RESUMO: Este trabalho tem o intuito de abordar a questão da personalidade jurídica no direito civil brasileiro, apresentando as teorias sobre seu início e as críticas e elogios feitos a cada uma delas. Apresenta, ainda neste contexto, a tormentosa discussão em torno do nascituro e sua personalidade, ou não, pontuando as consequências jurídicas do tratamento dado a ele em cada teoria debatida e ventilada na doutrina brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: DIREITO CIVIL. PERSONALIDADE JURÍDICA. TEORIAS. NASCITURO.
SUMÁRIO: 1.Introdução. 2.Pessoa: história, acepções, denominações e conceito. 3.Personalidade Jurídica. 3.1.Início da personalidade jurídica. 3.2.Questão do nascituro. 4.Conclusão. 5.Referências.
“O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.”
(Gregório de Matos)
INTRODUÇÃO
Afigura-se de elevada importância a caracterização e a compreensão precisas da personalidade jurídica, sendo uma das temáticas mais relevantes ao estudo da Teoria Geral do Direito Civil, uma vez que a ordem jurídica existe, primordialmente, em função da pessoa, esta sendo o destinatário final de toda norma e, portanto, o fim teleológico da ciência jurídica. Nesse sentido, Paulo Nader afirma ser a pessoa “o ponto de partida e o alvo, direto ou indireto, de todas as construções jurídicas”.[1] Decorrência lógica dessa premissa é a necessidade do seu estudo apriorístico à compreensão do Direito.
A ordem jurídica busca promover a paz social, dirimindo seus conflitos de maneira imparcial, e evitando, assim, a “justiça do mais forte”, o que aconteceria caso fosse permitido o uso da força bruta como forma de resolução dos conflitos. O legislador tem a difícil tarefa de conhecer a figura humana em toda a sua complexidade e os variados modos como se dá a sua interação social para, então, elaborar o conjunto de regras que será eficiente para regular as relações jurídicas e promover as condições básicas do convívio em sociedade.
2. PESSOA: HISTÓRIA, ACEPÇÕES, DENOMINAÇÕES E CONCEITO
Antes de discutirmos a definição de personalidade jurídica, faz-se mister o debate acerca do significado de “pessoa”, por serem, obviamente, ideias intimamente ligadas. A esse respeito, comenta César Fiuza parecer ser “redundante dizer que personalidade é atributo jurídico que dá a um ser status de pessoa”.[2] Entretanto, faz-se questão aqui de pontuar a intimidade entre os dois conceitos.
O vocábulo pessoa surgiu no contexto do teatro, na antiguidade romana, a fim de caracterizar a máscara utilizada pelos atores. Essa máscara era feita para aumentar o som da voz, de maneira que alcançasse toda a plateia. O verbo personare tinha, portanto, o sentido de ecoar, enquanto a persona era a máscara que proporcionava a elevação da voz.[3] Houve uma transformação e passou a significar o personagem protagonizado e, mais tarde, ganhou o conteúdo que hoje prevalece: pessoa é o próprio indivíduo que representa o personagem.[4]
A palavra pessoa pode ser vista sob vários ângulos, tratando-se de termo multívoco. Washington Monteiro de Barros, percebendo esse fenômeno, explica haver três acepções possíveis: a vulgar, a filosófica e a jurídica.[5] Com base na primeira, pessoa significa o ser humano. Filosoficamente, é o ser inteligente, o ser sujeito a uma moral, indo além das coisas materiais, possuidor de espiritualidade. O conceito jurídico não pode ser explicado por nenhuma dessas acepções, pois entende a pessoa como sendo todo ente, físico ou moral, individual ou coletivo, suscetível de direitos e obrigações.
Verifica-se que a pessoa juridicamente considerada vai além do ser humano, não bastando ao direito a acepção vulgar do termo em questão. Por isso mesmo, consideramos equivocada a afirmação de Silvio Venosa de que “só o ser humano pode ser titular das relações jurídicas”.[6]
Pode-se dizer que existem dois grupos de pessoas: as “naturais” e as “jurídicas”, termos mais bem aceitos na doutrina e adotados no nosso Código Civil. As primeiras são os seres humanos, ao passo que as segundas são os chamados entes morais ou coletivos, significando agrupamentos de pessoas ou patrimônio destinados a um fim. Portanto, associar a titularidade de relações jurídicas aos seres humanos não é aceitável, mas associá-la às pessoas é. Aliás, é corriqueira tal associação, sendo inviável a figuração de um bem, coisa, entidade mística ou metafísica em qualquer dos polos da relação jurídica. Arnaldo Rizzardo, complementando, aduz:
É possível que tenha em vista um bem jurídico ou coisa inanimada, mas sempre litigando contra um ser humano ou ente jurídico, disputando a titularidade do domínio, a posse, um dano causado, uma conduta de fazer ou não fazer, uma reclamação relativamente ao bem ou coisa inanimada.[7]
Quanto aos dois grupos de pessoas, discute a doutrina com relação às denominações. Teixeira de Freitas critica o termo pessoa natural, afirmando não existir pessoa não-natural, afinal os entes morais são ideais provenientes do espírito humano, sendo “tão naturais quanto o espírito que os gerou”[8]. Sugere, em substituição, os seguintes termos: ser de existência visível (equivalente à pessoa natural) e ser de existência ideal (equivalente à pessoa jurídica). Tal terminologia foi adotada pelo Código Civil argentino, mas é bastante criticada por dar muita ênfase ao aspecto físico do ser humano, sendo este muito mais complexo.
Existe também a designação pessoa física, que encontra abrigo no direito francês e italiano, e na nossa legislação tributária no tocante ao Imposto sobre a Renda, sendo criticada pelo mesmo motivo: enfatiza a corporalidade, ignorando o aspecto moral e espiritual, elementos integrantes da personalidade. Por fim, há quem denomine pessoa individual em contraposição à pessoa coletiva, o que se afigura temerário, vez que é possível a existência de entes morais não coletivos, a exemplo da recente figura da EIRELI (empresa individual de responsabilidade limitada).
Ainda quanto à pessoa, é comum a afirmação por parte de renomados autores, a exemplo de Maria Helena Diniz e Washington Monteiro de Barros, de que se trata de sinônimo de sujeito de direito. No entanto, parte da doutrina considera serem ideias distintas. Tercio Sampaio Ferraz Junior[9] é o primeiro brasileiro a defender a distinção, mas quem desenvolve essa teoria é Cláudio Henrique Ribeiro da Silva.[10] Afirmam esses autores que toda pessoa é sujeito de direito, mas a recíproca não é verdadeira: há sujeitos de direito que não são pessoas, a exemplo do nascituro e da massa falida. É possível, e ocorre, a existência de entes não dotados de personalidade jurídica, mas suscetíveis de direitos e deveres em virtude de lei e, portanto, sujeitos de direitos.
Vale lembrar que, apesar de existirem normas destinadas à proteção dos animais e demais seres inanimados, a exemplo da flora e fauna, não são eles pessoas nem sujeitos de direitos. Podem vir a figurar uma relação jurídica no máximo como objeto de direito. Essa proteção existe em função do homem, considerando a finalidade social daqueles seres e também a fim de desestimular e frustrar a crueldade, brutalidade e destruição inúteis e desnecessárias com relação àqueles.
Basta lembrar que se tratam de direitos de terceira geração ou dimensão. Sobre isso, é válido informar ao leitor da classificação dos direitos fundamentais em gerações ou dimensões, a primeira abrangendo os direitos da liberdade – civis e políticos, inerentes ao indivíduo e oponíveis à atuação do Estado[11] e a segunda englobando os direitos sociais, culturais, econômicos e de assistência. A terceira, por sua vez, é formada pelos direitos de fraternidade ou solidariedade, a exemplo do direito ao meio ambiente e à qualidade de vida, trazendo, conforme Ingo Wolfgang Sarlet,
como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (família, povo, nação), e caracterizando-se, consequentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa.[12]
3. PERSONALIDADE JURÍDICA
Após o debate acerca da pessoa, cabe o estudo da personalidade. A priori, é indispensável chamar a atenção do leitor para a distinção entre os pontos de vista psicológico e jurídico. Sobre isso, comenta Paulo Nader:
Cada ente humano possui a sua personalidade e esta é o modo individual de ser da pessoa, suas características, seus valores e atitudes. Não há que se confundir a personalidade do ponto de vista da Psicologia – maneira de ser, agir e de reagir – da personalidade jurídica. Esta constitui a aptidão para ser titular de direito e de deveres na ordem civil.[13]
A personalidade, no campo psicológico, abrange as qualidades e o caráter de uma pessoa, tudo aquilo que a torna singular, o seu modo de ser e agir. No plano jurídico, trata-se de amálgama de direitos, poderes, garantias, prerrogativas e deveres. Personalidade jurídica é a “aptidão genérica para titularizar direitos e contrair obrigações”[14], é o atributo jurídico conferido à pessoa. Também a respeito do tema, posiciona-se Clóvis Beviláqua:
A personalidade jurídica tem por base a personalidade psíquica, somente no sentido de que, sem essa última não se poderia o homem ter elevado até a concepção da primeira. Mas o conceito jurídico e o psicológico não se confundem. Certamente o indivíduo vê na sua personalidade jurídica a projeção de sua personalidade psíquica, ou, antes, um outro campo em que ela se afirma, dilatando-se ou adquirindo novas qualidades. Todavia, na personalidade jurídica, intervém um elemento, a ordem jurídica, do qual ela depende essencialmente, do qual recebe a existência, a forma, a extensão e a força ativa.[15]
Assim, apesar da acepção psicológica de personalidade informar a sua acepção jurídica, não a exaure.
Basta ser pessoa para adquirir personalidade. Não está condicionada a qualquer requisito, seja à vontade, à autodeterminação ou à consciência. Assim é que mesmo um recém-nascido, um deficiente mental, por ser pessoa, tem personalidade jurídica e, portanto, é suscetível de direitos e deveres. São conceitos, vale lembrar, inseparáveis. Nesse sentido, Orlando Gomes argumenta que “Todo homem, atualmente, tem aptidão para desempenhar na sociedade um papel jurídico, como sujeito de direito e obrigações.”[16]
É de bom alvitre reparar que Orlando fala em atualmente. Nem sempre bastou a condição de ser humano para que houvesse aquisição da personalidade. Antes, alguns sofriam restrições de direitos ou até lhes era ceifada a sua condição de pessoa, eram eles os escravos, os apátridas e os estrangeiros. Os primeiros eram considerados pelo direito romano como coisas, ocupando a situação de objeto nas relações jurídicas, e não de sujeito. No direito brasileiro, no entanto, os escravos sempre foram considerados pessoas, embora não equiparados aos livres. Os apátridas eram os que perdiam a nacionalidade e não adquiriam outra, ficando à margem do direito. Por fim, aos estrangeiros também era negada a personalidade, o que foi mudando com o tempo pela necessidade de trocas econômicas, que precisavam ser reguladas pelo direito.
O Código Civil de 2002 dispõe em seu art. 1º que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Ao compararmos esse dispositivo com o equivalente no Código anterior, de 1916, verificamos a substituição do antigo termo homem por pessoa, o que nos afigura ter sido um acerto, por não fazer qualquer distinção de sexo, abrangendo homens e mulheres, de qualquer cor, religião, nacionalidade, enfim, além de que passa a incluir os entes morais como sujeitos de direitos. Atente-se, ainda, para o fim do dispositivo: na ordem civil. Segundo ensinamento de Clóvis Beviláqua, “o pensamento do artigo é assinalar que no Código Civil se não encontram disposições relativas ao direito público, ao direito comercial e ao processo”.[17] Assim, a máxima somente vale para os direitos e deveres na seara cível.
3.1. INÍCIO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
O início da personalidade é um tema que suscita calorosas discussões doutrinárias. No direito romano, ele se dava a partir do nascimento. Antes disso não havia sujeito de direito, sendo o feto considerado parte da mãe. Entretanto, havia um fenômeno de antecipação presumida de seu nascimento, equiparando-se o feto ao já nascido a fim de resguardar seus direitos e interesses. Não se tratava de conferir personalidade ao não nascido, mas de protegê-lo juridicamente.[18]
No direito brasileiro, segue-se regra semelhante. Observemos o art. 2º do Código Civil de 2002: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. As legislações italiana, portuguesa, suíça e alemã posicionam-se no mesmo sentido.[19] É de bom alvitre, antes da análise do dispositivo, a ressalva de que ele está relacionado à pessoa natural (ao ser humano) e, portanto, a determinação do início da personalidade está intrinsecamente ligada à do começo da existência do ser humano.
O nascimento com vida é o ponto de partida da personalidade jurídica. Mas o que é nascer com vida? Para que nasça, conforme Washington Monteiro de Barros, deve o ser estar separado do corpo da mãe (corte do cordão umbilical)[20], e para que nasça com vida, deve dar algum indício dessa. O principal, mas não único, é a respiração. Se o nascido respirou, se inflou seus pulmões de ar, houve nascimento com vida, e a partir daí é sujeito de direito, ainda que morra minutos depois. A constatação de funcionamento cardiorrespiratório é questão afeta às técnicas da Medicina. No caso, depende de exame médico de docimasia hidrostática ou pulmonar de Galeno, que irá verificar a entrada de ar nos pulmões do nascido.
Maria Helena Diniz, em sua obra, nos traz a Resolução n.1/88 do Conselho Nacional de Saúde, que diz ser o nascimento com a vida “a expulsão ou extração completa do produto da concepção quando, após a separação, respire e tenha batimentos cardíacos, tendo sido ou não cortado o cordão, esteja ou não desprendida a placenta”. Vê-se que a posição defendida por Washington encontra-se em desacordo com a definição dada pela Medicina.
O nosso direito não estabeleceu nenhum requisito além do nascimento com vida, o que tem grande interesse prático devido a sua simplicidade. Em algumas legislações alienígenas, no entanto, exige-se a viabilidade do recém-nascido (este deve ser apto para a vida), caso da francesa e da holandesa. O direito espanhol, por sua vez, até 2011, exigia forma humana e permanência de vida por, pelo menos, vinte e quatro horas. Critica-se duramente tais requisitos, pois geram insegurança jurídica.
Definir a viabilidade de um ser é um desafio, pois a evolução da ciência médica não nos permite afirmar com certeza essa característica. O inviável de hoje pode ser o viável de amanhã, não sendo justo relegar aquele à margem do direito.
Também é um absurdo condicionar a personalidade à figura humana, pois o ser humano merece abrigo jurídico independentemente de sua forma. Além disso, o deformado pode, mediante cirurgias plásticas, adquirir a tão desejada “forma humana”. Aponta-se, nesse sentido, incoerência latente pois aquele que nasce segundo esse requisito e adquire, portanto, personalidade, mas posteriormente vê-se deformado em virtude de acidente, não deixa de ser pessoa e sujeito de direito. Por quê, então, devemos condicionar a aquisição de direitos à morfologia humana quando do nascimento? Sem falar da dificuldade em precisar aqueles que foram agraciados com a forma humana e os que não foram. Quem será o juiz dessa definição? Por isso mesmo, rechaça-se a existência dessas condicionantes e parabeniza-se o direito interno pelo seu afastamento.
Faz-se mister também pontuar que, diferentemente do que ocorre com as pessoas jurídicas, para as pessoas naturais, o registro de nascimento tem natureza declaratória, e não constitutiva, ou seja, a inscrição no Cartório do Registro Civil de Pessoas Naturais não gera a personalidade, apenas declara a condição, preexistente, de pessoa.
Como se vê, a definição precisa do surgimento da personalidade jurídica é de grande relevância prática, uma vez que a partir desse determinado momento nascerá um plexo de direitos e deveres, nascerá uma pessoa no sentido jurídico. É fácil visualizar a importância no direito sucessório. No direito brasileiro, criança que nasceu com vida adquiriu personalidade e, portanto, herdou, houve transferência de bens, ainda que ela morra poucos instantes depois, caso em que seus herdeiros receberão os bens. A fim de clarificar a situação, brindamos o leitor com o seguinte exemplo. Maria e José, casados, estão esperando um filho, mas José morre antes dele nascer. O seu direito de herança fica a salvo, conforme expressa previsão legal (“mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”), mas somente se concretiza quando nasce com vida, ainda que morra horas depois, caso em que a mãe sucede ao filho, herdando seus bens. Caso houvesse nascido já morto, os bens de José, seu pai, jamais o teriam alcançado. A herança de José teria ido para seus pais, em concorrência com Maria, sua esposa.
A questão do nascituro, em virtude de sua complexidade, será melhor explicada no tópico abaixo.
3.2. QUESTÃO DO NASCITURO
A questão do nascituro não é nada pacífica na doutrina em virtude de sua condição sui generis. “É pessoa”. “Não é pessoa”. “É quase pessoa”. Não faltam teorias para tentar explicar esse fenômeno jurídico. Todos os estudiosos e doutrinadores reputam serem necessários resguardo e abrigo desse ser humano em formação, a dificuldade está em teorizar a problemática dentro da Teoria Geral do Direito Civil de forma harmoniosa.[21]
Nascituro é o feto em gestação, é o ente concebido, mas não nascido. Vem do latim nasciturus, que significa aquele que deverá nascer. Limongi França define como “o que está para nascer, mas já concebido no ventre materno”.[22] Não se confunde, portanto, com o concepturo ou prole eventual, que ainda não foi concebido, mas o Código Civil, em seu art. 1800, § 4º permite que seja beneficiado em testamento, desde que venha a ser gerado nos dois anos subsequentes à morte do testador. Ser genitor anos após a morte é situação viável dado o avanço científico, por meio da fertilização in vitro.
Discute-se se, por ser sujeito de direitos, é pessoa. Quanto a isso, surgem três teorias: a concepcionista, a natalista e a intermediária.
A primeira, aceita no direito francês e suscitada no art. 4º, I do Pacto de San José[23], defende ser o nascituro pessoa. A personalidade nasceria a partir do momento da concepção da vida no útero materno, do encontro dos gametas masculino e feminino. Internamente, grandes civilistas a defendem, como Teixeira de Freitas, Beviláqua, Nabuco de Araújo, Silmara Chinellato, Limongi França e outros. Argumentam que não há sujeito de direitos sem personalidade e que não há direitos sem sujeito. Aceitando como verdadeiras tais premissas, trata-se de decorrência lógica considerar o nascituro uma pessoa. Com base nesses argumentos, há quem defenda que o nosso direito deu abrigo à tese concepcionista.
Ao subordinar a personalidade ao momento da concepção, surgem problemas que podem gerar insegurança, a exemplo da precisão do instante da fecundação e da aceitação de uma, outra ou todas as maneiras que pode ser concebido o ente – por inseminação artificial, por fertilização in vitro (extrauterina) ou por meio de relações sexuais. Ainda, como explicar, mantendo harmonia sistêmica e tendo em mente que, segundo essa tese, o nascituro já é pessoa, a permissão do aborto pela lei penal brasileira em certos casos?
A teoria natalista, defendida internamente por Silvio Rodrigues, atribui personalidade àquele que nasce com vida, de forma que o nascituro não é pessoa. A maioria da doutrina brasileira pensa, com base no art. 2º do Código Civil de 2002, ter o nosso direito acolhido essa teoria.
A teoria intermediária, por sua vez, pode ser denominada concepcionista da personalidade condicional. Segundo ela, o nascituro é pessoa, desde que nasça com vida, retroagindo-se a personalidade ao momento da concepção. Para Windscheid, é isso que acontece: os direitos do nascituro permaneceriam em estado potencial até que ele nascesse. É também o entendimento de Caio Mário a partir da leitura do art. 2º do Código Civil. Se não nasce, o direito sequer chega a existir e o nascituro sequer vira pessoa. Defende sua ideia lembrando que o nascituro não herdará nesse caso, frustrando-se o direito que poderia ter existido na hipótese de seu nascimento com vida.
Semelhante à ideia de Windscheid é a tese lançada por Oertmann. Para ele, os direitos reconhecidos ao nascituro estariam sujeitos a uma condição suspensiva: o nascimento com vida. Condição, no direito civil, submete a eficácia a evento futuro e incerto, criando um direito eventual. Se nascer com vida (evento futuro e incerto), adquirirá direitos. Sobre isso, Serpa lopes ensina:
Antes do nascimento, portanto, o feto não possui personalidade. Não passa de uma spes hominis. É nessa qualidade que é tutelado pelo ordenamento jurídico, protegido pelo código penal e acautelado pela curadoria do ventre...A aquisição de todos os direitos surgidos medio tempore da concepção subordina-se à condição de que o feto venha a ter existência: se tal acontece, dá-se a aquisição; mas, ao contrário, se não houver nascimento com vida, ou por ter ocorrido um aborto ou por se tratar de um natimorto, não há uma perda ou transmissão de direitos, como deverá de suceder se ao nascituro fora reconhecida uma ficta personalidade.[24]
As teses natalista e intermediária não veem o nascituro como pessoa, apesar de admitirem direitos a ele. Surge, a partir disso, uma necessidade de explicar como isso se afigura possível. Há direito sem titular? Ou há titular de direitos sem personalidade? Para Perlingieri o que ocorre é a existência de situação jurídica sem sujeito, senão vejamos:
Existem situações existenciais que são juridicamente relevantes mesmo antes da existência do sujeito. Para as pessoas naturais, a subjetividade, pelo menos em termos tradicionais, se constitui com o nascimento, fato jurídico que atribui a capacidade de direito como aptidão geral a ser titular das situações subjetivas. Todavia, existem hipóteses, determinadas e específicas, nas quais um centro de interesses é juridicamente relevante apesar da inexistência (o não-nascimento) do sujeito titular do interesse. É a hipótese do nascituro concebido.[25]
Há quem diga que a explicação não é essa, pois havendo direito, há sujeito, ainda que, no caso, não seja propriamente o nascituro, mas a coletividade. Afinal ao protegermos aquele, estamos protegendo aos nossos descendentes. Por fim, a maioria segue a tese, já suscitada nesse capítulo, da possibilidade de existência de sujeitos de direitos sem personalidade e explica a situação sui generis do nascituro com base nisso.
Com relação aos direitos do nascituro, seguimos o seguinte entendimento: há direitos inerentes ao nascituro, quais sejam os chamados “direitos da personalidade”, a serem estudados em capítulo próprio, e há também expectativa de direitos, no caso, com relação aos patrimoniais. É basicamente o que diz Maria Helena Diniz:
Poder-se-ia até mesmo afirmar que na vida intrauterina tem o nascituro e na vida extrauterina tem o embrião, concebido in vitro, personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos da personalidade, visto ter carga genética diferenciada desde a concepção, seja ela in vivo ou in vitro, passando a ter personalidade jurídica material, alcançando os direitos patrimoniais e obrigacionais, que se encontravam em estado potencial, somente com o nascimento com vida.[26]
Seria absurdo considerar que o direito à vida, para o nascituro, é mera expectativa de direito. Por isso mesmo, este e os demais direitos da personalidade existem para aquele desde a concepção. O nascituro tem, assim, uma série de direitos, tais como o direito à assistência pré-natal, à realização do exame de DNA com fins à aferição de paternidade, à honra, à imagem, à indenização por dano moral[27], à reclamar alimentos. Nesse particular, advoga Stolze[28] ser injusto relegar os encargos financeiros da gestação somente à genitora, existindo julgado do TJRS relativo à questão.
Investigação de paternidade. Alimentos provisórios em favor do nascituro. Possibilidade. Adequação do quantum. 1. Não pairando dúvida acerca do envolvimento sexual entretido pela gestante com o investigado, nem sobre exclusividade desse relacionamento, e havendo necessidade da gestante, justifica-se a concessão de alimentos em favor do nascituro. 2. Sendo o investigado casado e estando também sua esposa grávida, a pensão alimentícia deve ser fixada tendo em vista as necessidades do alimentando, mas dentro da capacidade econômica do alimentante, isto é, focalizando tanto os seus ganhos como também os encargos que possui. Recurso provido em parte. (TJRS, Agravo de Instrumento n.º 70006429096, 7ª Câmara Civil, rel. Min.: Sérgio Fernando de Vasconcelos Chaves, julgado em 13/08/2003).
Faz-se necessário informar ao leitor que esses direitos (da personalidade), justamente por serem reconhecidos desde a concepção, estendem-se ao natimorto. Na esteira desse entendimento está o Enunciado 1 da Jornada de Direito Civil: “A proteção que o Código defere ao nascituro alcança o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade, tais como nome, imagem e sepultura.”
Herança, doação e demais direitos patrimoniais, esses sim, ficam na esfera da expectativa de direito, esperando a implementação da condição nascimento com vida para passarem a ter eficácia. Assim, para que doação feita ao nascituro seja registrada em seu nome no Cartório, ele precisa nascer vivo. Se não nasce ou nasce morto, a doação resta ineficaz.
4. CONCLUSÃO
Em suma, difícil questão diz respeito a qual das teorias foi adotada em nosso sistema jurídico. A polêmica rende intenso debate acadêmico. Neste contexto, antes de respondermos à indagação, é fundamental registrar que o princípio da dignidade da pessoa humana, na perspectiva dos direitos fundamentais, deve reger qualquer resposta do intérprete.
Assim, mesmo quem sustenta a teoria natalista pura deve ter cuidado com os excessos, a exemplo do que se lia na antiga redação do art. 30 do CC da Espanha, antes da lei nº 20 de 2011, em que se negava a condição de pessoa ao recém-nascido que não tivesse forma humana. Este tipo de posição jamais deve prosperar.
E, afinal, qual das teorias foi a adotada pelo Código Civil Brasileiro? Clóvis Beviláqua, em seus “Comentários ao Código Civil dos Estados Unidos do Brasil” (RJ, Ed. Rio, 1975, p. 178) traz uma lição ainda atual, quando nos deparamos com a pergunta a respeito de qual das teorias seria a adotada pelo Código Civil Brasileiro. Após elogiar a teoria concepcionista, por lhe parecer a melhor, afirma que o codificador pretendeu adotar a natalista “por parecer mais prática”. Sucede que, na mesma obra, o jurista destaca diversas situações em que o nascituro é tratado como se fosse pessoa. Em síntese: o codificador pretendeu adotar a natalista, mas experimenta inegável influência da teoria concepcionista.
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[1] NADER, Paulo. Curso de Direito Civil, Parte Geral. Vol.1. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 181.
[2] FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 13ª ed. revista, atualizada e ampliada. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p.121.
[3] MOREIRA, Décio. Elementos de Direito Civil: Parte Geral. Editora Revista dos Tribunais, 1983, p.31.
[4] CÉSAR, José Augusto, Preleções; GIORGI, La Dottrina delle Persone Giuridiche o Corpi Morali, 3ª ed., 1/21 apud MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Vol. 1. 36ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 56.
[5] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Vol. 1. 36ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 57.
[6] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 123.
[7] RIZZARDO, Arnaldo. Parte geral do Código Civil: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 139.
[8] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Vol. 1: teoria geral do direito civil. 25ª ed. rev., atual. e ampl. de acordo com a reforma do CPC e com Projeto de Lei n. 276/2007. São Paulo: Saraiva, 2008, p.144.
[9] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2000, p.154.
[10] SILVA, Claudio Henrique Ribeiro da. Apontamentos para uma teoria dos entes despersonalizados. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 809, 20 set. 2005. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/7312. Acesso em: 19 set. 2012.
[11] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 565.
[12] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direito Fundamentais na Constituição de 1988. 2ª Ed. Revista e Ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 53.
[13] NADER, Paulo. Curso de Direito Civil, Parte Geral. Vol.1. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 183.
[14] GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil. Vol. 1: parte geral. 10ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 80.
[15] BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. São Paulo: RED Livros, 1999, p. 81.
[16] GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Revista, atualizada e aumentada, de acordo com o Código Civil de 2002, por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. – Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 127.
[17] BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. Vol. 1, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1953, p. 136.
[18] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol. 1. 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 216.
[19] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. 7ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 198.
[20] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Vol. 1. 36ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 59.
[21] NADER, Paulo. Curso de Direito Civil, Parte Geral – vol.1. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 186.
[22] FRANÇA, Limongi apud GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil. Vol. 1: parte geral. 10ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, pág. 82.
[23] O Pacto de San José da Costa Rica faz parte do Sistema Normativo Interamericano de proteção ao indivíduo e foi escrito em 1969, embora a República Federativa do Brasil só o tenha assinado em 1992. É chamado de Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Segue seu art. 4º, I: art. 4º. “Direito à vida: 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.
[24] SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil. Vol 1. 6ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1988, p. 254.
[25] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p 155-156.
[26] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Vol. 1: teoria geral do direito civil. 25ª ed. rev., atual. e ampl. de acordo com a reforma do CPC e com Projeto de Lei n. 276/2007. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 198.
[27] Decidiu o STJ nesse particular: “O nascituro também tem direito aos danos morais pela morte do pai, mas a circunstância de tê-lo conhecido em vida tem influência na fixação do quantum.” (STJ, Ac.4ª T., REsp. 399.028/SP, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 26.2.02, DJU 15.4.02, p. 232).
[28] GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil. Vol. 1: parte geral. 10ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 86.
Advogada (OAB/PE). Formada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - Faculdade de Direito do Recife. UFPE/FDR.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CORDEIRO, Marília Nadir de Albuquerque. Da personalidade jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46439/da-personalidade-juridica. Acesso em: 18 dez 2024.
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