RESUMO: Este estudo tem como preocupação básica refletir sobre o abrigamento da pessoa idosa em entidade de repouso quando ela estiver em situação de risco devido à sua conduta ou de seus familiares, ainda que seja contra a vontade da mesma. A questão é salutar uma vez que dois direitos fundamentais estão aparentemente em conflito e a decisão pela colocação em abrigo contra a vontade do idoso implica, de certa forma, na violação do seu direito de liberdade. O objetivo deste artigo é investigar se a colocação do idoso em entidade de acolhimento contra a sua vontade, com objetivo de garantir sua dignidade não fere seu direito de liberdade e de escolha. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica considerando as contribuições de autores como ALEXANDRE DE MORAES(2001), KILDARE CARVALHO (2005), OSVALDO PEREGRINA (2009) e decisões do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, entre outros, procurando enfatizar as hipóteses de abrigamento do idoso fundamentado na preservação de sua dignidade e a violação ao direito de liberdade. Assim, conclui-se que a questão é de suma importância uma vez que, o estatuto do idoso permite o abrigamento como medida de proteção, ainda que em razão a conduta do idoso, deve-se, portanto, questionar se a colocação do mesmo em entidade de acolhimento contra a sua vontade, fundamentado no direito à dignidade, não afronta o direito fundamental de liberdade.
Palavras-chave: Abrigamento. Compulsório. Idoso. Dignidade. Direito de Liberdade.
Introdução
O presente trabalho tem como tema Abrigamento Compulsório do Idoso Direito à Dignidade x Direito de Liberdade, Busca-se enfatizar as hipóteses de abrigamento do idoso fundamentado na preservação de sua dignidade e a violação ao direito de liberdade.
Nesta perspectiva, construiu-se questões que nortearam este trabalho:
- O abrigamento do idoso contra a sua vontade afronta seu direito de liberdade?
- Sem liberdade de escolha é possível garantir a dignidade?
A relevância da questão está no fato de que o estatuto do idoso permite o abrigamento como medida de proteção, ainda que em razão da condição pessoal do idoso.
Deve-se, portanto, questionar se a colocação do mesmo em entidade de acolhimento contra a sua vontade, fundamentado no direito à dignidade, não afronta o direito fundamental de liberdade, bem como, se é possível ter dignidade, sem se respeitar o direito de liberdade.
Neste contexto, quando o idoso é compulsoriamente encaminhado a instituição de acolhimento como garantia de preservação de sua dignidade, há inegável violação ao direito fundamental de liberdade.
Conforme Oswaldo Peregrina Rodrigues,
A Constituição Federal de 1988 estatui em seu artigo 230, caput que “a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando susa participação na comundaade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”, estabelecendo, pois, uma relação jurídica obrigacional na qual figuram, no pólo passivo, com deveres jurídicos, a família, a sociedade e o Estado (Poder Público), e, como sujeito ativo, titular dos direitos, o idoso. (Rodrigues, 2009, p. 433)
Assim, o objetivo primordial deste estudo é, pois, investigar se a internação compulsória do idoso contra a sua vontade é benéfica ou prejudicial e se tal medida não afronta seu direito fundamental de liberdade.
Para alcançar os objetivos propostos, utilizou-se como recurso metodológico, a pesquisa bibliográfica, realizada a partir da análise pormenorizada de materiais já publicados na literatura e artigos científicos divulgados no meio eletrônico, bem como as jurisprudências dos Tribunais de Justiça do Estado de Minas Gerais.
O texto final foi fundamentado nas ideias e concepções de autores como: Osvaldo Peregrina Rodrigues (2009), Kildare Carvalho (2005) e Alexandre de Morais (2001).
Desenvolvimento
O art. 230 da CF dispõe:
A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito a vida. (Moraes, 2001, p. 657).
Para garantir os direitos da pessoa idosa, foi criada a lei n. 10.741/2003, a qual define, logo no primeiro artigo, quem é idoso:
É instituído o Estatuto do Idoso, destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.”
Portanto, fazem jus aos benefícios e direitos previstos no Estatuto do Idoso a pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.
Visando garantir os direitos da pessoa idosa, a Lei 10.741/2003 prevê no capítulo II, medidas específicas de proteção ao idoso.
Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 43, o Ministério Público ou o Poder Judiciário, a requerimento daquele, poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:
I- Encaminhamento à família ou curador, mediante termo de responsabilidade;
II- Orientação, apoio e acompanhamento temporários;
III- Requisição para tratamento de sua saúde, em regime ambulatorial, hospitalar ou domiciliar;
IV- Inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento aos usuários dependentes de drogas lícitas ou ilícitas, ao próprio idoso ou à pessoa de sua convivência que lhe cause perturbação;
V- Abrigo em entidade;
VI- Abrigo temporário.
Na visão de Osvaldo Peregrina Rodrigues (2009).
A efetivação dessas medidas visa o restabelecimento da convivência familiar- natural ou substitutiva-, a adequadação da convivência comunitária, até o eventual acolhimento do idoso em abrigo, nos casos de impossibilidade, ainda que temporária, da permanência no âmbito familiar. ( Rodrigues, 2009, p. 500)
Assim, dentre as medidas protetivas, o art. 45, inciso V, dispõe sobre a possibilidade do Poder judiciário determinar, para assegurar os direitos dos idosos, “abrigo em entidade”.
Tal medida extrema visa garantir a dignidade da pessoa idosa, a qual está em com seus direitos ameaçados ou violados, por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, por falta, omissão ou abuso da família, curador, ou entidade de atendimento e, por fim, em razão de sua condição pessoal (art. 43, da lei n. 10.741/2003).
Conforme leciona Kildare Carvalho:
A dignidade humana, que a Constituição de 1988 inscreve como fundamento do Estado, significa não só um reconhecimento do valor do homem em sua dimensão de liberdade, como também de que o próprio estado se constrói com base neste princípio. O termo dignidade designa respeito que merece qualquer pessoa.
A dignidade a pessoa humana significa ser ela, diferentemente das coisas, um ser que deve ser tratado e considerado como um fim em si mesmo, e não para a obtenção de algum resultado. A dignidade da pessoa humana decorre do fato de que, por ser racional, a pessoa é capaz de viver em condições de autonomia e de guiar-se pelas leis que ela própria edita: todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas, já que é marcado, pela sua própria natureza, como um fim em si mesmo, não sendo algo que pode servir de meio, o que limita, consequentemente, o seu livre arbítrio, consoante o pensamento Kantiano. (Carvalho, 2005, p. 384)
O conceito de dignidade traz implícito a liberdade e o respeito pelo próximo, devendo ser assegurado a toda pessoa humana, o mínimo invulnerável que lhe garanta viver dignamente.
O renomado jurista Kildare Carvalho (2005) define o direito de liberdade:
Vários são os sentidos de liberdade.
A liberdade, em sentido geral, consiste no estado de não estar sob o controle de outrem, de não sofrer restrições ou imposições, tendo aqui sentido negativo. Mas significa também “a faculdade ou poder que a pessoa tem de adotar a conduta que bem lhe parecer, sem que deva obediência a outrem (Carvalho, 2005, p.425).
Neste viés, verifica-se que liberdade é poder de escolha, é o estado de não estar sob controle de outrem.
O art. 2º do Estatuto do Idoso garante à pessoa idosa todos os direitos fundamentais, a proteção integral para preservação de sua saúde física e mental, em condições de liberdade e dignidade.
O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.
Ao garantir a preservação dos direitos fundamentais do idoso, referido artigo buscou enfatizar dois princípios fundamentais à vida: liberdade e dignidade.
Por outro lado, buscando proteger a pessoa idosa que teve seus direitos violados e garantir que ela tenha uma vida saudável, inúmeros são os pedidos judiciais de abrigamento da pessoa idosa em entidade, como forma de garantir sua dignidade.
Entretanto, muitos destes pedidos não contam com a anuência do próprio interessado, uma vez que, apesar de estarem com a dignidade violada, se negam a deixar seu lar e sua família, para residirem em uma entidade de acolhimento.
Quando se depara com tal situação, tecnicamente, estamos diante de um aparente conflito entre o direito à dignidade e o direito de liberdade.
O artigo 10, caput do estatuto do idoso, assegura a pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana.
Segundo Oswaldo Peregrina (2009, p. 454) “O direito à liberdade é outro direito subjetivo fundamental a sufragar a dignidade da pessoa humana, expressamente assegurado como direito personalíssimo de toda pessoa (art. 5º, caput, CF). Em diversos incisos do referido artigo constitucional são encontradas (explícita ou implicitamente) proteções aos variados aspectos do direito de liberdade, como se verifica nos seguintes incisos: IV, VI, VIII, IX, XV.”
Continuando a lição, afirma Osvaldo Peregrina (2009)
“Respeito, liberdade e dignidade são ingredientes imprescindíveis para que a pessoa humana, mormente a idosa, tenha garantidos seus direitos à vida e ao envelhecimento dignos e saudáveis, com a integral proteção dos seus interesses (individuais e sociais), assegurada a aplicabilidade à sua plena cidadania. (Rodrigues, 2009, p. 455)
Infere-se dos conceitos de liberdade e dignidade que não há como pensar em dignidade afastando o direito de liberdade. Somente assegurando ambos direitos, pode-se falar em integral proteção aos direitos da pessoa idosa.
Nesse diapasão surge a dificuldade em assegurar a dignidade do idoso que se encontra em situação de risco em seu lar e se recusa a deixá-lo, uma vez que, a utilização da medida extrema prevista no inciso V, do art. 45 do referido Estatuto, violaria o direito fundamental de liberdade.
Nestes casos, cabe, aos aplicadores do direito, buscar uma solução que garanta os direitos da pessoa idosa que estão violados, sem lhe retirar o direito de poder escolher onde morar.
De forma simples e concisa pode-se dizer que o Poder Judiciário e o Ministério Público devem estar atentos para que os direitos dos idosos não sejam violados, entretanto, buscar um meio de garantir a dignidade, sem atingir o direito primordial de liberdade.
Em recente decisão o Tribunal de Justiça do Estado de Minas gerais negou provimento ao recurso do Ministério Público, o qual buscava a internação compulsória do idoso contra a sua vontade:
Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO - IDOSO EM SITUAÇÃO DE RISCO - MEDIDA ESPECÍFICA DE PROTEÇÃO AJUIZADA PELO MP - TUTELA ANTECIPADA - PEDIDO DE INTERNAÇÃO DO INTERESSADO EM INSTITUIÇÃO ADEQUADA NO MUNICÍPIO - AUSÊNCIA DOS REQUISITOS LEGAIS PARA A CONCESSÃO DA LIMINAR - RESISTÊNCIA REITERADA DO IDOSO EM SE SUBMETER À INTERNAÇÃO EM ASILO - EXISTÊNCIA DE OUTROS MEIOS PARAPRESERVAR-LHE A INTEGRIDADE FÍSICA E PSÍQUICA - RECURSO DESPROVIDO. - Ainda que esteja o idoso em situação de risco, não há de ser determinada a sua internação imediata, em sede de medida específica de proteção ajuizada pelo ""parquet"", se o mesmo, embora já tendo sido internado por diversas vezes, chegou a fugir, em todas elas, dos asilos locais. Por outro lado, inexistindo notícias de que houve declaração de sua incapacidade, melhor seria que o Ministério Público, desde que necessário, promovesse-lhe, antes, a interdição, sem a qual o idoso é livre para decidir se quer, ou não, ser submetido à medida de internação. - Nos limites de cognição pertinente ao recurso de agravo, afigura-se, ainda, no mínimo, questionável o interesse do Ministério Público no ajuizamento da presente medida de proteção, tendo em vista que dispõe de medidas administrativas diretas e mais eficazes, sem depender do judiciário, na proteção do idoso que esteja em situação de risco, tais como aquelas previstas nos incisos V , VI , VIII , IX do art. 74 do Estatuto do Idoso . (TJMG, Processo: 104600803107620011 MG 1.0460.08.031076-2/001(1). Relator(a): ARMANDO FREIRE. Julgamento: 30/09/2008. Publicação: 03/11/2008)
Obviamente, a decisão demonstra que o Poder Judiciário vem enfrentando a questão e decidindo por afastar o abrigamento do idoso em entidade quando o interessado demonstrar insatisfação na aplicação da medida.
Importante que o Poder Judiciário continue enfrentando a situação concreta, buscando averiguar se abrigamento compulsório é a única solução para garantir a vida do idoso, sempre galgando em garantir a liberdade de escolha e proporcionar outros meios de viver dignamente, sem desrespeitar a escolha da pessoa idosa.
Conclusão
Diante do exposto, concluiu-se que apesar do Estatuto do Idoso prever a internação compulsória da pessoa idosa em situação de risco, tal medida não se mostra viável, uma vez que desrespeita o direito de liberdade de escolha da pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.
Assim, deve ser ter em mente que, havendo conflito entre o direito à dignidade da pessoa idosa e tolher seu direito de liberdade de decisão, deve-se resguardar sua escolha, garantida em vários dispositivos constitucionais e infraconstitucionais.
Dessa forma constatou-se que não há como garantir a dignidade da pessoa idosa, suprindo o seu direito de liberdade.
Portanto, diante de um caso concreto em que a dignidade do idoso estiver violada, cabe ao Ministério Público e ao Poder Judiciário buscar o meio de garantir a dignidade, sem tolher a liberdade.
Nesses casos, cabe aos aplicadores do direito, quando verificarem que a pessoa idosa encontra-se em situação de risco, que requer a aplicação da medida específica de proteção de abrigo em entidade, indagar ao idoso se é de sua vontade a institucionalização.
Sem o consentimento do idoso, incabível a aplicação da medida protetiva, ainda que ele esteja em situação de risco.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Belo Horizonte. Malheiros, 2005.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Ed, 2008.itora Atlas S.A., 2001
RODRIGUES, Osvaldo Peregrina, Direitos do Idoso. In: JUNIOR, Vidal Serrano Nunes (Org.). Manual de Direitos Difusos. São Paulo: Verbatim, 2009.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Acórdão na Apelação de autos nº 1.0460.08.031076-2/001(1).Relator: Armando Freire. Publicado no DJ de 03.11.2008. Disponível em: http://www.tjmg.jus.br. Acesso em: 20 jul. de 2015.
Analista do Ministério. Bacharela em direito. Pós graduada em Direito Penal e Processual Penal, Direito Administrativo e Direito da Criança Juventude e Idosos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LACERDA, Grazziela de Oliveira e Sousa. Abrigamento compulsório do idoso direito à dignidade versus direito de liberdade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 abr 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46397/abrigamento-compulsorio-do-idoso-direito-a-dignidade-versus-direito-de-liberdade. Acesso em: 25 nov 2024.
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