RESUMO: A súmula nº 286 foi criada justamente para alcançar os contratos novados, diante de distorções que vinham sendo impostas pelo instituto da novação, feitas principalmente pelas instituições financeiras. Contudo, a Quarta Turma do STJ, em atual entendimento, passou a não mais aplicar a citada súmula quando vislumbrada a novação, sob o fundamento de não interferir na autonomia da vontade das partes, o que poderá perpetuar ilegalidades existentes nos contratos originários da obrigação novada. Essa mudança de interpretação é o cerne do debate posto no presente estudo, pois, além de estar em desacordo com os princípios regentes da uniformização da jurisprudência, contraria a moderna compreensão do direito civil-constitucional, o qual privilegia a boa-fé objetiva e a função social do contrato.
Palavras-Chaves: Novação. Obrigação Nova. Súmula nº 286. STJ. Quarta Turma. Precedentes Judiciais. Originários. Boa-fé objetiva. Função Social do Contrato.
ABSTRACT: The Docket no. 286 of Brazilian Superior Court of Justice’s jurisprudence was created to reach the novated contracts, before distortions that were being imposed by the institute of novation, mainly made by financial institutions. However, the Fourth Chamber of the Superior Court of Justice, in a new understanding, has not applied the quoted Docket when glimpsed novation itself, under the plea of not interfering in the autonomy of the parties, which may perpetuate many illegalities on the original contracts of novated obligation. This change in interpretation is the heart of the debate put into this study. That’s because, in addition to being in disagreement with the principles of stabilization of jurisprudence, it contraries to the modern understanding of civil and constitutional law, which privileges the objective good faith and the function social of the contract.
Key Words: Novation. New Obligation. Precedent. Docket nº 286. Fourth Chamber of the Superior Court of Justice. Judicial precedents. Originating. Objective good faith. Social Function of the Contract.
A proposta nuclear do presente trabalho reside na análise da mudança de interpretação quanto à aplicação do entendimento da súmula nº 286 do STJ, no que toca à novação, dada pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na atualidade.
O estudo, no qual se identificaram as divergências, deu-se por meio comparativo dos julgados proferidos por aquele Tribunal. Os primeiros analisados foram os precedentes que deram origem à súmula nº 286, editada em 2004, os quais afirmavam ser plenamente possível a discussão de ilegalidades em contratos anteriores quando ocorrida a novação.
Todavia, verifica-se que os recentes julgados da Quarta Turma, em interpretação diametralmente oposta aos originários, passam a aplicar a súmula nº 286 apenas aos contratos nos quais não fosse verificada a novação ou quando inexistissem inovações substanciais, sob o fundamento de não interferir no campo de vontade das partes quando há desejo de assumir nova obrigação.
Visto que o atual entendimento da Quarta Turma do STJ aparentemente contraria os princípios contratuais sociais, presentes na legislação pátria, como o da boa-fé objetiva e da função social, em prol do princípio liberal contratual e da força obrigatória dos contratos, resta importante trazer a questão ao debate.
Isso porque dito entendimento, ainda, diverge dos precedentes originários da súmula nº 286, em afronta ao processo de uniformização da jurisprudência quanto à aplicação da legislação infraconstitucional, da qual o Superior Tribunal de Justiça é guardião. Por outro lado, ele interpreta com literalidade o instituto da novação, o qual aduz pela substituição de uma nova obrigação com o desaparecimento da anterior, fato que fomenta a segurança jurídica aos contratos e, consequentemente, multiplica as operações oferecidas aos consumidores, pelas instituições financeiras.
Incialmente, tratar-se-á sobre o instituto da novação: conceito, pressupostos e consequências serão as questões mais discutidas. Após, passar-se-á ao estudo da evolução do Estado Liberal para o Estado do Bem Estar Social, sua influência na Nova Teoria Contratual, culminando com o Estudos dos princípios contratuais sob a influência na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Os dois últimos assuntos se restringirão a trazer os precedentes que deram origem à súmula nº 286 comparados com os da atualidade.
Por fim, espera-se concluir se o fato da nova interpretação dada pela Quarta Turma do STJ quanto à aplicação da súmula nº 286, realmente viria a prejudicar o consumidor, diante da possibilidade dada à parte hipersuficiente, em sua maioria representada por instituições financeiras, utilizar o instituto da novação para encobrir ilegalidades em contratos anteriores.
A novação é criação de obrigação nova para extinguir a anterior. Portanto, o seu principal efeito é criar uma obrigação justamente para substituir uma pré-existente. Concluiu Orlando Gomes[1], seguido por outros doutrinadores, que a intenção não é extinguir para criar, mas sim criar para extinguir.
Trata-se, então, de modo extintivo da obrigação, porém de modo não-satisfativo, pois a novação não produz, como no pagamento, a satisfação imediata do crédito. Na verdade, o credor adquirirá outro direito ou passará a exercê-lo contra pessoa diversa da antiga obrigação.
Contudo, segundo ainda Orlando Gomes[2] , não há novação quando apenas se verifiquem acréscimos ou outras alterações secundárias na dívida como, por exemplo, a estipulação de juros, a exclusão de uma garantia, o encurtamento do prazo de vencimento e, também, a aposição de um termo. Isto porque a novação não trata propriamente da transformação ou conversão de uma dívida em outra, mas de um fenômeno mais amplo, pois exige uma diversidade substancial entre a obrigação anterior e a novada.
Diante de tal complexidade, para que se verifique a novação é necessário que primeiro se identifiquem seus requisitos ou pressupostos caracterizadores: a existência de obrigação anterior (obligatio novanda), a constituição de uma nova obrigação (aliquid novi) e a intenção de novar (animus novandi).
A necessidade de que exista uma obrigação anterior é presumida, pois a novação visa exatamente substituí-la. Como dispõe o art. 367 do CC, as obrigações nulas e extintas não podem ser objeto de novação. O motivo é intuitivo: se já extinta não há o que substituir e se nula não poderá ser confirmada por razões de ordem pública. Nessa mesma linha, a obrigação anulável poderá plenamente ser novada, já que esta tem existência até ser rescindida, podendo ser confirmada por acordo de vontades e convalescer com o decurso do tempo; assim interpreta-se sua novação como renúncia do interessado ao direito de pleitear a anulação.
O segundo requisito é a constituição de uma nova dívida, a qual tem a função de extinguir e, consequentemente, substituir a anterior. A inovação pode recair sobre o objeto e sobre os sujeitos (ativo e passivo) da obrigação, gerando, respectivamente, novação objetiva e subjetiva.
O terceiro e último requisito é o animus novandi, o qual pressupõe um acordo de vontades. Esse, definitivamente, é o que gera mais controvérsia, principalmente diante da dificuldade da sua comprovação. É imprescindível que se demonstre a intenção das partes em novar, isto porque a novação poderá resultar em renúncia ao crédito e aos direitos acessórios do credor.
Do exposto, entende a maioria da doutrina que a vontade de novar deve ser manifestada expressamente ou, ao menos, deve resultar de modo claro e inequívoco das circunstâncias que envolvem a estipulação. O animus novandi não se presume, mas isso de modo algum significa que ele tenha que ser expresso. Pode ser tacitamente requerido que se nove, o que é expressamente admitido, inclusive, pelo Código Civil Brasileiro. A questão central da ocorrência do animus novandi redunda, então, quanto à hermenêutica, importando que tenha sido trazido ao universo jurídico a vontade de novar.
Nessa linha, preleciona Carvalho de Mendonça:
“A novação tácita, portanto, dá-se todas as vezes que, sem declarar por termos precisos que a efetua, o devedor é exonerado da primeira obrigação e assume outra diversa, na substância ou na forma, da primeira, de modo a não ser uma simples modificação dela. É preciso, em suma, que a primeira e a segunda sejam incompatíveis. Assim, não induz novação por não ser incompatível uma com a outra: a mudança do documento da obrigação particular para o público, ou vice versa; a diminuição do prazo, o acréscimo das garantias, a mudança do lugar do pagamento, a cláusula nova de juros estipulados para uma dívida que os não vencia, a transferência da natureza individual para a solidária, a aposição de uma cláusula penal, etc. Ao contrário, se se converte uma alternativa em simples, ou vice versa, se se opõe ou se retira uma condição; se se altera, enfim, o modus da obrigação, a novação é inquestionável.”[3]
Uma das principais consequências da novação encontra-se na norma esculpida no art. 364 do CC, o qual aduz que “a novação extingue os acessórios e garantias da dívida, sempre que não houver estipulação em contrário”. Tal comando normativo é de fácil conclusão, posto que, se a obrigação primitiva não mais subsiste, é extinta, não há razão para as obrigações satelitárias permanecerem em vigência, visto que, salvo estipulação em contrário, o acessório segue o principal.
O mesmo entendimento é seguido pelo art. 366 do CC, em que se pugna pela exoneração do fiador quando a novação é feita sem o seu consenso perante o devedor principal. Entendimento legal também tido como consequência da extinção absoluta da antiga obrigação quando se celebra uma novação, posto que o negócio novado nasce sem as prejudicialidades do anterior, mas também sem as benesses.
Pelo exposto, resta claro que quando se nova a dívida, necessariamente há extinção da anterior. Se não houvesse acontecido a novação estaria o devedor duplamente vinculado: pela primeira e pela segunda divida. Advém daí, portanto, o sentido estrito e preciso de novar, que não é o de assumir outra divida, a que se chamaria nova, e sim a de assumir uma no lugar da outra, a qual se extingue.
Infelizmente, o instituto da novação e suas consequências jurídicas vêm sendo usados pelas partes hipersuficientes das relações jurídicas em prol exclusivo dos seus interesses. Principalmente as instituições financeiras, quando não pretendem perder garantias da obrigação originária, como a fiança, frequentemente buscam renegociar dívidas em aberto, por meio de um novo contrato de adesão, no qual insere cláusula cujo conteúdo pugna pela inexistência de novação.
Por outro lado, quando lhes é conveniente, os bancos aproveitam a oportunidade da inadimplência para impor ao cliente um contrato sob a condição de “novação”. Isso com o objetivo da parte vulnerável, após a assinatura do contrato de repactuação de dívida, não ter mais a possibilidade de discutir ilegalidades cometidas na obrigação originária.
Assim, as instituições financeiras partem do princípio que a simples cláusula de “novar”, garante-lhes a impossibilidade de o cliente discutir posteriormente alguma ilegalidade cometida nos contratos firmados anteriormente. Ou seja, para eles novou a dívida não se discute mais o passado, mesmo que haja algo ilegal na avença originária, não obstante a dita cláusula estar claramente “camuflada”, em evidente afronta à exigência do animus novandi.
No modelo de Estado liberal, vigora a concepção do Estado mínimo, por isso não havia preocupação em interpretar o direito civil conforme a constituição. A legislação civil criada à época tinha como paradigma o interesse burguês, daí o porquê da necessidade de proteção do patrimônio e a liberdade era entendida como “não impedimento”, forma do cidadão privilegiado, à época, gozar e dispor do seus bens sem intervenção ou impedimentos estatais.
Tal liberdade redundou em uma crescente exploração dos economicamente mais fracos, o que gerou intensos conflitos e tornou propício o surgimento Estado Social. A igualdade formal do liberalismo, então, apesar de permanecer entre os direitos fundamentais, deixou de ser privilégio de uma classe, passando a ser direitos da pessoa humana, juntamente com os direitos prestacionais-sociais.
O Estado Social, no que toca ao direito, elevou a ordem econômica e social ao patamar constitucional. A dimensão material do direito civil - saúde, educação, cultura, meio ambiente - passou a ser assegurados constitucionalmente. O Estado atuava para garantir o interesse coletivo e a justiça social, sob a segurança da dignidade da pessoa humana.
Não obstante tais mudanças nas políticas públicas estatais e nas Constituições, diante das novas nuances trazidas pelo Estado de Bem Estar Social, os Códigos Civis mantiveram-se imutáveis, em um primeiro momento, ainda influenciados por uma ideologia liberalista, com valores ancorados no patrimonialismo e no individualismo jurídico, como ocorreu no Brasil diante da sobrevivência do Código Civil de 1916 até o ano de 2002, mesmo com a promulgação da Constituição Federal desde 1988 (sem contar que o Estado Social foi inaugurado no Brasil com a Carta de 1934).
Portanto, a constitucionalização e a publicização do direito civil foram institutos necessários para dita transição do liberalismo para o Estado Social, sem esquecer de sua essencialidade na interpretação do direito na atualidade.
A constitucionalização do direito civil foi profundamente importante para se compreender os institutos privados dentro dessa nova realidade do Estado Social e, consequentemente, do Estado Democrático de Direito.
Conforme Paulo Lôbo, a constitucionalização é mais que um critério hermenêutico formal, sendo a inserção constitucional dos fundamentos de validade jurídica das relações civis[4].
Assim, quando a legislação civil claramente contraria os fundamentos constitucionais deve ser considerada revogada, quando anterior à Constituição, ou inconstitucional, quando à ela posterior. Diga-se, porém, que quando aproveitável, pode-se utilizar a norma civil a partir de uma interpretação conforme, mas sem se afastar dos fundamentos da Carta Maior.
Pelo exposto, superficialmente, pode-se afirmar que a constitucionalização do direito civil além de trazer conceitos privados para serem regulados e protegidos na própria Carta Magna, também é uma ferramenta de interpretação, que culminará na recepção ou não, das normas civis que se mantiveram conectadas à origem da codificação privada.
Por outro lado, apesar de às vezes ser tratada como expressão sinônima da constitucionalização do direito civil, a publicização do direito civil acabou por também ser vislumbrada, já que a “família”, a “propriedade” e o “contrato”- institutos primordiais do direito privado - já não eram mais os mesmo que aqueles postos na ideologia liberal. A afetividade, a função social e o equilíbrio formal e material, passaram a ter profunda influência, respectivamente, no direito de família, da propriedade e do contrato, o que já não poderia ser negado pelos códigos civilistas.
A publicização consistiu, então, na crescente influencia do Estado do Bem Estar Social nas relações privadas. Ela pode ser principalmente vislumbrada na seara legislativa, com a redução da autonomia privada para garantir o direito dos mais pobres e necessitados de proteção estatal nos próprios códigos civis, que acabaram por ceder à nova ordem social. Tal intervencionismo/dirigismo do legislador, além de trazer o Estado do Bem Estar Social para dentro dos códigos privados, também culminou com a autonomia de alguns ramos do direito civil, os quais passaram a ser matérias independentes, como o direito do trabalho, o direito locatício, o direito do consumidor, o estatuto da criança e do adolescente, etc.
Segundo Paulo Lôbo[5], todavia, não é correto entender como publicização a subsunção dessas matérias ao âmbito do direito público, pois ela seria, na verdade, um processo de intervenção legislativa infraconstitucional, já que o fato de haver normas cogentes não elimina a origem das normas formalmente privadas, assim, a relação entre titulares de direitos que se encontram em situações formalmente iguais não pode ser regulada pelo direito público, sem desconsiderar a opinião de alguns autores que consideram superada a velha dicotomia entre direito público e privado.
Diante da constitucionalização da ordem econômica e social, mediante a intervenção legislativa no âmbito privado, a partir do Estado Social, os institutos dos contratos e da propriedade foram atingidos de forma direta e profunda por tais mudanças.
A teoria clássica dos contratos, então, entrou em crise, pois não mais se conformava com as novas constituições, estas funcionalizadas pela busca da justiça social, o que culminou na “relativização dos negócios jurídicos”, em prol da função social das avenças, e na “desvalorização do formalismo tradicional”.
A autonomia da vontade perdeu espaço nas situações de natural desequilíbrio de direitos e obrigações, como nos contratos de adesão, protegendo-se o hipossuficiente, e os princípios sociais dos contratos foram normatizados, limitando o alcance da ideologia liberal do pacto sun servanda frente aos negócios jurídicos desequilibrados .
O conceito de função social do contrato foi inserido no direito a partir da virada do século XIX para o século XX, agregando a ideia de atividade dirigida para alcançar o fim social. Ele foi resultado não apenas da nova ordem constitucional, mas também da complexidade das relações econômicas modernas, as quais não albergavam somente a livre iniciativa e a liberdade contratual, diante da diversidade das novas relações.
As tratativas, conclusão, execução e interpretação dos contratos, portanto, passaram a ter como norte o interesse social, e não somente os interesses individuais das partes contratantes, valorizando-se o princípio do justo equilíbrio contratual, o qual prevê a manutenção da proporcionalidade dos direitos e obrigações, inclusive para corrigir desequilíbrios supervenientes.
Os princípios gerais da atividade econômica (art. 170) demonstram bem a mudança de paradigma conceitual trazida pela a função social do contrato, na Constituição Brasileira de 88. Eles propugnam pela equivalência ou equilíbrio material dos contratos em detrimento da forma estática, aquela formada entre indivíduos autônomos, considerados formalmente iguais. No Art. 5º da Constituição de 1988, várias são as diretrizes contratuais albergadas junto aos direitos fundamentais, em evidente demonstração do cuidado que teve o legislador constitucional originário ao tratar dos novos paradigmas dos negócios jurídicos.
Já o art. 421 do Código Civil demostra a mudança de interpretação da teoria contratual do legislador de 2002 quando comparado ao de 1916. A norma aduz que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social dos contratos”, evidente valorização do princípio do justo equilíbrio contratual, mutação que já havia sido consolidada na doutrina brasileira e na jurisprudência bem antes da entrada em vigor do novo código privado.
Quanto ao Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 8.078/90, é clara a influência da nova ordem contratual, amparada no Estado do Bem Estar Social, sobre a citada ordem normativa, visto a boa-fé objetiva ter sido positivada, nos artigos 4º, inciso III, e 51, inciso IV, como instrumento legal para realização da harmonia e da equidade e como paradigma limitador da livre iniciativa e da autonomia da vontade.
O contrato é um instituto jurídico bastante interligado à realidade social na qual está inserido. O Estado Social de Direito, como não poderia ser diferente, acabou, então, por influenciar na teoria contratual e, consequentemente, mitigar a aplicação dos princípios liberais, posto que a nova ordem política e econômica já não mais albergava que os negócios jurídicos pudessem fazer lei entre as partes sem considerar a desigualdade material entre elas ou em detrimento da sociedade.
No entanto, isso não quer dizer que os princípios tradicionais, como o da livre-iniciativa, força obrigatória das convenções, autonomia da vontade e pacto sun servanda, estejam superados na atualidade, mas tiveram seu alcance atenuado, diante de uma nova realidade social.
Assim, os princípios sociais dos contratos não eliminaram os tradicionais, mas sim limitaram, diante de uma nova ordem constitucional, sua aplicabilidade que antes era absoluta. Há, inclusive, doutrinadores que defendem que os princípios sociais valorizam a autonomia privada, na medida que equilibram o que a realidade fática tratou de desigualar, haja vista o poder de alguns é maior que o de outros.
Portanto, resta inquestionável a importância da permanência do estudo dos princípios clássicos, pois, no Brasil os Tribunais Superiores não raro preferem manter-se fiel à ideologia do pacto sun servanda mesmo em detrimento do sacrifício de conquistas sociais.
A Súmula nº 381[6], edita pelo STJ, cuja ementa pugna pela vedação ao juiz de conhecer a abusividade das cláusulas, em contratos bancários, é prova que o princípio da força obrigatória dos contratos não apenas sobrevive, como tem larga aplicação na jurisprudência pátria.
Este entendimento tem por base o fato do princípio clássico da força obrigatória dos contratos ser consectário direto da autonomia privada negocial, a qual encontra fundamento na garantia da segurança dos negócios jurídicos. Seus principais efeitos são a estabilidade e a previsibilidade, as quais, respectivamente asseguram que o que foi pactuado na avença será cumprido independente das mudanças externas, e que a vigência das cláusulas e convenções devem ser mantidas não obstante os novos acontecimentos.
Mediante a instituição do Estado Democrático de Direito, presumir-se-ia não se vislumbrar a aplicabilidade irrestrita do princípio da força obrigatória dos contratos, posto sua atenuação frente às conquistas jurídicas dos hipossuficientes, mas ele permanece, por vezes, sendo indiscriminadamente aplicado, como na citada súmula 381 editada pelo Tribunal da Cidadania, na qual a vulnerabilidade do consumidor frente às instituições financeiras foi absolutamente descartada, sob o fundamento da manutenção da confiança nas relações contratuais.
Um princípio clássico do contrato, ainda aplicado, mas que teve sua interpretação substancialmente modificada perante o Estado Social foi o da relatividade dos efeitos do contrato. Na organização clássica do direito privado liberal, tal princípio estava ancorado nos direitos pessoais, visto que os contratos tinham seus efeitos restritos às partes, diferente dos direitos reais, que eram oponíveis contra todos.
Na atual ordem constitucional, na qual está inclusa a brasileira, dita dicotomia resta ultrapassada, pois terceiros, inquestionavelmente, sofrem efeitos dos contratos alheios, daí emergindo direito de proteção a pessoas que nunca participaram diretamente do avençado.
Não faltam julgados do STJ nos quais resta protegido o terceiro de boa-fé. A súmula nº 375[7], inclusive, é um exemplo de que diante da complexidade contratual contemporânea, mediante a coligação e massificação dos contratos, não há mais razão em defender de modo absoluto o princípio da relatividade dos contratos.
No que toca aos princípios sociais, o Código Civil atual faz menção expressa à função social do contrato e à boa-fé objetiva, já quanto ao princípio da equivalência material, ele fez alusão de maneira indireta, ao estabelecer interpretação mais favorável ao aderente, bem como ao declarar nula cláusula que implique renúncia antecipada em contrato de adesão.
Contudo, antes mesmo do Novo Código Civil de 2002 entrar em vigência, a melhor jurisprudência brasileira já vinha aplicando a função social do contrato e a boa-fé objetiva aos negócios jurídicos. As súmulas número 308[8], 302, 297, 285 e 286[9], todas do STJ, são prova da mudança de paradigma nos Tribunais Superiores, os quais, em virtude da constitucionalização do direito civil e a adoção dos fundamentos do estado do Bem Estar Social pela CF/88, já atentavam aos deveres de lealdade e de solidariedade nas avenças patrimoniais.
A título de exemplo, tem a Súmula nº 308 do Superior Tribunal de Justiça, a qual prevê: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.
Sabe-se que a hipoteca é um direito real de garantia sobre coisa alheia, que recai principalmente sobre bens imóveis, cujo principal efeito é o direito de excussão ao credor hipotecário, contra quem esteja o bem, o chamado direito de sequela, oponível, inclusive, ao terceiro de boa-fé.
Citada súmula, portanto, tem por objetivo proteger o consumidor das unidades de uma possível sequela perpetrada pelo agente financiador, o qual tem em garantia de hipoteca de toda a obra.
Tal relativização do direito real em garantia apenas foi possível pois confrontado ao princípio da boa-fé objetiva e da função social do contrato, os quais equilibram nas relações jurídicas o que a realidade fática tratou de desigualar mediante o poder de alguns ser maior que o de outros.
Ao lado da função social do contrato, a noção de boa-fé é, conforme Pablo Stolzen e Rodolfo Pamplona Filho:
“Antes de tudo, uma diretriz principiológica de fundo ético e espectro eficacial jurídico. Vale dizer que a boa-fé se traduz em um princípio de substrato moral, que ganhou contornos e matiz de natureza jurídica cogente”[10]
No que toca aos negócios jurídicos, a boa-fé objetiva impõe dever de conduta proba, íntegra e zelosa entre as partes estipulantes. É, portanto, um padrão de conduta imposto a todos os cidadão, pautado objetivamente na probidade, honestidade e lealdade, sendo um significado comum, usual, reconhecível no mundo social em geral, cuja observação é imposta antes, durante e após a realização da avença.
Diga-se, então, a boa-fé objetiva deve estar presente em todo o aperfeiçoamento obrigacional/contratual, não apenas no seu patamar de existência, mas também em seus planos de validade e de eficácia. Isto quer dizer que a boa-fé deve estar consagrada nas negociações que antecedem a conclusão do negócio, na sua execução, na produção continuada dos seus efeitos, na sua conclusão e na interpretação do avençado.
Segundo Paulo Lôbo[11], no direito contratual privado, a probidade e os princípios da confiança, informação e lealdade são complementares à boa-fé objetiva. O citado autor aduz, ainda, que a partir da boa-fé objetiva emana uma tríplice função: a de atuar como cânone de interpretação e integração do negócio jurídico; a de fontes de deveres jurídicos; e a de limite ao exercício dos direitos subjetivos.
Além disso, a boa-fé objetiva impõe deveres aos contratantes que são marginais, laterais ao contrato, os quais nem sempre são redigidos nas cláusulas da avença, mas que mesmo assim impõem obediência dos contratantes. Tais deveres anexos são aqueles interligados ao dever de informação, segurança do contratante, sigilo dos conteúdos dos negócios e quando contrariados podem invalidar o contrato com base na violação da boa-fé objetiva, mesmo quando o objeto nuclear tenha sido regularmente cumprido pela parte.
Pode-se afirmar, portanto, que a boa-fé objetiva visa coibir subterfúgios dentro dos contratos, amparado em um dever de eticidade e socialidade, como foi vislumbrado pela súmula 308 citada, cuja função é proteger o adquirente da unidade, mediante a preservação da lealdade e de suas expectativas sociais.
Já súmula nº 302[12], do STJ, ao pugnar pela “abusividade da cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado”, aplica diretamente o princípio da função social do contrato, pois relativiza o princípio liberal da força obrigatória dos negócios jurídicos em perfeita consonância com os direitos fundamentais, impostos pela CF/88.
Destaque-se que partindo do pressuposto que qualquer contrato, de alguma forma, repercute no ambiente inserido, o princípio da função social aduz que os interesses das partes devem ser exercidos em conformidade com os interesses sociais afetados. Em caso de conflito, a avença deve ser interpretada no sentido que melhor contemple o interesse da sociedade, mesmo que ela não seja de adesão e nem de consumo.
A função social vem associada, então, ao limite fundamental da liberdade de contratar, por isso ela é dividida em função social interna e externa. A função social do contrato interna é muitas vezes confundida com boa-fé objetiva, pois é o limite é imposto às partes estipulantes da avença para assegurar contratos mais equilibrados, com o que se garante isonomia material aos envolvidos.
No caso específico da súmula nº 302, ao impedir a imposição de cláusulas, em contratos de adesão, que implique em renúncia prévia a direito resultante da natureza do negócio jurídico, o Superior Tribunal de Justiça impediu, com base no princípio da função social, a exoneração da responsabilidade do prestador do serviço, que é imposta sob o fundamento da autonomia privada, mas que desconsidera a vulnerabilidade do consumidor.
Outras duas importantes súmulas do Superior Tribunal de Justiça preveem a aplicação do Código de Defesa do Consumidor em dois casos muito comuns da prática contratual: os contratos bancários e financeiros:
“Súmula nº 297: O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”
“Súmula nº 285: Nos contratos bancários posteriores ao Código de Defesa do Consumidor incide a multa moratória nele prevista”.
As duas ementa sepultam de vez a suposta discussão quanto à existência ou não de relação de consumo nos contratos celebrados com as instituições bancárias e financeiras. Registre-se que a não aplicação do CDC aos bancos violaria o princípio da dignidade humana e da solidariedade social e, ainda, conflitaria com os mandamentos da função social dos contratos e da boa-fé objetiva, regramentos já incorporados às normas do ordenamento pátrio e que corporificam a nova realidade contratual.
Tais verbetes sumulados, ainda, baseiam-se no princípio da equivalência material, pois buscam realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após a realização da avença, em busca da harmonização dos interesses das partes.
O princípio da equivalência desenvolve-se, portanto, sob dois aspectos: um subjetivo, vertente levada em consideração na redação das citadas súmulas, que considera a existência de um poder dominante como privilégio de uma das partes, reconhecendo a existência da presunção iuris et iuri, que há vulneráveis quando existem desequilíbrios materiais; outra objetiva, cuja aferição dá-se durante a constituição e execução do negócio jurídico, em vista de combater a onerosidade excessiva originária ou superveniente, independente da previsibilidade.
No Código Civil, houve introdução implícita desse princípio nos contratos de adesão, mas, no direito brasileiro, a norma positiva que melhor o expressa é o Código de Defesa do Consumidor, o qual, no artigo 6º, inciso V, aduz que “São direitos básicos do consumidor a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”.
O princípio da equivalência material, portanto, trabalha em prol da isonomia material e visa combater a vantagem excessiva para uma das partes, em detrimento da outra, durante a formação e execução do contrato.
Por fim, ressalta-se que súmula nº 479, editada em 2012, pelo STJ, também resultou em mais uma vitória do consumidor sobre as instituições financeiras. Ao instituir a responsabilidade objetiva das instituições financeira pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias, o Tribunal da Cidadania não apenas desincumbiu o hipossuficiente da prova diabólica, como estendeu a boa-fé objetiva também para os consumidores por equiparação, posto que muitas das fraudes perpetradas são relativas a mútuo bancário envolvendo cidadãos que nunca foram sequer clientes dos bancos.
Uma vez inadimplente o cliente, os bancos e instituições financeiras passaram a utilizar prática de buscar “amigavelmente” o hipossuficiente para renegociar a dívida em aberto. Assim, propunham um novo contrato, no qual restariam reunidas todas as avenças descumpridas, surgindo a figura do “contrato de confissão de dívida”, cuja finalidade era proibir, sob o manto da novação, a discussão sobre ilegalidades nas obrigações originárias.
Tal prática amparava-se nos princípios liberais do pacto sun servanda e da força obrigatória do contrato, pois sob a suposta adesão espontânea do cliente/consumidor ao contrato novado, este passava a vigorar em caráter absoluto, fazendo lei entre as partes, o que impossibilitava qualquer discussão quanto às cláusulas dos negócios jurídicos anteriores.
Todavia, visto a impossibilidade da teoria clássica dos negócios jurídicos para solucionar as desigualdades das relações consumeristas modernas, surgiram precedentes no STJ combatendo tal prática bancária em prol da proteção ao menos favorecido na relação jurídica. Tais julgados previam que, não obstante a novação, era possível a aferição de ilegalidades nos negócios jurídicos originários.
Ressalta-se, contudo, que uma súmula antes de ser editada provem de precedentes judiciais, que são sentenças ou decisões de uma corte considerados fornecedores de exemplos para caso similar ou idêntico em questão de direito. Por isso a importância de aplicá-la tendo em vista os julgados originários, sob pena de cometer distorções judiciais.
A partir dos anos 2000 não faltaram precedentes judiciais, no STJ, nos quais restou inconteste que a súmula nº 286 surgiu para ser aplicada aos contratos novados, observando ilegalidades em obrigações substituídas que na teoria não existiam mais no mundo dos negócios jurídicos.
Assim, em conformidade com a boa-fé objetiva e a função social do contrato, o grande volume de causas julgadas fez surgir, no âmbito interno do Tribunal, a uniformização do seu entendimento quanto ao tema, culminando na edição, em 2004, da súmula nº 286, assim ementada:
“A renegociação de contrato bancário ou a confissão da dívida não impede a possibilidade de discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores”.
Destaque-se, portanto, que não obstante a posição jurídica de vários setores da sociedade em não aplicar o CDC aos contratos bancários, na época, a súmula nº 286 surgiu como forma de proteger o vulnerável frente às instituições financeiras, pois muito embora a parte aceite as condições de novar sua dívida, substituindo uma obrigação por outra, ela não possui conhecimento jurídico suficiente para compreender as inúmeras prejudicialidades que tal ato poderia lhe trazer.
Diante de uma Constituição cujo escopo máximo é o princípio da dignidade da pessoa humana, o STJ preferiu, assim, relativizar o instituto da novação em vista a proteger, mediante a intervenção do Judiciário na relação privada, a justiça social, relativizando a força obrigatória dos contratos.
Dentre os precedentes que originaram a edição da súmula, o julgamento do Resp 332.832/RS faz menção expressa ao instituto da novação:
“NEGÓCIOS BANCÁRIO. REVISÃO. Na ação revisional de negócios bancários, pode-se discutir a respeito de contratos anteriores, que tenham sido objeto de novação. Recurso Especial não conhecido”
(STJ, Resp. 33.2832/RS; RECURSO ESPECIAL 2001/0086405-2. Relator Ministro Asfor Rocha, Segunda Seção de Direito Privado. Data do Julgamento: 28/05/2003, Data de Publicação e Fonte: DJ 23/02/2003)[13] (grifou-se)
Os julgamentos dos Resp 132.565/RS, Resp 450.962/MG e Resp. 237.320/RS são, também, importantes decisões que influenciaram para criação da súmula nº 286 e bem aplicá-la[14]. Em tais julgamentos, resta claro que a súmula n. 286 foi criada para se aplicar aos contratos originários, mesmo quando há uma novação.
O Resp 132.565/RS deixa assente, inclusive, que em prol da legalidade do repactuado é necessária a retroação da análise do acordo desde a origem, permitindo-se, assim, a revisão da antiga obrigação principal, e não apenas das inovações acessórias, como resta evidenciado:
“Possível a revisão de cláusulas contratuais celebradas antes da novação por instrumento de confissão de dívida, se há uma seqüência na relação negocial e a discussão não se refere, meramente, ao acordo sobre prazos maiores ou menores, descontos, carências, taxas compatíveis e legítimas, limitado ao campo da discricionariedade das partes, mas à verificação da própria legalidade do repactuado, tornando necessária a retroação da análise do acordado desde a origem, para que seja apreciada a legitimidade do procedimento bancário durante o tempo anterior, em que por atos sucessivos foi constituída a dívida novada.”[15] (grifou-se)
Por sua vez, mais um precedente, o Resp 237.320/RS, aduziu, no voto do Ministro Relator, Sálvio de Figueiredo Teixeira Passarinho Junior, que a relação judicial tratada retrata uma obrigação novada, mas não por isso deixa de aplicar a revisão das avenças anteriores:
“porquanto o acórdão impugnado não afastou a ocorrência de novação, assinalando apenas que, havendo relações jurídicas continuativa, caracterizada por novações, renegociações e confissões de dívida, possível é a revisão dos contratos anteriores”.[16]
A súmula nº 286 do STJ, pelo exposto, é proveniente de acórdãos nos quais restou plenamente consignado a possibilidade de revisão de cláusulas contratuais em avenças originárias que tenham sido objeto de novação. Ou seja, mesmo que haja mudanças substanciais nos negócios jurídicos, isso não impossibilitará a discussão de eventuais ilegalidades em contratos anteriores, visto que instituições financeiras vinham distorcendo o instituto da novação em função de auferir lucro, em total prejuízo ao consumidor.
Não obstante, a Quarta Turma do STJ, em julgados recentes, vem entendendo a súmula nº 286 de maneira diversa dos precedentes que originaram a sua criação. Notícia divulgada em 22/06/2012, no site do próprio Tribunal Superior, por meio de informativo jurisprudencial, deixa explícito que a dita Turma prevê adequação legal na aplicação da súmula nº 286 apenas quando resta descaracterizada a novação. In verbis:
“A Súmula 286 do STJ dispõe que “a renegociação de contrato bancário ou a confissão da dívida não impede a possibilidade de discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores.” Segundo Salomão, essa súmula não concede carta branca ao magistrado para interferir na autonomia das partes quando há o real interesse de assumir nova obrigação, mas o poder-dever de aferir ilegalidades nos acordos anteriores ao título executivo, quando descaracterizada a novação.” [17] (grifou-se)
O julgamento do Resp 921.046/SC, o qual deu origem ao citado informativo, de relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, afirma, ainda, que “Ao revés, havendo real ânimo de novar e inovações substanciais no campo da autonomia da vontade das partes, registradas pelo acórdão da Corte local, não é cabível a revisão de cláusulas das pactuações anteriores, porquanto efetivamente configurado o instituto da novação, o que tem o condão de afastar a incidência da súmula 286.”[18]
Por sua vez, o julgamento do AgRG no Resp. 108.508/RS, este da relatoria da Ministra Maria Isabel Galloti, também resta claramente consignado que caso haja novação, ou seja, inovações substanciais no campo da livre vontade das partes, não será permitida a aplicação da súmula nº 286 ao caso. Veja-se:
“O contrato renegociado que traz, em seu bojo, inovações substanciais no campo da livre vontade das partes, não permite a revisão de cláusulas contratuais do contrato anterior, por representar, efetivamente, um novo pacto, refugindo da hipótese da Súmula n. 286 do STJ.”[19]
Já no julgamento do Resp 861.196/SC a Quarta Turma, inclusive, aduz que o afastamento da incidência da súmula nº 286, quando verificada a novação, é um entendimento próprio dos componentes daquele Colegiado, provando que tal posicionamento não se refere apenas a julgados esparsos, mas sim a uma jurisprudência já consolidada no âmbito da citada Turma do STJ, como resta demonstrado a seguir:
“Houve inovações substanciais dentro da autonomia da vontade das partes, de modo que, nos termos da intertiva jurisprudência desta Quarta Turma, não é cabível revisão de cláusulas de pactuações anteriores, refugindo da hipótese prevista na Súmula 286 desta Corte.”[20](grifou-se)
Pelo exposto, como resta expresso nas palavras do Ministro Salomão, no já citado informativo publicado em 22/06/2012, bem como nas jurisprudências transcritas, a nova interpretação da súmula nº 286 vem albergada na autonomia das partes, ideário liberalista originário do princípio da livre-iniciativa. Isto porque a novação é um instituto que substitui uma obrigação por outra, o que dá azo a pressupor que a parte escolheu não mais examinar a anterior, tornando-a inquestionável imutável, quando, é claro, parte-se da ideologia da teoria contratual liberal.
A Magna Carta de 1988 reconhece a livre-iniciativa, mas tal não se confunde totalmente com o conceito que foi desenvolvido sob o ideário liberal, visto que a Carta brasileira ter sido redigida sob a ideologia do Estado Social.
A CF/88 considera entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito “os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa”; todavia, a livre-iniciativa somente recebe a tutela constitucional, na atualidade, se for desenvolvida em conjunto com o interesse social, e não apenas em razão dos interesses individuais.
Conforme observa Paulo Lôbo, a livre-iniciativa não é tomada, enquanto fundamento da República Federativa do Brasil, como expressão individualista, mas sim no quanto se expressa de socialmente valioso.[21]
Já autonomia contratual não é princípio fundamental e nem é princípio específico da atividade econômica na CF/88, pois o Estado Social a relativizou profundamente. Novamente o Prof. Paulo Lôbo afirma nesse sentido: “à medida que o Estado legislador atribui maior dimensão social às relações privadas, reduz-se o espaço de autonomia”.[22]
Resta consignado, então, que Constituição Federal de 1988 é incompatível com percepção plena do princípio originário da liberdade contratual, pois, diante do dever de proteção que a Carta do Brasil dedica às pessoas vulneráveis, em seu artigo 5º, a livre-iniciativa e a autonomia privada, quando aplicadas, devem ser interpretadas de maneira limitada, adequada aos ditames de justiça social, diante do irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana que a ordem constitucional contemporânea exige.
Consequentemente, a explicação da Quarta Turma do STJ quanto à inaplicabilidade da súmula nº 286 quando há novação, diante do respeito à autonomia das partes, encontra óbices não apenas legais, mas principalmente constitucionais. Pois a Constituição brasileira de 1998 pugna que a ordem econômica, para fins de produção e distribuição de produtos e serviços, realiza-se por meio de contratos que devem atender às demandas humanas e sociais, impreterivelmente. Já o CDC, juntamente com o CC/2002, aduzem que a liberdade de contratar deve ser exercida no limite da função social do contrato e da boa-fé objetiva.
Outro fundamento para rechaça a debatida decisão da Quarta Turma reside no fato de que basta à instituição bancária aduzir haver novação, no instrumento contratual, para ilegalidades se perpetuarem, mesmo quando não haja inovações substanciais. Pois muitas vezes o nomen iuris do objeto contratual pode valer mais que a substancia do ato, diante dos olhos subjetivos do julgador.
Por estes motivos próprios, a Terceira Turma do STJ, em precedentes que datam da mesma época dos citados julgados da Quarta Turma, permanece com o mesmo entendimento da data de criação da súmula nº 286, como pode ser observado nos seguintes julgados: Ag no Ag 10.54642/SC; AgRg no Resp12.4160/RS; AgRg nos EDcl no REsp 52.5438/RS; AgRg no REsp 87.7647/RS.
Não aderiu, portanto, às distorções implantadas pela Quarta Turma e concebe que os contratos originários permanecem sendo passíveis de discussão, ainda que tenham sido objeto de novação, em absoluta consonância com os precedentes originários que tinham por objeto combater as distorções dadas ao instituto da novação pelos bancos e instituições financeiras:
“A renegociação ou novação da dívida não veda a possibilidade de revisão dos contratos anteriores. Incide a Súmula 286.” [23]
Assim sendo, por mais que decisões como a da Quarta Turma mantenham a estabilidade e a previsibilidade indispensável ao sistema financeiro para oferecer serviços a um número maior de consumidores, posto a diminuição dos riscos do empreendimento bancário atenuar a exigência de garantias para formação da avença, tal não traz de nenhuma maneira benefícios suficientes que compensem o imprudente descuido ao direito consumerista.
Diga-se que embora a essência do instituto da novação seja de fato o surgimento de uma obrigação nova em substituição à antiga, quando usado em prejuízo do hipossuficiente, ele não pode ser interpretado de maneira absoluta. Há muito tempo, inclusive, já é pacífico na jurisprudência pátria que onde se adotou o Estado Social, como no Brasil, os negócios jurídicos têm que ser interpretados em função da eticidade e da solidariedade, visto alcançar a justiça social.
Desse modo, conclui-se que a nova interpretação dada pela Quarta Turma do STJ contraria profundamente toda a fundamentação jurídica na qual fora apoiada a súmula nº 286, de modo que afronta os princípios basilares do Estado Democrático de Direito, rechaçando, assim, a constitucionalização de institutos do Direito Civil, tais como a boa-fé objetiva e a função social do contrato.
Ademais, tais julgados implicam em flagrante afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento máximo da ordem constitucional inaugurada com a Magna Carta de 1988.
A súmula nº 286 em sua criação e interpretação originária é uma quebra de paradigma em prol do direito civil-constitucional, pois ela deixa de lado a regra tradicional da qual se extraia que ocorrida a novação não mais poderia se discutir a obrigação anterior. Além de ser um inegável avanço social em função da proteção do hipossuficiente, visto que muitas das negociações contratuais são impostas por uma das partes em posição privilegiada, o que não é raro acontecer com instituto da novação.
Evita-se, assim, o enriquecimento sem causa, o locupletamento sem razão, a lesão subjetiva e a desproporção negocial, pois havendo abuso de direito cometido por uma das partes e estando presente a onerosidade excessiva por cobranças de juros abusivos nas obrigações anteriores, pode-se rever e extirpar eventuais ilegalidades presentes nos negócios jurídicos que deram origem à obrigação novada.
Por outro lado, o entendimento atual da Quarta Turma do STJ é claramente um retrocesso social. Isto porque basta que o banco – parte hipersuficiente da relação – insira uma cláusula na qual se diga haver novação para que as ilegalidades postas nos contratos originários permaneçam intocáveis pelo ordenamento jurídico, passível de contaminar a nova obrigação.
Diga-se mais, independente do nomen iuris “novação” estar ou não presente no instrumento jurídico (posto que a novação pode ser tácita), ou seja, mesmo que o julgador planeje não se atentar à linguagem, mas à intenção verdadeira aposta com o novo negócio jurídico, o questionado entendimento da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça permanece absolutamente prejudicial à parte vulnerável, pois caso o magistrado repute haver inovações substanciais no negócio jurídico já é o bastante para vedar a aplicação da súmula n. 286 ao caso, perpetuando ilegalidades.
Resta evidente, portanto, que tal entendimento da Quarta Turma do STJ ao aplicar indiscriminadamente o princípio da autonomia da vontade viola não apenas o Código Civil e do Consumidor, mas também a Constituição Cidadã de 1988, cujo escopo máximo é a dignidade da pessoa humana.
Não obstante a vigência na atualidade dos princípios liberais do contrato, tais quando aplicados devem estar em consonância com a boa-fé objetiva e a função social do contrato, institutos necessários ao Estado Democrático de direito, que equilibram as relações jurídicas que realidade distorce, mediante a existência inquestionável da vulnerabilidade jurídica de uma parte frente a outra.
Além disso, a interpretação da Quarta Turma pode dar lugar ao nascimento de julgados distorcidos, os quais podem perpetuar negócios jurídicos desproporcionais ou contaminados pelo abuso de direito, diante da impossibilidade de analisar as avenças em seu nascedouro, sob o enfraquecido e ultrapassado argumento da aplicação da autonomia da vontade descontextualizada com a realidade circundante.
Ainda, a aplicação das súmulas em desconexo com os seus precedentes pode gerar verdadeiras aberrações jurídicas, pois contraria os princípios básicos de uniformização da jurisprudência. Destaque-se que as súmulas não nascem do nada a ponto de serem interpretadas de acordo com a vontade do julgador, elas são verdadeira evoluções para se chegar a uma interpretação pacífica, após a análise de diversos casos análogos.
Espera-se, portanto, que a interpretação questionada não permaneça, pois ela, além de contrariar os preceitos primordiais de construção da jurisprudência, está em absoluta dissonância com a compreensão moderna do direito civil, a qual exige a aplicação dos direitos fundamentais e do princípio da dignidade da pessoa humana nas relações privadas.
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[1] GOMES, Orlando. Obrigações. 13 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 136-137.
[2] GOMES, Orlando. Obrigações. 13 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, g. 136.
[3] Carvalho de Mendonça, Doutrina, cit., t.I, p. 596; Judith Martins-Costa, Comentários, cit., v,t.I, p.521.
[4] LÔBO, Paulo Luiz Netto. "Constitucionalização do direito civil." Revista de Informação legislativa. v. 36, n. 141, p. 99-109, 1999.
[5] LÔBO, Paulo Luiz Netto. "Constitucionalização do direito civil." Revista de Informação legislativa. v. 36, n. 141, p. 99-109, 1999.
[6] Súmula nº 381 do STJ: “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”.
[7] Súmula nº 375 do STJ: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
[8] Súmula nº 308 do STJ: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.
[9] Súmula nº 286 do STJ: “A renegociação de contrato bancário ou a confissão da dívida não impede a possibilidade de discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores”.
[10] GAGLIANO, Pablo Stolzen; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Vol. IV. São Paulo: Saraiva, 2010, p.64.
[11] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 74.
[12] Súmula nº 302 do STJ: “É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado”.
[13] STJ, Resp. 33.2832/RS; RECURSO ESPECIAL 2001/0086405-2. Relator Ministro Asfor Rocha, Segunda Seção de Direito Privado. Data do Julgamento: 28/05/2003, Data de Publicação e Fonte: DJ 23/02/2003
[14] Disponível em http://www.stj.jus.br/docs_internet/SumulasSTJ.pdf , acessado em 01.03.2015.
[15] STJ, Resp. 13.2565/RS; RECURSO ESPECIAL 1997/0034802-4. Relator Ministro Aldir Passarinho Junior, Segunda Seção de Direito Privado. Data do Julgamento: 12/09/2000, Data de Publicação e Fonte: DJ 12/02/2001.
[16] STJ, Resp. 23.7320/RS; RECURSO ESPECIAL 1997/0100238-9. Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira Passarinho Junior, Segunda Seção de Direito Privado. Data do Julgamento: 08/02/2000, Data de Publicação e Fonte: DJ 20/03/2000.
[17]Disponível em http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=106145, acessado em 01.03.2015.
[18] STJ, Resp 92.1046/SC. RECURSO ESPECIAL 2007/0019544-1. Relator Luis Felipe Salomão, quarta turma. Data do Julgamento: 12/06/2012. Data da Publicação e Fonte: DJe 25/06/2012.
[19] STJ, AgRG no Resp. 10.8508/RS. RECURSO ESPECIAL 2008/0192184-1. Relator Maria Isabel Galloti, quarta turma. Data do Julgamento: 13/09/2011. Data da Publicação e Fonte: DJe 20/09/2011.
[20] STJ, Resp 86.1196/SC. RECURSO ESPECIAL 2006/0123839-9. Relator Luis Felipe Salomão, quarta turma. Data do Julgamento: 06/10/2011. Data da Publicação e Fonte: DJe 27/10/2011.
[21] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 48.
[22] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 61.
[23] STJ, AgRg no Ag 801930/SC. RECURSO ESPECIAL 2006/0123839-9. Relator Humberto Gomes Barros, terceira turma. Data do Julgamento: 04/12/2007. Data da Publicação e Fonte: DJe 14/12/2017.
advogada (atuação e direito civil, tributário, empresarial e do entretenimento) e jornalista. Formada em Comunicação Social - habilitação em jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco ( 2001-1008). Formada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE - Faculdade de Direito do Recife (2008-2012). Especialização (pós graduação stricto sensu) em Direito Civil e Direito Empresarial pela Universidade Federal de Pernambuco (2013-2015). Curso de Direito do Audiovisual, ministrado por Gilberto Toscano Brito - CEMEC.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Nara Moreira Ferrario de. STJ: a mudança de interpretação da Súmula nº 286 quanto ao instituto da novação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46365/stj-a-mudanca-de-interpretacao-da-sumula-no-286-quanto-ao-instituto-da-novacao. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
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