Resumo: O Supremo Tribunal Federal, na condição de guardião da Constituição, tem se manifestado continuamente acerca de relevantes questões envolvendo a efetivação de direitos fundamentais. Estudar a sua legitimação para tanto e a função contramajoritária exercida por esta Corte Suprema é vislumbrar mais uma forma de concretização dos ditames constitucionais e garantia de respeito aos direitos das minorias. Busca-se demonstrar esse papel a partir harmonização entre a democracia e o constitucionalismo, ressaltando-se o proeminente papel assumido pelo Poder Judiciário, notadamente da jurisdição constitucional, e dos direitos fundamentais como limites aos demais poderes no contexto do neoconstitucionalismo do presente século, através de um levantamento bibliográfico e de uma ótica interdisciplinar das ciências. Conclui-se que a concretização de direitos fundamentais não pode ficar ao alvedrio dos legisladores e administradores, sendo imperiosa a atuação do Supremo Tribunal Federal na concretização dos direitos carreados na Lei Fundamental, especialmente diante de abusos, casuísmos ou mora do legislador, em flagrante desrespeito aos direitos das minorias.
Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal. Função contramajoritária. Direitos fundamentais. Direitos das minorias.
Sumário: Introdução. 1. Constitucionalismo e democracia: dois símbolos em aparente tensão. 2. O neoconstitucionalismo no Século XXI. O papel do Poder Judiciário na tutela dos direitos fundamentais e a função contramajoritária do STF. Considerações finais.
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, tem se percebido uma atuação cada vez mais incisiva do Supremo Tribunal Federal, suscitando o debate institucional entre os três Poderes, especialmente ante a mudança paradigmática que atribuiu supremacia às normas da Constituição, sendo clara a influência do neoconstitucionalismo.
O papel assumido pela Constituição, dentro dessa nova perspectiva, encerra a irradiação dos seus valores sobre todo o ordenamento jurídico e exige que os seus preceitos sejam garantidos também pela jurisdição constitucional. A partir disso, o Supremo Tribunal Federal, no exercício desta jurisdição, tem proferido decisões essencialmente contramajoritárias com o fito de resguardar direitos e interesses, principalmente, dos grupos minoritários expostos a situações de vulnerabilidade de toda sorte.
Diante deste quadro, o objeto deste trabalho compreende o estudo do caráter contramajoritário do Supremo Tribunal Federal e o seu papel na tutela dos direitos fundamentais, notadamente no desempenho da contraposição exercida em face do princípio majoritário inerente ao regime democrático.
Ressalte-se que não é pretensão deste trabalho discutir em qual medida está sendo exercido o ativismo judicial no Brasil e seus impactos na ordem jurídica e política ou descer a minúcias acerca da competência da Suprema Corte, mas tão somente desenvolver as premissas que justificam a atuação desta Corte com vistas a resguardar os direitos fundamentais contra os abusos das maiorias parlamentares.
Para este estudo, considera-se como ponto de partida de um ciclo institucional uma decisão legislativa ou mesmo a falta desta, endossada pela aplicação da regra da maioria, no entanto, em desacordo com os interesses das minorias. Essa eventual contraposição entre a decisão majoritária e os contornos jurídicos desenhados pela Constituição enseja a intervenção da jurisdição constitucional, mais especificamente do Supremo Tribunal Federal.
Assim, este artigo inicia fazendo uma análise da aparente tensão existente entre democracia e constitucionalismo, no afã de facilitar o desenrolar dos casos difíceis de conflito entre os direitos fundamentais e as decisões democráticas.
Em seguida, propõe-se o estudo do movimento neoconstitucional do presente século, abordando, essencialmente, o marco histórico e teórico deste fenômeno e destacando a posição dos direitos fundamentais dentro dessa quadra histórica, bem como o papel proeminente conferido ao Poder Judiciário na proteção e concretização dos valores constitucionalmente consagrados.
Ultrapassada essa segunda parte, iniciaremos a última parte deste estudo, que cuida de analisar mais detidamente o papel do Poder Judiciário na tutela dos direitos fundamentais e realça a função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal
Dessa forma, buscar-se-á demonstrar a imprescindibilidade da atuação do Supremo Tribunal Federal no processo de harmonização do "governo da maioria" com a defesa dos direitos fundamentais, precisamente porque estes últimos constituem a base da democracia substancial e, por conseguinte, devem ser incondicionalmente assegurados a todos e a cada um, ainda que contra a maioria.
1 CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA: DOIS SÍMBOLOS EM APARENTE TENSÃO
Inicialmente, cumpre elucidar a relação aparentemente oposta entre o constitucionalismo e a democracia, especialmente diante da necessidade de resguardar os direitos fundamentais e, para isso, fez-se uso, primordialmente, dos estudos do jurista português Jorge Reis Novais presentes no primeiro capítulo de sua obra “Direitos Fundamentais: Trunfos contra a maioria” (NOVAIS, 2006, p. 18-67) acerca da integração desses dois símbolos.
Um primeiro conceito que facilmente vem à baila quando se pensa em democracia é a de que constitui o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, célebre frase proferida pelo ex-presidente norte-americano Abraham Lincoln. Este conceito encontra arrimo no entendimento do ilustre constitucionalista Paulo Bonavides, para o qual a democracia pode ser conceituada como:
Aquela forma de exercício da função governativa em que a vontade soberana do povo decide, direta ou indiretamente, todas as questões de governo, de tal sorte que o povo seja sempre o titular e o objeto, a saber, o sujeito ativo e o sujeito passivo do poder legítimo. (BONAVIDES, 1993, p. 13).
Com a devida vênia, ousamos acrescentar que o conceito de democracia transcende a seara do governo, posto que se trata de verdadeiro regime.
Como se vê, a regra da maioria fundamenta o regime democrático, uma vez que os representantes do povo são escolhidos através da maioria eleitoral, designadamente nos Poderes Legislativo e Executivo. A Constituição Federal de 1988, por sua vez, declara expressamente, logo em seu art. 1º, parágrafo único, que o poder pertence ao povo e é exercido por meio de seus representantes eleitos, em regra, pelo voto da maioria.
Aprofundando este conceito, Ronald Dworkin conceitua a democracia da seguinte forma:
Democracia significa governo sujeito a condições, as quais poderíamos denominar condições <<democráticas>> de igualdade de posições para todos os cidadãos. Quando as instituições majoritárias fornecem e respeitam as condições democráticas, então, por essa razão, é legítimo que estas instituições sejam aceitas por todos. No entanto, quando não o fazem, ou quando não fornecem ou respeitam suficientemente, então não podem se opor, em nome da democracia, a outros procedimentos que protejam e respeitem melhor essas condições. (DWORKIN, 2004, p. 117, tradução nossa)
Deste último conceito, é possível extrair que a vontade da maioria não pode ser absoluta, sob pena de desrespeitar as chamadas condições democráticas. É nesse diapasão que se impõem importantes limitações carreadas na Lei Fundamental com o fito de proteger os direitos das minorias frente ao princípio majoritário.
No mesmo sentido, Peter Häberle ao explicar o princípio da maioria, leciona que:
Este se encontra em uma tensa relação com a proteção das minorias. Algumas constituições preveem expressamente o princípio da maioria (como o art. 121 da LF), mas ao mesmo tempo regulam múltiplas formas de proteção das minorias [...] A arma contundente do princípio da maioria é, em geral, “tolerável”, porque existe uma proteção (escalonada) das minorias (primordialmente através da “supremacia da Constituição” e a proteção dos direitos fundamentais). A justificação interna da democracia como “governo da maioria” é difícil: pode lograr êxito a ideia de liberdade e igualdade e a necessidade de chegar a uma decisão funcional [...] (HÄBERLE, 2007, p. 324).
A democracia carece, como se vê do excerto acima, da tutela efetiva dos direitos fundamentais, os quais constituem, sem dúvida, condição do regular funcionamento do regime democrático. Em sentido contrário, quando há impedimento ao exercício dos direitos políticos, resta ferida a garantia de participação de todos decorrente da regra da maioria, mormente a valorização do interesse geral e resguardo da igualdade e da liberdade advindo do princípio democrático.
A respeito desse suposto desrespeito do princípio majoritário, Jorge Reis Novais afirma que:
[...] se se priva parte da população de direitos, se não se lhe reconhece igual consideração no processo de deliberação, se se inibe ou não se assegura a sua igual presença na governação, se se diminui o seu estatuto e não se garante a todos uma esfera de igual liberdade de escolha com efectividade e autonomia, a vida democrática não é livre nem igualitária e, logo, o poder não é democrático. (NOVAIS, 2006, p. 20).
É clarividente que a regra da maioria, a qual constitui corolário do princípio democrático, é imprescindível no processo decisório que ocorre na seara governamental, sobretudo porque tal premissa é pressuposto lógico da existência do governo democraticamente legitimado. Entretanto, não se habilita a justificar a ofensa aos direitos fundamentais das minorias ou não concretização de interesse jusfundamental, incorrendo no risco de ferir a própria característica essencial do Estado de Direito Democrático.
Urge destacar que uma dimensão formal de democracia não está capacitada a proteger efetivamente o funcionamento democrático do Estado. Em que pese a necessidade peremptória da regra da maioria, a democracia não se perfaz materialmente tão somente atendendo a este preceito, sendo premente o respeito aos direitos das minorias. Tal necessidade eleva-se, na verdade, como requisito essencial à caracterização da democracia substancial.
Segundo o Professor Geraldo Ataliba, a Constituição que assegura o regime democrático deverá garantir os direitos das minorias e, sobretudo, garantir que correntes minoritárias de mais visibilidade desempenhem papel institucional relevante, através de instrumentos capazes de possibilitar representação proporcional. Se, de outro lado, a maioria souber que – por obstáculo constitucional – não pode prevalecer-se da força, nem ser arbitrária nem prepotente, mas deve respeitar a minoria, então os compromissos passam a ser meios de convivência política (ATALIBA, 2012, p.191).
O princípio democrático, portanto, não pode ser enfrentado como a dominação da minoria pela maioria política, do contrário, consagrar-se-ia a tirania do número. De maneira inversa, deve-se considerar que a democracia constitui uma regra da maioria legítima, o que equivale dizer que é necessária a satisfação de outras condições além do fator majoritário.
Nesse quadro, o constitucionalismo tem o papel de fazer o contraponto à deliberação majoritária na medida em que a limita, impedindo a elaboração de leis que atentem contra os direitos fundamentais elencados na Carta Magna.
De acordo com a teoria do constitucionalismo, mero procedimento democrático não é o bastante para se alcançar resultados justos, surgindo, portanto, a necessidade de eleger determinados valores substantivos, que serão alçados à condição de direitos fundamentais quando positivados em uma Constituição rígida. Os direitos assim consagrados funcionarão como verdadeiros limites materiais às decisões tomadas no âmbito dos Poderes Legislativo e Executivo.
Neste pórtico, considera-se que os direitos fundamentais refletem a vontade e aspirações de uma sociedade no momento do exercício do Poder Constituinte formando a base do constitucionalismo.
Como já mencionado, os direitos tidos como fundamentais impõem limites materiais aos atos de governo com o fito de proteger e atender aos interesses de todos, não apenas das maiorias eventuais, garantindo o regular funcionamento da democracia.
No entanto, a relação entre os princípios ora em estudo não ocorre de forma pacífica ou sem qualquer contestação, sobretudo quando se trata de garantir os direitos fundamentais dos grupos minoritários, pois, de acordo com o princípio do constitucionalismo, tais direitos não podem sucumbir diante das deliberações da maioria. Desse arranjo é que se depreende uma aparente tensão entre o Estado de Direito, comprometido com a garantia e promoção dos direitos fundamentais, que aqui designamos de constitucionalismo, e a democracia, que pressupõe a prevalência da decisão majoritária.
Vale esclarecer que, segundo o pensamento de Ronald Dworkin, citado por Jorge Reis Novais, os direitos fundamentais são posições jurídicas individuais face ao Estado. Portanto, ser detentor de um direito fundamental significa ter um trunfo contra o Estado - contra o governo democraticamente legitimado. Considerando que esta legitimação se afirma na regra maioritária, pode-se concluir que ter um direito fundamental significa ter um trunfo contra a maioria, ainda que a decisão democrática atenda ao procedimento respectivo (DWORKIN apud NOVAIS, 2006, p.17).
A partir da outorga deste trunfo, emerge uma aparente situação de tensão entre os direitos fundamentais e o poder democrático, conforme já mencionado. A posição apresentada por algumas Constituições, a exemplo da brasileira (art. 1º), portuguesa (art. 2º) e espanhola (art. 1º), é a da harmonização entre os direitos fundamentais e a democracia no conceito de Estado Democrático de Direito.
HABERMAS (2004, p. 252 ss.) explica a integração desses paradigmas evidenciando a existência de uma conexão interna, que se perfaz, em suma, diante da dependência que se constata entre ambos à luz do cenário político traçado pela própria Lei Fundamental.
Sobre tal fenômeno, enuncia Jorge Reis:
O Estado de Direito (direitos fundamentais) exige a democracia, como consequência imposta pelo reconhecimento do princípio da igual dignidade de todas as pessoas que estrutura o edifício moderno Estado de Direito. Por sua vez, do princípio da dignidade da pessoa humana decorrem cooriginariamente exigências de igualdade e liberdade individual que conduzem, de forma directa e necessária, à adopção da regra da maioria como princípio elementar de funcionamento do sistema político, pelo que, à luz dessa construção, se não houver democracia não há verdadeiro Estado de Direito. (NOVAIS, 2006, p. 19).
A permanente tensão entre esses dois polos advém da própria essência da democracia, que consiste na regra da maioria. Como visto, o princípio majoritário legitima eventual pressão a ser exercida pelo poder político, ameaçando, em consequência, os direitos fundamentais.
O debate que circunda a tensão ora tratada ganha força no atual cenário pluralista, que, por ser assim caracterizado, é fértil em confrontos entre a liberdade individual e as decisões tomadas pela maioria, de forma que tal problemática se faz sempre presente nas discussões jurídicas.
A solução para esse conflito poderia ser apresentada sob algumas perspectivas, como o reconhecimento da necessidade de tutela dos direitos (teoria baseada em direitos[1]) associada à preponderância da democracia, dos direitos de participação e do procedimento inerente ao regime; a verificação da tensão e o consentimento da judicial review excepcionalmente, ou seja, somente quando os direitos postos em discussão ameaçarem a higidez do procedimento democrático; e, por fim, a solução da controvérsia à luz da metáfora dos direitos como trunfos (NOVAIS, 2006, p. 26-27).
Esta última alternativa, a qual é defendida pelo jurista português Jorge Reis Novais, nos parece ser a mais adequada para o deslinde do conflito ou mesmo harmonização dos princípios. Diante disto, faremos uma sucinta abordagem de suas considerações a respeito da problemática, visto que não é objeto do presente trabalho acadêmico o esgotamento das discussões referentes a esta tensão.
Para a efetiva proteção dos interesses jusfundamentais é necessário considerar duas premissas básicas que consistem no respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e à inviolabilidade dos direitos fundamentais, impondo sua observância por parte do Estado.
Em apertada síntese, a primeira premissa funda-se no balizamento de liberdades individuais irretocáveis pelas entidades públicas, “[...] daí resulta a inadmissibilidade de a maioria política, mesmo quando formada democraticamente, impor ao indivíduo concepções ou planos de vida com que ele não concorde [...]” (NOVAIS, 2006, p. 31).
No que concerne à indisponibilidade dos direitos fundamentais, devemos considerar que o constitucionalismo aparece como fronteira insuperável imposta ao poder democrático, ainda que se condicione a existência do Estado de Direito à democracia.
Acerca da proteção das minorias e da Constituição, é interessante abordar a analogia feita por Lenio Luiz Streck entre o significado da Carta Política e a Odisseia de Homero. Na literatura grega, Ulisses, ao retornar à Ítaca, estava ciente das inúmeras provações pelas quais iria passar, dentre as quais, o “canto da sereia”. Este sacrifício, “por seu efeito encantador, desviava os homens de seus objetivos e os conduzia a caminhos tortuosos, dos quais dificilmente seria possível retornar”. Ainda assim, Ulisses determinou aos seus subordinados que deveria ser mantido acorrentado ao mastro do navio, mesmo diante de quaisquer ordens que viesse a emitir posteriormente. Ulisses impôs essa restrição a si mesmo, porque sabia que sucumbiria (STRECK et al, 2009, p. 76).
Da mesma forma, “as Constituições funcionam como as correntes de Ulisses, através das quais o corpo político estabelece algumas restrições para não sucumbir ao despotismo das futuras maiorias (parlamentares ou monocráticas)” (STRECK, 2009, p. 76)
É exatamente acerca de eventuais desrespeitos aos direitos fundamentais, notadamente as possíveis pressões a serem exercidas sobre as posições minoritárias, que se revela imprescindível a atuação da jurisdição constitucional, com o fim de proteger e garantir os direitos de todos e de cada um.
2 O NEOCONSTITUCIONALISMO NO SÉCULO XXI
O termo neoconstitucionalismo pretende designar, e nesse sentido é largamente utilizado pela doutrina, o atual estágio do constitucionalismo, o qual possui características peculiares, diversas de outros momentos do direito constitucional.
Importante anotar que as cartas constitucionais dos Estados constituem produtos do fenômeno histórico e humano, não havendo em que se falar na inauguração de uma nova ordem constitucional, no sentido de uma ruptura com os momentos antecedentes. Pelo contrário, o neoconstitucionalismo, além de designar novos contornos ao estado constitucional contemporâneo, revela-se uma construção feita a partir das mudanças e conquistas alcançadas ao longo do tempo.
Antes de adentrarmos na análise das principais características desta fase do constitucionalismo, faz-se mister esclarecer que as posições são, não raras vezes, divergentes acerca das mudanças que o neoconstitucionalismo representa, sendo encaradas com entusiasmo por alguns e alvo de severas críticas por outros. No entanto, não é nossa pretensão estudar detidamente tais posicionamentos, cabendo aqui destacar, sobretudo, a constitucionalização dos direitos fundamentais e o papel do Poder Judiciário na concretização destes.
No período histórico posterior ao segundo pós-guerra, momento de grande aversão aos regimes autocráticos, formou-se um ambiente de reconstitucionalização na Europa e foram promulgadas constituições caracterizadas por grande carga de direitos, princípios e valores, assim como mecanismos aptos a fiscalizá-los, como forma de reagir aos regimes políticos fortemente marcados pelo desrespeito aos direitos fundamentais. A transição do regime ditatorial para o Estado Democrático de Direito no Brasil se deu com a promulgação da Constituição de 1988, marcando o processo de reconstitucionalização brasileiro e atribuindo ao direito constitucional o vértice da pirâmide do ordenamento jurídico pátrio.
O neoconstitucionalismo fundamenta-se nos ideais pós-positivistas, os quais são por vezes bastante heterogêneos, no entanto, é possível retirar traços comuns conformadores de uma cultura jurídica nascente, cujas principais notas podem ser separadas em dois grupos, metodológico-formal e material, conforme divisão sugerida por Ana Paula de Barcellos (2012, p. 2).
O primeiro, responsável pela transição da concepção da Constituição como documento meramente político para a sua compreensão como norma suprema do ordenamento jurídico, compreende os seguintes traços: o reconhecimento da imperatividade das disposições constitucionais, conferindo-lhes o atributo da normatividade; a Constituição como elemento norteador do ordenamento jurídico e condicionante das atividades jurídicas e políticas do Estado, bem como dos particulares horizontalmente; e a irradiação dos preceitos constitucionais sobre os demais ramos do direito, especialmente no que se refere à interpretação destes últimos (BARCELLOS, 2012, p. 2).
Passando para uma breve análise do segundo grupo, percebe-se que este envolve elementos ligados ao conteúdo material das normas constantes das cartas constitucionais contemporâneas, são eles: a positivação de escolhas políticas e valores fundamentais; e alargamento das colisões entre postulados constitucionais, conferindo, desse modo, papel de destaque à ponderação como instrumento predominante na interpretação dos princípios e na solução de eventuais conflitos (BARCELLOS, 2012, p. 4).
De fato, com essa mudança de paradigma e a consequente inserção de valores fundamentais nos textos constitucionais, observa-se a formação de um núcleo intangível que se impõe às maiorias. Essa atenção se dá exatamente pelo fato de que esses elementos são hierarquicamente superiores frente às demais posições do Poder Público, tornando-se incontestáveis e vinculando os grupos políticos quando da tomada de suas decisões.
O fenômeno de introdução de normas de elevado valor axiológico sugere uma modificação do método interpretativo dos ditames constitucionais, pois a mera subsunção deixou de ser plenamente satisfatória, nada obstante isso, é importante dizer que a sua aplicação não foi superada, sendo utilizada na solução da maior parte dos conflitos. Nesta perspectiva, fez-se necessária a adoção de uma interpretação mais ampla das normas constitucionais pelo Poder Judiciário, e, precipuamente, a atribuição de eficácia jurídica a tais valores.
Nesse cenário de larga inserção de princípios abertos na ordem constitucional, percebe-se maior dificuldade quando da sua aplicação justamente pela vagueza que compreendem, mas tal fato não obsta que eles lancem seus reflexos sobre todo o restante do ordenamento jurídico. A consequência disso é materializada no processo de constitucionalização do direito que envolve, sobretudo, a interpretação das demais normas do ordenamento jurídico sob a ótica dos princípios consagrados constitucionalmente.
A propósito, esse novo modelo de supremacia da Constituição, além de abarcar a constitucionalização dos direitos fundamentais, sendo o termo constitucionalização, nesse caso, utilizado para imprimir a intangibilidade desses direitos pelas maiorias eventuais, compreende a proeminência do Poder Judiciário na proteção dos direitos fundamentais, em especial, a expansão da jurisdição constitucional a partir desse aporte teórico.
Visando garantir essa intangibilidade, no atual Estado Democrático de Direito, as leis não podem comprometer a efetivação dos direitos fundamentais, sendo estes verdadeiros “trunfos contra a maioria”, conforme ideia já exposta, de modo que essa mesma maioria não é considerada apta, por motivo de ordem lógica, a verificar a existência de ações ou omissões contrárias aos interesses jusfundamentais consagrados constitucionalmente.
No afã de permitir que eventuais pressões tendentes a ferir os direitos fundamentais sejam apreciadas pelo Poder Judiciário, o neoconstitucionalismo imprime nova compreensão acerca da separação dos poderes, a qual não é vista com excessiva rigidez, ao contrário, permite a atuação mais flexível dos mesmos. Em relação ao Poder Judiciário, essa ideia possibilita maior aceitação do ativismo judicial que visa a garantir e efetivar os valores cristalizados na Constituição.
Corroborando a importância atribuída ao Judiciário neste cenário, Daniel Sarmento afirma:
O grande protagonista das teorias neoconstitucionalistas é o juiz. O direito analisado sobretudo a partir de uma perspectiva interna, daquele que participa dos processos que envolvem a sua interpretação e aplicação, relegando-se a um segundo plano a perspectiva externa, do observador [...] O juiz é concebido como o guardião das promessas civilizatórias dos textos constitucionais [...]. (SARMENTO, 2009, p. 21).
Como se vê, a constitucionalização do direito, sendo esta expressão agora entendida como “o efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico” (BARROSO, 2009, p. 62), condiciona todas as demais normas do ordenamento aos valores contidos na Constituição. Nesse quadro, é evidente que esse fenômeno causa repercussões também no âmbito da atuação dos três Poderes. Quanto aos Poderes Legislativo e Executivo, “impõe deveres negativos e positivos de atuação, para que observem os limites e promovam os fins ditados pela Constituição” (BARROSO, 2009, p. 71). Entretanto, o destaque é dado ao Poder Judiciário no exercício da jurisdição constitucional, o que será visto mais detidamente a seguir.
3 O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA TUTELA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A FUNÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DO STF
Como visto, os direitos fundamentais possuem o fim de limitar o poder do Estado em prol de seus destinatários, funcionando como obstáculos materiais à deliberação democrática.
Em relação à eficácia dos direitos fundamentais, é de se destacar a expressão “aplicação imediata” cunhada na própria Constituição Federal[2], denotando que todos os direitos e garantias individuais ali presentes possuem aplicabilidade direta e imediata.
À luz de tal dispositivo constitucional, são as palavras dos Professores Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins[3]:
Essa norma prescreve, em primeiro lugar, que os direitos fundamentais vinculam todas as autoridades do Estado, incluindo o Poder Legislativo. Este último, não pode restringir um direito fundamental de forma não permitida pela própria Constituição, sob o pretexto que detém a competência e a legitimação democrática de criar normas gerais e geralmente vinculantes. Em segundo lugar, a referida norma determina que os titulares dos direitos fundamentais não precisam aguardar autorização, concretização ou outra determinação estatal para poder exercer seus direitos fundamentais. Se o legislador for omisso em regulamentar e/ou limitar um direito, este poderá ser exercido imediatamente em toda a extensão que a Constituição Federal define, sendo o Poder Judiciário competente para apreciar casos de sua violação. (DIMOULIS; MARTINS, 2010, p. 90).
Ainda acerca dos direitos fundamentais, nos parece crível retomar a ideia destes direitos como trunfos. Explicando a metáfora estabelecida por Dworkin, Jorge Reis Novais expõe que direito como trunfo consiste na atribuição de um status baseado “no direito natural a igual consideração e respeito que o Estado deve a cada indivíduo”. Essas posições caracterizam-se como “trunfos contra preferências externas”, assegurando que os detentores destes direitos possam determinar-se de acordo com as suas próprias vontades (NOVAIS, 2006, p. 28).
Nesse contexto, o princípio da dignidade da pessoa humana se sobressai, constituindo a base da metáfora acima explorada, pois a partir dele extrai-se a ideia de que cada indivíduo deve desenvolver sua personalidade livremente, ainda que as suas escolhas não sejam consideradas as mais adequadas aos olhos da maioria.
Do exposto, vislumbra-se o importante papel desempenhado pelo Poder Judiciário na tutela dos direitos fundamentais, tendo em vista que estes últimos nem sempre são atendidos e/ou respeitados satisfatoriamente pelo Poder Público.
Todavia, a revisão judicial não se encontra livre de críticas, sendo constantemente suscitada a polêmica questão sobre a crescente atuação do Poder Judiciário no seio social e político, designada pelos termos judicialização e ativismo judicial. As controvérsias giram em torno da suposta substituição das decisões que caberiam, a priori, aos Poderes Legislativo e Executivo, invocando-se a ausência de outorga de competência legislativa ao Poder Judiciário. Tais críticas podem ser resumidas nas palavras do Professor Ives Gandra Martins:
Por outro lado, a fim de não permitir que o Judiciário se transformasse em legislador positivo, foi determinado que, na ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º), uma vez declarada OMISSÃO DO CONGRESSO, o STF comunicasse ao parlamento o descumprimento de sua função constitucional, sem, entretanto, fixar prazo para produzir a norma e sem sanção, se não a produzisse. NEGOU-SE, assim, ao PODER JUDICIÁRIO, a competência para legislar. (destaques originais)
E continua:
Esse ativismo judicial, que fez com que a Suprema Corte substituísse o Poder Legislativo, eleito por 130 milhões de brasileiros – e não por um homem só -, é que entendo estar ferindo o equilíbrio dos Poderes e tornando o Poder Judiciário o mais importante dos três, com força para legislar, substituindo o único poder que reflete a vontade da nação, pois nele situação e oposição estão representadas. (MARTINS, 2012, p. 01).
Nada obstante as valiosas críticas tecidas pelo Professor Ives Gandra Martins, não se pode perder de vista a mudança de paradigma concernente à inserção em massa dos direitos fundamentais nas cartas constitucionais contemporâneas, fato que suplica uma maior atuação do Poder Judiciário e a confere relevo diante da apresentação de questões de difícil entendimento, face à ampla carga axiológica que os valores fundamentais carregam.
Ademais, constata-se que a submissão das questões ao julgamento do Poder Judiciário apenas ocorre quando não foram devidamente atendidas pelo Congresso Nacional. No caso dos direitos fundamentais, a sua concretização não pode ficar ao alvedrio do parlamento, fato que, por si só, já justifica a manifestação do Judiciário quando provocado. Sob esta perspectiva, tolher o exercício desses direitos configuraria grave ofensa à Constituição, assim como ao Estado Democrático de Direito.
Para não nos restringirmos ao campo bibliográfico, cabe dar um enfoque jurisprudencial à questão, colacionando importante julgado do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a união estável homoafetiva no ordenamento pátrio, quando do histórico julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e da Arguição de Preceito Fundamental nº 132:
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. [...] 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. [...] Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. [...] 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. [...] Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. [...] Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas. 4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. [...] 5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição. 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. [...]
(ADI 4277, Ministro Relator Carlos Ayres Britto, Tribunal Pleno, Data de Julgamento: 05/05/2011, Data de Publicação: DJ 14/10/2011, grifos acrescidos)
Na apreciação da mencionada ação abstrata, a união entre pessoas do mesmo sexo foi reconhecida como entidade familiar em consonância com os direitos fundamentais por unanimidade, a despeito da ausência de regulamentação da matéria pelo legislador infraconstitucional, possibilitando aos casais homoafetivos o reconhecimento oficial de suas uniões, incluindo os efeitos patrimoniais e extrapatrimoniais decorrentes desta declaração. Vislumbra-se, portanto, a essencialidade de decisões desse porte, tendo em vista que a concretização dos direitos constitucionalmente tutelados não pode submeter-se à inércia dos poderes majoritários[4], mormente quando a questão referir-se aos direitos de titularidade de minorias historicamente estigmatizadas, como é o caso dos homossexuais.
Não compartilhamos do pensamento de que a atuação do Poder Judiciário acarretaria riscos para a legitimidade democrática. Diversamente, atentando-se para o fato de que esta atuação encontra-se adstrita à aplicação das leis e da Constituição, percebe-se que “não atuam eles por vontade política própria, mas como representantes indiretos da vontade popular”. Embora a interpretação de valores com grande carga axiológica, como os constantes na Lei Maior, possa atingir quase um nível normativo, tal não se impõe desde que o legislador os regulamente (BARROSO, 2012, p.18).
Sob a ótica do neoconstitucionalismo, a análise da jurisdição constitucional deixa de se ater aos aspectos meramente processuais e transfere-se para a seara da tensão entre o princípio democrático e o constitucionalismo analisada anteriormente. Ao situar a jurisdição constitucional nesse plano, levanta-se o questionamento da legitimação democrática do controle de constitucionalidade.
Tendo em vista que tal controle está previsto constitucionalmente a discussão não circunda a existência ou não do mesmo e sim os limites em que este deve ser exercido, o que dará os contornos do exercício do ativismo judicial. Relevante, também, destacar o embate entre o substancialismo e o procedimentalismo nesta mesma perspectiva.
Em apertada síntese, esta última corrente enuncia que não compete à jurisdição constitucional velar pelos valores substantivos, mas somente resguardar os elementos atinentes ao regular funcionamento da democracia. Noutro giro, os substancialistas defendem que cabe à jurisdição constitucional tutelar aqueles valores cuja essencialidade é traço característico, visto que foram assim consagrados pela Carta Constitucional. A saber, esta última ideia é a que mais se alinha com o atual momento do constitucionalismo.
O advento da Constituição Federal de 1988 consagrou direitos fundamentais de variadas ordens (individuais, políticos, sociais e difusos) e, além disso, realçou a atuação do Poder Judiciário, como já destacado, inserindo o princípio da inafastabilidade da apreciação judicial no rol dos direitos fundamentais, além de fortalecer e ampliar os mecanismos de controle de constitucionalidade e criar novos writs constitucionais.
Além disso, deve-se considerar a influência exercida pela teoria substantiva norte-americana, no qual impera o judicial review, garantindo o efetivo controle da Constituição por parte do Poder Judiciário e impedindo a permanência de leis fruto do poder legiferante quando incompatíveis com os valores constitucionalmente assegurados. É de salutar importância esclarecer que a democracia não exige que o Poder Legislativo seja soberano, de outro modo, requer que seja resguardada a liberdade de todos os cidadãos, bem como os direitos fundamentais de todos indistintamente.
Dessa forma, percebe-se que a atividade judicante ativista, especialmente a desempenhada pela jurisdição constitucional na busca pela efetiva tutela dos direitos fundamentais, está em perfeita simetria com o constitucionalismo e, vai além, vive em harmonia com o princípio democrático.
Nesse sentido, é a lição de André Ramos Tavares:
A existência da justiça constitucional, e de um Tribunal específico designado para esse mister, assume hoje, mais do nunca, os anseios verdadeiramente democráticos da sociedade contemporânea, desempenhando importante papel na defesa do pluralismo, das minorias, e no controle do Poder Público de uma maneira geral, máxime quando relaciona-se com cidadãos. Mais ainda, pode-se dizer que a existência de uma jurisdição constitucional e de um Tribunal Constitucional são condições de credibilidade de qualquer regime constitucional democrático. (TAVARES, 1998, p. 15)
No caso brasileiro, compete ao Supremo Tribunal Federal o desempenho da jurisdição constitucional, que permite a interpretação do direito infraconstitucional à luz da Constituição, a solução de casos concretos através da aplicação direta da Lei Maior e o controle de constitucionalidade das leis com ela incompatíveis.
De acordo com o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, o Supremo Tribunal Federal exercerá a verificação de compatibilidade entre as leis e a Constituição em sede de ações de sua competência originária, através da apreciação de recursos extraordinários, desde que demonstrada a repercussão geral, bem como das ações diretas (ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade e ação de descumprimento de preceito fundamental).
A sistemática de jurisdição constitucional adotada com a promulgação da Constituição de 1988 propiciou a consolidação do processo de judicialização da política, especialmente porque atribuiu legitimidade aos partidos políticos com representação no Congresso Nacional, às representações nacionais da sociedade civil organizada (associações) e às instituições dos Estados-membros, dentre outras, para suscitar o Supremo Tribunal Federal. Diante dessa legitimação, as minorias parlamentares frequentemente recorrem à jurisdição constitucional visando à discussão e resolução da controvérsia sedimentada no âmbito do Poder Legislativo à luz da interpretação conforme a Constituição.
Nessa esteira, manifestou-se o Supremo Tribunal Federal ao julgar o Mandado de Segurança nº 24.831/DF, de relatoria do Ministro Celso de Mello, no sentido de defender organizações minoritárias na esfera do Congresso Nacional contra medidas perpetradas pelo bloco majoritário tendentes a impedir o exercício de direitos aventados na Constituição Federal. Segue a ementa do julgado referido[5]:
COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO - DIREITO DE OPOSIÇÃO - PRERROGATIVA DAS MINORIAS PARLAMENTARES - EXPRESSÃO DO POSTULADO DEMOCRÁTICO - DIREITO IMPREGNADO DE ESTATURA CONSTITUCIONAL - INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO PARLAMENTAR E COMPOSIÇÃO DA RESPECTIVA CPI - TEMA QUE EXTRAVASA OS LIMITES "INTERNA CORPORIS" DAS CASAS LEGISLATIVAS - VIABILIDADE DO CONTROLE JURISDICIONAL - IMPOSSIBILIDADE DE A MAIORIA PARLAMENTAR FRUSTRAR, NO ÂMBITO DO CONGRESSO NACIONAL, O EXERCÍCIO, PELAS MINORIAS LEGISLATIVAS, DO DIREITO CONSTITUCIONAL À INVESTIGAÇÃO PARLAMENTAR (CF, ART. 58, § 3º) - MANDADO DE SEGURANÇA CONCEDIDO. CRIAÇÃO DE COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO: REQUISITOS CONSTITUCIONAIS. - O Parlamento recebeu dos cidadãos, não só o poder de representação política e a competência para legislar, mas, também, o mandato para fiscalizar os órgãos e agentes do Estado, respeitados, nesse processo de fiscalização, os limites materiais e as exigências formais estabelecidas pela Constituição Federal. [...] O ESTATUTO CONSTITUCIONAL DAS MINORIAS PARLAMENTARES: A PARTICIPAÇÃO ATIVA, NO CONGRESSO NACIONAL, DOS GRUPOS MINORITÁRIOS, A QUEM ASSISTE O DIREITO DE FISCALIZAR O EXERCÍCIO DO PODER. [...] A CONCEPÇÃO DEMOCRÁTICA DO ESTADO DE DIREITO REFLETE UMA REALIDADE DENSA DE SIGNIFICAÇÃO E PLENA DE POTENCIALIDADE CONCRETIZADORA DOS DIREITOS E DAS LIBERDADES PÚBLICAS. [...] A opção do legislador constituinte pela concepção democrática do Estado de Direito não pode esgotar-se numa simples proclamação retórica. [...] Em uma palavra: ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constituição da República. - O direito de oposição, especialmente aquele reconhecido às minorias legislativas, para que não se transforme numa promessa constitucional inconseqüente, há de ser aparelhado com instrumentos de atuação que viabilizem a sua prática efetiva e concreta. - A maioria legislativa, mediante deliberada inércia de seus líderes na indicação de membros para compor determinada Comissão Parlamentar de Inquérito, não pode frustrar o exercício, pelos grupos minoritários que atuam no Congresso Nacional, do direito público subjetivo que lhes é assegurado pelo art. 58, § 3º, da Constituição e que lhes confere a prerrogativa de ver efetivamente instaurada a investigação parlamentar em torno de fato determinado e por período certo. O CONTROLE JURISDICIONAL DOS ATOS PARLAMENTARES: POSSIBILIDADE, DESDE QUE HAJA ALEGAÇÃO DE DESRESPEITO A DIREITOS E/OU GARANTIAS DE ÍNDOLE CONSTITUCIONAL. - O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República, ainda que essa atuação institucional se projete na esfera orgânica do Poder Legislativo. - Não obstante o caráter político dos atos parlamentares, revela-se legítima a intervenção jurisdicional, sempre que os corpos legislativos ultrapassem os limites delineados pela Constituição ou exerçam as suas atribuições institucionais com ofensa a direitos públicos subjetivos impregnados de qualificação constitucional e titularizados, ou não, por membros do Congresso Nacional. [...]
(MS 24831, Ministro Relator Celso de Melo, Tribunal Pleno, Data de Julgamento: 22/06/2005, Data de Publicação: DJ 04/08/2006).
O Supremo Tribunal Federal, na posição de garante da Lei Fundamental, passou a assumir o controle dos abusos das maiorias eventuais com o fim de resguardar os direitos das minorias. Essa responsabilidade compõe o caráter contramajoritário desempenhado pela Corte Suprema brasileira.
Essa característica é peculiarmente desenvolvida em sede de controle abstrato de constitucionalidade, considerando que ao proferir uma decisão tendente a expurgar do ordenamento jurídico uma lei, a qual resultou da deliberação do Poder Legislativo, incompatível com a Constituição, o Supremo Tribunal Federal está interferindo claramente no processo político. Em síntese, ao invalidar a posição do poder legiferante, o STF está constrangendo a atuação das maiorias eventuais e, por conseguinte, assegurando a intangibilidade das disposições constitucionais.
Portanto, a função contramajoritária faz-se imprescindível porque as deliberações legislativas emanam da aprovação da maioria e, embora essa seja a lógica adotada no regime democrático, como já ressaltado reiteradamente, isto não é o suficiente para que se mantenha intacto o compromisso com a Constituição. Com isso, o controle de constitucionalidade figura como o principal instrumento para a garantia da efetivação dos direitos fundamentais das minorias diante do conflito entre os direitos destas e a regra da maioria, na medida em que esse embate será julgado por um tribunal imparcial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
À luz do exposto, pode-se extrair que a adoção da regra da maioria, emanada do regime democrático, não se presta a legitimar toda e qualquer deliberação daí advinda, pois no atual Estado Democrático de Direito há limites traçados constitucionalmente que não podem ser violados sob o manto da regra do número.
Percebe-se que o regime democrático não gravita em torno unicamente do princípio majoritário, restando incontestável que existem outros princípios e direitos a serem tutelados.
Em se tratando de Estado Democrático de Direito, nenhum poder é soberano. O que deve sempre prevalecer são os valores e direitos fundamentais consagrados na Constituição e, por isso, os abusos e casuísmos dos legisladores e administradores devem ser eliminados através do controle realizado pelo Poder Judiciário quando do exercício de sua função contramajoritária, seguindo a lógica do neoconstitucionalismo.
Assim, o princípio contramajoritário caracteriza-se como uma exceção à regra da maioria, pois busca impedir os excessos praticados através das decisões tomadas democraticamente, mas que não se coadunem com os valores e interesses constitucionais e desrespeitem os direitos fundamentais.
Por fim, conclui-se que o papel preponderante do Supremo Tribunal Federal consiste em garantir os valores constitucionais, além de possuir a relevante função contramajoritária indispensável para que se assegure os direitos fundamentais das minorias ante a inexistência ou insuficiência das decisões majoritárias nesse sentido.
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[1] Ainda que essa teoria não seja a adotada no presente trabalho, faz-se mister analisar as ponderações feitas pelo jurista português Jorge Novais acerca do pensamento de Jeremy Waldron: “Note-se, todavia, que a posição de WALDRON é algo especial. Ele reconhece a separação entre direitos de liberdade pessoal e direito a igual participação, mas sustenta a existência de uma congruência natural entre democracia e direitos fundamentais (op. cit., pág. 337), procedendo a uma reconstrução que elimina teoreticamente o conflito ou a tensão entre direitos fundamentais e princípio democrático. É que para WALDRON (op. cit., págs. 295 ss.) nunca há verdadeiramente conflito entre a decisão da maioria e os direitos fundamentais: o que pode existir e, de facto, segundo ele, existe sempre, é um desacordo sobre o conteúdo e o alcance dos direitos fundamentais. Então, a maioria entenderá que não está a violar os direitos, porque estes não terão o alcance ou o conteúdo que a minoria invoca, enquanto que esta pensará exactamente o inverso. Como, na teoria da autoridade que propõe, a arbitragem desse desacordo cabe à deliberação da representação popular segundo a regra da maioria, o conflito nunca se chega a verificar. Nestes termos puramente teoréticos, a maioria é estruturalmente incapaz de violar os direitos fundamentais: ou entende que não houve violação porque o direito não tem o conteúdo que a maioria lhe atribui e mantém, consequentemente, a decisão de restrição (e, então, isso significa que foi o próprio resultado da arbitragem a determinar não existir violação) ou redelibera no sentido de não restrição (e, logo, a violação não se chega a concretizar). Assim, a maioria nunca viola os direitos fundamentais, quando muito, viola aquilo que a minoria (ou uma elite jurisdicional) diz que são os direitos fundamentais, discrepância esta que acaba resolvida pela regra da maioria, já que o maioritarismo participativo é, precisamente, um princípio de autoridade que guia a tomada de decisões sociais nas circunstâncias de desacordo sobre o conteúdo e alcance dos direitos (op. cit., pág. 295).” (WALDRON apud NOVAIS, 2006, p. 26-27).
[2] “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (Art. 5º, §1º, da CF).
[3] Cabe anotar a ressalva feita por estes autores no tocante aos direitos sociais e direitos difusos, os quais, para eles, não possuem a mesma aplicabilidade direta e imediata inerente aos demais direitos fundamentais, visto que os primeiros consistem em pretensões dos indivíduos perante o Estado, e os segundos não possuem seus delineamentos de maneira satisfatória. Portanto, por não definirem exatamente os limites de seu exercício, estas normas não são aplicáveis imediatamente. (DIMOULIS; MARTINS, 2010, p. 91).
[4] Em relação ao suprimento de omissão legislativa pelo Supremo Tribunal Federal, cf. MI 369/DF, rel. org. Min. Sydney Sanches, rel. p/ o acórdão Min. Francisco Rezek. Data de Julgamento: 19/08/1992, Tribunal Pleno, Data de Publicação: Diário de Justiça do dia 26/02/1993; MI 95/RR, rel. orig. Min. Carlos Velloso, rel. p/ o acórdão Min. Sepúlveda Pertence. Data de julgamento: 07/10/1992, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 18/06/1993.
[5] No mesmo sentido, ver MS 24.849/DF e MS 26.441/DF, ambos de relatoria do Ministro Celso de Mello.
Analista Judiciária, área judiciária, no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Clarissa Abrantes. O papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal e a efetivação dos direitos fundamentais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 abr 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46349/o-papel-contramajoritario-do-supremo-tribunal-federal-e-a-efetivacao-dos-direitos-fundamentais. Acesso em: 22 nov 2024.
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