descontrole na prestação dos serviços de saúde, dado o gravame do deslocamento coercitivo de orçamento de determinado ente público
Além disso, tal tese leva a que a Justiça Federal e a Justiça Estadual tenham competência sobre a mesma matéria, a depender única e exclusivamente da vontade do autor de chamar a União ou não para o processo. Isso leva a decisões muitas vezes discrepantes, a exemplo das dietas especiais em saúde, as quais, sob o ponto de vista da jurisprudência não há consonância.
Ora, a jurisdição é também única e dever do Estado. Cuidar do zelo da Constituição e das Leis é obrigação comum dos três entes (art. 23 da CR, sempre invocado). No entanto, quanto ao poder de dizer o Direito em último grau, ninguém duvida que este é regrado pela distribuição de competências, que foi conferida à União e aos Estados, através da função judiciária. A assistência à saúde também é assim: única, mas regrada por distribuição de competências.
Na esteira desse entendimento, merecem destaque excertos do acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, que estabelece, claramente, que a responsabilidade solidária quanto ao gerenciamento do sistema de saúde pública tem limites e não é possível exigir de um ente político aquilo que está reservado a outro, de maior capacidade orçamentária.
MANDADO DE SEGURANÇA. PORTADORA DE CÂNCER DE MAMA. INDICAÇÃO DE MEDICAMENTO PARA ‘GANHO DA SOBREVIDA GLOBAL’. PRESCRIÇÃO MÉDICA. 'TRASTUZUMABE'. SECRETÁRIO DE ESTADO DA SAÚDE. AUTORIDADE APONTADA COMO COATORA. ILEGITIMIDADE PASSIVA 'AD CAUSAM'. SISTEMA NACIONAL DE TRATAMENTO DOS PORTADORES DO CÂNCER. CENTRO DE ASSISTÊNCIA DE ALTA COMPLEXIDADE EM ONCOLOGIA. HOSPITAL DAS CLÍNICAS DA UFMG. SUBMISSÃO DE CRITERIOSO CONTROLE DE AUTORIZAÇÃO DE PROCEDIMENTOS E RESSARCIMENTOS PELO GOVERNO FEDERAL. INCOMPETÊNCIA PASSIVA 'AD CAUSAM' DA AUTORIDADE IMPETRADA.
[...]
Podemos observar, a partir de tais referências, que o Judiciário, ainda que lentamente, passa a atentar mais ao fato de que a responsabilização solidária dos entes da federação quanto ao fornecimento de determinado medicamento enfrenta óbices na própria organização racional do sistema de repartição de atribuições.
De fato, os três entes que compõem a federação brasileira podem formular e executar políticas de saúde. Impõe-se, conforme lembra Luís Roberto Barroso, que haja cooperação entre as esferas de governo, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional (art. 23, parágrafo único, CRFB/88). Entretanto, segundo o eminente constitucionalista:
"A atribuição de competência comum não significa, porém, que o propósito da Constituição seja a superposição entre a atuação dos entes federados, como se todos detivessem competência irrestrita em relação a todas as questões. Isso, inevitavelmente, acarretaria a ineficiência na prestação dos serviços de saúde, com a mobilização de recursos federais, estaduais e municipais para realizar as mesmas tarefas. [...] No que toca particularmente à distribuição de medicamentos, a competência de União, Estados e Municípios não está explicitada nem na Constituição nem na Lei. A definição de critérios para a repartição de competências é apenas esboçada em inúmeros atos administrativos federais, estaduais e municipais, sendo o principal deles a Portaria nº 3.916/98, do Ministério da Saúde, que estabelece a Política Nacional de Medicamentos. De forma simplificada, os diferentes níveis federativos, em colaboração, elaboram listas de medicamentos que serão adquiridos e fornecidos à população. [...]"
Pela técnica expositiva, racionalidade e moderação, destaco a conclusão proposta por Luís Roberto Barroso, em relação à legitimidade passiva ações similares à presente:
"Parâmetro: o ente federativo que deve figurar no pólo passivo de ação judicial é aquele responsável pela lista da qual consta o medicamento requerido. Como mencionado, apesar das listas formuladas por cada ente da federação, o Judiciário vem entendendo possível responsabilizá- los solidariamente, considerando que se trata de competência comum. Esse entendimento em nada contribui para organizar o já complicado sistema de repartição de atribuições entre os entes federativos. Assim, tendo havido a decisão política de determinado ente de incluir um medicamento em sua lista, parece certo que o pólo passivo de uma eventual demanda deve ser ocupado por esse ente. A lógica do parâmetro é bastante simples: através da elaboração de listas, os entes da federação se autovinculam.[3]
Na mesma linha de entendimento, vale também citar decisão exarada pela então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra. Ellen Gracie, que, para deferir pedido de suspensão de tutela antecipada manejado pelo Estado de Alagoas, invocou a necessidade de observância das competências atribuídas a cada ente dentro da estrutura hierarquizada do SUS no que tange à assistência farmacêutica, rechaçando, outrossim, determinações genéricas de fornecimento de medicamentos não especificados. Vejamos alguns excertos extraídos do decisum:
1. O Estado do de Alagoas, com fundamento no art. 4º da Lei 8.437/92 e no art. 1.° da Lei 9.494/97, requer a suspensão da execução da tutela antecipada concedida na Ação Civil Pública n° 001.06.014309-7 (fls. 27/47), que determinou àquele ente federado o fornecimento de medicamentos necessários para o tratamento de pacientes renais crônicos em hemodiálise e pacientes transplantados (fls. 23/26).
[...]
Verifico estar devidamente configurada a lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem administrativa, porquanto a execução de decisões como a ora impugnada afeta o já abalado sistema público de saúde. Com efeito, a gestão da política nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível de beneficiários. Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se conceder os efeitos da antecipação da tutela para determinar que o Estado forneça os medicamentos relacionados "(...) e outros medicamentos necessários para o tratamento (...)" (fl. 26) dos associados, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade. Ademais, a tutela concedida atinge, por sua amplitude, esferas de competência distintas, sem observar a repartição de atribuições decorrentes da descentralização do Sistema Único de Saúde, nos termos do art. 198 da Constituição Federal.[4]
Corroborando o entendimento aqui aventado, a ilustre Ministra em comento, já se manifestou:
1. O Estado de Goiás, com fundamento nos arts. 4º da Lei 4.348/64, 4º da Lei 8.437/92 e 1º da Lei 9.494/97, requer a suspensão da execução do acórdão proferido pela 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça daquele Estado nos autos do Mandado de Segurança 15270-5 (fls. 86-99), o qual determinou que o requerente fornecesse os medicamentos "PUREGON 300UE; LUPRON KIT; OVIDREL 0,25mg; UTROGESTAN 200mg; INIBINA 10mg, AAS INFANTIL, se for o caso, o genérico, conforme receituário médico".
[...]
Nesse sentido decidi ao apreciar caso idêntico: SS 3.201/GO, DJ 27.6.2007. Com efeito, a gestão da política nacional de saúde, que se realiza de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível de beneficiários. Por essa razão, entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. Nesse sentido, transcrevo parte do parecer da Procuradoria-Geral da República: "23. Na presente hipótese, apesar da extrema relevância dos argumentos expostos no acórdão impugnado, nota-se que o fornecimento imediato da medicação pleiteada pela impetrante, portadora de infertilidade feminina e endometriose, compromete a programação estatal, gerando grave impacto nas finanças públicas e injustificado embaraço nas prestações universais de saúde, parecendo recomendável a suspensão dos efeitos da decisão até o trânsito em julgado do mandado de segurança. 24. É que, não obstante a indiscutível inviolabilidade do direito à vida, à saúde e à maternidade, valores sabidamente amparados pelo texto constitucional, parece ausente, na espécie, a indispensável irreversibilidade configuradora do provimento liminar, não ocasionando a espera pelo julgamento definitivo do writ, risco de danos graves e irreparáveis à impetrante. Afigura-se, pois, razoável a suspensão provisória do acórdão impugnado.(...)"7. Finalmente, quanto ao pedido de extensão dos efeitos da suspensão concedida às liminares supervenientes, cujo objeto seja idêntico, indefiro-o, diante de sua generalidade e inespecificidade. 8. Ante o exposto, defiro parcialmente o pedido, para suspender a execução do acórdão proferido pela 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, nos autos do Mandado de Segurança 15270-5 (fls. 86-99), especificamente no que diz respeito à determinação de fornecimento dos medicamentos pleiteados no writ e que não constam da Portaria GM n.º 2.577/2006, do Ministério da Saúde.[5] (grifo nosso)
Portanto, segundo o entendimento adotado pela Administração Pública, mais aconselhável ao Poder Judiciário do que julgar que todos têm responsabilidade solidária sobre o assunto seria a individualização desta, como forma de dar cumprimento às normas federais que tratam do assunto.
b) Ausência de competência de determinado ente federado, no âmbito da estrutura hierarquizada do SUS, para custear a aquisição de eventuais medicamentos postulados
Em linhas gerais, os membros da federação, com o fito de demonstrarem a inexistência de sua responsabilidade diante da distribuição de competências da rede hierarquizada do SUS, argumentam que deverá ser respeitada, em todos os casos, a Política Nacional de Medicamentos (aprovada pela Portaria nº 3.916/98-GM/MS). Desta feita, a título exemplificativo, considerando que os gestores municipais possuem responsabilidade limitada ao fornecimento de medicamentos da atenção básica de saúde, seria inviável, sob esta ótica, a imposição judicial de disposição de tratamento medicamentoso de alta complexidade.
Seguindo as linhas das considerações traçadas anteriormente, faz-se mister evidenciar como o direito à saúde é efetivado no Brasil. Muito embora o art. 196 da Constituição de 1988 costume ser recorrentemente invocado em ações judiciais apenas no tocante ao seu comando inicial ("A saúde é direito de todos e dever do Estado"), deve-se ter em vista que essa norma não pára aí. Nesta senda, faz-se mister copiar adiante a parte complementar do dispositivo, que define como esse direito social será efetivado: “garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Neste sentido, o Ministro Gilmar Mendes tratou minuciosamente do tema e, no Agravo da Suspensão de Tutela Antecipada 175-CE, ponderou que não existe apenas um direito individual à reparação da saúde, mas um complexo normativo que estabelece um direito coletivo de promoção, concretizado através de políticas sociais do Estado. Aduziu o Ministro, em decisão tomada após a Audiência Pública ocorrida em 2009, em que foram ouvidos todos os atores envolvidos:
Não obstante, esse direito subjetivo público é assegurado mediante políticas sociais e econômicas, ou seja, não há um direito absoluto a todo e qualquer procedimento necessário para a proteção, promoção e recuperação da saúde, independentemente da existência de uma política pública que o concretize. Há um direito público subjetivo a políticas públicas que promovam, protejam e recuperem a saúde.
Assim, a garantia judicial da prestação individual de saúde, prima facie, estaria condicionada ao não comprometimento do funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS), o que, por certo, deve ser sempre demonstrado e fundamentado de forma clara e concreta, caso a caso.[6]
A decisão é extensa mas se pudermos extrair, desde logo, uma síntese de seu corpo, ver-se-á que, para o Ministro, o Poder Judiciário deve atuar quando a política social traçada pelo Estado não está sendo efetivada. Nos demais casos, quando não há um medicamento ou um procedimento do SUS específico, a questão deve ser vista à luz do caso concreto, enfrentando-se com a ponderação entre a reserva do possível e o mínimo existencial as circunstâncias para a solução da lide.
Em igual passo, argumenta-se ainda que se deverá levar em conta a divisão de competências entre os entes federados brasileiros no âmbito da estrutura hierarquizada do Sistema Único de Saúde – SUS. Conforme o exposto supra, a própria Constituição Federal estabeleceu, em seu art. 198, que o Sistema Único de Saúde é constituído por “uma rede regionalizada e hierarquizada”, a qual engloba as diferentes ações e serviços públicos de saúde. No mesmo sentido preceitua o art. 8º, da Lei nº 8.080/90, determinando que a organização das ações e serviços públicos de saúde deve se dar “de forma regionalizada e hierarquizada em níveis de complexidade crescente”.
Diante de tais circunstâncias, corroborando o entendimento exposto, é possível perceber que a aludida organização hierarquizada do sistema, derivada de mandamento constitucional, não reservou aos municípios, por exemplo, o dever de prestar assistência farmacêutica nas situações especiais descritas no tópico ‘3.3’ da política nacional de medicamentos, uma vez que as mesmas deslocam a responsabilidade para as esferas federal e estadual de governo. Vejamos o que dispõe a esse respeito a Política Nacional de Medicamentos, aprovada pela Portaria nº 3.916/98-GM[7] do Ministério da Saúde, publicada no DOU de 10/11/1998:
3. DIRETRIZES
[...]
3.3. [...] Assim, o processo de descentralização em curso contemplará a padronização dos produtos, o planejamento adequado e oportuno e a redefinição das atribuições das três instâncias de gestão. Essas responsabilidades ficam, dessa forma, inseridas na ação governamental, o que deverá assegurar o acesso da população a esses produtos. Para o Ministério da Saúde, a premissa básica será a descentralização da aquisição e distribuição de medicamentos essenciais.
O processo de descentralização, no entanto, não exime os gestores federal e estadual da responsabilidade relativa à aquisição e distribuição de medicamentos em situações especiais. [...] Inicialmente, a definição de produtos a serem adquiridos e distribuídos de forma centralizada deverá considerar três pressupostos básicos, de ordem epidemiológica, a saber:
doenças que configuram problemas de saúde pública, que atingem ou põem em risco as coletividades, e cuja estratégia de controle concentra-se no tratamento de seus portadores;
doenças consideradas de caráter individual que, a despeito de atingir número reduzido de pessoas, requerem tratamento longo ou até permanente, com o uso de medicamentos de custos elevados;
doenças cujo tratamento envolve o uso de medicamentos não disponíveis no mercado.
[...]
5. RESPONSABILIDADES DAS ESFERAS DE GOVERNO NO ÂMBITO DO SUS (...)
5.2. Gestor federal:
Caberá ao Ministério da Saúde, fundamentalmente, a implementação e a avaliação da Política Nacional de Medicamentos, ressaltando-se como responsabilidades:
[...]
u) adquirir e distribuir produtos em situações especiais, identificadas por ocasião das programações tendo por base critérios técnicos e administrativos referidos no capítulo 3, ‘diretrizes’, tópico 3.3. deste documento;
[...]
5.3. Gestor estadual:
Conforme disciplinado na Lei nº 8.080/90, cabe à direção estadual do SUS, em caráter suplementar, formular, executar, acompanhar e avaliar a política de insumos e equipamentos para a saúde.
Nesse sentido, constituem responsabilidades da esfera estadual:
[...]
m) definir elenco de medicamentos que serão adquiridos diretamente pelo Estado, inclusive os de dispensação em caráter excepcional, tendo por base critérios técnicos e administrativos referidos no capítulo 3, ‘diretrizes’, tópico 3.3. deste documento e destinando orçamento adequado à sua aquisição;
[...]
5.4. Gestor municipal:
No âmbito municipal, caberá à Secretaria de Saúde ou ao organismo correspondente as seguintes responsabilidades:
[...]
a) coordenar e executar a assistência farmacêutica no seu respectivo âmbito;
[...]
i) assegurar o suprimento dos medicamentos destinados à atenção básica à saúde de sua população, integrando sua programação à do Estado [...]” – grifos nossos.
Na mesma linha de raciocínio, também merecem destaque os seguintes dispositivos extraídos da Lei nº 8.080/90, que evidenciam algumas competências da direção do sistema em cada esfera de governo:
Art. 16- À direção nacional do Sistema Único de Saúde (SUS) compete:
[...]
X- formular, avaliar, elaborar normas e participar na execução da política nacional e produção de insumos e equipamentos para a saúde, em articulação com os demais órgãos governamentais;
[...]
Art. 17- À direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) compete:
[...]
VIII- em caráter suplementar, formular, executar, acompanhar e avaliar a política de insumos e equipamentos para a saúde;
[...]
Art. 18 - À direção municipal do Sistema Único de Saúde (SUS) compete:
V- dar execução, no âmbito municipal, à política de insumos e equipamentos para a saúde;[8]
Da análise conjunta dos diplomas normativos em exame, constata-se que, a despeito do entendimento perfilhado pelo Supremo Tribunal Federal, a eventual condenação de determinados entes federados a fornecer tratamento medicamentoso deverá observar o disposto na legislação infraconstitucional, dada a natureza hierarquizada presente no Sistema Único de Saúde, no qual a distribuição de competências assume crucial papel para a organização do referido sistema e, por via de consequência, para a efetivação do direito constitucional à saúde.
A questão assume crucial relevo, sendo possível visualizarmos no representativo exemplo do tratamento da diabetes a hipótese mais didática de exposição deste sub tópico, levando-se em consideração as seguintes premissas pertinentes:
- os municípios somente têm competência para executar a política de insumos para a saúde no âmbito municipal (cf. art. 18, V, da Lei nº 8.080/90);
- o âmbito municipal de atuação, relativamente aos medicamentos, restringe-se àqueles destinados à atenção básica (cf. item ‘5.4’, ‘i’ da Política Nacional de Medicamentos), não englobando medicamentos que digam respeito às situações especiais aferidas com a consideração dos pressupostos apresentados no Capítulo ‘3’ (Diretrizes), tópico ‘3.3’ do documento, as quais deslocam a responsabilidade para os gestores estadual e federal do SUS, conforme itens ‘5.2’, ‘u’ c/c ‘5.3’, ‘m’ c/c ‘3.3’ da Política Nacional de Medicamentos;
- tais situações especiais atribuidoras de responsabilidade ao Estado e à União incluem hipótese em que a enfermidade que acomete o paciente configura problema de saúde pública, que atinge ou põe em risco as coletividades, e cuja estratégia de controle concentra-se no tratamento de seus portadores.
De fato, especificamente em relação ao exemplo do tratamento da diabetes, e, para a devida análise da distribuição de medicamentos necessários para o tratamento desta moléstia, urge trazer à baila o disposto no art. 1º, da Lei nº 11.347/2006, in verbis:
Art. 1º Os portadores de diabetes receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde - SUS, os medicamentos necessários para o tratamento de sua condição e os materiais necessários à sua aplicação e à monitoração da glicemia capilar.
§1o O Poder Executivo, por meio do Ministério da Saúde, selecionará os medicamentos e materiais de que trata o caput, com vistas a orientar sua aquisição pelos gestores do SUS.
§2o A seleção a que se refere o §1o deverá ser revista e republicada anualmente ou sempre que se fizer necessário, para se adequar ao conhecimento científico atualizado e à disponibilidade de novos medicamentos, tecnologias e produtos no mercado.
§3o É condição para o recebimento dos medicamentos e materiais citados no caput estar inscrito em programa de educação especial para diabéticos.[9]
Pois bem, em consonância com as diretrizes estabelecidas pela Política Nacional de Medicamentos, bem como, à luz do que preceitua a referida Lei nº 11.347/2006, a Portaria nº 2.583/2007 GM/MS definiu em seu art. 1º os medicamentos destinados ao controle da glicemia capilar dos portadores de Diabetes Mellitus. Em dezembro de 2010, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 1.555 GM/MS, a qual estabelece, em seu artigo 5º, que o financiamento dos medicamentos supracitados será de sua competência, assim como, sua distribuição às Secretarias de Saúde dos Estados. Estas, por sua vez, realizarão a distribuição aos municípios, conforme consigna o texto do parágrafo único do referido artigo. Senão vejamos:
Art. 5º Cabe ao Ministério da Saúde o financiamento e a aquisição da insulina humana NPH 100 UI/ml e da insulina humana regular 100 UI/ml, além da sua distribuição até os almoxarifados e Centrais de Abastecimento Farmacêutico Estaduais e do Distrito Federal.
Parágrafo único. Compete às Secretarias Estaduais de Saúde a distribuição da insulina humana NPH 100 UI/ml e da insulina humana regular 100 UI/ml aos Municípios.[10]
Como se vê, há expressa previsão legal de responsabilidade do Ministério da Saúde (excluídas, por via de consequência, as Secretarias de Saúde dos Municípios) no sentido de:
(a) selecionar os medicamentos destinados ao tratamento de diabetes que serão disponibilizados no âmbito do SUS, revisando-os periodicamente (tal seleção foi divulgada pela Portaria nº 2.583/2007, com esteio no comando contido no art. 1º, §1º, da Lei nº 11.347/2006);
(b) financiar, adquirir e distribuir às Secretarias Estaduais de Saúde (que, por sua vez, repassarão aos Municípios) as Insulinas destinadas aos portadores da diabetes mellitus.
Deste modo, tem-se uma patente execução centralizada, nas mãos do Ministério da Saúde, das principais medidas relacionadas à prestação da assistência farmacêutica em matéria de insulinas para tratamento de diabetes. De fato, no âmbito da estrutura hierarquizada do SUS, os municípios não detêm qualquer poder de ingerência na seleção das modalidades de insulinas a serem disponibilizadas pelo SUS, nem, tampouco, nas revisões periódicas de tal seleção a que alude o §2º do art. 1º da Lei nº 11.347/2006. Da mesma forma, os municípios não são beneficiados por repasses de recursos federais ou estaduais destinados à aquisição de insulinas, assim como não lhes incumbe dispor de recursos próprios para tanto, na medida em que o Ministério da Saúde, em ato normativo de sua própria lavra, concentrou em si o financiamento, a aquisição e a distribuição de tal categoria de medicamentos.
Em que se pese todo o exposto, não são raras as determinações judiciais de disponibilização, pelo SUS, de outras modalidades de insulinas além daquelas já ofertadas (Insulina Humana NPH 100 UI/mL e a Insulina Humana Regular 100 UI/mL) estabelecendo o dever de financiamento, custeio e aquisição dos fármacos almejados, mesmo diante da ausência de competência municipal para tanto. Tal cenário exemplificativo das condenações das municipalidades ao fornecimento de insulinas denota a indiferença dos magistrados para com a legislação infraconstitucional organizadora do Sistema Único de Saúde.
c) Risco de comprometimento de recursos financeiros originariamente destinados à satisfação das responsabilidades atribuídas a determinado ente federado dentro da estrutura hierarquizada do SUS e o efeito multiplicador das decisões judiciais
Outro importante argumento levantado pelos advogados públicos federais, estaduais e municipais diz respeito à possibilidade de configuração de manifesta lesão ao interesse público. Com efeito, os recursos do orçamento público da saúde (que deveriam, destinar-se tão somente à satisfação das responsabilidades verdadeiramente atribuídas ao respectivo ente federado dentro da estrutura hierarquizada do SUS) passam a ser empregados, em caráter contínuo e por prazo indeterminado, no custeio de medicamentos e insumos que eventualmente não se circunscrevem na esfera das competências de tal ente público. Isto poderá ensejar sério risco de comprometimento dos recursos financeiros destinados à prestação da atenção básica à saúde da população, por exemplo.
Com efeito, consoante aventado linhas atrás, a organização hierarquizada do Sistema Único de Saúde, através da Política Nacional de Medicamentos (Portaria nº 3.916/98-GM), e da Lei nº 8.080/90, distribuiu, entre os membros da federação, responsabilidades específicas na seleção, financiamento, aquisição e distribuição de determinados medicamentos destinados ao controle das mais variadas moléstias. Trata-se aqui, de verbas diretamente destinadas à concretização de específicas atividades a serem adotadas na área da saúde.
Dessa forma, acaso certo ente federado seja judicialmente obrigado a mudar a destinação dos recursos do orçamento da saúde, passando a utilizá-los no custeio de medicamentos e insumos que não se circunscrevem na esfera de suas responsabilidades, tal circunstância ensejará não apenas um prejuízo aos cofres públicos, como também a possibilidade de indevido comprometimento da normal prestação de seus serviços de saúde junto à população. Configurar-se-á, dessa forma, perigo de lesão ao interesse público, cuja supremacia se impõe relativamente ao interesse particular.
De outra parte, também é alegada a existência de "efeito multiplicador" que decisões desse jaez poderiam ensejar. Nesse sentido, realizam demonstrativos que evidenciam os valores crescentes gastos no atendimento de pacientes contemplados com ações judiciais. Tratando-se nestes casos, repita-se, de recursos que deixaram de ser empregados na aquisição de medicamentos verdadeiramente inerentes à competência federal, estadual, distrital ou municipal do eventual ente federado no âmbito da estrutura hierarquizada do SUS, para viabilizar a assistência farmacêutica fora da esfera de responsabilidades deste ente público.
d) A questão fática da reserva do possível
Ademais, convém ainda trazer à baila relevantes ponderações acerca da questão da reserva do possível, argumento o qual é amplamente utilizado na defesa dos interesses da Administração Pública.
Segunda tal objeção, em harmonia com o princípio da separação dos Poderes (art. 2º da CF/88), incumbe ao Poder Executivo gerenciar os recursos públicos da saúde e determinar-lhes a destinação segundo os planos e metas traçados com vistas à satisfação da coletividade. Todavia, diante da escassez de recursos públicos, também se impõe ao administrador público (e não ao Poder Judiciário) promover a criteriosa escolha das prioridades a serem atendidas, sempre tendo em vista a melhor forma de alocar o limitado orçamento em prol do máximo proveito do maior número possível de beneficiários. A esse respeito, merecem destaque os elucidativos ensinamentos de Ana Paula de Barcellos, em sua obra A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais:
A expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas. No que importa ao estudo aqui empreendido, a reserva do possível significa que, para além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado – e, em última análise, da sociedade, já que é esta que o sustenta –, é importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos. [11]
Malgrado a importância de tal argumento, a doutrina tem enfatizado que cabe ao ente comprovar, e não simplesmente alegar, a ausência de condições financeiras, transferindo ao Poder Público o ônus de trazer para os autos os elementos orçamentários e financeiros capazes de justificar, eventualmente, a não-efetivação do direito fundamental. De fato, tal requisito de comprovação para o reconhecimento da caracterização da impossibilidade fática de compelir um membro da federação a fornecer determinado fármaco ou disponibilizar algum tratamento faz-se necessário ante a banalização deste próprio argumento.
Ocorre que os entes públicos habituaram-se a alegar a reserva do possível em toda e qualquer ação judicial sobre saúde, afirmando haver a inexistência de recursos públicos para cumprimento das decisões, sem, contudo, comprovar tal carência de aporte financeiro. Cientes da importância da existência de recursos como requisito imprescindível para realizar o fornecimento de tratamentos, sejam estes medicamentosos, cirúrgicos ou de qualquer outra natureza desde que ligados à saúde, os membros da federação acabaram por deturpar o argumento, causando no Judiciário certo receio, e por que não dizer, uma aparente presunção de inveracidade de tal alegação.
e) Perigo de irreversibilidade do provimento antecipado
Urge ainda salientar, dentre as objeções dos advogados públicos, toma relevo os argumentos contrários à concessão de antecipação dos efeitos da tutela. Nesta senda, as referidas antecipações de tutela contra a qual se insurgem revelar-se-iam maculadas pelo perigo de irreversibilidade, cuja presença deveria impedir os deferimentos dos referidos pleitos antecipatórios.
Neste raciocínio, os entes públicos alegam que o legislador houve por bem impor certos limites ao autorizar o juiz a antecipar os efeitos da tutela, dentre os quais se destaca o seguinte:
Art. 273 O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e:
[...]
§2º- Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado[12].
Consoante bem leciona a esse respeito José Roberto dos Santos Bedaque:
Também impõe o legislador, como condição ao deferimento da tutela, que a antecipação dos efeitos não seja irreversível, isto é, que haja possibilidade de retorno ao status quo (CPC, art. 273, §2º). São, no dizer de autorizada doutrina, medidas de salvaguarda, destinadas a evitar o abuso da providência, como ocorria com as cautelares inominadas. Ao mesmo tempo em que foi ampliada a possibilidade de antecipação para qualquer procedimento, procurou-se delimitar, com precisão possível, a área de sua incidência. [...] A antecipação dos efeitos da tutela, todavia, pode implicar a irreversibilidade não desejada pelo legislador (CPC, art. 273, §2º), o que não se coadunaria com a estrutura e os objetivos da medida. Não se pode antecipar definitivamente uma tutela que pode ser negada a final. [...] Daí a advertência do art. 273, §2º, do Código de Processo Civil, devendo o julgador cercar-se de todo o cuidado possível para não antecipar efeitos que não possam ser revertidos.[13] (grifou-se)
Portanto, pode-se depreender do excerto que a irreversibilidade condenada pela lei é da situação criada pelo provimento antecipatório, ou seja, do conjunto de efeitos que esse provimento produz. Trata-se aqui do que a doutrina convencionou denominar “irreversibilidade fática”. Em comentários ao dispositivo processual citado, assim se pronunciam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery:
A norma fala na inadmissibilidade da concessão da tutela antecipada quando o provimento for irreversível. O provimento nunca é irreversível, porque provisório e revogável. O que pode ser irreversível são as conseqüências de fato ocorridas pela execução da medida, ou seja, os efeitos decorrentes de sua execução. (...) Caso haja real perigo de irreversibilidade ao estado anterior, a medida não deve ser concedida. (...) Mantém-se hígido e vigente o CPC 273 §2º, porquanto continua proibida a concessão da tutela antecipada quando houver perigo de irreversibilidade de fato.[14] (grifou-se)
Na maioria dos casos, é inegável o risco de irreversibilidade dos efeitos da medida antecipatória requestadas. De fato, repita-se, no mais das vezes, o objeto da antecipação da tutela é o custeio de tratamento de saúde, consistindo, basicamente, no fornecimento de medicação de alto custo. Todavia, como se no argumento ventilado linhas atrás, tais pretensão, por vezes, sequer se circunscrevem à esfera de competências do ente federado.
Daí se infere, portanto, o defendido risco de impossibilidade de retorno ao status quo ante caso, ao final de tais litígios, chegue-se à conclusão de que o determinado membro da federação efetivamente não era o responsável pelo fornecimento do tratamento pretendido pela parte autora, objeto da decisão antecipatória. A essa altura, o tratamento já teria sido pago pelo Erário Público por força de ordem Judicial, e a parte demandante, na grande maioria dos casos, carente de recursos financeiros, não teria condições de ressarcir as despesas efetuadas, ocasionando prejuízo aos cofres Públicos sem se olvidar dos prejuízos em detrimento da coletividade.
f) Impossibilidade de medida antecipatória contra a fazenda pública que esgote, no todo ou em parte, o objeto da ação
Por fim, encerrando os argumentos expendidos nas defesas dos entes federados, ainda no que concerne às objeções aos pedidos de antecipação de tutela, argumenta-se ainda que tais pleitos de Antecipação da prestação jurisdicional, ainda sob a ótica da defesa estatal, haveriam de ser indeferidos haja vista que não é permitido, ao magistrado, conceder antecipação de tutela contra a Fazenda Pública que se manifeste como de caráter satisfativo.
De fato, o art. 1º, §3º, da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992, assim se expressa:
Art. 1° Não será cabível medida liminar contra atos do Poder Público, no procedimento cautelar ou em quaisquer outras ações de natureza cautelar ou preventiva, toda vez que providência semelhante não puder ser concedida em ações de mandado de segurança, em virtude de vedação legal.
[...]
§3º- Não será cabível medida liminar que esgote, no todo ou em qualquer parte, o objeto da ação.[15]
Ressalte-se que o referido diploma legal prevê regramento para os casos de tutela cautelar. Todavia, o art. 1º da Lei 9.494/97 estendeu os efeitos do dispositivo acima transcrito ao instituto da antecipação da tutela pleiteada em face da Fazenda Pública, assim dispondo:
Art. 1º- Aplica-se à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil o disposto nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7º da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, no art. 1º e seu parágrafo 4º da Lei nº 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1º, 3º e 4º , da lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992.[16]
Há de ser salientado que houve, inicialmente, algum descompasso quanto à aplicabilidade ou não deste último dispositivo legal, tendo considerado alguns julgadores sua inconstitucionalidade e seu conseqüente afastamento. Todavia, o Egrégio Supremo Tribunal Federal já deliberou acerca do assunto e entendeu constitucional o art. 1º da Lei nº 9.494/97. Segue a ementa da decisão:
O Tribunal, por votação majoritária, deferiu em parte o pedido de medida cautelar, para suspender, com eficácia ex nunc e com efeito vinculante, [...] a prolação de qualquer decisão sobre pedido de tutela antecipada contra a Fazenda Pública, que tenha por pressuposto constitucionalidade ou a inconstitucionalidade do art. 1º, da Lei n.º 9.494, de 10/09/97, sustando, ainda, com a mesma eficácia, os efeitos futuros dessas decisões antecipatórias de tutela já proferidas contra a Fazenda Pública. [17]
É deste modo que a defesa dos entes públicos fundamentam a vedação à concessão de medidas antecipatórias dos efeitos da tutela em casos que se subsumam as hipóteses legais previstas no referido art. 1º da Lei nº 9.494/97, dentre as quais aquela que impede a tutela antecipada em face da Fazenda Pública quando tal providência esgotar, no todo ou em parte, o objeto da ação.
Seguindo esta linha de pensamento, ao conceder o pedido de antecipação de tutela relativo ao fornecimento de tratamento de saúde, o respectivo juízo agiria contra legem, vez que ordenaria o imediato cumprimento de fornecimento de tratamento ou custeio de tratamento em rede particular, esgotando integralmente o objeto da demanda.
3. Conclusão
Pelo exposto, foi possível observar as fundamentações mais recorrentes constantes nas defesas dos entes federados, bem como, ventilaram-se algumas das jurisprudências que adotaram as razões expostas pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Ocorre que, conforme será exposto em outra oportunidade, o próprio Supremo Tribunal Federal, através de seu quadro de ministros, já tratou de algumas destas objeções, rechaçando umas, ao passo que reconheceu outras.
De fato, no que concerne ao argumento de inexistência de responsabilidade solidária, os Ministros do Supremo entenderam haver tal tipo de responsabilidade entre os entes federados, determinando a prestação de determinado serviço de saúde ou fornecimento de algum fármaco a ser realizada sob a responsabilidade mútua desses entes. De outra parte, já há o reconhecimento de nossa Corte Maior de que a impossibilidade material de cumprimento de certa decisão, representa importante argumento de fato, diante do qual, caso devidamente comprovado, deverá o magistrado levar em consideração para a elaboração de seu respectivo decisum, indeferindo o pleito do paciente.
Verifica-se, portanto, que o embate de argumentos entre os administrados e a advocacia pública é uma atividade constante de fundamental importância para a concretização do direito à saúde sem olvidar dos limites ao dever estatal de promover referido direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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___________. Ministério da Saúde. BRASIL. Portaria nº 1.555/13, de 30 de julho de 2013. Dispõe sobre as normas de financiamento e de execução do Componente Básico da Assistência Farmacêutica no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt1555_30_07_2013.html>. Acesso em: 18 de março de 2016.
___________. Portaria nº 3.916, de 30 de setembro de 1998. Aprova a Política Nacional de Medicamentos e determina que os órgãos e entidades do Ministério da Saúde, cujas ações se relacionem com o tema objeto da Política agora aprovada, promovam a elaboração ou a readequação de seus planos, programas, projetos e atividades na conformidade das diretrizes, prioridades e responsabilidades nela estabelecidas. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/1998/prt3916_30_10_1998.html>. Acesso em: 18 de março de 2016.
JORGE NETO, Nagibe de Melo. O controle jurisdicional das políticas públicas: concretizando a democracia e os direitos sociais fundamentais. Salvador: Jus Podivm, 2008.
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de processo civil comentado e legislação extravagante. 7. ed. São Paulo: RT, 2003. p. 651.
[1] JORGE NETO, Nagibe de Melo. O controle jurisdicional das políticas públicas: concretizando a democracia e os direitos sociais fundamentais. Salvador: Jus Podivm, 2008. p. 101.
[2] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 18 de março de 2016.
[3] TJ/MG, Mandado de Segurança 1.0000.07.462763-9/000, Rel. Desembargador Armando Freire, Julgado em 04/06/2008, Publicado em 08/08/2008.
[4] STF, STA nº 91/AL, decisão monocrática proferida pela Min. Ellen Gracie em 26/02/2007, publicada no DJ de 05/03/2007, p.23.
[5] STF, SS 3274/GO, decisão monocrática proferida pela Min. Ellen Gracie em 15/08/2007, publicada no DJ de 22/08/2007.
[6] STF. AgRg na STA 175-CE, Voto do Ministro Relator Gilmar Ferreira Mendes, DJe 30/4/2010
[7] BRASIL. Portaria nº 3.916, de 30 de setembro de 1998. Aprova a Política Nacional de Medicamentos e determina que os órgãos e entidades do Ministério da Saúde, cujas ações se relacionem com o tema objeto da Política agora aprovada, promovam a elaboração ou a readequação de seus planos, programas, projetos e atividades na conformidade das diretrizes, prioridades e responsabilidades nela estabelecidas. Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/legis/consolidada/portaria_3916_98.pdf>. Acesso em: 18 de março de 2016.
[8] BRASIL. Lei nº 8.080/90, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm>. Acesso em: 18 de março de 2016.
[9] BRASIL. Lei nº 11.347/06, de 27 de setembro de 2006. Dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos e materiais necessários à sua aplicação e à monitoração da glicemia capilar aos portadores de diabetes inscritos em programas de educação para diabéticos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11347.htm>. Acesso em: 18 de março de 2016.
[10] BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.555/13, de 30 de julho de 2013. Aprova as normas de financiamentos e execução do Componente Básico da Assistência Farmacêutica. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt1555_30_07_2013.html>. Acesso em: 18 de março de 2016.
[11] BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 236
[12] BRASIL. Lei nº 5.869/73, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869compilada.htm>. Acesso em: 18 de março de 2016.
[13] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. p.319-321.
[14] NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de processo civil comentado e legislação extravagante. 7. ed. São Paulo: RT, 2003. p. 651.
[15] BRASIL. Lei nº 8.437/92, de 30 de junho de 1992. Dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8437.htm>. Acesso em: 18 de março de 2016.
[16] BRASIL. Lei nº 9.494/97, de 10 de setembro de 1997. Disciplina a aplicação da tutela antecipada contra a Fazenda Pública, altera a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9494.htm>. Acesso em: 18 de março de 2016.
[17] STF. ADC n.º 4-6, DJ de 13.02.98.
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Anhanguera-Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREITAS, Diego Santiago de. A defesa dos entes federados nas ações relacionadas ao direito à saúde Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 mar 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46289/a-defesa-dos-entes-federados-nas-acoes-relacionadas-ao-direito-a-saude. Acesso em: 22 nov 2024.
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