Resumo: A mutação constitucional consiste num processo informal de modificação da norma sem haver qualquer alteração ou modificação do seu texto. Assim, por gerar, indubitavelmente, insegurança jurídica, é necessário entender como ocorre, os mecanismos e métodos utilizados para seu estudo, traçando os limites e os contornos da exegese que o jurista poderá proceder, sem que incorra em uma mutação constitucional inconstitucional, chamada por J. J. Gomes Canotilho de mutação constitucional exogenética. Por tratar-se de tema de extrema relevância, o presente artigo tem o desiderato de tecer breves considerações acerca do instituto da mutação, evidenciando os casos já reconhecidos pela doutrina e sua aplicação pelos Tribunais Superiores do País, em especial pelo STF.
Palavras-Chave: Mutação Constitucional. Conceito. Mecanismos Formais e Informais de Modificação da Constituição. Limites. Aplicação na Doutrina e na Jurisprudência dos Tribunais Superiores.
Abstract: The constitutional mutation is an informal process of standard change without having any alteration or modification of the text. Thus, by end generating undoubtedly legal uncertainty, it is necessary to understand how occurs, the mechanisms and methods used for their study, tracing the limits and contours of exegesis that the lawyer may proceed without incurring an unconstitutional constitutional mutation, called by J. J. Gomes Canotilho of exogenética constitutional mutation. Because it is extremely important topic, this article is the desideratum brief considerations about the mutation of the institute, highlighting the cases already recognized by doctrine and its application by the Superior Courts of the country, especially by the Supreme Court.
Keywords: Constitutional Change. Concept. Formal Mechanisms and Informal of the Constitution Amendment. Limits. Application in Doctrine and Jurisprudence of the Superior Courts.
Sumário: 1. Introdução. 2. Mecanismos Formais e Informais de Alteração da Constituição. 3. Conceito de Mutação Constitucional. 4. Mecanismos ou Meios de Mutação Constitucional. 5. Limites da Mutação Constitucional. 6. Exemplos de Mutação Constitucional. 7. Conclusão. 8. Referências.
1 – INTRODUÇÃO:
Não obstante sejam diversos os conceitos de Constituição, nos dias coevos, doutrinariamente, a mesma é concebida como sendo um importante documento normativo que disciplinará o modo pelo qual se estabelecerá as estruturas básicas do Estado, dispondo sobre os poderes públicos, seus órgãos, a distribuição de competência, a limitação do poder, os direitos e garantias fundamentais dos seus cidadãos que serão resguardados, dentre outras funções.
Nesse sentido, a Constituição é entendida com a Lei Maior de um país, a Lei Mãe, a Lei Fundamental de uma sociedade politicamente organizada que será disciplinada por esse importantíssimo documento político-normativo chamado Constituição.
Sob o prisma formal, a Constituição é um texto escrito decorrente do exercício do poder constituinte originário, que nos países democráticos, em regra, manifesta-se por meio de uma Assembleia Nacional Constituinte legitimamente eleita pelo povo, detentor do poder, para a elaboração da Constituição.
Sendo assim, por ser um documento solene, formal, assume certo viés de estabilidade, já que a Constituição é elaborada para vigorar, a princípio, por um tempo indeterminado, sem que, no entanto, isso se caracterize como sendo algo estático, perene, permanente e imutável.
Frise-se, inclusive, que é essa própria estabilidade inerente à Constituição que garante, ou ao menos favorece, que haja segurança jurídica nas relações travadas entre particulares e entre o poder público e os particulares, ainda que isso não signifique, como dito acima, a consagração de uma Constituição imutável.
Esse é, portanto, o entendimento da literatura especializada que disserta sobre o assunto, senão vejamos:
A constituição contém o estatuto jurídico fundamental de uma sociedade, consubstanciando, assim, toda a estrutura do respectivo Estado. Daí porque se presume seja ela dotada de estabilidade, exigência indispensável à segurança jurídica, à manutenção das instituições e ao respeito aos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.
Contudo, observa-se que essa estabilidade não pode significar jamais a imutabilidade das normas constitucionais.
Com efeito, o ordenamento jurídico constitucional, além de ser dotado de caráter estático, apresenta, simultaneamente, caráter dinâmico. A realidade social está em constante evolução, e, à medida que isso acontece, as exigências da sociedade, destinatária das normas constitucionais, vão se modificando, de forma que o direito não permanece alheio a esta situação[1].
Com efeito, mister se faz que a Constituição esteja em consonância com a realidade social, sob pena de se instaurar um sistema normativo-jurídico que em nada atende aos clamores sociais.
Nesse sentido, a Constituição deve ser compatível com a realidade, ou seja, com aquilo que Ferdinand Lassale, em sua obra “O que é uma Constituição?”, chamou de “fatores reais de poder”, sem, no entanto, desprender-se do seu poder de alterar ou de conformar a realidade sócio-política, consoante doutrina de Konrad Hesse, sustentada na obra “A Força Normativa da Constituição”.
Com efeito, como a realidade social é cambiante, havendo uma constante alteração de valores e princípios com o passar do tempo, é de suma importância que a Constituição, mesmo estável, permita uma interpretação apta a sustentar, num Estado Democrático de Direito, a salvaguarda de direitos lidos ao seu tempo, para que a norma posta tenha efetividade e seja de fato sufragada pelo organismo social.
Referido entendimento é defendido, em explicação lapidar, por Edézio Muniz de Oliveira, senão vejamos:
O Direito existe para regular o comportamento dos indivíduos dentro de uma sociedade segundo valores preestabelecidos e vigentes à época. Acontece que os grupos sociais são formados por indivíduos de opinião que se altera, uma vez que os elementos intrínsecos e extrínsecos alteram-se constantemente acarretando uma mudança de valores com o passar do tempo. Faz parte da natureza essa realidade cambiante, modificando-se a todo instante pelo efeito do tempo. Aquilo que consideramos como válido em determinada situação poderá ter uma outra conotação em oportunidade diversa. São os “pontos-de-vista” que mudam com o tempo. Novos conceitos e opiniões são introduzidos e passa-se a ter nova concepção das coisas. Já não somos os mesmos. As coisas já não são as mesmas. Como disse Heráclito em seus ensaios sobre dialética: “um homem não toma banho duas vezes no mesmo rio”. Pois da segunda vez não será o mesmo homem e nem estará se banhando no mesmo rio[2].
Mesmo possuindo a característica da estabilidade e sendo vocacionada a perdurar, sem prazo determinado de validade, a interpretação a ser dada à Constituição deverá levar em consideração eventuais alterações do cenário fático e jurídico, de modo a permitir sua adequada aplicação, até porque é justamente essa flexibilidade exegética que lhe confere relativa estabilidade. Essa é a doutrina, inclusive, do Procurador Federal Ronaldo Guimarães Gallo, senão vejamos:
Portanto, fixemos: é importante que as constituições não tenham termo final de validade, são vocacionadas à continuidade como uma das formas de se assegurar a estabilidade e segurança social; a continuidade que impregna as constituições não implica em impossibilidade de mudança, ao contrário, é a viabilidade de alterar normas constitucionais, mantendo-se o texto em vigor, que confere a necessária estabilidade ao sistema[3].
Ressalta-se, por fim, que o indesejado fenômeno da fossilização da Constituição, concebido como a imutabilidade do sistema constitucional, com os vivos sendo regidos pelo direito dos mortos, tão combatido pela doutrina, será afastado pelo regramento normativo que permite a alteração e a modificação da Constituição, seja de modo formal, pelas emendas ou revisões, ou de modo informal, por meio da mutação constitucional.
Procuraremos demonstrar, na presente obra monográfica, como ocorre esse processo informal de modificação da Constituição, concebido por mutação constitucional, apresentando o conceito, os meios como ocorre, os limites impostos pelo ordenamento, exemplificando à luz da doutrina e da jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal – STF, sem, contudo, ter a pretensão de encerrar o debate ou pôr fim às controvérsias.
Objetiva-se, tão-somente, acalorar o debate e contribuir, a sua maneira, para a difusão do conhecimento técnico-jurídico já desenvolvido sobre o fenômeno da mutação, sem olvidar de tecer comentário crítico atinente ao referido tema objeto de nosso estudo.
2 – MECANISMOS FORMAIS E INFORMAIS DE ALTERAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Consoante reiterado entendimento doutrinário acerca da matéria, a Constituição poderá ser alterada ou modificada por métodos formais ou informais, atendendo os limites colocados pelo ordenamento jurídico. Nesse sentido, como métodos formais temos as emendas constitucionais e as revisões constitucionais, ao passo que como método informal teremos o objeto principal dessa obra monográfica, qual seja, a mutação constitucional.
Nesse sentido, inclusive, é a lição do ilustre doutrinador constitucionalista Pedro Lenza, senão vejamos:
Colocadas essas premissas, o sentido da Constituição interpretada pode se mostrar inadequado. Nessas circunstâncias, dentro dos limites colocados pelo Constituinte originário, poderão ser observadas alterações tanto do ponto de vista formal (reforma constitucional) como do informal (mutações constitucionais)[4].
No mesmo sentido, é a doutrina de Paulo Gustavo Gonet Branco, senão vejamos:
O poder de reforma – expressão que inclui tanto o poder de emenda como o de revisão do texto (Art. 3º do ADCT) – é, portanto, criado pelo poder constituinte originário, que lhe estabelece o procedimento a ser seguido e limitações a serem observadas. O poder constituinte de reforma, assim, não é inicial, nem incondicionado e nem ilimitado. É um poder que não se confunde com o poder originário, estando subordinado a ele. Justamente a distinção entre poderes constituinte originário e derivado justifica, conforme o magistério de Gilmar Ferreira Mendes, o estabelecimento de restrições a este[5].
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF também manifesta-se de forma condizente com o exposto acima, senão vejamos:
Emenda ou revisão, como processos de mudança na Constituição, são manifestações do poder constituinte instituído e, por sua natureza, limitado. Está a ‘revisão’ prevista no art. 3º do ADCT de 1988 sujeita aos limites estabelecidos no § 4º e seus incisos do art. 60 da Constituição. O resultado do plebiscito de 21 de abril de 1933 não tornou sem objeto a revisão a que se refere o art. 3º do ADCT. Após 5 de outubro de 1993, cabia ao Congresso Nacional deliberar no sentido da oportunidade ou necessidade de proceder à aludida revisão constitucional, a ser feita ‘uma só vez’. As mudanças na Constituição, decorrentes da ‘revisão’ do art. 3º do ADCT, estão sujeitas ao controle judicial, diante das ‘cláusulas pétreas’ consignadas no art. 60, § 4º e seus incisos, da Lei Magna de 1988. (ADI 981-MC, rel. min. Néri da Silveira, julgamento em 17-3-1993, Plenário, DJ de 5-8-1994).
A alteração da Constituição, pela via formal, poderá se dar, como dito acima, por meio de emendas à constituição ou por meio de revisão constitucional. Referidas alterações são frutos do poder constituinte derivado reformador e revisional, que se contrapõem ao poder constituinte originário, sendo este conceituado pela doutrina clássica com um poder ilimitado juridicamente e incondicionado.
O poder constituinte derivado reformador, por seu turno, caracterizado por ser limitado, condicionado e secundário, materializa-se por meio de emendas constitucionais, as quais obedecem a um processo legislativo para que possam alterar o texto constitucional, que nas Constituições rígidas mostra-se bastante solene e mais dificultoso do que as alterações ou revogações da legislação infraconstitucional.
Assim, consoante leciona Pedro Lenza, a “reforma constitucional seria a modificação do texto constitucional, através dos mecanismos definidos pelo poder constituinte originário (emendas), alterando, suprimindo, ou acrescentando artigos ao texto original”[6]. Essas são, portanto, as finalidades das emendas constitucionais, quais sejam, alterar, suprimir ou acrescentar artigos ao texto constitucional.
Há, no entanto, alguns impedimentos e restrições impostos ao poder de reforma, materializado pelas emendas. São limitações temporais, circunstanciais e materiais, cuja observância é obrigatória. Na Constituição brasileira de 1988, referidas limitações encontram-se delineadas no Artigo 60, senão vejamos:
Art. 60, da Constituição: A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;
II - do Presidente da República;
III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.
§ 1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.
§ 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.
§ 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem.
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
§ 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.
A outra dimensão do poder de reforma, além das emendas, manifesta-se pela possibilidade de haver, se assim o desejar o constituinte originário, a revisão constitucional, tal como prevista na Constituição brasileira de 1988, nos Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, senão vejamos:
Art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral.
Além das emendas e da revisão, métodos formais de alteração da Constituição, há ainda a possibilidade de ocorrência da mutação constitucional, constituindo-se num método informal de alteração da Constituição, em que não haverá qualquer modificação em seu texto.
Referido entendimento é sustentado, inclusive, pela doutrina, conforme depreende-se da lição lapidar do Pedro Lenza sobre o assunto, senão vejamos:
As mutações, por seu turno, não seriam alterações ‘físicas’, ‘palpáveis’, materialmente perceptíveis, mas sim alteraçõe no significado e sentido interpretativo de um texto constitucional. A transformação não está no texto em si, mas na interpretação daquela regra enunciada. O texto permanece inalterado.
As mutações constitucionais, portanto, exteriorizam o caráter dinâmico e de prospecção das normas jurídicas, por meio de processos informais. Informais no sentido de não serem previstos dentre aquelas mudanças formalmente estabelecidas no texto constitucional[7].
São esses, portanto, os mecanismos formais e informais de alteração ou modificação da Constituição, sendo a mutação o objeto de nosso estudo.
3 – CONCEITO DE MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL:
O fenômeno da mutação constitucional decorre, basicamente, da evolução da situação de fato, ou seja, das alterações sócio-políticas havidas na sociedade, que transmutam a realidade social, bem como da necessidade premente de atualizar a aplicação da norma com os valores vigentes do seu tempo, ou seja, da releitura dos institutos jurídicos à luz das transformações sofridas pelo organismo social, de modo a efetivar a aplicação da norma de forma equânime e compatível com a realidade.
Com efeito, a mutação constitucional consiste num processo informal de alteração da Constituição, onde não haverá modificação, alteração ou revogação da norma, a qual permanecerá intacta, havendo tão-somente alteração do seu sentido, ou seja, o texto permanece o mesmo, a mudança será da norma, entendida como a interpretação a ser extraída do texto.
Nesse mesmo sentido é a doutrina do ilustre Paulo Gustavo Gonet Branco, senão vejamos:
O estudo do poder constituinte de reforma instrui sobre o modo como o Texto Constitucional pode ser formalmente alterado. Ocorre que, por vezes, em virtude de uma evolução na situação de fato sobre a qual incide a norma, ou ainda por força de uma nova visão jurídica que passa a predominar na sociedade, a Constituição muda, sem que as suas palavras hajam sofrido modificação alguma. O texto é o mesmo, mas o sentido que lhe é atribuído é outro. Como a norma não se confunde com o texto, repara-se, aí, uma mudança da norma, mantido o texto. Quando isso ocorre no âmbito constitucional, fala-se em mutação constitucional[8].
A doutrina do insigne Inocêncio Mártires Coelho coaduna-se com o exposto acima. Vejamos:
Assentadas essas premissas, as mutações constitucionais nada mais são que as alterações semânticas dos preceitos das constituições, em decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação...
Vistas a essa luz, portanto, as mutações constitucionais são decorrentes – nisso residiria sua especificidade – da conjugação da peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica e indeterminada, com os fatores externos, de ordem econômica, social e cultural, que a Constituição – pluralista por antonomásia –, intenta regular e que, dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras sempre renovadas das mensagens enviadas pelo constituinte[9].
Por fim, explicando com maestria que o fenômeno da mutação constitucional pode decorrer tanto de uma mudança da realidade fática como de uma nova percepção do direito, procedendo a uma devida releitura da norma, é a doutrina do mestre Luís Roberto Barroso, atualmente Ministro do Supremo Tribunal Federal – STF, senão vejamos:
... a mutação constitucional consiste em uma alteração do significado de determinada norma da Constituição, sem observância do mecanismo constitucionalmente previsto para as emendas e, além disso, sem que tenha havido qualquer modificação do seu texto. Esse novo sentido ou alcance do mandamento constitucional pode decorrer de uma mudança na realidade fática ou de uma nova percepção do Direito, uma releitura do que deve ser considerado ético ou justo[10].
Pelo conceito exposto, podemos extrair, sucintamente, como principais características da mutação constitucional:
a) a informalidade: já que o processo de alteração da norma, como dito, é informal;
b) a pluralidade de agentes: já que pode decorrer da interpretação, bem como da atuação legislativa e até mesmo dos costumes, como será trabalhado abaixo;
c) o distanciamento no tempo: apesar de não haver um consenso sobre esse ponto, podemos destacar que, inúmeras vezes, a mutação decorre de uma mudança que ocorre no tempo, que acarreta modificação da realidade até então existente e que consubstanciava a exegese vigente;
d) e a manutenção do texto: não obstante a modificação da norma, o texto permanece íntegro, pois texto não se confunde com norma, como será demonstrado abaixo, com o método de interpretação constitucional normativo-estruturante, desenvolvido por Müller.
4 – MECANISMOS OU MEIOS DE MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL:
As formas pelas quais poderá ocorrer o fenômeno da mutação constitucional foram sistematizadas, doutrinariamente, pelo ilustre jurista Luís Roberto Barroso[11], que observando a doutrina clássica identificou, basicamente, três mecanismos de concretização do referido fenômeno. São eles:
4.1) INTERPRETAÇÃO (judicial ou administrativa): Por meio de interpretação, judicial ou administrativa, poderá haver a superação de um entendimento até então consolidado, assumindo o exegeta um relevante papel de criação do direito. Nesse sentido, mormente no tocante à interpretação judicial, assume o Poder Judiciário a nobre função de adequar o Direito às novas necessidades sociais resultantes das alterações dos paradigmas que formavam o arcabouço fático-realístico do organismo social. Haverá, portanto, um inegável ativismo judicial, inovador em sua essência, não obstante possa a mutação ser, também, decorrente de uma interpretação administrativa, superando o entendimento jurídico então vigente.
4.2) LEGISLATIVA (Atuação do legislador): Não obstante seja a mutação constitucional fruto, principalmente, das alterações jurisprudenciais, fato incontroverso é que também poderá ser resultante da atuação do Poder Legislativo, quando, no seu mister de elaborar ato normativo primário, alterar o sentido já dado a alguma norma constitucional. Logo, nada impede que o Poder legislativo edite um ato normativo primário contrário a um entendimento, por exemplo, do Supremo Tribunal Federal – STF, em uma verdadeira reação legislativa, com Ativismo Congressual, já que o legislativo não fica vinculado, em sua função típica de legislar, aos efeitos das decisões prolatadas pelo STF, ainda que decorrentes de controle abstrato de constitucionalidade. Tal fato, no entanto, não impedirá que o próprio STF, guardião da Constituição, declare a inconstitucionalidade do ato normativo editado, por entendê-lo contrário à Constituição. Deve-se evitar, no entanto, na medida do possível, a ocorrência desse confronto entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, em homenagem à separação de poderes, elencada, no artigo 60, parágrafo 4º, inciso III, da Constituição como cláusula pétrea.
4.3) CONSUETUDINÁRIA (costumes constitucionais): Apesar de não ser pacífica a possibilidade dos costumes, nos países de Constituição escrita e rígida, alterarem o sentido interpretativo do ordenamento, há casos em que isso ocorrerá, como aponta o Barroso, como, por exemplo, na possibilidade do chefe do executivo negar aplicação, desde que o faça de modo fundamentado, da lei considerada inconstitucional, bem como a existência do voto de liderança no Parlamento, sem submeter-se ao Plenário.
Esses são, portanto, os mecanismos apontados que poderão resultar em mutação constitucional.
5 – LIMITES DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL:
Insta observar, de plano, como já mencionado, que a mutação constitucional decorre da alteração do sentido normativo-jurídico atribuído à norma, seja por meio de interpretação, de atuação legislativa ou até mesmo pelos costumes.
Assim, para traçar os limites da mutação é necessário entender como deve ser feita a interpretação do texto constitucional. Para tanto, elencaremos abaixo, embora de forma sucinta e superficial, os métodos e princípios apontados pela doutrina como alicerces teórico-exegéticos a embasar a busca do sentido a ser atribuído à norma.
5.1 – Métodos de Interpretação Constitucional:
5.1.1 – Método Jurídico (ou Clássico hermenêutico):
Por esse método, atribuído a Ernest Forsthof, a Constituição deve ser enxergada como uma lei. Logo, para interpretá-la o exegeta deverá se valer, basicamente, dos elementos gramatical, lógico, sistemático, teleológico, tal como desenvolvidos por Savigny.
Por isso, referido método, por embasar-se na doutrina clássica de Savigny, é conhecido também como método clássico-hermenêutico, defendendo a “tese da identidade”, ou seja, a Constituição deve ser interpretada como uma lei.
5.1.2 – Método Tópico-Problemático:
Idealizado por Theodor Viehweg, referido método parte do problema para a norma, ou seja, do caso concreto para a situação hipoteticamente prevista na norma, atribuindo um caráter prático na solução dos problemas. Assim, há um pragmatismo evidente a ser observado pelo hermeneuta na resolução dos conflitos que lhe são apresentados.
5.1.3 – Método Hermenêutico-Concretizador:
Atribuído a Konrad Hesse, o referido método sustenta que o intérprete deve partir da Constituição para o caso concreto, ou seja, da Constituição para o problema a ser resolvido. Logo, trata-se de um mecanismo exegético que difere do método tópico-problemático, por defender exatamente o contrário como ponto de partida.
Por esse método, o intérprete teria que se valer das suas pré-compreensões acerca do caso apresentado, para alcançar a melhor solução para o caso concreto. Há, no entanto, forte crítica doutrinária a essa exegese, afirmado que esta subjetividade das pré-compreensões poderia distorcer a realidade e o sentido da norma.
5.1.4 – Método Científico-Espiritual:
Idealizado por Rudolf Smend, referido método sustenta que a compreensão da Constituição deve partir-se da análise da realidade social e dos valores prementes na sociedade.
Como efeito, a Constituição deve ser enxergada como algo dinâmico, cabendo ao exegeta envidar esforços para encontrar o verdadeiro espírito da norma, ou seja, seu verdadeiro valor e sentido normativo.
5.1.5 – Método Normativo-Estruturante:
Atribuído a Friederich Müller, o método em comento sustenta a inexistência de identidade entre o texto normativo e a norma jurídica, ou seja, uma coisa é o texto e outra bem diferente é a norma.
O texto deve ser entendido como a literalidade da assertiva, já a norma deve ser entendida como a interpretação a ser extraída do texto. Nesse sentido, por exemplo, o “devido processo legal” extraído do texto normativo existente há centenas de anos não se confundirá, por certo, com a norma jurídica decorrente do “devido processo legal” atualmente em vigor. O texto pode até ser o mesmo, mas o sentido atribuído a ele, ou seja, a norma, certamente não o será.
Percebe-se, de plano, a grande influência que referido método proposto por Müller apresentará no processo de mutação constitucional, no qual o texto permanece íntegro, sem, no entanto, persistir a norma, já que o texto receberá uma nova interpretação.
5.1.6 – Método da Comparação Constitucional:
O exegeta não pode desconsiderar o atual estágio da globalização, a qual inegavelmente rompe fronteiras e estabelece um intercâmbio cultural intenso entre os diversos povos. Nesse sentido, ao proceder a interpretação constitucional, principalmente nas relações internacionais, o hermeneuta deverá levar em consideração as várias Constituições existentes dos diversos povos, de modo a ser feita uma comparação constitucional, havendo, portanto, uma comunicação entre as diversas Cartas. É o que sustenta o método supracitado.
Ao lado dos referidos métodos de interpretação constitucional, a doutrina aponta, ainda, diversos princípios interpretativos que atuam, na verdade, de forma complementar aos métodos acima explicados, sem que possamos dizer que um sucede o outro, consoante passamos a expor.
5.2 – Princípios da Interpretação Constitucional:
Consoante afirma reiterada doutrina contemporânea, a norma jurídica divide-se em norma-regra e norma-princípio. Aqui, no entanto, trataremos de princípios de interpretação constitucional, ou seja, de princípios interpretativos, concebidos por Luís Roberto Barroso como “princípios instrumentais”, que nortearão a aplicação dos princípios materiais, ou seja, da norma-princípio.
Referidos princípios instrumentais, na doutrina do insigne doutrinador Humberto Ávila, são concebidos como “postulados normativos”, ou seja, “normas de segundo grau”, qualificadas como metanormas, que servirão como meio de interpretação das demais normas jurídicas presentes no ordenamento jurídico. Cita os postulados inespecíficos (ponderação, concordância prática e proibição de excesso) e os postulados específicos (igualdade, razoabilidade e proporcionalidade).
Dissertando sobre o assunto, manifesta-se com propriedade o ilustre Humberto Ávila:
A interpretação de qualquer objeto cultural submete-se a algumas condições essenciais, sem as quais o objeto não pode ser sequer apreendido. A essas condições essenciais dá-se o nome de postulados. Há os postulados meramente hermenêuticos, destinados a compreensão em geral do Direito e os postulados aplicativos, cuja função é estruturar a sua aplicação concreta.
Os postulados normativos aplicativos são normas imediatamente metódicas que instituem os critérios de aplicação de outras normas situadas no plano do objeto da aplicação. Assim, qualificam-se como normas sobre a aplicação de outras normas, isto é, como metanormas. Daí se dizer que se qualificam como normas de segundo grau. Nesse sentido, sempre que se está diante de um postulado normativo, há uma diretriz metódica que se dirige ao intérprete relativamente à interpretação de outras normas. Por trás dos postulados, há sempre outras normas que estão sendo aplicadas. (...) Os postulados funcionam diferentemente dos princípios e das regras. A uma, porque não se situam no mesmo nível: os princípios e as regras são normas objeto da aplicação; os postulados são normas que orientam a aplicação de outras. A duas, porque não possuem os mesmos destinatários: os princípios e as regras são primariamente dirigidos ao Poder Público e aos contribuintes; os postulados são frontalmente dirigidos ao intérprete e aplicador do Direito. A três, porque não se relacionam da mesma forma com outras normas: os princípios e as regras, até porque se situam no mesmo nível do objeto, implicam-se reciprocamente, quer de modo preliminarmente complementar (princípios), que de modo preliminarmente decisivo (regras); os postulados, justamente porque se situam num metanível, orientam a aplicação dos princípios e das regras sem conflituosidade necessária com outras normas[12].
Ao lado dos métodos de interpretação, de forma complementar, os princípios de interpretação, específicos, citados pela doutrina, consoante apontado por Pedro Lenza[13], são os que, sucintamente, abaixo passamos a expor.
5.2.1 – Princípio da Unidade da Constituição:
Por esse princípio, a Constituição deve ser considerada em sua forma integral, global, ou seja, as normas constitucionais não devem ser interpretadas isoladamente, mas sim como um todo, de forma a se afastar as possíveis antinomias. Assim, não haverá qualquer hierarquia entre as normas constitucionais, estando todas no mesmo nível.
5.2.2 – Princípio do Efeito Integrador:
Pelo efeito integrador, a constituição deve ser interpretada de uma forma que garanta a unidade política, de forma a se assegurar uma integração política e social, afastando, portanto, reducionismos de ordem política que poderiam ensejar exclusões e isolamentos de entes federados, com reducionismos indesejados, incompatíveis com a própria democracia.
5.2.3 – Princípio da Máxima Efetividade:
Caberá ao exegeta, pelo princípio supracitado, promover uma interpretação que assegure a máxima efetividade social da norma, salvaguardando os direitos fundamentais. Tem por escopo, portanto, efetivar, em grau máximo, os direitos elencados na Constituição.
5.2.4 – Princípio da Justeza ou da Conformidade Funcional:
O hermeneuta deverá, pelo referido princípio da conformidade funcional, interpretar a Constituição de forma que seja assegurada a distribuição das competências e atribuições estabelecidas, de modo que não lhe perturbe ou subverta o esquema organizatório-funcional.
Assim, a repartição de funções deverá ser observada, até como forma de se assegurar a máxima efetividade da Constituição.
Resta claro, portanto, que os princípios ora analisados não são estanques, pelo contrário, eles se complementam, até mesmo para garantir a unidade do sistema jurídico.
5.2.5 – Princípio da Concordância Prática ou Harmonização:
Pelo princípio em comento, a Constituição deve ser interpretada de forma que assegure, ao máximo, os bens constitucionalmente protegidos pelo sistema. Logo, interpretações que fulminem um determinado bem juridicamente tutelado deverão ser afastadas.
Com efeito, quando houver colisão entre dois direitos, como, por exemplo, a liberdade de informação e o direito à privacidade, o hermeneuta deverá proceder ao devido sopesamento, por meio de uma ponderação dos princípios conflituosos, de modo a interpretar a Constituição de forma que um direito não aniquile o outro, havendo tão-somente uma prevalência de um em determinado caso concreto.
Objetiva-se, portanto, harmonizar os princípios colidentes, sem que haja o total sacrifício de um em detrimento do outro.
5.2.6 – Princípio da Força Normativa:
Por esse princípio, o intérprete deve assegurar a máxima efetividade às normas constitucionais, já que a mesma possui força normativa.
Assim, aquela ideia inicial da Constituição como sendo um documento político, sem eficácia normativa, é afastada, em homenagem a doutrina de Konrad Hesse, exposta na obra “A força normativa da Constituição”, entendida como um documento dotado de eficácia jurídica, com aptidão para produzir efeitos e, até mesmo, modificar a realidade social, desde que presente a “vontade de Constituição”, como lecionava Hesse.
5.2.7 – Princípio da Interpretação Conforme a Constituição:
Quando o hermeneuta defrontar-se com normas polissêmicas, plurissignificativas, deverá prestigiar a interpretação que melhor se coadune com a Constituição, afastando as exegeses inadequadas para o caso concreto.
Percebe-se, portanto, que o intérprete da norma deverá afastar as interpretações que não se amoldam à Constituição e adotar aquela que a concretiza em sua essência, ou seja, que atende sua finalidade, restando claro, portanto, tratar-se de uma técnica de decisão.
Como em nosso sistema jurídico a última palavra caberá ao Supremo Tribunal Federal – STF, já que o mesmo é concebido como o “guardião da Constituição”, conforme estabelece o artigo 102 da Constituição, a ele caberá, em última instância, proceder à devida interpretação.
5.2.8 – Princípio da Proporcionalidade ou Razoabilidade:
Consoante aponta reiterada doutrina que disserta acerca do tema, a proporcionalidade e razoabilidade devem ser entendidas como uma ordem de valores que consagram as noções de equidade, justiça e bom senso como forma de interpretação.
Assim, a proporcionalidade é apontada em três dimensões, quais sejam, a necessidade (entendida como meio inarredável para alcançar o direito, sendo, portanto, exigível e necessária para a obtenção do direito), a adequação (o meio escolhido deve ser idôneo para alcançar ou tutelar o direito) e a proporcionalidade em sentido estrito (entendida como a obtenção do direito, com a máxima efetividade e o mínimo grau de restrição).
Destaca-se, por fim, que a jurisprudência do STF concebe a proporcionalidade como sendo decorrente, ou extraída, do devido processo legal material ou substantivo, tratando como sinônimos os referidos princípios.
Assim, o hermeneuta deverá levar em consideração os métodos e princípios supracitados para proceder à devida interpretação do texto constitucional, inclusive nos casos de mutação constitucional, em que uma nova interpretação será atribuída à norma jurídica vigente.
Com efeito, o hermeneuta deverá observar os princípios estruturantes do sistema, para que a interpretação seja, de fato, constitucional. Nesse sentido, inclusive, é a manifestação da doutrina, senão vejamos:
A nova interpretação há, porém, de encontrar apoio no teor das palavras empregadas pelo constituinte e não deve violentar os princípios estruturantes da Lei Maior; do contrário, haverá apenas uma interpretação inconstitucional[14].
Percebe-se, a toda evidência, que um dos limites colocados à interpretação é a própria literalidade da norma, a qual não poderá ser desconsiderada, sob pena de haver uma indesejada interpretação inconstitucional.
O próprio J. J. Gomes Canotilho leciona que o exegeta não deve extrapolar os limites interpretativos, valendo-se de elementos extra Constituição que contrariam o programa da norma Constitucional, sob pena de haver uma mutação constitucional inconstitucional, denominada mutação constitucional exogenética, a qual, por razões óbvias, deve ser rechaçada, para haver harmonia do sistema.
Por isso os limites interpretativos da norma devem levar em consideração a literalidade da norma, seu conteúdo expresso, conforme ensina a doutrina. Vejamos:
Por isso é que todos os juristas, e não apenas os intérpretes/aplicadores da Constituição, quando analisam os processos informais de criação do direito por via interpretativa, advertem, à partida, que uma coisa são as leituras que, mesmo novas, ainda se mantenham no espectro dos significados aceitáveis de um texto jurídico, e outra, bem distinta, são as criações sub-receptícias de novos preceitos, mediante interpretações que ultrapassam o sentido literal possível dos enunciados jurídicos e acabam por transformar os seus intérpretes em legisladores sem mandato[15].
Observa-se, por fim, que a mutação constitucional, para ser válida e estar em consonância com o direito, deve ter lastro democrático, sem que seja fruto de autoritarismo, consoante explica de forma lapidar a doutrina do mestre Luís Roberto Barroso, senão vejamos:
... a mutação constitucional consiste em uma alteração do significado de determinada norma da Constituição, sem observância do mecanismo constitucionalmente previsto para as emendas e, além disso, sem que tenha havido qualquer modificação do seu texto. Esse novo sentido ou alcance do mandamento constitucional pode decorrer de uma mudança na realidade fática ou de uma nova percepção do Direito, uma releitura do que deve ser considerado ético ou justo. Para que seja legítima, a mutação precisa ter lastro democrático, isto é, deve corresponder a uma demanda social efetiva por parte da coletividade, estando respaldada, portanto, pela soberania popular[16].
Se houver mutação inconstitucional, lesando direitos de terceiros de boa-fé, será possível, em tese, haver controle de constitucionalidade, já que nem mesmo a lei pode afastar do controle judicial lesão ou ameaça a direitos, nos termos do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição, que consagra o princípio da inafastabilidade jurisdicional.
São, portanto, limites impostos à mutação constitucional.
6 – EXEMPLOS DE MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL:
Com o escopo meramente ilustrativo, exemplificaremos alguns casos que podem ser concebidos como sendo casos de mutação constitucional, apontados pela doutrina e pela jurisprudência, conforme passamos a expor.
EXEMPLO 1: Inflação.
Consoante destacado, ainda que em nota de rodapé, pelo ilustre Paulo Gustavo Gonet Branco, a noção de legalidade atinente à inflação passou por um verdadeiro fenômeno de mutação constitucional, pois os tribunais entendiam, inicialmente, que a correção monetária só poderia ocorrer se houvesse expressa previsão legal. Ocorre, todavia, que esse entendimento foi alterado e passou-se a entender que a correção monetária poderia ocorrer independentemente de qualquer autorização legal. Vejamos:
O fenômeno da inflação pode levar a uma visão diferente do princípio constitucional da legalidade, fornecendo exemplo de mutação constitucional. Veja-se que, num primeiro momento, quando a corrosão da moeda não era extrema, a jurisprudência afirmava que ‘a correção monetária somente pode ocorrer em face de autorização legal’ (STF, RE 74.655, DJ de 1º-6-1973). Mais adiante, quando o problema monetário se agravou, passou-se a entender que o princípio da legalidade conviveria com a correção monetária sem lei expressa nos casos de dívida de valor (STF, RE 104.930, DJ de 10-5-1985). Atingido os patamares do descontrole inflacionário a correção monetária vem a ser aplicada em qualquer dívida, independentemente de previsão legal (STJ, REsp 2.122, RSTJ, 11/384, em que se lê: ‘construção pretoriana e doutrinária e doutrinária, antecipando-se ao legislador, adotando a correção como imperativo econômico, jurídico e ético, indispensável à justa composição dos danos e ao fiel adimplemento das obrigações, dispensou a prévia autorização legal para a sua aplicação’)[17]
EXEMPLO 2: Mulher Honesta.
Conforme explica de forma lapidar o insigne doutrinador Pedro Lenza, o conceito de mulher honesta sofreu, ao longo do tempo, mutação interpretativa, de forma que o que entendemos hoje como sendo “mulher honesta”, não obstante a fluidez e a vagueza do termo, certamente não se confunde com a noção axiológica atribuída ao termo pelos nossos antepassados, razão pela qual, inclusive, referida expressão foi suprimida do Código Penal. Assim leciona o referido doutrinador:
Quando falamos que essa expressão sofreu uma mutação interpretativa, não queremos dizer que o artigo em si foi alterado, mas, sim, que o conceito de “mulher honesta”, ao longo do tempo, levando em consideração os padrões aceitos pela sociedade da época, adquiriu significados diversos. Cabe advertir que a Lei 11.106/2005 revogou diversos dispositivos do Código Penal, inclusive o que discpunha acerca da “mulher honesta[18].
EXEMPLO 3: Foro Por Prerrogativa de Função.
Consoante destaca Pedro Lenza, “um outro exemplo de mutação constitucional, lembrado por Olavo Alves Ferreira, foi o cancelamento da Súmula 394 do STF, modificando o entendimento sobre o foro por prerrogativa de função”[19].
Dispunha a Súmula 394 do Supremo Tribunal Federal que “cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”.
Ocorre, no entanto, conforme mencionado, que referido entendimento foi superado e a referida súmula foi cancelada. Nos dias coevos, assim é a jurisprudência do STF:
Ementa - Agravo regimental em reclamação. 2. Direito Processual Penal e Constitucional. 3. Extensão da prerrogativa de foro de ex-agentes públicos. 4. Cancelamento da Súmula 394 desta Corte. Declaração de inconstitucionalidade dos §§ 1º e 2º do art. 84, do Código de Processo Penal com a redação dada pela Lei 10.682/2002 (ADI 2.797, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, DJ 19.12.2006). 5. Superado o entendimento pretérito sobre a subsistência da prerrogativa de foro dos ex-agentes públicos. 6. Ofensa ao princípio do juiz natural não configurada. 7. Agravo regimental a que se nega seguimento[20].
A referida súmula foi cancelada porque a prerrogativa se dá em função do exercício do cargo e não intuito personae. Desta feita, se o agente público não exerce mais a função pública que lhe propiciara a prerrogativa processual, mister se faz proceder ao devido ajuste, de forma a compatibilizar a situação com o regramento constitucional, rechaçando os privilégios odiosos.
EXEMPLO 4: Habeas Corpus ajuizado em face de ato de Turma Recursal de Juizado Especial.
No que atine a competência para julgar Habeas Corpus impetrado em face de decisão prolatada por Turma Recursal de Juizado Especial, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sofreu uma verdadeira mutação constitucional, ao passar a admitir como tribunal competente para processamento e julgamento do feito os respectivos Tribunais de Justiça Estaduais, conforme se depreende da própria jurisprudência do Pretório Excelso. Vejamo-la:
EMENTA: QUESTÃO DE ORDEM. HABEAS CORPUS CONTRA ATO DE TURMA RECURSAL DE JUIZADO ESPECIAL. INCOMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ALTERAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. REMESSA DOS AUTOS. JULGAMENTO JÁ INICIADO. INSUBSISTÊNCIA DOS VOTOS PROFERIDOS. Tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal, modificando sua jurisprudência, assentou a competência dos Tribunais de Justiça estaduais para julgar habeas corpus contra ato de Turmas Recursais dos Juizados Especiais, impõe-se a imediata remessa dos autos à respectiva Corte local para reinício do julgamento da causa, ficando sem efeito os votos já proferidos. Mesmo tratando-se de alteração de competência por efeito de mutação constitucional (nova interpretação à Constituição Federal), e não propriamente de alteração no texto da Lei Fundamental, o fato é que se tem, na espécie, hipótese de competência absoluta (em razão do grau de jurisdição), que não se prorroga. Questão de ordem que se resolve pela remessa dos autos ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos territórios, para reinício do julgamento do feito’. (, STF, HC 86.009-QO, 1ª Turma, Rel. Min. Carlos Britto, j. 29.08.2006, DJ de 27.04.2007).
Nota-se, portanto, que a competência para julgar o Habeas Corpus ajuizado em face de ato praticado por Turma de Juizado Especial não é originária do Supremo Tribunal Federal – STF, mas sim do respectivo Tribunal de Justiça – TJ, consoante entendimento atual do próprio Supremo.
EXEMPLO 5: Progressão de Regime na Lei dos Crimes Hediondos e Exigência do Regime Inicial Fechado.
Outra situação merecedora de destaque é o caso da vedação da progressão de regime prevista na Lei de Crimes Hediondos e da exigência do regime inicial fechado.
Insta observar, nesse ponto, que a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal superou entendimento até então vigente ao declarar a inconstitucionalidade do parágrafo 1º, do artigo 2º, da Lei 8072/1990.
Assim, hodiernamente, o entendimento firmado é o de que o regime inicial de cumprimento da pena não precisará ser, necessariamente, o fechado e muito menos haverá a necessidade do cumprimento da pena em regime integralmente fechado, em homenagem ao princípio da individualização da pena, conforme destacado pelo próprio STF, senão vejamos:
EMENTA: I - Recurso extraordinário: descabimento: falta de prequestionamento dos dispositivos constitucionais dados como violados (Súmulas 282 e 356), além de não impugnados os fundamentos do acórdão recorrido. II - Crime hediondo: regime de cumprimento de pena: incidência da Súmula 698 ("Não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura"). III - Crime hediondo: regime de cumprimento de pena: progressão. Ao julgar o HC 82.959, Pl., 23.2.06, Marco Aurélio, DJ 01.09.06, o Supremo Tribunal declarou, incidentemente, a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da L. 8.072/90 - que determina o regime integralmente fechado para o cumprimento de pena imposta ao condenado pela prática de crime hediondo - por violação da garantia constitucional da individualização da pena (CF., art. 5º, LXVI). IV - Habeas-corpus: deferimento da ordem, de ofício, para afastar o óbice do regime fechado imposto, cabendo ao Juízo das Execuções analisar a eventual presença dos demais requisitos da progressão. (STF, RE 534327 QO, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, Julgado em 25/06/2007 e Publicado em 10/08/2007).
EMENTA Habeas corpus. Penal. Processual penal. Condenação por tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/06). 4- É ilegal a estipulação do regime inicial fechado quando ela está amparada exclusivamente na vedação legal contida no art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90, cuja inconstitucionalidade foi reconhecida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (HC nº 111.840/ES, de minha relatoria, DJe de 17/12/12). (STF, HC 126786/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Dias Tóffoli, Julgado em 02/06/2015).
Ementa: PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ESTUPRO (ART. 213 DO CP). LAUDO PERICIAL. ANÁLISE DA COMPROVAÇÃO, OU NÃO, DA MATERIALIDADE DO CRIME. IMPOSSIBILIDADE. REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. VEDAÇÃO. IRREGULARIDADE, OU NÃO, NA INTIMAÇÃO DA DEFESA PARA A SESSÃO DE JULGAMENTO DA APELAÇÃO. MATÉRIA NÃO SUBMETIDA À APRECIAÇÃO DA INSTÂNCIA PRECEDENTE. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. ART. 2º, § 1º, DA LEI 8.072/90, NA REDAÇÃO DADA PELA LEI 11.464/07. INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO ORDINÁRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA DE OFÍCIO. (RHC 116704/PA, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, Julgado em 22/04/2014, Publicado em 16/05/2014).
EXEMPLO 6: Competência Trabalhista para julgar ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente de trabalho.
Em um primeiro momento, a jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal – STF, entendia que as ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente de trabalho ajuizadas por empregado em face de seu ex-empregador deveriam ser processadas e julgadas pela justiça comum estadual e não pela justiça do trabalho.
Não obstante inúmeras críticas doutrinárias, esse era o entendimento amplamente prevalecente.
Ocorre, no entanto, que o pensamento jurídico evoluiu e nossa Suprema Corte passou a entender que, diante da Constituição de 1988, a competência deveria ser da justiça trabalhista e não mais da justiça comum estadual.
Nesse sentido, por razões de segurança jurídica e relevância social, foi estabelecido pelo Plenário do STF, por maioria, que o marco temporal da competência da justiça laboral seria a Emenda Constitucional nº 45/2004.
Com efeito, as ações que tramitavam na justiça comum estadual deveriam ser remetidas para a justiça trabalhista, salvo se já houvesse sentença de mérito, hipótese em que deveria continuar na justiça comum.
A jurisprudência do STF é cristalina nesse sentido. Note:
Ementa: (...) Numa primeira interpretação do inciso I do art. 109 da Carta de Outubro, o Supremo Tribunal Federal entendeu que as ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente do trabalho, ainda que movidas pelo empregado contra seu (ex-) empregador, eram da competência da Justiça comum dos Estados-Membros. 2. Revisando a matéria, porém, o Plenário concluiu que a Lei Republicana de 1988 conferiu tal competência à Justiça do Trabalho. Seja porque o art. 114, já em sua redação originária, assim deixava transparecer, seja porque aquela primeira interpretação do mencionado inciso I do art. 109 estava, em boa verdade, influenciada pela jurisprudência que se firmou na Corte sob a égide das Constituições anteriores. 3. Nada obstante, como imperativo de política judiciária - haja vista o significativo número de ações que já tramitaram e ainda tramitam nas instâncias ordinárias, bem como o relevante interesse social em causa -, o Plenário decidiu, por maioria, que o marco temporal da competência da Justiça trabalhista é o advento da EC 45/04. Emenda que explicitou a competência da Justiça Laboral na matéria em apreço. 4. A nova orientação alcança os processos em trâmite pela Justiça comum estadual, desde que pendentes de julgamento de mérito. É dizer: as ações que tramitam perante a Justiça comum dos Estados, com sentença de mérito anterior à promulgação da EC 45/04, lá continuam até o trânsito em julgado e correspondente execução. Quanto àquelas cujo mérito ainda não foi apreciado, hão de ser remetidas à Justiça do Trabalho, no estado em que se encontram, com total aproveitamento dos atos praticados até então. A medida se impõe, em razão das características que distinguem a Justiça comum estadual e a Justiça do Trabalho, cujos sistemas recursais, órgãos e instâncias não guardam exata correlação. (CC 7204, Relator Ministro Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgamento em 29.6.2005, DJ de 9.12.2005).
Ementa: Agravo regimental em embargos de declaração no recurso extraordinário. Ação de indenização proposta por empregado, em face do empregador, em decorrência de acidente do trabalho. Competência. Emenda Constitucional nº 45/04. Justiça do Trabalho. Marco temporal. Sentença de mérito. Súmula Vinculante nº 22. Precedentes. 1. O Plenário desta Corte, no julgamento do CC nº 7.204/MG, Relator o Ministro Ayres Britto, pacificou o entendimento no sentido de ser da Justiça do Trabalho a competência para processar e julgar as ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente de trabalho proposta por empregado em face do empregador. 2. Na ocasião, definiu-se, ainda, que essa orientação alcançaria também os processos que tramitavam na Justiça estadual à época da promulgação da Emenda Constitucional nº 45/04, desde que não proferida sentença de mérito na origem. É o teor da Súmula Vinculante nº 22. 3. Agravo regimental não provido." (RE 465995 ED-AgR, Relator Ministro Dias Toffoli, Primeira Turma, julgamento em 6.12.2011, DJe de 1.2.2012).
Para sepultar qualquer dúvida que pudesse remanescer, o Plenário do STF editou a súmula vinculante nº 22, pacificando o tema, com efeito vinculante, nos seguintes termos:
Súmula Vinculante 22: A Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar as ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente de trabalho propostas por empregado contra empregador, inclusive aquelas que ainda não possuíam sentença de mérito em primeiro grau quando da promulgação da Emenda Constitucional nº 45/04.
EXEMPLO 7: União Homoafetiva.
No tocante à união homoafetiva, a jurisprudência sofreu uma verdadeira mutação constitucional, na medida em que o Supremo Tribunal Federal – STF passou a admitir o reconhecimento da união civil entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, atribuindo-lhe os mesmos efeitos jurídicos válidos da união estável heteroafetiva.
Para tanto, valeu-se nossa Suprema Corte da técnica da interpretação conforme à Constituição, rechaçando qualquer exegese que pudesse impedir o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre homossexuais como entidade familiar, sendo aqui entendida como família.
Foi assegurado, portanto, o direito ao recebimento da pensão por morte pelo companheiro sobrevivente na união estável homoafetiva, sendo proibida qualquer forma de discriminação, conforme jurisprudência citada abaixo:
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. BENEFÍCIO DE PENSÃO POR MORTE. UNIÃO HOMOAFETIVA. LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO RECONHECIMENTO E QUALIFICAÇÃO DA UNIÃO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO COMO ENTIDADE FAMILIAR. POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DAS REGRAS E CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS VÁLIDAS PARA A UNIÃO ESTÁVEL HETEROAFETIVA. DESPROVIMENTO DO RECURSO. 1. O Pleno do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.277 e da ADPF 132, ambas da Relatoria do Ministro Ayres Britto, Sessão de 05/05/2011, consolidou o entendimento segundo o qual a união entre pessoas do mesmo sexo merece ter a aplicação das mesmas regras e consequências válidas para a união heteroafetiva. 2. Esse entendimento foi formado utilizando-se a técnica de interpretação conforme a Constituição para excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. Reconhecimento que deve ser feito segundo as mesmas regras e com idênticas consequências da união estável heteroafetiva. 3. O direito do companheiro, na união estável homoafetiva, à percepção do benefício da pensão por morte de seu parceiro restou decidida. No julgamento do RE nº 477.554/AgR, da Relatoria do Ministro Celso de Mello, DJe de 26/08/2011, a Segunda Turma desta Corte, enfatizou que “ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual. Os homossexuais, por tal razão, têm direito de receber a igual proteção tanto das leis quanto do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual. (…) A família resultante da união homoafetiva não pode sofrer discriminação, cabendo-lhe os mesmos direitos, prerrogativas, benefícios e obrigações que se mostrem acessíveis a parceiros de sexo distinto que integrem uniões heteroafetivas”. (Precedentes: RE n. 552.802, Relator o Ministro Dias Toffoli, DJe de 24.10.11; RE n. 643.229, Relator o Ministro Luiz Fux, DJe de 08.09.11; RE n. 607.182, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 15.08.11; RE n. 590.989, Relatora a Ministra Cármen Lúcia, DJe de 24.06.11; RE n. 437.100, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJe de 26.05.11, entre outros). 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (STF, RE 687 AgRg/MG, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, Julgado em 18/09/2012, Publicado em 02/10/2012).
Podemos perceber de forma bastante clara, da conclusão exposta nesse julgado, que o Pretório Excelso prestigiou, em última análise, o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual é concebido expressamente pelo artigo 1º, inciso III, da Constituição de 1988 como sendo fundamento da República, tamanha a magnitude da sua importância jurídica, atuando como um verdadeiro epicentro axiológico irradiador de vetores exegéticos dos demais ramos do direito, inclusive do Direito Civil e Previdenciário.
EXEMPLO 8: Não Cabimento da Prisão Civil do Depositário Infiel.
Houve, decerto, uma verdadeira mudança de entendimento jurisprudencial da Suprema Corte no que atine à possibilidade de prisão do depositário infiel, a qual restou, definitivamente, afastada, não obstante não tenha havido, de forma expressa, qualquer mudança do texto constitucional, como passamos a explicar.
Previa a Constituição, e ainda prevê, expressamente em seu artigo 5º, inciso LXVII, que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
Ora, parecia ser bastante claro que a prisão por dívida civil não seria possível, salvo nas duas exceções delineadas acima, quais sejam, pensão alimentícia e a do depositário infiel.
Ocorre, no entanto, que no ano de 1992 o Brasil tornou-se signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Pacto San José da Costa Rica, que proíbe a prisão por dívidas, ressalvando tão-somente as decorrentes de obrigação alimentar, ou seja, sem fazer qualquer ressalva no tocante ao depositário infiel.
Surgiu, portanto, um imbróglio a ser resolvido pela Suprema Corte no tocante à possibilidade ou não de prisão civil do depositário infiel, já que a Constituição de 1988 permitia expressamente, mas a Convenção Americana, ratificada posteriormente, não fazia essa ressalva.
Nos termos do parágrafo 3º, do artigo 5º, da Constituição, incluído pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Logo, como a Convenção Americana de Direitos Humanos foi ratificada pelo Brasil em 2002, ou seja, antes da Emenda 45/2004, não se podia falar que a mesma seria equivalente às emendas constitucionais, restando afastada, portanto, a tese da revogação pela Convenção citada acima da parte final do inciso LXVII, do artigo 5º, que ressalvara também o depositário infiel.
O entendimento que parecia que iria dominar era o da prevalência da Constituição, com a permissão da prisão do devedor de alimentos e, também, do depositário infiel. No entanto, não foi o que ocorreu, sendo motivo de estupefação para notáveis juristas.
Mediante essa celeuma, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entendeu que a referida Convenção deveria ser internalizada em nosso ordenamento com o status de norma supralegal, ou seja, estaria abaixo da Constituição, não sendo, portanto, norma constitucional, mas estaria acima da legislação infraconstitucional, devendo prevalecer sobre a legislação interna infraconstitucional.
Assim, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante do referido tratado que o Brasil tornou-se signatário em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, ou seja, paralisou a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina infraconstitucional com ela conflitante, mesmo sem haver, tecnicamente, qualquer revogação do dispositivo constitucional.
Essa foi, portanto, a tese firmada pelo nosso Pretório Excelso, sofrendo forte influência do ilustre Ministro Gilmar Ferreira Mendes, conforme se percebe dos julgados citados abaixo, senão vejamos:
Se não existem maiores controvérsias sobre a legitimidade constitucional da prisão civil do devedor de alimentos, assim não ocorre em relação à prisão do depositário infiel. As legislações mais avançadas em matérias de direitos humanos proíbem expressamente qualquer tipo de prisão civil decorrente do descumprimento de obrigações contratuais, excepcionando apenas o caso do alimentante inadimplente. O art. 7º (n.º 7) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos 'Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, dispõe desta forma: 'Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.' Com a adesão do Brasil a essa convenção, assim como ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, sem qualquer reserva, ambos no ano de 1992, iniciou-se um amplo debate sobre a possibilidade de revogação, por tais diplomas internacionais, da parte final do inciso LXVII do art. 5º da Constituição brasileira de 1988, especificamente, da expressão 'depositário infiel', e, por consequência, de toda a legislação infraconstitucional que nele possui fundamento direto ou indireto. (...) Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (...) deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria (...). Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. (...) Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos 'Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal par aplicação da parte final do art.5º, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel. (RE 466343, Voto do Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 3.12.2008, DJe de 5.6.2009)
Direito Processual. Habeas Corpus. Prisão civil do depositário infiel. Pacto de São José da Costa Rica. Alteração de orientação da jurisprudência do STF. Concessão da ordem. 1. A matéria em julgamento neste habeas corpus envolve a temática da (in)admissibilidade da prisão civil do depositário infiel no ordenamento jurídico brasileiro no período posterior ao ingresso do Pacto de São José da Costa Rica no direito nacional. 2. Há o caráter especial do Pacto Internacional dos Direitos Civis Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7°, 7), ratificados, sem reserva, pelo Brasil, no ano de 1992. A esses diplomas internacionais sobre direitos humanos é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação. 3. Na atualidade a única hipótese de prisão civil, no Direito brasileiro, é a do devedor de alimentos. O art. 5°, §2°, da Carta Magna, expressamente estabeleceu que os direitos e garantias expressos no caput do mesmo dispositivo não excluem outros decorrentes do regime dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. O Pacto de São José da Costa Rica, entendido como um tratado internacional em matéria de direitos humanos, expressamente, só admite, no seu bojo, a possibilidade de prisão civil do devedor de alimentos e, conseqüentemente, não admite mais a possibilidade de prisão civil do depositário infiel. 4. Habeas corpus concedido. (HC 95967, Relatora Ministra Ellen Gracie, Segunda Turma, julgamento em 11.11.2008, DJe de 28.11.2008)
O fato, Senhores Ministros, é que, independentemente da orientação que se venha a adotar (supralegalidade ou natureza constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos), a conclusão será, sempre, uma só: a de que não mais subsiste, em nosso sistema de direito positivo interno, o instrumento da prisão civil nas hipóteses de infidelidade depositária, cuide-se de depósito voluntário (convencional) ou trate-se, como na espécie, de depósito judicial, que é modalidade de depósito necessário. (HC 90983, Relator Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, julgamento em 23.9.2008, DJe de 13.5.2013)
O Plenário desta Corte, no julgamento conjunto dos HCs ns. 87.585 e 92.566, Relator o Ministro Marco Aurélio e dos RREE ns. 466.343 e 349.703, Relatores os Ministros Cezar Peluso e Carlos Brito, Sessão de 3.12.08, fixou o entendimento de que a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica conduziu à inexistência de balizas visando à eficácia do que previsto no artigo 5º, LXVII, da Constituição Federal, restando, assim, derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel. (RE 716101, Relator Ministro Luiz Fux, Decisão Monocrática, julgamento em 31.10.2012, DJe de 8.11.2012)
Por fim, pacificando ainda mais a questão ora analisada e ainda atribuindo efeito vinculante à decisão, foi editada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal – STF a Súmula Vinculante nº 25, afirmando que “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito”.
EXEMPLO 09: Súmula 343 do STF.
Nos termos do artigo 485, inciso V, do Código de Processo Civil – CPC (de 1973), a sentença de mérito transitada em julgado pode ser rescindida quando violar literal disposição de lei. Pelo novo CPC, não só a sentença que violar literal disposição de lei, mas a “decisão de mérito”, que “violar manifestamente norma jurídica”, conforme art. 966, V, do NCPC.
Assim, interpretando o referido dispositivo, o Supremo Tribunal Federal – STF entendia que não caberia rescisória, com fulcro no inciso V, do artigo 485 do CPC citado acima, quando a decisão rescindenda tivesse se baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.
Referido entendimento, inclusive, era consolidado, pacífico, fato que levou o STF a editar a Súmula 343, estabelecendo que “não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.
Ocorre, no entanto, que o Pretório Excelso entendia, inicialmente, que o teor da referida súmula não se aplicava quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto constitucional de interpretação controvertida nos tribunais, ou seja, excluía a aplicação da súmula quando a controvérsia fosse constitucional. Nesse sentido, confira:
EMENTA DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. DECADÊNCIA. ÂMBITO INFRACONSTITUCIONAL DO DEBATE. REAJUSTES SALARIAIS DECORRENTES DE PLANOS ECONÔMICOS. INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO. SÚMULA 343/STF. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. INAPLICABILIDADE. PRECEDENTES. ACÓRDÃO RECORRIDO PUBLICADO EM 05.10.2001.
A suposta afronta aos preceitos constitucionais indicados nas razões recursais dependeria da análise de legislação infraconstitucional, o que torna oblíqua e reflexa eventual ofensa, insuscetível, portanto, de viabilizar o conhecimento do recurso extraordinário.
Consolidada jurisprudência desta Corte no sentido da inaplicabilidade da Súmula 343/STF quando a matéria versada nos autos for de cunho constitucional, mesmo que a decisão objeto da rescisória tenha sido fundamentada em interpretação controvertida ou anterior à orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental conhecido e não provido. (AgRg no RE 567765/SP, Rel. Min. Rosa Weber, 1ª Turma, julgado em 16/04/2013).
Posteriormente, o STF reformou sua jurisprudência para permitir a aplicação do enunciado sumular 343 até mesmo quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto constitucional de interpretação controvertida nos tribunais. Dessa forma, consoante jurisprudência atual do STF, não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal, e até mesmo constitucional, de interpretação controvertida nos tribunais. Vejamos:
Ementa: SEGUNDO AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO RESCISÓRIA. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO A LITERAL DISPOSIÇÃO DE LEI. SÚMULA 343 DO STF. INCIDÊNCIA TAMBÉM NOS CASOS EM QUE A CONTROVÉRSIA DE ENTENDIMENTOS SE BASEIA NA APLICAÇÃO DE NORMA CONSTITUCIONAL. PRECEDENTE. AGRAVO DESPROVIDO. 1. Não cabe ação rescisória, sob a alegação de ofensa a literal dispositivo de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais, nos termos da jurisprudência desta Corte. 2. In casu, incide a Súmula 343 deste Tribunal, cuja aplicabilidade foi recentemente ratificada pelo Plenário deste Tribunal, inclusive quando a controvérsia de entendimentos se basear na aplicação de norma constitucional (RE 590.809, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 24/11/2014). 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (STF, AR 1415 AgR-segundo/RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, Julgado em 09/04/2015 e Publicado em 29/04/2015).
Resta claro, portanto, a alteração da jurisprudência, ou seja, do entendimento até então firmado, mesmo sem haver qualquer alteração no texto do diploma legal ou constitucional que disciplina a matéria.
Exemplo 10: Superação Legislativa da Jurisprudência e Ativismo Congressual.
Como já afirmado anteriormente, seguindo a já citada doutrina do mestre Luís Roberto Barroso, a mutação constitucional pode decorrer de interpretação (judicial ou administrativa), como também de atividade legislativa e dos costumes.
Nesse sentido, cabe ressaltar que a atividade legislativa, inovadora, em tese, em sua essência, poderá ser sufragada, ou não, pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Vale ressaltar aqui que nosso ordenamento jurídico estabelece a independência dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, tal como expressamente estatuído no artigo 2º da Constituição, não obstante seja o poder, de fato, um só, havendo tecnicamente apenas uma distinção das atribuições do exercício do poder, para que o mesmo não fosse concentrado nas mãos de um único agente. A doutrina, inclusive, do ilustre professor Fernando Capez aponta nessa direção. Note:
O poder é a capacidade de coordenar e impor decisões visando a realização de determinados fins.
O poder é uno, indivisível e indelegável, e pertence exclusivamente ao povo.
Embora único, o poder se desdobra, compõe-se de várias funções, fato que permite falar em distinção das funções, que fundamentalmente são três: a legislativa, a executiva e a jurisdicional.
(...)
A divisão de poderes fundamenta-se, portanto, em dois elementos: especialização funcional (cada órgão é especializado na sua função) e independência orgânica (inexiste subordinação entre um e outro)[21].
A necessidade de desconcentrar o poder e não deixá-lo nas mãos de um único agente tem por fito evitar o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, conforme depreende-se da doutrina histórica de Aristóteles, John Locke e Montesquieu, como bem explicado na doutrina do ilustre jurista brasileiro Alexandre de Moraes. Observe:
A Constituição Federal, visando, principalmente, evitar o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais do homem, previu a existência dos Poderes do Estado e da Instituição do Ministério Público, independentes e harmônicos entre si, repartindo entre eles as funções estatais e prevendo prerrogativas e imunidades para que bem pudessem exercê-las, bem como criando mecanismos de controles recíprocos, sempre como garantia da perpetuidade do Estado democrático de Direito.
A divisão segundo o critério funcional é a célebre “separação de Poderes”, que consiste em distinguir três funções estatais, quais sejam, legislação, administração e jurisdição, que devem ser atribuídas a três órgãos autônomos entre si, que as exercerão com exclusividade, foi esboçada pela primeira vez por Aristóteles, na obra “Política”, detalhada, posteriormente, por John Locke, Segundo tratado do governo civil, que também reconheceu três funções distintas, entre elas a executiva, consistente em aplicar a força pública no interno, para assegurar a ordem e do direito, e a federativa, consistente em manter relações com outros Estados, especialmente por meio de alianças. E, finalmente, consagrada na obra de Montesquieu O espírito das leis, a quem devemos a divisão e distribuição clássicas, tornando-se princípio fundamental da organização política liberal e transformando-se em dogma pelo art. 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e é prevista no art. 2º da nossa Constituição Federal[22].
Nesse sentido, a princípio, não poderia haver qualquer insurgência de um poder em face do outro que fosse violadora ou deturpadora do sistema organizatório-funcional, não obstante seja possível haver o controle e a fiscalização.
Assim, caso o Poder Legislativo não concorde com determinado entendimento firmado pelo Poder Judiciário, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal – STF, poderá insurgir-se e inovar o ordenamento com atos normativos primários contrários à decisão exarada pelo Judiciário, até porque, como sabemos, o Poder Legislativo não fica vinculado, em sua função típica de legislar, às decisões do STF, mesmo que advindas do controle concentrado de constitucionalidade, quando haveria, em relação aos demais órgãos, efeito vinculante e eficácia erga omnes.
Como já mencionamos, quando isso ocorrer haverá uma reação legislativa, denotando um verdadeiro ativismo Congressual, no qual haverá uma insurgência do Congresso Nacional à decisão advinda do Judiciário.
Nada impede, inclusive, que o ato normativo primário, editado pelo Poder Legislativo, seja declarado inconstitucional pelo Poder Judiciário, o que acarretará, a princípio, sua nulidade e inaptidão para produzir efeitos jurídicos. Também poderá ocorrer, inclusive, o contrário, ou seja, o Poder Judiciário, seja pela mudança na composição dos membros da Corte, seja pela superveniência de fatos novos, altere seu entendimento e passe a considerar a reação legislativa como legítima e compatível com o ordenamento.
Explicaremos, destarte, dois casos diversos, um que concretizou uma reação legislativa modificadora da jurisprudência do STF que obteve sucesso e foi, posteriormente, sufragado pela Suprema Corte e outro caso em que a inovação legislativa foi novamente rechaçada pela jurisprudência do Supremo, que declarou o ato normativo inovador inconstitucional.
O primeiro caso decorre da inovação da Lei da Ficha Limpa, Lei Complementar nº 135 de 2010. Inicialmente, a jurisprudência, tanto do STF como do TSE, entendiam que não poderia ser reconhecida inelegibilidade de qualquer candidato, salvo se houvesse uma condenação judicial transitada em julgado em face dele, em homenagem ao princípio da presunção de inocência, denominado por alguns de princípio da não-culpabilidade.
Com efeito, a LC 135/2010 alterou esse entendimento, em típica reação legislativa, passando a estabelecer que não seria mais necessário haver a condenação com trânsito em julgado para deflagrar a inelegibilidade, sendo suficiente, tão-somente, a condenação proferida por órgão colegiado de algum tribunal.
O Supremo Tribunal Federal – STF superou seu entendimento e reconheceu a constitucionalidade da LC 135/2010, declarando não haver violação ao princípio da presunção de inocência, conforme restou decidido na ADC 29/DF, Rel. Min Luiz Fux, Dje 29/06/2012. Note:
EMENTA: AÇÕES DECLARATÓRIAS DE CONSTITUCIONALIDADE E AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE EM JULGAMENTO CONJUNTO. LEI COMPLEMENTAR Nº 135/10. HIPÓTESES DE INELEGIBILIDADE. ART. 14, § 9º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. MORALIDADE PARA O EXERCÍCIO DE MANDATOS ELETIVOS. INEXISTÊNCIA DE AFRONTA À IRRETROATIVIDADE DAS LEIS: AGRAVAMENTO DO REGIME JURÍDICO ELEITORAL. ILEGITIMIDADE DA EXPECTATIVA DO INDIVÍDUO ENQUADRADO NAS HIPÓTESES LEGAIS DE INELEGIBILIDADE. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL): EXEGESE ANÁLOGA À REDUÇÃO TELEOLÓGICA, PARA LIMITAR SUA APLICABILIDADE AOS EFEITOS DA CONDENAÇÃO PENAL. ATENDIMENTO DOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO: FIDELIDADE POLÍTICA AOS CIDADÃOS. VIDA PREGRESSA: CONCEITO JURÍDICO INDETERMINADO. PRESTÍGIO DA SOLUÇÃO LEGISLATIVA NO PREENCHIMENTO DO CONCEITO. CONSTITUCIONALIDADE DA LEI. AFASTAMENTO DE SUA INCIDÊNCIA PARA AS ELEIÇÕES JÁ OCORRIDAS EM 2010 E AS ANTERIORES, BEM COMO E PARA OS MANDATOS EM CURSO.
1. A elegibilidade é a adequação do indivíduo ao regime jurídico – constitucional e legal complementar – do processo eleitoral, razão pela qual a aplicação da Lei Complementar nº 135/10 com a consideração de fatos anteriores não pode ser capitulada na retroatividade vedada pelo art. 5º, XXXVI, da Constituição, mercê de incabível a invocação de direito adquirido ou de autoridade da coisa julgada (que opera sob o pálio da cláusula rebus sic stantibus) anteriormente ao pleito em oposição ao diploma legal retromencionado; subjaz a mera adequação ao sistema normativo pretérito (expectativa de direito).
2. A razoabilidade da expectativa de um indivíduo de concorrer a cargo público eletivo, à luz da exigência constitucional de moralidade para o exercício do mandato (art. 14, § 9º), resta afastada em face da condenação prolatada em segunda instância ou por um colegiado no exercício da competência de foro por prerrogativa de função, da rejeição de contas públicas, da perda de cargo público ou do impedimento do exercício de profissão por violação de dever ético-profissional.
3. A presunção de inocência consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição Federal deve ser reconhecida como uma regra e interpretada com o recurso da metodologia análoga a uma redução teleológica, que reaproxime o enunciado normativo da sua própria literalidade, de modo a reconduzi-la aos efeitos próprios da condenação criminal (que podem incluir a perda ou a suspensão de direitos políticos, mas não a inelegibilidade), sob pena de frustrar o propósito moralizante do art. 14, § 9º, da Constituição Federal.
4. Não é violado pela Lei Complementar nº 135/10 o princípio constitucional da vedação de retrocesso, posto não vislumbrado o pressuposto de sua aplicabilidade concernente na existência de consenso básico, que tenha inserido na consciência jurídica geral a extensão da presunção de inocência para o âmbito eleitoral.
5. O direito político passivo (ius honorum) é possível de ser restringido pela lei, nas hipóteses que, in casu, não podem ser consideradas arbitrárias, porquanto se adequam à exigência constitucional da razoabilidade, revelando elevadíssima carga de reprovabilidade social,sob os enfoques da violação à moralidade ou denotativos de improbidade, de abuso de poder econômico ou de poder político.
6. O princípio da proporcionalidade resta prestigiado pela Lei Complementar nº 135/10, na medida em que: (i) atende aos fins moralizadores a que se destina; (ii) estabelece requisitos qualificados de inelegibilidade e (iii) impõe sacrifício à liberdade individual de candidatar-se a cargo público eletivo que não supera os benefícios socialmente desejados em termos de moralidade e probidade para o exercício de referido munus publico.
7. O exercício do ius honorum (direito de concorrer a cargos eletivos), em um juízo de ponderação no caso das inelegibilidades previstas na Lei Complementar nº 135/10, opõe-se à própria democracia, que pressupõe a fidelidade política da atuação dos representantes populares.
8. A Lei Complementar nº 135/10 também não fere o núcleo essencial dos direitos políticos, na medida em que estabelece restrições temporárias aos direitos políticos passivos, sem prejuízo das situações políticas ativas.
9. O cognominado desacordo moral razoável impõe o prestígio da manifestação legítima do legislador democraticamente eleito acerca do conceito jurídico indeterminado de vida pregressa, constante do art. 14, § 9.º, da Constituição Federal.
10. O abuso de direito à renúncia é gerador de inelegibilidade dos detentores de mandato eletivo que renunciarem aos seus cargos, posto hipótese em perfeita compatibilidade com a repressão, constante do ordenamento jurídico brasileiro (v.g., o art. 55, § 4º, da Constituição Federal e o art. 187 do Código Civil), ao exercício de direito em manifesta transposição dos limites da boa-fé.
11. A inelegibilidade tem as suas causas previstas nos §§ 4º a 9º do art. 14 da Carta Magna de 1988, que se traduzem em condições objetivas cuja verificação impede o indivíduo de concorrer a cargos eletivos ou, acaso eleito, de os exercer, e não se confunde com a suspensão ou perda dos direitos políticos, cujas hipóteses são previstas no art. 15 da Constituição da República, e que importa restrição não apenas ao direito de concorrer a cargos eletivos (ius honorum), mas também ao direito de voto (ius sufragii). Por essa razão, não há inconstitucionalidade na cumulação entre a inelegibilidade e a suspensão de direitos políticos.
12. A extensão da inelegibilidade por oito anos após o cumprimento da pena, admissível à luz da disciplina legal anterior, viola a proporcionalidade numa sistemática em que a interdição política se põe já antes do trânsito em julgado, cumprindo, mediante interpretação conforme a Constituição, deduzir do prazo posterior ao cumprimento da pena o período de inelegibilidade decorrido entre a condenação e o trânsito em julgado.
13. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga improcedente. Ações declaratórias de constitucionalidade cujos pedidos se julgam procedentes, mediante a declaração de constitucionalidade das hipóteses de inelegibilidade instituídas pelas alíneas “c”, “d”, “f”, “g”, “h”, “j”, “m”, “n”, “o”, “p” e “q” do art. 1º, inciso I, da Lei Complementar nº 64/90, introduzidas pela Lei Complementar nº 135/10, vencido o Relator em parte mínima, naquilo em que, em interpretação conforme a Constituição, admitia a subtração, do prazo de 8 (oito) anos de inelegibilidade posteriores ao cumprimento da pena, do prazo de inelegibilidade decorrido entre a condenação e o seu trânsito em julgado.
14. Inaplicabilidade das hipóteses de inelegibilidade às eleições de 2010 e anteriores, bem como para os mandatos em curso, à luz do disposto no art. 16 da Constituição. Precedente: RE 633.703, Rel. Min. GILMAR MENDES (repercussão geral).
Esse caso demonstra que não há, em tese, uma supremacia judicial do Supremo Tribunal Federal – STF, o qual poderá, como ocorrido no caso acima, modificar sua jurisprudência em homenagem à inovação legislativa surgida no ordenamento, fruto de reação legislativa.
O segundo caso refere-se à Lei 9.504/97, Lei das Eleições. O Plenário do STF, em 2012, declarou alguns dispositivos do referido diploma inconstitucional, por controle abstrato de constitucionalidade, quando julgou as ADIs 4430 e 4795.
Ocorre, todavia, que o Congresso Nacional reagiu e editou a Lei 12.875/2013, alterando novamente a lei das eleições, Lei 9.504/97, e estabelecendo novamente regras semelhantes àquelas que já haviam sido declaradas inconstitucionais pelo STF em sede de controle concentrado. Logo, houve uma reação legislativa, um ativismo do Congresso Nacional, tentando superar, novamente, o entendimento do Supremo.
Referida atitude, em tese, seria mesmo possível, já que o Poder Legislativo não fica vinculado às decisões do STF, mesmo que advindas do controle abstrato de constitucionalidade, no qual a decisão prolatada tem efeito vinculante aos demais órgãos e eficácia erga omnes.
No entanto, foi proposta nova ADI em face da Lei 12.875/2013 e o Plenário do STF rechaçou novamente os dispositivos que já haviam sido, outrora, declarados inconstitucionais, o que se mostra, frise-se, juridicamente possível, já que a decisão do legislativo, ou seja, o ato normativo inovador, não vincula o Plenário do Supremo Tribunal Federal – STF.
Isso ocorre em homenagem à separação de poderes, elencado pela Constituição no art. 60, parágrafo 4º, inciso III, como cláusula pétrea, detendo cada poder sua atribuição constitucional, mesmo que possa aparentar, a primeira vista, um risco de desequilíbrio ao pacto federativo.
Por fim, vale ressaltar que o próprio controle e fiscalização de um poder sobre o outro é inerente ao sistema de freios e contrapesos (“chacks and balances”), de inspiração norte-americana, adotado por nosso ordenamento jurídico, sendo, portanto, legítimo e constitucional.
Agora, após explicitar dez casos exemplificativos apontados pela doutrina e jurisprudência como sendo de mutação constitucional, explicaremos um caso extremamente controvertido em sede doutrinária, não obstante já tenha o Plenário do Supremo Tribunal Federal – STF se pronunciado sobre o tema, como abaixo passamos a expor.
EXEMPLO 11: O papel do Senado no Controle Difuso de Constitucionalidade – Artigo 52, X, CRFB/88.
Tema de extrema controvérsia, que tem gerado uma verdadeira balbúrdia doutrinária, consiste em saber qual o papel atribuído ao Senado federal, pelo poder constituinte originário, no controle difuso de constitucionalidade, na exegese do art. 52, inciso X, da Constituição.
Assim dispõe a Constituição, em seu artigo 52, inciso X:
Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;
Como sabemos, no controle abstrato de constitucionalidade, por ser um processo objetivo, sem partes e sem lide, o efeito da decisão prolatada pelo STF é, em regra, erga omnes e vinculante, tal como ocorre no julgamento das ADIs, ADCs e ADPF.
Já nos processos subjetivos, ou seja, em que o controle de constitucionalidade é feito pela via difusa, os efeitos da decisão são, em regra, inter partes e não vinculam os demais órgãos da administração, sendo este o entendimento amplamente prevalecente na doutrina.
Ocorre, no entanto, que para alguns renomados juristas, caberia ao Senado não proceder à suspensão da lei declarada inconstitucional, mas tão-somente dar a devida publicidade da decisão tomada pelo STF, por entenderem que os efeitos da decisão do controle abstrato acima mencionado devem ser estendidos ao controle difuso.
Nesse sentido é a doutrina do ilustre Ministro Gilmar Ferreira Mendes, para quem caberia ao Senado apenas dar publicidade à decisão do STF, a qual já teria, mesmo no controle difuso, eficácia erga omnes, como sustentou no julgamento da Reclamação 4.335/AC. Defende, portanto, a tese da objetivação do controle difuso e da transcendência dos motivos determinantes, ou seja, atribuir ao controle difuso, subjetivo, os mesmos efeitos havidos no controle abstrato, objetivo, de constitucionalidade.
Referido entendimento também é acompanhado pelo ilustre Ministro do STF aposentado, Min. Eros Grau e, também, é sustentado pelo Ministro teori Zavascki, atualmente no STF, desde a época em que era Ministro do STJ, onde defendia expressamente a “vocação expansiva” do controle difuso, conforme restou consignado no seu voto, no julgamento do Recurso Especial nº 763.812/RS. Vejamos:
A inconstitucionalidade é vício que acarreta a nulidade ex tunc do ato normativo, que, por isso mesmo, é desprovido de aptidão para incidir eficazmente sobre os fatos jurídicos desde então verificados, situação que não pode deixar de ser considerada. Também não pode ser desconsiderada a decisão do STF que reconheceu a inconstitucionalidade. Embora tomada em controle difuso, é decisão de incontestável e natural vocação expansiva, com eficácia imediatamente vinculante para os demais tribunais, inclusive o STJ (CPC, art. 481, § único: "Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão"), e com força de inibir a execução de sentenças judiciais contrárias, que se tornam inexigíveis (CPC, art. 741, § único; art. 475-L, § 1º, redação da Lei 11.232/05: “Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal”).
Sob esse enfoque, há idêntica força de autoridade nas decisões do STF em ação direta quanto nas proferidas em via recursal. Merece aplausos essa aproximação, cada vez mais evidente, do sistema de controle difuso de constitucionalidade ao do concentrado, que se generaliza também em outros países (SOTELO, José Luiz Vasquez. “A jurisprudência vinculante na 'common law' e na 'civil law'”, in Temas Atuais de Direito Processual Ibero-Americano, Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 374; SEGADO, Francisco Fernandez. La obsolescência de la bipolaridad 'modelo americano-modelo europeo kelseniano' como critério nalitico del control de constitucionalidad y la búsqueda de una nueva tipología explicativa”, apud Parlamento y Constitución, Universida de Castilla-La Mancha, Anuario (separata), nº 6, p. 1-53). No atual estágio de nossa legislação, de que são exemplos esclarecedores os dispositivos acima transcritos, é inevitável que se passe a atribuir simples efeito de publicidade às resoluções do Senado previstas no art. 52, X, da Constituição. É o que defende, em doutrina, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, para quem “não parece haver dúvida de que todas as construções que se vêm fazendo em torno do efeito transcendente das decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso Nacional, com o apoio, em muitos casos, da jurisprudência da Corte, estão a indicar a necessidade de revisão da orientação dominante antes do advento da Constituição de 1988" (MENDES, Gilmar Ferreira. “O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional”, Revista de Informação Legislativa, n. 162, p. 165).
Ocorre, no entanto, que no controle difuso a declaração de inconstitucionalidade requerida aparece como causa de pedir e não como pedido, de modo que, pela doutrina clássica e grande parte da moderna, não teria a aptidão para fazer coisa julgada e atingir terceiros. Assim, seus efeitos seriam apenas inter partes.
Portanto, o entendimento doutrinário que ainda prevalece é que no controle difuso não haveria efeito erga omnes, em sentido contrário à tese da objetivação do controle difuso sustentada por Gilmar Mendes, Eros Grau e Teori Zavascki, dentre outros. É a doutrina, inclusive, do notável Pedro Lenza, que assim se manifesta:
O efeito erga omnes da decisão foi previsto somente para o controle concentrado e para a súmula vinculante (EC nº 45/2004) e, em se tratando de controle difuso, nos termos da regra do art. 52, X, da CF/88, somente após atuação discricionária e política do Senado Federal.
Portanto, no controle difuso, não havendo a suspensão da lei pelo Senado Federal, a lei continua válida e eficaz, só se tornando nula no caso concreto, em razão de sua não aplicação[23].
Prevalece na doutrina, portanto, tratar-se de uma faculdade e não de uma obrigação, na qual o Senado Federal poderá, escorado em decisão discricionária, de cunho político, suspender a execução, no todo ou em parte, da lei declarada inconstitucional pelo STF em controle difuso, com fulcro no art. 52, X, da Constituição.
Por fim, insta destacar que o Supremo Tribunal Federal – STF teve a oportunidade, recentemente, de apreciar o tema em voga e, nesse desiderato, considerou não admitir a teoria da transcendência dos motivos determinantes, que consiste em atribuir efeito vinculante à fundamentação da decisão, ou seja, à ratio decidendi.
Apesar de já ter havido casos em que nossa Suprema Corte prestigiou referido efeito transcendente à fundamentação, o que tem prevalecido é a rejeição da teoria da transcendência dos motivos determinantes, como observamos nos julgados transcritos abaixo:
EMENTA AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO – CABIMENTO DA AÇÃO CONSTITUCIONAL – AUSÊNCIA DE IDENTIDADE DE TEMAS ENTRE O ATO RECLAMADO E O PARADIGMA DESTA CORTE – TRANSCENDÊNCIA DE MOTIVOS – TESE NÃO ADOTADA PELA CORTE – AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. É necessária a existência de aderência estrita do objeto do ato reclamado ao conteúdo das decisões paradigmáticas do STF para que seja admitido o manejo da reclamatória constitucional.
2. Embora haja similitude quanto à temática de fundo, o uso da reclamação, no caso dos autos, não se amolda ao mecanismo da transcendência dos motivos determinantes, de modo que não se promove a cassação de decisões eventualmente confrontantes com o entendimento do STF por esta via processual. Precedente.
3. Agravo regimental não provido.
(Rcl 3294 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 03/11/2011)
(...) Este Supremo Tribunal, por ocasião do julgamento da Rcl 3.014/SP, Rel. Min. Ayres Britto, rejeitou a aplicação da chamada “teoria da transcendência dos motivos determinantes”.
(Rcl 9778 AgR, Relator Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2011).
Frise-se, por fim, que esse é o entendimento amplamente dominante, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, não obstante o alto renome dos juristas que defendem a tese contrária, qual seja, a objetivação do controle difuso.
7 – CONCLUSÃO:
Procuramos estabelecer, no presente artigo, como ocorre o fenômeno da mutação constitucional, consistente na modificação da norma com a manutenção do texto, elencando as principais características e apontando os métodos ou mecanismos que proporcionarão a ocorrência da transmutação informal da norma, proposto por Luís Roberto Barroso, como sendo a interpretação, a legislação e os costumes.
Estabelecemos, ainda, os limites impostos à mutação constitucional, dando especial relevo à literalidade da norma, a qual não poderá ser desconsiderada pelo hermeneuta, bem como a necessidade do lastro democrático que deve haver na modificação da norma, destacando os métodos e princípios de interpretação da Constituição, citando inúmeros exemplos já reconhecidos, em sede doutrinária e jurisprudencial, como casos típicos de mutação constitucional.
Assim, entendemos de crucial importância que o exegeta, ao proceder à interpretação da norma, se atenha às constantes mudanças havidas na sociedade globalizada contemporânea, que rompe fronteiras e acarreta sucessivas inovações que não poderão passar despercebidas para que haja a correta aplicação da norma, tendo por fim o próprio homem e sua dignidade.
Entender o fenômeno da mutação constitucional consiste em compreender que o ordenamento normativo é formado por um plexo de normas que se sucedem, se contrapõem, se sobrepõem e se integram, de modo que caberá ao hermeneuta conhecer a função que tem o sistema normativo de uma dada sociedade para que consiga extrair a essência correta da norma, sem interpretações que deturpem o ordenamento, o qual caracteriza-se como algo dinâmico, suscetível a mudanças. Nesse sentido, posiciona-se o ilustre filósofo e jurista italiano Norberto Bobbio:
A história se apresenta então como um complexo de ordenamentos normativos que se sucedem, se sobrepõem, se contrapõem, se integram. Estudar uma civilização do ponto de vista normativo significa, afinal, perguntar-se quais ações foram, naquela determinada sociedade, proibidas, quais ordenadas, quais permitidas; significa, em outras palavras, descobrir a direção ou as direções fundamentais em que se conduzia a vida de cada indivíduo. Perguntas do gênero: Junto a determinado povo, eram permitidos ou proibidos os sacrifícios humanos? Era proibida ou permitida a poligamia, a propriedade dos bens imóveis, a escravidão? Como eram reguladas as relações de família e o que era permitido e o que era proibido ao pai ordenar aos filhos? Como era regulado o exercício do poder e quais eram os deveres e os direitos dos súditos diante do chefe, e quais os deveres e direitos do chefe diante dos súditos?”, são todas perguntas que pressupõem o conhecimento da função que tem o sistema normativo de caracterizar uma dada sociedade; e não podem ser respondidas senão através do estudo das regras de conduta que moldaram a vida daqueles homens, distinguindo-a da vida de outros homens, pertencentes a outra sociedade inserida em outro sistema normativo[24].
Assim, como já destacamos, não pretendemos encerrar o debate ou pôr termo a qualquer discussão, muito menos apontar qual o jurista ou a corrente intelectiva é a mais correta. Pelo contrário, temos por escopo acalorar o debate e fazer as devidas críticas construtivas, de modo a ajudar na consecução de um ordenamento que atenda melhor a finalidade do bem comum, com o devido respeito às instituições democráticas e à dignidade humana, devendo sempre ser buscado a exegese, ainda que informal e decorrente de mutação, que considere o homem com um fim em si mesmo, na busca da sua felicidade.
8 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
OLIVEIRA FILHA, Manuelita Hermes Rosa; MOTA, Iuri Falcão Xavier et al. Mutação constitucional. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 841, 22 out. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7433>. Acesso em: 19 jul. 2015
OLIVEIRA, Edezio Muniz de. Mutação Constitucional. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jun. 2011. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.32350&seo=1>. Acesso em: 20 jul. 2015.
GALLO, Ronaldo Guimarães. Mutação constitucional. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/3841>. Acesso em: 20 jul. 2015.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 17ª Edição, Ed. Saraiva.
MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 3ª Edição, Ed. Saraiva.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 2ª Edição, Ed. Saraiva.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
CAPEZ, Fernando. Direito Constitucional, 14ª Edição, Ed. Damásio de Jesus.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 19ª Edição, Sâo Paulo, Ed. Atlas S.A.
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica, 3ª Edição Revista, Edipro – Edições Profissionais Ltda, trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani BuenoSudatti, apresentação Alaôr Caffé Alves.
[1] OLIVEIRA FILHA, Manuelita Hermes Rosa; MOTA, Iuri Falcão Xavier et al. Mutação constitucional. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 841, 22 out. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7433>. Acesso em: 19 jul. 2015.
[2] OLIVEIRA, Edezio Muniz de. Mutação Constitucional. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jun. 2011. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.32350&seo=1>. Acesso em: 20 jul. 2015.
[3] GALLO, Ronaldo Guimarães. Mutação constitucional. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/3841>. Acesso em: 20 jul. 2015.
[4] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 17ª Edição, Ed. Saraiva, p. 146.
[5] MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 3ª Edição, Ed. Saraiva, p. 213).
[6] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 17ª Edição, Ed. Saraiva, p. 146.
[7] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 17ª Edição, Ed. Saraiva, p. 146.
[8] MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 3ª Edição, Ed. Saraiva, p. 230.
[9] MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 3ª Edição, Ed. Saraiva, p. 130.
[10] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 2ª Edição, Ed. Saraiva, p. 126-127.
[11] BARROSO, Luiz Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 2ª Edição. Ed. Saraiva, p. 130-136.
[12] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 142-143.
[13] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 17ª Edição, Ed. Saraiva, p. 159.
[14] MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 3ª Edição, Ed. Saraiva, p. 230.
[15] MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 3ª Edição, Ed. Saraiva, p. 132.
[16] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional, 2ª Edição, p. 126-127.
[17] MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 3ª Edição, Ed. Saraiva, p. 230.
[18] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 17ª Edição, Ed. Saraiva, p. 147.
[19] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 17ª Edição, Ed. Saraiva, p. 147, apud Olavo Alves Ferreira, Controle de Constitucionalidade e seus efeitos, nota 112, p. 140.
[20] STF, Rcl 3302 AgRg/DF, Rel. Min Gilmar Ferreira Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 30/04/2014 e publicado em 19/05/2014.
[21] CAPEZ, Fernando. Direito Constitucional, 14ª Edição, Ed. Damásio de Jesus, p. 39.
[22] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 19ª Edição, Sâo Paulo, Ed. Atlas S.A, p. 373.
[23] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 17ª Edição, Ed. Saraiva, p. 300.
[24] BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica, 3ª Edição Revista, Edipro – Edições Profissionais Ltda, trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani BuenoSudatti, apresentação Alaôr Caffé Alves, p. 25.
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Pós-Graduado em Direito Público. Cidade de Domicílio: Vitória/ES.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VASQUES, Lécio José de Oliveira Moraes. Mutação constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46355/mutacao-constitucional. Acesso em: 22 nov 2024.
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