Resumo: o presente artigo aborda a evolução das políticas pública de garantia de preço mínimo (PGPM), política agrícola destinada, basicamente, à preservação da renda do produtor rural em patamares de viabilidade da atividade agropecuária, bem como direcionada à garantia do abastecimento alimentar interno. Registra o déficit estratégico das políticas públicas agrícolas brasileiras ao longo de sua história recente, ao que aponta, à luz dos conceitos de “paradigmas” e de “revolução científica” de Thomas Kuhn, a revolução paradigmática experimentada pela PGPM, que deixou de se basear exclusivamente em subsídios púbicos para se orientar a mercado, solução indispensável ao alto endividamento do Estado brasileiro no setor rural.
Palavras-chave: Políticas Agrícolas. Política de Garantia de Preço Mínimo – PGPM. Thomas Kuhn. Revolução Paradigmática. Subsídio Público. Mercado.
SUMÁRIO: I - Introdução. II – Desenvolvimento: II.1. Do conceito de política pública. II.2. Do déficit estratégico histórico das políticas agrícolas brasileiras. II.3. Da Política de Garantia de Preço Mínimo – PGPM. II.4. Dos conceitos de “paradigma” e de “revolução científica” no obra de Thomas Kuhn. II.4. Proposta interpretativa, sob a ótica de Thomas Kuhn, da evolução da PGPM. III. Conclusão. Referências bibliográficas.
I - Introdução
No presente artigo, abordar-se-á a atuação do Estado brasileiro na condução da Política de Garantia de Preço Mínimo (PGPM), programa governamental destinado a garantir a renda do produtor rural e, consequentemente, assegurar a oferta da produção para o mercado e para a sociedade. Para tanto, valer-se-á da proposta teórica de Thomas Kuhn para entender alguns aspectos de como se desenhara a estrutura e de como se desenvolvera a dinâmica dos principais referencias de ação utilizados pelo Estado Brasileiro para tal política.
Espera-se lançar luzes sobre as características, potencialidades e limitações da PGPM enquanto instrumento de desenvolvimento rural sustentável e inclusivo.
II – Desenvolvimento
II.1. Do conceito de política pública
O conceito de política pública deve abranger a noção de plano, aqui compreendido como atuação administrativa de longo prazo, funcionalmente orientada, jurídico e institucionalmente, para a realização do desenvolvimento. Não deve, decerto, ser confundido com o conceito de política, a qual é “mais ampla e se define como o processo de escolha dos meios para a realização dos objetivos do governo com a participação dos agentes públicos e privados”.
Enfim, políticas públicas “são os programas de ação do governo para a realização de objetivos determinados num espaço de tempo certo” (Bucci, 1997, p. 95) ou ainda “são programas de ação governamental visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados” (Bucci, 2007). Entretanto, as políticas agrícolas brasileiras não se prestaram a promover e a realizar, em sua plenitude, o desenvolvimento rural. Nunca foram pensadas estrategicamente. Pelo menos, não no sentido do desenvolvimento rural sustentável e inclusivo, nem no sentido de conferir maior competividade internacional à agropecuária brasileira.
II.2. Do déficit estratégico histórico das políticas agrícolas brasileiras.
Em que pese a agricultura ter ocupado papel de destaque ao longo da história política e econômica nacional, a política agrícola é um tema relativamente recente no Brasil. Carlos Nayro Coelho (2001) identifica quarto fases da política agrícola brasileira ao longo de setenta anos (1931-2001): “agricultura primitiva” (de 1931 a 1964), tendo como principais produtos o café e o açúcar e como marco inaugural a criação do Conselho Nacional do Café, em 1931; “modernização da agricultura” (de 1965 a 1984), com utilização em larga escala de novas tecnologias e de mecanização no setor agropecuário, surgimento do modelo de agronegócio baseado na produção de grãos, ocupação de grandes áreas na fronteira agrícola e ganhos de produtividade, sendo criados o Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR) e a Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM); “fase de transição da agricultura” (de 1985 a 1994), com a decisão do governo de eliminar o subsídio ao crédito rural, especialmente em razão da crise fiscal e da necessidade de controle da inflação; e, por fim, “fase da agricultura sustentável” (de 1994 a 2001), na qual se buscou equacionar o endividamento rural por meio da securitização e se introduziu novos instrumentos de políticas agrícolas, menos intervencionistas e mais orientados para o mercado, tais como o Prêmio para Escoamento de Produtos (PEP) e os contratos de opções.
Entretanto, a grande maioria das políticas agrícolas brasileiras careceram da noção de plano inerente ao conceito de política públicas, ignorando, de mais a mais, a própria dimensão estratégica das políticas agrícolas. Afinal, as políticas agrícolas possuem relevância estrutural. Além de promover a segurança alimentar e o desenvolvimento rural, a atividade agrícola traz implicações sobre o equilíbrio macroeconômico interno, sobre a manutenção do emprego e renda no campo, sobre o controle do fluxo de mão-de-obra entre campo e cidade, sobre a balança comercial, sobre a inflação de alimentos, sobre os custos de alimentação enquanto determinante do salário real urbano (DIAS, 1999, p. 213).
Esclareça-se, por oportuno, a amplitude e complexidade do tema, tendo em vista a distinção existente entre questões agrária, agrícola e fundiária. A questão agrária refere-se aos aspectos relacionados com a organização e uso do espaço rural, aos impactos que a atividade produtiva causa no ambiente, às dinâmicas das populações no meio rural e entre esse e o urbano e as trocas de mão de obra e serviços entre essas especialidades, aos fluxos e cadeias de mercados, entre outros. A questão agrícola, por sua vez, trata de questões ligadas à produção, à produtividade e aos processos técnicos que buscam expandir esses aspectos, sendo apenas vertente de uma dimensão maior, a agrária. Por fim, a questão fundiária cuida de questões relacionadas à propriedade e à posse da terra (Coelho, 2001)
Desta feita, parte significativa das políticas agrícolas brasileiras olvidou de compreensão abrangente, integrada e integradora de todos os agentes econômicos envolvidos e do propósito socialmente importante de redução da desigualdade sócio-econômica na sociedade rural. Com a Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) não foi diferente. Não fora pensada e implementada de maneira conectada com o todo, com os propósitos econômicos e socialmente relevantes da política agrícola brasileira.
II.3. Da Política de Garantia de Preço Mínimo - PGPM
A PGPM representa importante política pública de preservação da renda do produtor rural, protegendo-o das oscilações de preço no mercado, mantendo viável financeiramente a atividade agropecuária e garantindo abastecimento de alimentos para a sociedade. Pode ser viabilizada, basicamente, por meio da compra, equalização de preços e subvenções públicas, sempre que o preço definido como mínimo pelo Governo, por item e por região, considerados os custos inerentes e as expectativas do preço futuro dos produtos agropecuários, superar o preço ou a demanda de mercado (o que, pelas regras da oferta e da procura, acabam por impactar o preço de mercado).
O primeiro diploma normativo a tratar da PGPM foi o Decreto n. 1.506/1951, que previa preços mínimos para o financiamento ou aquisição de cereais e outros gêneros de produção nacional. Ato contínuo, sucederam-se os seguintes instrumentos normativos: Decreto n. 57.391/1965; Decreto-Lei n. 79/1966 (Política de Garantia de Preços Mínimos); Lei n. 5.969/1973 (Programa de Garantia da Produção Agropecuária – Proagro); Constitutição Federal de 1988, que em seu o art. 189, enuncia que Política Agrícola deve ser planejada e executada na forma da lei; Lei n. 8.171/1991 (Lei Agrícola Brasileira); e Lei n. 11.775/2008 (Altera a Política de Garantia de Preços Mínimos).
Pede-se vênia para transcrever trecho bastante elucidativo do Ministério da Agricultura, Pesca e Abastecimento – MAPA a respeito das razões e do funcionamento da PGPM:
“Garantir o abastecimento nacional com alimentos de qualidade e assegurar ao produtor preços que permitam sua manutenção na atividade rural é um compromisso do Ministério da Agricultura. A cada safra, as diretrizes da Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) são coordenadas, elaboradas, acompanhadas e avaliadas para garantir segurança alimentar e a comercialização dos produtos agropecuários. O financiamento da estocagem, a armazenagem, a venda de estoques públicos de produtos agropecuários e a equalização de preços e custos são alguns dos mecanismos de que o ministério se vale para garantir abastecimento e comercialização. Toneladas de produtos agrícolas excedentes podem ser comercializadas, por meio de leilões eletrônicos monitorados pelo governo, de forma a abastecer regiões deficitárias e, ao mesmo tempo, garantir aos produtores um preço que lhes permita manter-se na atividade rural. As tabelas e os gráficos elaborados pelo ministério reúnem dados atualizados mensalmente sobre exportações e importações; área plantada, produção e produtividade; preço mínimo e de mercado; entre outros”.
II.4. Dos conceitos de “paradigmas” e de “revoluções científicas” no obra de Thomaz Kuhn
Em sua obra “A Estrutura das Revoluções Científicas”, Kuhn (1998) defende que numa comunidade científica a estabilização do conhecimento se dá por meio de paradigmas, compreendidos como os referenciais teóricos aptos a solucionar os problemas apresentados pela realidade. São oriundos, pois, de uma “fase pré-científica”, em que problemas e eficácia das soluções não são totalmente conhecidos e estáveis. Amadurecidos, testados e aprovados, o conhecimento científico convincentemente estável e resolutivo passa a consubstanciar a “ciência normal”, estabilizado, assim, os paradigmas.
Entretanto, os paradigmas começam a sofrer a pressão da realidade quando não resolvem todos os problemas posto. Surge, então, as “crise e anomalias” da “ciência normal”. Com o acúmulo de anomalias (situações insolúveis a partir dos paradigmas) pode haver uma mudança metodológica ou mesmo uma mudança cognitiva dos pressupostos dos paradigmas. Perceba-se que um paradigma pode até mesmo mudar a forma como outro paradigma é percebido. Diante da instabilidade ou até mesmo imprestabilidade dos paradigmas anteriores, opera-se a “revolução científica”, adotando-se novos paradigmas, estes agora, aptos a resolver os problemas apresentados. Tais rupturas com os paradigmas anteriores não se confundem com ajustes (os quais são incrementais) nem seriam um estágio evolutivo em relação ao paradigma anterior, a esse momento já superado. Para Kuhn, a “revolução científica” opera a substituição de um paradigma por outro.
II. 4. Proposta Interpretativa, sob a ótica de Thomas Kuhn, da Evolução da PGPM.
Sob a ótica dos pressupostos teóricos de Thomas Kuhn, pode-se perceber as mudanças de “paradigma” e a “revolução científica” vivenciadas pela PGPM ao longo de sua história recente.
A fase da “agricultura primitiva” (Coelho, 2001), de 1930 a 1965, pode ser identificada como a “fase pré-científica” da PGPM. Durante esse período, a política agrícola e seus respectivos instrumentos ora serviram ao modelo de produção agroexportador, ora auxiliaram o processo de industrialização urbana. A PGPM, nesse contexto, surgida em 1951 não se prestava a resolver os problemas de abastecimento, inflação e renda no meio rural.
Com o regime militar, durante a fase de “modernização da agricultura”, de 1965 a 1985, políticas públicas desenvolvimentistas e fortemente intervencionistas no domínio econômico estabelecem e estabilizam o paradigma do subsídio público para efetivar a PGPM. O Governo, em si, promovia desembolsos diretamente. Essa fase pode ser identificada como a “ciência normal” ou estabilização do paradigma.
Entrementes, as mazelas do regime militar, o intenso processo de modernização da produção agropecuária durante esse período (“Revolução Verde”), a crise do petróleo de 1980, a superinflação, o aumento da dívida externa, o crescimento da miséria em centros urbanos, o alto grau de endividamento dos produtores rurais, o aumento da concentração de renda e da desigualdade social surgiram como “crises” e “anomalias” da “ciência normal”, comprometendo a estabilidade do “paradigma” anterior: subsídio público direto para a PGPM.
Consigne-se que a PGPM desenvolve sob duas vertentes: (1) compra e (2) financiamento. De 1966 até 1992, o Governo intervinha diretamente no mercado agrícola, comprando por intermédio da AGF (Aquisição do Governo Federal) e emprestando por intermédio da EGF (Empréstimo do Governo Federal). Aqui, o “paradigma” era o subsídio público direto.
As “crises” e “anomalias” mencionadas acima favoreceram uma “revolução científica”, adotando-se um novo paradigma em substituição ao anterior: a PGPM deveria ser desenvolvida não mais por meio de subsídios públicos diretos, mas sim mediante a utilização de instrumentos normativos direcionados ao mercado. O Estado, portanto, deveria ser menos intervencionista.
Destarte, de 1985 a 1995, tem-se a fase de “transição da agricultura” com a eliminação do subsídio público direto ao crédito do produtor rural. Entre 1992 e 1996, tem-se a adoção do PEP (Prêmio para Escoamento do Produto) e PEPRO (Prêmio Equalizador Pago ao Produtor). Entre 1996 e 2003, tem-se o COV (Contrato de Opção de Venda). Todos instrumentos de compra direcionados ao mercado. A partir de 2004, tem-se ainda o PROP (Prêmio de Risco por Opção Privada), o PESOJA (Prêmio Equalizador do Valor de Referência da Soja em Grãos) e a LEC (Linha Especial de Compra) .
Registre-se, por fim, que, desde 1995 até hoje, ou seja, durante a chamada fase da “agricultura sustentável”, o “paradigma” da PGPM tem sido o direcionamento para instrumentos de mercados, o qual, por ora, soluciona o problema de endividamento rural e tem apresentado melhores resultados a um menor custo para o Estado.
5. Conclusão
A política agrícola brasileira tem apresentado um déficit estratégico histórico. Tem negligenciado a noção de “plano” desde a sua elaboração até sua implantação. Talvez por isso, na linha da doutrina de Thomas Kuhn, a Política de Garantia de Preço Mínimo (PGPM) experimentou os estágios “pré-científico”, de “ciência normal” e de “revoluções científicas” ao longo das diversa fases da agricultura brasileira. Mercê do alto endividamento do Estado brasileiro, tal política passou a se orientar a Mercado. Por ora, a proposta soluciona o problema de endividamento rural e tem apresentado melhores resultados a um menor custo para o Estado brasileiro.
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Advogado e Consultor Jurídico em Brasília e em Alagoas; Procurador do Distrito Federal; Procurador-Chefe do Centro de Apoio Técnico da Procuradoria Geral do Distrito Federal; Membro da Comissão de Assuntos Institucionais do Fórum Nacional de Precatórios - FONAPREC/CNJ; especialista em Direito Público; Especializando MBA em Agronegócio pela ESALQ/USP; pós-graduando MBA LLM em Direito Empresarial pela FGV; especializando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET; Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direito Tributário da UnB; ex-Procurador da Fazenda Nacional; ex-Procurador Federal. Professor do Instituto de Magistrados do Distrito Federal - IMAG/DF;Professor da Faculdade de Direito da FACITEC; co-autor do livro Direito Constitucional, Ed. Método, São Paulo; co-autor do Livro Estudos Dirigidos: Procuradorias, Ed. Jus Podivm;<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FIEL, Adamir de Amorim. Revolução paradigmática na política agrícola de garantia do preço mínimo (PGPM) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46492/revolucao-paradigmatica-na-politica-agricola-de-garantia-do-preco-minimo-pgpm. Acesso em: 22 nov 2024.
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