Resumo: o presente artigo tem como objetivo abordar a necessidade ou desnecessidade de análise da condição financeira do requerente nas decisões judiciais que condenam o Poder Público a conceder medicamentos. Para tal, haverá análise da separação de poderes e do núcleo essencial do direito à saúde.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Direito à saúde. Ativismo judicial. Separação de poderes. Núcleo essencial.
1- Introdução
Dentro do tão controverso ativismo judicial, as decisões judiciais que concedem medicamentos (que neste artigo englobam qualquer prestação relacionada à saúde) não fornecidos pelo SUS ocupam, certamente, uma posição de grande destaque.
Apesar de serem vistas como a salvação daqueles excluídos pelas políticas públicas de saúde, e como forma de “fazer justiça” frente ao suposto descaso do Poder Executivo, essas decisões não devem estar livres de uma análise crítica de seus fundamentos.
Neste trabalho o que procuramos discutir é se nos casos em que não há hipossuficiência do requerente e o SUS se nega a fornecer determinado medicamento, há violação ao conteúdo essencial do direito à saúde, e se consequentemente o Judiciário poderia intervir em políticas públicas.
Além disso, a universalidade do direito à saúde, garantida pela Constituição da República, não possibilitaria atuação do Poder Judiciário independentemente da condição financeira do cidadão, de forma a concretizar mandamento constitucional?
Mesmo as decisões que se referem à condição financeira do requerente como empecilho para o provimento do pedido o fazem de forma muito superficial, sem apresentar qualquer fundamento jurídico para tal, fato que reforça a necessidade da discussão aqui trazida.
Vale esclarecer que neste trabalho a hipossuficiência deve ser entendida como relativa, a ser analisada em cada caso concreto. Ou seja, quando falamos em hipossuficiência, nos referimos à impossibilidade do requerente em adquirir um tratamento com seus próprios recursos, sem que haja prejuízo ao sustento da família. Aqui, a hipossuficiência pode se caracterizar mesmo em casos de requerente de classe média ou alta, a depender do tratamento de que necessita.
2- Decisões proferidas pelo Poder Judiciário que intervêm nas políticas públicas de saúde e a hipossuficiência do requerente
Antes de fazermos uma análise mais aprofundada da necessidade ou não de hipossuficiência financeira do autor da ação para que haja interferência nas políticas públicas de saúde, veremos como o Poder Judiciário tem se comportado quando provocado em casos de pedido de medicamentos.
As decisões proferidas desde a primeira instância até o Supremo Tribunal Federal são muito semelhantes. Elas se fundam, basicamente, na extrema necessidade do uso do medicamento, na recusa de prestação por parte do SUS, e para fins de antecipação de tutela, nos possíveis danos causados pela demora no tratamento. Quanto à hipossuficiência do requerente, apesar de ser entendimento dominante do STF que deve estar presente para provimento do pedido, não é entendida como elemento essencial por todos os julgadores, e mesmo quando o é, os fundamentos para tal exigência não são devidamente desenvolvidos, conforme veremos no próximo tópico.
Vejamos a ementa e um trecho do inteiro teor de uma típica decisão que entende pela concessão de medicamentos:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO ORDINÁRIA - CONCESSÃO DE MEDICAMENTO - ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA - DEFERIMENTO PELO JUÍZO SINGULAR - REQUISITOS DO ARTIGO 273 DO CPC - HIPOSSUFICIÊNCIA E NECESSIDADE DO PROCEDIMENTO - DECISÃO MANTIDA.
A garantia à saúde compete solidariamente à União, Estados e Municípios, podendo o cidadão acionar qualquer desses entes federativos, conjunta, ou isoladamente, para fins de obtenção de medicamentos que não integram a tabela do Sistema Único de Saúde.
O artigo 196 da CF/1988 não é regra programática, e por isso, dispensa a edição de leis de caráter infraconstitucional para sua exeqüibilidade; é pragmática, de eficácia imediata, posto seu caráter auto-aplicável, por isso geradora de deveres para o Estado e direito para o cidadão.
Deve ser mantida a decisão que antecipou os efeitos da tutela e impôs ao ente publico a efetivação de meios para aplicação de injeção de Lucentis ao particular que demonstra a necessidade e a impossibilidade de arcar com o custeio (Agravo de Instrumento Cv 1.0439.12.003980-5/001, Rel. Des.(a) Afrânio Vilela, 2ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 06/11/2012, publicação da súmula em 19/11/2012 - grifo meu).
Ao consultar o inteiro teor deste acórdão, podemos observar o interessante fato de que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao analisar a questão da hipossuficiência, se limitou a dizer apenas que “a hipossuficiência do recorrido foi suficientemente demonstrada, vez que está assistido pela Defensoria Pública.”
Percebe-se que o TJMG considerou a hipossuficiência como necessária para manter a decisão de primeira instância que concedeu a antecipação dos efeitos da tutela. Entretanto, como tem sido o costume entre os julgadores brasileiros, apenas fez uma breve menção à condição financeira daquele que pleiteia os medicamentos, sem qualquer desenvolvimento argumentativo quanto ao porquê da necessidade de preenchimento deste requisito.
Inserido no teor de decisões sem o devido amparo jurídico, esse requisito adquire uma imensa fragilidade perante aqueles que evocam a universalidade do direito à saúde como fundamento para intervenção judicial nas políticas públicas em qualquer situação, independentemente da situação econômica do requerente.
É o art. 196 da Constituição da República, quando fala em “acesso universal e igualitário” às políticas públicas de saúde, que dá substrato, mesmo que desenvolvido de forma muito superficial e questionável, às decisões que dispensam a análise da situação financeira do requerente para concessão do pedido. É o caso da seguinte decisão, proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, modificando sentença de primeira instância que negava ressarcimento de valores utilizados para compra de medicamentos:
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. HEPATITE. PRINCÍPIO DA UNIVERSALIDADE. LEI N. 11.255/2005. DEVER DO ESTADO INDEPENDENTE DA CONDIÇÃO FINANCEIRA DO NECESSITADO. Não há dúvidas de que é responsabilidade solidária das entidades públicas o fornecimento de medicamento à pessoa necessitada. Contudo, tratando-se de pessoa portadora de hepatite, o Sistema Único de Saúde - SUS prestará atenção integral por conta da gravidade da doença. Assim, independente da condição econômica do portador de hepatite, é assegurado o tratamento e a dispensação dos fármacos por parte do Estado (Lei n. 11.255/2005). Direito do autor de ser ressarcido dos valores gastos com os medicamentos para o tratamento da hepatite C. Apelo provido (Apelação Cível n° 70042505800, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Julgado em 29/06/2011 - grifo meu).
Assim como a Constituição da República, a lei 11.255/2005, em seu art. 1°, fala em “universalidade” do tratamento de hepatite, o que foi usado como fundamento jurídico pelos julgadores para considerarem a situação econômica do réu indiferente à solução do caso.[1]
A superficialidade com que é tratada a questão da hipossuficiência está completamente alastrada no Poder Judiciário, contaminando até mesmo o STF, como se percebe na decisão a seguir, que representa bem o estilo adotado por este Tribunal ao analisar esse tipo de causa.
(...)Assim, no presente caso, atendo-me à hipossuficiência econômica da impetrante e de sua família, à enfermidade em questão, à inoperância de outras medicações já ministradas e à urgência do tratamento que requer a utilização do medicamento importado, em face dos pressupostos contidos no art. 4º da Lei 4.348/64, entendo que a interrupção do tratamento poderá ocasionar graves e irreparáveis danos à saúde e ao desenvolvimento da impetrante, ocorrendo, pois, o denominado perigo de dano inverso, o que faz demonstrar, em princípio, a plausibilidade jurídica da pretensão liminar deduzida no mandado de segurança em apreço. Ressalte-se que a discussão em relação à competência para a execução de programas de saúde e de distribuição de medicamentos não pode se sobrepor ao direito à saúde, assegurado pelo art. 196 da Constituição da República, que obriga todas as esferas de Governo a atuarem de forma solidária. 7. Ante o exposto, indefiro o pedido (STF, SS 3205, Relatora: Min. Presidente Ellen Gracie, decisão monocrática proferida pela Ministra Ellen Gracie, j. 31/05/2007, p. 08/06/2007 grifo meu).
Exposto como anda a jurisprudência, passemos agora à análise dessas intervenções do Poder Judiciário no Executivo, com ênfase na condição financeira do requerente e sua relação com o conteúdo essencial do direito à saúde.
3- A possibilidade de intervenção do Poder Judiciário em atos do Poder Executivo relacionados à saúde
A atual concepção acerca do princípio da separação de poderes e dos direitos sociais já não permite mais que o julgador indefira pedidos de concessão de medicamentos contra o Estado com o argumento de que não cabe ao Poder Judiciário interferir em políticas públicas, ou que o direito à saúde seria norma programática.
Quanto ao direito à saúde, até meados da década de 1990, prevalecia na doutrina e jurisprudência o entendimento de que se tratava de uma norma programática, sem caráter jurídico-vinculante. Conforme Duarte, os direitos sociais, nessa concepção:
(...) não passam de palavrórios dotados de alto grau de indeterminação (a), insuscetíveis de gerar diretamente um direito subjetivo (b), porquanto dependentes, necessariamente, de mediação legislativa (c) e efetivação pela Administração (d). Como simples disposições políticas, esses “Direitos” nem sequer seriam capazes de gerar uma obrigação objetiva do Estado (e), sobretudo por apenas facultar, mas nunca impor ao legislador e à administração uma direção a ser seguida (DUARTE, 2012, p. 219).
Ainda segundo Duarte, os principais autores brasileiros que adotaram essa linha de pensamento foram José Alfredo de Oliveira Baracho e Raul Machado Horta. Baracho, ao se referir à proteção judicial dos direitos fundamentais, não inclui os direitos sociais. Já Horta, apesar de entender que os direitos sociais seriam “novos direitos individuais”, continuou a perceber tais normas como programáticas, como apenas uma orientação aos governantes. (DUARTE, 2012, p. 220-221).
Na evolução desse pensamento para aquele que entende os direitos sociais, (e consequentemente o direito à saúde) como direitos subjetivos do cidadão, como normas de aplicação imediata e que merecem tutela judicial, podemos citar José Afonso da Silva como um jurista muito significativo, mesmo que tenha desenvolvido ideias ainda um pouco diversas daquilo que predomina hoje na jurisprudência e doutrina.
Afonso da Silva ainda entendia que faltava concretização aos direitos sociais por serem normas programáticas, normas de “caráter abstrato e incompleto” (SILVA, 2007, p. 140). Sua doutrina, entretanto, avançou bastante ao contrariar os estudiosos que entendiam que os direitos sociais não estavam no rol dos direitos fundamentais, e ainda ao conferir a esses direitos um caráter jurídico-subjetivo, ou seja, direitos a prestações estatais positivas.
Quando falamos em ideias ainda distantes do entendimento atual, nos referíamos ao fato de que Afonso da Silva, apesar de ter sido um nome significativo na doutrina brasileira quanto à possibilidade de concessão judicial de pedidos de prestações estatais relacionadas à saúde, entendia que nem todos os direitos sociais possuíam a aplicabilidade imediata garantida aos direitos fundamentais pelo art. 5°, §1° da Constituição da República. Esses provimentos judiciais deveriam analisar as condições das instituições existentes, ou seja, nem todas essas “normas programáticas” poderiam ser alvo de intervenção judicial nas políticas públicas, pois faltaria a elas uma lei integradora.
Ingo Sarlet e Mariana Figueiredo sepultam qualquer pretensão em não classificar os direitos sociais como fundamentais, como se percebe a seguir:
(...)firma-se aqui posição em torno da tese de que – pelo menos no âmbito do sistema de direito constitucional positivo nacional – todos os direitos sociais são fundamentais, tenham sido eles expressa ou implicitamente positivados, estejam eles sediados no Título II da CF (dos direitos e garantias fundamentais) ou dispersos pelo restante do texto constitucional, ou se encontrem ainda (também expressa e/ou implicitamente) localizados nos tratados internacionais regularmente firmados e incorporados pelo Brasil (SARLET, FIGUEIREDO, 2008, p. 191, grifo meu).
Paulo Bonavides, avançando ainda mais, ampliou o caráter subjetivo dos direitos sociais, entendendo que eles deveriam ser concretizados pelo Judiciário. Esta concretização seria realizada através de uma ponderação no caso concreto. Os direitos fundamentais de segunda geração, assim como os de primeira, não poderiam ter sua eficácia recusada com base no caráter programático da norma.
Segundo Bonavides, os antigos métodos de interpretação seriam incapazes de interpretar direitos fundamentais, o que imporia o uso da chamada “Nova Hermenêutica”, e consequententemente do princípio da proporcionalidade. (BONAVIDES, 2007).
Essa discussão possui muitas divergências e ramificações, e apenas a título de exemplo, já que neste trabalho não cabe uma exposição mais detalhada, podemos citar mais uma corrente, conforme nos ensina Duarte (2012), que é a concepção dos direitos direitos sociais como obrigações prima facie, “realizáveis, na medida do possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes” (DUARTE, 2012, p. 256). Seus principais defensores são Virgílio Afonso da Silva, Daniel Sarmento, Luiz Roberto Barroso, entre outros.
A doutrina brasileira, portanto, evoluiu no sentido de conferir observância obrigatória às normas de direitos sociais, sendo seguida pela jurisprudência, como vimos no tópico anterior.
Não podemos deixar de citar, entretanto, doutrina estrangeira do ilustre Professor J.J. Canotilho, a qual não coaduna com a evolução da doutrina brasileira, entendendo que: “os direitos sociais mais não são do que pretensões legalmente reguladas” (Canotilho, 2008, p. 105).
Segundo Canotilho, os direitos sociais estão na mesma posição que os direitos individuais estavam há cinquenta anos: dependentes de lei constitutiva, sem a qual não existem. Apesar de os resultados dessa dependência legal serem, na palavra do autor, “desconsoladoras”, não se pode falar em aplicabilidade imediata dos direitos sociais (e também econômicos e culturais) (Canotilho, 2008, p. 105).
Apesar do enorme respeito conquistado pelo Professor J.J. Canotilho entre os operadores do Direito no Brasil, a jurisprudência e doutrina nacionais, conforme já exposto, conferem aplicabilidade imediata aos direitos sociais, independentemente de lei reguladora.
Outro estudioso do Direito no Brasil que não possui dúvidas a respeito da aplicabilidade imediata das normas de direitos sociais é Luís Roberto Barroso, segundo o qual as ações constitucionais e infraconstitucionais previstas pelo ordenamento jurídico devem servir para propiciar a aplicação direta dos direitos subjetivos criados pela Constituição da República de 1988, inclusive os direitos sociais. Segundo ele, o Judiciário possui “papel ativo e decisivo na concretização da Constituição”, e ao conferir imperatividade às normas constitucionais, faz uso da “doutrina da efetividade”, a qual, por sua vez, se vale “de uma metodologia positivista: direito constitucional é norma; e de um critério formal para estabelecer a exigibilidade de determinados direitos: se está na Constituição é para ser cumprido”(BARROSO, 2008, p. 15-16).
Tendo superado a questão da natureza dos direitos sociais, pois já demonstrado que o direito à saúde pode ser objeto de provimento judicial, passemos ao suposto empecilho imposto pelo princípio da separação de poderes. Tal princípio impediria a interferência judicial em políticas públicas de saúde, pois haveria desrespeito ao comando constitucional inscrito no art. 2° da Constituição da República (“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”).
O que o Poder Judiciário entende, com apoio da doutrina, é que o Executivo não pode fugir ao dever constitucional de proporcionar condições de saúde aos cidadãos. Ou seja, a interferência judicial se funda em uma grave inobservância de obrigações por parte do Executivo, sendo dever do Judiciário decidir de forma a concretizar direitos constitucionais.
Tal posicionamento está muito bem exposto nas seguintes decisões do Supremo Tribunal Federal, e apesar da primeira se referir ao direito à segurança, segue a mesma lógica da segunda, que é específica do direito à saúde:
GRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SEGURANÇA PÚBLICA. LEGITIMIDADE. INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. OMISSÃO ADMINISTRATIVA. 1. O Ministério Público detém capacidade postulatória não só para a abertura do inquérito civil, da ação penal pública e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social do meio ambiente, mas também de outros interesses difusos e coletivos [artigo 129, I e III, da CB/88]. Precedentes. 2. O Supremo fixou entendimento no sentido de que é função institucional do Poder Judiciário determinar a implantação de políticas públicas quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento (RE 367432 AgR/PR, Relator Min. EROS GRAU, j. 20/04/2010, Segunda Turma, DJe- 13-05-2010, grifo meu ).
DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO A SAÚDE. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PROSSEGUIMENTO DE JULGAMENTO. AUSÊNCIA DE INGERÊNCIA NO PODER DISCRICIONÁRIO DO PODER EXECUTIVO. ARTIGOS 2º, 6º E 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. O direito a saúde é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. 2. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo. Precedentes. 3. Agravo regimental improvido (AI 734487 AgR/PR, Relatora Min. ELLEN GRACIE, j. 03/08/2010, Segunda Turma, DJe-154 19-08-2010, grifo meu).
Ainda neste sentido, o STF decidiu recentemente:
Ementa: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. PRELIMINAR DE REPERCUSSÃO GERAL. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. ÔNUS DA PARTE RECORRENTE. DIREITO À SAÚDE. COMPLEMENTAÇÃO DE VERBA PARA CUSTEIO DE DESPESAS PARA TRATAMENTO MÉDICO FORA DO DOMICÍLIO (PORTARIA 55 DO MINISTÉRIO DA SAÚDE). LEGITIMIDADE. OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. INOCORRÊNCIA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS PARA ASSEGURAR TRATAMENTO MÉDICO ADEQUADO AOS NECESSITADOS (RE 855.178-RG, REL. MIN. LUIZ FUX, TEMA 793 DA REPERCUSSÃO GERAL). AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO (ARE 944519 AgR, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 29/03/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-068 DIVULG 12-04-2016 PUBLIC 13-04-2016)
Como bem esclarece Moraes:
A Constituição Federal, visando, principalmente, evitar o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais do homem, previu a existência dos Poderes do Estado e da Instituição do Ministério Público, independentes e harmônicos entre si, repartindo entre eles as funções estatais e prevendo prerrogativas e imunidades para que bem pudessem exercê-las, bem como criando mecanismos de controle recíprocos, sempre como garantia da perpetuidade do Estado Democrático de Direito (MORAES, 2006, p.373, grifo meu).
Tais “menismos de controle recíprocos” seriam exatamente aquilo que permitiria ao Judiciário interferir nas ações do Poder Executivo, ou seja, seria próprio do princípio da separação de poderes a possibilidade de intervenção de um Poder em outro com o objetivo de equilibrar a atuação de cada um deles.
Defendendo a atuação judicial em situações na qual o Estado não garante um mínimo de dignidade ao sujeito, a ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia Rocha ensina:
Pelo acolhimento do conceito de mínimo existencial, a ser garantido como direito para a efetivação desse princípio [dignidade], tem-se por estabelecido um espaço juridicamente assegurado e posto a cumprimento obrigatório, de tal modo que o seu não acatamento pode ser objeto de responsabilização do Estado (ROCHA, 2005, p. 445).
Para garantir a harmonia entre os poderes, entretanto, essa interferência deve ser feita apenas quando um dos Poderes desrespeita de forma grave um mandamento constitucional, de forma a não cairmos em um extremo do ativismo judicial. Ou seja, tal interferência deve se dar de forma muito bem fundamentada, pois caso contrário seria verdadeira discricionariedade judicial, transformando o julgador em governante de toga.
Apesar desse posicionamento da jurisprudência e doutrina brasileira, ainda há grande prudência de alguns estudiosos em relação à atuação do Judiciário no tocante a temas que seriam, inicialmente, objeto das atividades do Poder Legislativo e Executivo. Em uma interessante entrevista concedida a Rogério Barbosa e publicada na revista eletrônica Consultor Jurídico em outubro de 2011, J.J. Canotilho deixa bastante claro que vê com certa precaução a atuação indiscriminada de juízes e tribunais que condenam o Estado a fornecer medicamentos, apesar de entender que em certas situações há ameaça ao “bem da vida”, o que legitimaria a atuação dos Tribunais. Segundo o Professor:
(...) a política é feita por cidadãos que questionam, criticam e apontam problemas. Os juízes nunca fizeram revoluções. Eles aprofundaram aplicações de princípios, contribuíram para a estabilidade do Estado de Direito, da ordem democrática, mas nunca promoveram revoluções. E, portanto, pedir ao Judiciário que exerça alguma função de ordem econômica, cultural, social, e assim por diante, é pedir ao órgão que exerça uma função para a qual não está funcionalmente adequado. (...) As políticas públicas não podem ser decididas pelos tribunais, mas pelos órgãos socialmente conformadores da Constituição. Mas é fato que existem medicamentos raros e certa falta de compreensão para situações especificas de alguns doentes. Isso põe em causa a defesa do bem da vida. Os tribunais devem ter legitimação para solucionar um problema desses. É um problema de Justiça e o valor que está a ser invocado é indiscutível: o bem da vida (Canotilho, 2011, grifo meu).
Percebe-se, portanto, que o ilustre Professor J. J. Canotilho, apesar de entender que os direitos sociais não possuem aplicabilidade imediata, reconhece a possibilidade de interferência de um Poder em relação ao outro, mas apenas em situações excepcionais, sempre muito preocupado com a legitimação da atuação judicial, o que sugere muita proximidade com o defendido neste trabalho a respeito da necessidade de violação ao mínimo existencial para que haja interferência legítima entre poderes.
Vejamos agora como essas questões refletem na questão específica do direito à saúde, o que significa dizer que este é um direito universal, e se a hipossuficiência do requerente é necessária para configurar violação por parte do Executivo que seja grave o suficiente para justificar atuação judicial.
3.1- O real alcance da universalidade do direito à saúde
O “acesso universal e igualitário” às políticas públicas de saúde, previsto constitucionalmente pelo artigo 196, é geralmente entendido pelo senso comum jurídico como um direito fundamental do cidadão de receber prestações estatais gratuitas que garantam a recuperação ou manutenção da saúde, independentemente de qualquer discriminação, seja social ou econômica.
Ou seja, à primeira vista, a universalidade do direito à saúde autorizaria atuações judiciais em todos os casos de requerimento de medicamentos sem haver qualquer análise da condição financeira do requerente, mesmo nos casos em que não há lei garantindo tratamento gratuito para aquela moléstia específica.
O princípio (ou diretriz) da igualdade, entretanto, deve ser analisado de forma mais aprofundada, o que nos levaria ao desenvolvimento de fundamentos que utilizam o conceito de equidade.
A equidade, conceito desenvolvido por Aristóteles, seria, de forma bastante simplificada e grosseira, tratar os desiguais desigualmente, e os iguais de forma igual.
Em sua brilhante obra “O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, Celso Antônio Bandeira de Mello é muito feliz ao dizer que os cidadãos devem ser tratados de forma equitativa pela lei. Vejamos:
A Lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo assimilado pelos sistemas normativos vigentes (MELLO. 1993, p.10, grifo meu).
A aplicação da equidade no direito à saúde seria a forma de realizar a verdadeira igualdade material, que é a igualdade no mundo real, e não apenas perante a lei, afastando a ideia de igualdade absoluta entre os cidadãos quanto às políticas públicas de saúde.
A igualdade material é exatamente aquela que a ordem constitucional atual tenta alcançar. A partir dos direitos fundamentais de segunda geração, o Estado passa de um papel meramente respeitador das liberdades individuais (direitos fundamentais de primeira geração) para um de agente que tem como objetivo implementar, entre outros, o efetivo direito à igualdade entre todos os cidadãos.
Essa implementação, para ser eficaz, concretizando a igualdade já existente perante a lei, deve sempre fazer distinções entre seus destinatários. Essas distinções, obviamente, devem seguir um rígido controle de seus fundamentos e aplicação, de forma a não aumentar ainda mais as diferenças existentes na sociedade, mas sim a diminuir os abismos criados por ela mesma.
O tema é muito bem desenvolvido por Ingo Sarlet e Mariana Figueiredo, que não possuem dúvida alguma no sentido de que os indivíduos não têm direito a prestações iguais, mas sim a tratamentos iguais, conforme as necessidades de cada um que busca tutela do Estado. Contrariando o senso comum jurídico, como também o faz este trabalho, os autores ensinam:
Ao contrário do que defende parcela da doutrina, a universalidade dos serviços de saúde não traz, como corolário inexorável, a gratuidade das prestações materiais para toda e qualquer pessoa, assim como a integralidade do atendimento não significa que qualquer pretensão tenha de ser satisfeita em termos ótimos (SARLET, FIGUEIREDO, 2008, p. 220-221, grifo meu).
A universalidade do direito à saúde, portanto, seguindo a atual ordem constitucional, não pode significar uma igualdade absoluta e cega entre os jurisdicionados, servindo de desculpa pelo Poder Judiciário para agir como verdadeiro governante, promovendo algo que entende ser justiça social, sem qualquer desenvolvimento mais cuidadoso do tema.
Nesse sentido, também citamos:
Há os que podem pagar por cuidados médicos e os que não podem, daí que nem todos precisam, com a mesma recorrência e intensidade, dos cuidados médicos reclamados sempre pelos mais despossuídos, de modo que o atendimento pelo juiz àquele que lhe bate às portas, sabidamente os hipossuficientes, apenas atende à regra da igualdade material (...)” (LOPES, 2010, p. 133 – grifo meu).
Segundo Henriques, que possui visão semelhante quanto à universalidade do direito à saúde, foi lei infraconstitucional que estabeleceu a gratuidade a todos dos serviços públicos de saúde, e não a Constituição. Em suas palavras:
Na realidade, o sistema público vigente é gratuito porque assim decidiu a maioria legislativa quando da aprovação da Lei n° 8.080/90. Por conta de tal diploma infraconstitucional, restou vedada qualquer cobrança pelas ações e serviços fornecidos pelo Sistema Único de Saúde – SUS, independentemente da condição socioeconômica apresentada pelo usuário. (...) Se o legislador ordinário optou por estender a gratuidade a qualquer indivíduo, independentemente de sua real necessidade financeira, ela abrangerá tão-somente as prestações concedidas pela lei e explicitadas por normas infralegais, regularmente ofertadas que são pelo SUS (HENRIQUES, 2008, p. 831 – grifo meu).
Como bem ensina Henriques, foi a lei 8.080/90 que trouxe a gratuidade dos tratamentos previstos por ela, e apenas em relação a estes (e os listados em regulamentos) deve haver concessão judicial independentemente da condição financeira do requerente. Se o objeto do pedido é concessão de medicamento não incluído ainda em listagens oficiais ou fora dos padrões estabelecidos pelo Ministério da Saúde (maioria esmagadora das disputas judiciais), deve haver comprovação da hipossuficiência financeira do querente.
Ou seja, mesmo quando não pode haver discriminação com base na condição financeira do requerente (medicamentos já ofertados pelo SUS), tal fato se deve a uma opção legislativa de status infraconstitucional, e não a um suposto direito de origem constitucional, como pretendem aqueles que defendem a total inobservância da condição financeira daqueles que pleiteiam medicamentos perante o Poder Judiciário.
Como a maior parte das ações judiciais têm como objetivo medicamentos que ainda não estão nas listas do SUS, não havendo, portanto, lei infraconstitucional que garanta sua gratuidade a todos, fica mais evidente ainda que a universalidade do direito à saúde não implica em uma total indiferença à condição financeira do requerente em qualquer caso.
Seria muito forçoso acreditar, apesar de ser a sociedade em que todos gostaríamos de viver, que o Poder Judiciário pudesse obrigar o Executivo a prestar medicamentos para pessoas abastadas em casos em que não há lei garantindo a gratuidade no caso específico, com base apenas na universalidade do direito à saúde, o qual, conforme já vimos, não garante acesso às prestações públicas de forma absoluta, mas conforme cada caso concreto.
É neste ponto que começamos a entender melhor a ideia central deste trabalho. Se a universalidade não significa possibilidade de intervenção judicial em qualquer caso, independente da possibilidade ou impossibilidade financeira do requerente, o julgador deve fazer sempre uma análise do caso concreto.
Falamos em cada caso concreto porque, se a universalidade não é argumento para a concessão indiscriminada de medicamento, é necessário fazer uma análise da possível violação do conteúdo essencial do direito à saúde em casa situação, verificando sempre se aquele determinado requerente está realmente impossibilitado de ter os cuidados necessários à sua saúde, o que justificaria a sempre delicada intervenção de um Poder em outro.
Após esse necessário esclarecimento acerca da universalidade do direito à saúde, passemos agora à análise da situação econômica do requerente como quesito fundamental na análise da suposta violação ao conteúdo essencial do direito à saúde, uma vez que esta seria exatamente aquilo que permitiria a intervenção judicial nas políticas públicas de saúde.
3.2- O conteúdo essencial do Direito à Saúde e a condição financeira do requerente
Neste momento convém deixar claro o conceito de conteúdo essencial dos direitos sociais (ou núcleo essencial) a ser utilizado neste trabalho, que é o mesmo utilizado por Virgílio Afonso da Silva em sua obra “Direitos Fundamentais - Conteúdo Essencial, Restrições e Eficácia”.
Segundo Silva, apesar de o STF já ter utilizado a expressão “núcleo essencial” ao se referir a cláusulas pétreas, ou seja, como limite ao poder constituinte derivado reformador, devemos entender que a declaração do conteúdo essencial, na verdade: “destina-se, sim, ao legislador ordinário, pois é esse que, em sua tarefa de concretizador dos direitos fundamentais, deve atentar àquilo que a constituição chama de ‘conteúdo essencial’” (SILVA, 2009, p. 24).
É certo que o conteúdo essencial é uma declaração não apenas ao legislador ordinário, mas também ao gestor público e ao Judiciário, que também devem respeitá-lo em suas atividades típicas, sem esquecer da sua observância também obrigatória nas relações privadas, em decorrência da reconhecida eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Enquanto que no caso dos direitos fundamentais que envolvem liberdades públicas o papel do Estado seja, prima facie, permanecer inerte, no caso dos direitos sociais, o Estado deve agir para garantir tais direitos. Ou seja, o Estado deve agir para assegurar um mínimo existencial[2] promovedor da dignidade da pessoa humana, que por sua vez é fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1°, inciso III). Esse mínimo existencial promovedor da dignidade da pessoa humana apenas será garantido quando for preservado o conteúdo essencial dos direitos sociais, entre eles o direito à saúde.
Por essa particularidade quanto à forma de concretização dos direitos sociais, Silva, coerente com a teoria relativa[3] do conteúdo essencial dos direitos fundamentais (segundo a qual este irá variar de acordo com as circunstâncias fáticas e jurídicas existentes), ensina que “o conteúdo essencial de um direito social, portanto, está intimamente ligado, a partir da teoria relativa, a um complexo de fundamentações necessárias para a justificação de eventuais não-realizações desse direito” (SILVA, 2009, p. 205).
Ao enumerar os elementos que compõe os direitos fundamentais, além da liberdade e igualdade, Luís Roberto Barroso, fala do mínimo essencial, o qual corresponderia “às condições elementares de educação, saúde e renda que permitam, em uma determinada sociedade, o acesso aos valores civilizatórios e a participação esclarecida no processo político e no debate público” (BARROSO, 2008, p. 19).
Além disso, segundo o estudioso, “os três Poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – têm o dever de realizar os direitos fundamentais, na maior extensão possível, tendo como limite mínimo o núcleo essencial desses direitos” (BARROSO, 2008, p. 19).
Quando falamos em conteúdo essencial do direito à saúde, nos referimos às condições mínimas que um cidadão deve possuir para cuidar de sua integridade física e mental, de forma a ter respeitada sua dignidade em um nível que nossa sociedade considera adequado.
Não há dúvida alguma quanto à necessária observância do mínimo existencial por parte das ações omissivas ou comissas do Estado, conforme ensina Sarlet e Figueiredo:
“(...) a garantia (e direito fundamental) do mínimo existencial independe de expressa previsão constitucional para poder ser reconhecida, visto que decorrente já da proteção da vida e da dignidade da pessoa humana” (SARLET, FIGUEIREDO, 2008, p. 195.)
A questão que nos resta responder é se o Estado fere o conteúdo essencial do direito à saúde quando não concede medicamento a um cidadão que tem total condição de custeá-lo, sem qualquer prejuízo significativo ao seu orçamento.
Ora, se o sujeito pode custear com facilidade um medicamento, como é possível dizer que seu direito à saúde foi ferido de forma tão grave que afetou sua dignidade? Antes de pensarmos a respeito desta pergunta, temos de ter o cuidado para não confundirmos nossas ideias a respeito de tudo aquilo que seria ideal que o Estado fornecesse com aquilo que realmente envolve o mínimo existencial.
Vamos pensar na seguinte situação: um simples trabalhador que recebe um salário mínimo por mês e sustenta uma família de quatro pessoas descobre que necessita, para manter sua saúde e não padecer de uma séria doença, de um medicamento que custa mil reais por mês, não havendo nenhum outro tratamento eficaz para o caso. Esse medicamento, infelizmente, não é fornecido pelo SUS. Agora pensemos em outra situação: um empresário, com rendimento de quinze mil reais líquidos mensais, sem dependentes e cuja esposa possui rendimento semelhante, precisa do mesmo remédio.
As situações do parágrafo anterior são muitos didáticas para explicar o que tentamos expor aqui. O trabalhador mais simples, com certeza absoluta, se não receber o remédio do Estado, terá sua saúde comprometida e morrerá. O empresário, também muito obviamente, não terá problema algum em comprar o medicamento.
No exemplo dado é impossível sustentar que o direito à saúde do empresário foi atingido de forma grave o suficiente para ensejar intervenção de um Poder em outro.
Se ele deveria receber qualquer prestação de saúde do Estado, sendo um trabalhador honesto que cumpre com suas obrigações tributárias assim como os mais pobres, é um problema que infelizmente os operadores do Direito não podem resolver, pois do contrário seria uma verdadeira subversão ao Estado Democrático de Direito, o qual possui como pilar a separação de poderes.
É claro que seria maravilhoso se o Estado nos fornecesse tudo que já existe em termos de saúde, mas essa questão é algo a ser cobrado do Poder Executivo. O Judiciário, como dito no item 3, só pode interferir nas políticas públicas quando há uma violação grave a um direito constitucional, não podendo, repetimos, por ser de extrema importância, se colocar no lugar de herói da sociedade e condenar o Estado de forma discricionária, sem qualquer análise do caso posto.
Em entrevista concedida ao Consultor Jurídico, o procurador de justiça do Rio Grande do Sul Lênio Streck, ao ser questionado a respeito do ativismo judicial, faz uma análise da evolução da atividade jurídica desde a época da ditadura até a atualidade, criticando a influência do subjetivismo e da moral do julgador em suas decisões.
Os juízes (e a doutrina também é culpada), que agora deveriam aplicar a Constituição e fazer filtragem das leis ruins, quer dizer, aquelas inconstitucionais, passaram a achar que sabiam mais do que o constituinte. Saímos, assim, de uma estagnação para um ativismo, entendido como a substituição do Direito por juízos subjetivos do julgador (STRECK, 2009).
Reforçando a necessidade de análise de cada caso concreto que requer tutela do Judiciário, de forma a estabelecer, em cada situação, se houve ofensa ao conteúdo essencial do direito à saúde, Sarlet e Figueiredo entendem ser impossível estabelecer de forma apriorística o conteúdo do mínimo existencial. Nem mesmo o legislador pode determinar valores fixos de prestações que não atendam às peculiaridades do cidadão. “O que compõe o mínimo existencial reclama, portanto, uma análise (ou pelo menos a possibilidade de uma averiguação) à luz das necessidades de cada pessoa e de seu núcleo familiar, quando for o caso” (Sarlet e Figueiredo, 2008, p. 197-198),
Nesse mesmo sentido, se referindo à autora Ana Paula de Barcellos, Lopes coloca muito bem a questão:
“O problema, segundo ilustra a autora, estaria em que o Judiciário só poderia, sem prévia intermediação legislativa, atender ao que se contivesse naquele mínimo existencial, não assim ao que se situasse fora dele e das concretizações feitas atuar pelo poder público, consideradas não apenas a relativa indeterminação da norma constitucional correspondente, mas as decisões políticas da maioria, periodicamente revistas pela via do sufrágio, a respeito das prioridades que elege em certo e determinado momento do evolver da vida de relação, sobremodo no que diz respeito ao que pretendem atender para além daquele mínimo e do quanto pretendem investir nesse afã.” (BARCELLOS, 2007, apud LOPES, 2010, p. 84 – grifo meu)
Confesso que essa discussão cai, muito facilmente, na questão da “reserva do possível”, que, dizendo de forma bastante resumida, exigiria uma análise das possibilidades financeiras do Estado em conceder determinada medicação, com observância sempre do impacto da decisão no orçamento, dos outros cidadãos que utilizam o sistema público de saúde, etc.
Apesar da extrema importância dessa discussão, entendemos que no caso da análise da situação econômica de requerente que possui total condição para adquirir o medicamento, o julgador não precisa se socorrer desse tipo de argumento para negar o pedido. Isso porque, se o conteúdo essencial do direito à saúde nem mesmo foi atingido, não há possibilidade jurídica para intervenção em outro Poder, não havendo necessidade de se falar nas possibilidades ou impossibilidades financeiras da Administração Pública.
4- Conclusão
Subvalorizada nos fundamentos das decisões judiciais, a condição financeira do requerente de medicamentos não fornecidos pelo SUS é requisito a ser analisado com maior rigor na fundamentação da intervenção judicial em políticas públicas de saúde.
A universalidade do direito à saúde, garantida constitucionalmente, não implica em uma igualdade absoluta entre aqueles que compõem a população, mas sim na promoção da igualdade material, que leva em conta a situação de cada um que recorre ao Judiciário.
Se ainda não há lei ordinária que garanta determinado atendimento de saúde à população independentemente de comprovação de hipossuficiência, o Poder Judiciário só pode condenar o Estado se o requerente realmente não possuir condições financeiras para arcar ele mesmo com os cuidados necessários à sua saúde, situação em que estaria caracterizada ofensa ao conteúdo essencial do direito à saúde.
O Judiciário não pode se colocar no lugar de governante e condenar o Estado com base naquilo que acredita ser uma prestação estatal ideal, sem o cuidado necessário a ser dispensado a qualquer decisão judicial, especialmente àquelas em que estão envolvidos temas tão delicados e que compõem a base do Estado Democrático de Direito, como o princípio da separação de poderes.
5- Referências bibliográficas
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BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Revista Jurídica UNIJUS, Uberaba, n. 15, p. 13-38, nov. 2008.
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SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
[1] Interessante notar que no mesmo artigo que fala da universalidade, também há referência à equidade, conceito que, conforme veremos adiante, influi na acepção de universalidade.
[2] Estamos cientes do controverso debate que envolve o mínimo existencial e a chamada “reserva do possível”, mas neste trabalho não temos como objetivo adentrar nessa discussão.
[3] Para maiores detalhes consultar SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
advogada, graduação pela universidade FUMEC, pós-graduação em Direito Constitucional pelo IDDE (certificado pelo Centro Universitário UNA).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAZ, Paula Vasconcelos de Melo. A fundamentação das decisões judiciais concessivas de medicamentos e a hipossuficiência financeira do requerente Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 abr 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46518/a-fundamentacao-das-decisoes-judiciais-concessivas-de-medicamentos-e-a-hipossuficiencia-financeira-do-requerente. Acesso em: 22 nov 2024.
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