RESUMO: O presente artigo pretende tecer considerações sobre a inquestionável violação ao postulado da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) no contexto do sistema penitenciário brasileiro, bem como a respeito da implementação judicial dos direitos fundamentais garantidos aos presos pela Constituição Federal, sobretudo o direito que assegura-lhes o respeito à integridade física e moral (art. 5º, XLIX, CF/88). O ensaio abordará, sem a intenção de esgotar o tema, a possibilidade de o Poder Judiciário vir a determinar, diante da injustificada omissão do Estado, a formulação de políticas públicas necessárias à concretização de direitos fundamentais elencados na Carta Magna. Será demonstrado, à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que não há que se falar em violação ao princípio da separação de poderes (art. 2º, CF/88), mas respeito ao princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF/88).
PALAVRAS-CHAVE: Dignidade da pessoa humana. Direitos fundamentais. Omissão do Estado. Poder Judiciário. Separação dos Poderes. Inafastabilidade da jurisdição.
REFLECTIONS ON THE VIOLATION OF THE POSTULATE OF HUMAN DIGNITY IN THE CONTEXT OF THE BRAZILIAN PRISON SYSTEM AND JUDICIAL IMPLEMENTATION OF THE FUNDAMENTAL RIGHT WHICH ENSURES THE PRISONERS RESPECT TO PHYSICAL AND MORAL INTEGRITY.
ABSTRACT: This article intends to comment on the unquestionable violation of the Human Dignity Postulate (Art. 1, III, CF/88) under the context of the Brazilian prison system, as well as the judicial implementation of the fundamental rights guaranteed to prisoners by the Constitution, mainly the right that assures them the respect for their physical and moral integrity (art. 5, XLIX, CF/88). The essay will board, with no intention to exhaust the theme, the possibility of the Judiciary determinate, under the unreasonable States’ omission, to improve necessary public policy to achieve the fundamental rights listed in the Magna Carta. It will be demonstrated, under the light of the Supreme Court Jurisprudence, that there is no need to talk about violation of the principle of the separation of powers (art. 2, CF/88), but, on the other hand, respect for the principle of the jurisdiction’s non-obviation (art. 5, XXXV, CF/88).
KEYWORDS: Human dignity. Fundamental rights. Omission of the State. Judicial Power. Separation of Powers. Non-obviation of Jurisdiction.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 2.1. A realidade dos cárceres brasileiros. 2.2. O Postulado da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. 2.3. Da irrefutável violação aos direitos fundamentais concernentes à impossibilidade de imposição de penas cruéis (art. 5º, XLVII, “e”, CF/88), ao direito ao cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, idade e sexo do apenado (art. 5º, XLVIII, CF/88) e, especialmente, ao respeito à integridade física e moral dos presos (art. 5º, XLIX, CF/88). 2.4. Da possibilidade de determinação judicial de providências necessárias à implementação de direitos fundamentais no âmbito do sistema carcerário. Ausência de violação ao princípio da separação de poderes e concretização do princípio da inafastabilidade da jurisdição. 3. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988, conhecida como a Carta-Cidadã, consagrou como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88). Mais que um princípio, a dignidade da pessoa humana tem sido apontada pela doutrina e jurisprudência como espécie de sobreprincípio[1], valor supremo que deve orientar todo o ordenamento jurídico, conformando os encargos a serem desempenhados pelos três Poderes da República.
A Carta Magna elencou como direitos fundamentais, garantidos a todos, dentre outros, a impossibilidade de imposição de penas cruéis (art. 5º, XLVII, “e”, CF/88), o direito ao cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, idade e sexo do apenado (art. 5º, XLVIII, CF/88) e, especialmente, o respeito à integridade física e moral dos presos (art. 5º, XLIX, CF/88). Tais princípios, além de encontrar amparo em Tratados Internacionais assinados pelo Brasil[2], são amplamente regulamentados pela legislação infraconstitucional[3], que assegura aos presos direitos e deveres, com a finalidade de buscar a função ressocializadora da pena.
É de conhecimento geral, pois amplamente divulgadas na mídia, as condições cruéis, degradantes, até mesmo desumanas a que estão submetidos os presos no sistema penitenciário brasileiro. Não obstante o conhecimento do Estado e da própria sociedade sobre a situação, nada ou pouco é feito para assegurar tratamento digno a essas pessoas que se encontram privadas de sua liberdade em cárceres que não diferem muito das masmorras medievais.
É sabido que com as transformações promovidas pelo movimento do neoconstitucinalismo passou-se a atribuir à Constituição o status de norma jurídica, foi reconhecida a sua força normativa, os princípios e os direitos fundamentais nela consagrados, outrora interpretados como mero direcionamento aos poderes constituídos, agora são vistos como normas impositivas, dotadas de eficácia. Os princípios e direitos fundamentais, portanto, devem conformar a atuação dos Poderes Públicos, que ficam obrigados a respeitá-los.
Nesse cenário, a complexidade gerada pelas crescentes demandas sociais, cada vez mais revestidas de emergência, em confronto com a omissão estatal em seu dever de concretizar os direitos previstos na Carta-Mãe, promove questionamentos acerca do papel a ser desempenhado pelo Poder Judiciário.
O Poder Judiciário, sob o argumento do princípio da separação de poderes (art. 2º, CF/88) e da cláusula da reserva do possível não pode “fechar os olhos” às irrefragáveis violações aos direitos fundamentais, pois agindo assim estaria negando o princípio da inafastabilidade da jurisdição, diante da patente lesão aos direitos garantidos pelo ordenamento jurídico.
Recentemente o Supremo Tribunal Federal analisou a matéria objeto deste ensaio no Recurso Extraordinário nº 592.581/RS e, em sede de repercussão geral, assentou, por unanimidade, a seguinte tese:
É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5º, XLIX, da Constituição Federal, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes. (RE 592581, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 13/08/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016). (Destaques acrescidos).
Assim, o presente estudo propõe-se a analisar, à luz da recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a legitimidade de ingerência do Poder Judiciário na implementação de direitos fundamentais, especificamente de políticas públicas capazes de assegurar ao sistema penitenciário brasileiro o cumprimento das normas constitucionais, internacionais e infraconstitucionais, resguardando aos apenados a dignidade humana e o respeito a integridade física e moral.
2. DESENVOLVIMENTO.
2.1. A realidade dos cárceres brasileiros.
É de conhecimento do Estado e de toda sociedade a estrutura precária do sistema prisional brasileiro, o assunto é recorrente na mídia, nos telejornais e já serviu, inclusive, de pauta para filmes de grande repercussão nacional, dentre outros a conjuntura carcerária foi abordada em “Carandiru: O filme”[4], baseado no livro “Estação Carandiru”[5], do autor Dráuzio Varella, que retrata o cotidiano da Casa de Detenção São Paulo, relatando o massacre ocorrido em 1992, que resultou na morte de 111 detentos[6].
É comum ao sistema penitenciário brasileiro a prática de superlotação, de violência física e sexual, de tortura, de execução (por parte dos apenados e do próprio Estado), de tráfico de entorpecentes e de corrupção. Observa-se o completo desprezo pelos direitos mais básicos, como condições mínimas de salubridade e higiene, faltam camas e até colchões para dormir. Nesse contexto, comum são os casos de presos que se revezam para poder dormir (enquanto uns se deitam, outros ficam em pé), relatos, inclusive elaborados por órgãos oficiais, que revelam que os apenados, em um mesmo cubículo superlotado, dividem o espaço com lixo e excrementos humanos, por falta de um serviço de limpeza e ausência de instalações sanitárias adequadas.
Com efeito, verifica-se nas penitenciárias brasileiras, em regra, um permanente Estado de exceção, onde direitos e garantias constitucionais e legais são completamente ignorados.
Todos os Poderes Públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário) estão cientes da realidade do sistema carcerário, como comprova os relatórios realizados pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP, bem assim pelo Conselho Nacional do Ministério Público, evidenciados no voto do Ilustre Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, Relator do Recurso Extraordinário 592.581/RS, julgado que inspirou o presente artigo.
Com a finalidade de retratar com fidedignidade os estabelecimentos penitenciários, colaciona-se, abaixo, trecho do relatório do Conselho Nacional do Ministério Público, denominado “A Visão do Ministério Público sobre o Sistema Prisional Brasileiro”, citado no mencionado aresto:
Os 1.598 estabelecimentos inspecionados possuem capacidade para 302.422 pessoas, mas abrigavam, em março de 2013, um total de 448.969 presos. O déficit é de 146.547 ou 48%. A superlotação é registrada em todos as regiões do país e em todos os tipos de estabelecimento (penitenciárias, cadeias públicas, casas do albergado, etc). O déficit de vagas é maior para os homens. O sistema tem capacidade para 278.793 pessoas do sexo masculino, mas abrigava 420.940 homens presos em março de 2013. Para as mulheres, são 23.629 vagas para 28.029 internas.
Separações
As inspeções verificaram que a maior parte dos estabelecimentos não faz as separações dos presos previstas na Lei de Execuções Penais. Segundo o relatório, 1.269 (79%) estabelecimentos não separam presos provisórios de definitivos; 1.078 (67%) não separam pessoas que estão cumprindo penas em regimes diferentes (aberto, semiaberto, fechado); 1.243 (quase 78%) não separam presos primários dos reincidentes. Em 1.089 (68%) locais, não há separação por periculosidade ou conforme o delito cometido; em 1.043 (65%), os presos não são separados conforme facções criminosas. Há grupos ou facções criminosos identificados em 287 estabelecimentos inspecionados (17%).
Fugas, integridade física dos presos e disciplina
Entre março de 2012 e fevereiro de 2013, foram registradas 121 rebeliões, 23 das quais com reféns. Ao todo, houve 769 mortes, das quais 110 foram classificadas como homicídios e 83 como suicídios. Foram registradas 20.310 fugas, com a recaptura de 3.734 presos e o retorno espontâneo de 7.264. Os casos em que presos, valendo-se de saída temporária não vigiada, não retornam na data marcada, são computados como fuga ou evasão. Houve apreensão de drogas em 654 locais, o que representa cerca de 40% dos estabelecimentos inspecionados.
No quesito disciplina, o relatório mostra que 585 estabelecimentos (37%) não observam o direito de defesa do preso na aplicação de sanção disciplinar. Em 613 locais (38%), o ato do diretor da unidade que determina a sanção não é motivado ou fundamentado; em 934 (5), nem toda notícia de falta disciplinar resulta em instauração de procedimento. As sanções coletivas foram registradas em 116 estabelecimentos (7%). Em 211 (13%) locais não é proporcionada assistência jurídica e permanente; em 1.036 (quase 65%), não há serviço de assistência jurídica no próprio estabelecimento.
Assistência material, saúde e educação
Quase metade dos estabelecimentos (780) não possui cama para todos os presos e quase um quarto (365) não tem colchão para todos. A água para banho não é aquecida em dois terços dos estabelecimentos (1.009). Não é fornecido material de higiene pessoal em 636 (40%) locais e não há fornecimento de toalha de banho em 1.060 (66%). A distribuição de preservativo não é feita em 671 estabelecimentos
(42%). As visitas íntimas são garantidas em cerca de dois terços do sistema (1.039 estabelecimentos).
Cerca de 60% dos estabelecimentos (968) não contam com biblioteca; falta espaço para prática esportiva em 756 locais (47%) e para banho de sol (solário) em 155 (10%)[7]. (Destaques originais).
Como se vê, o sistema penitenciário brasileiro apresenta falhas estruturais graves que acarretam a transgressão de inúmeros direitos fundamentais, impossibilitando que se alcance a finalidade de ressocialização da pena. O sistema, da maneira como se encontra, não é apenas cruel e desumano, é também absolutamente ineficaz, já que não propicia as condições mínimas para que os presos possam se reinserir na sociedade.
Certo é que essas pessoas que hoje se encontram presas um dia irão retornar ao convívio social, e, sendo assim, é de se questionar qual a lição que o Estado lhes ensinou no período de reclusão. A resposta, atualmente, não é outra: violência, ódio, desrespeito à lei e insensibilidade ao sofrimento alheio.
2.2. O Postulado da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil.
De início, visando estabelecer um conceito, é de se destacar a exegese apresentada pelo mestre Uadi Lammêgo Bulos sobre o princípio da dignidade da pessoa humana:
[...] esse vetor agrega em torno de si a unanimidade dos direitos e garantias fundamentais do homem, expressos na Constituição de 1988. Quando o Texto Maior proclama a dignidade da pessoa humana está consagrando um imperativo de justiça social, um valor constitucional supremo. Por isso o primado consubstancia o espaço de integridade moral do ser humano, independentemente de credo, raça, cor, origem ou status social. O conteúdo do vetor é amplo e pujante, envolvendo valores espirituais (liberdade de ser, pensar e criar etc.) e materiais (renda mínima, saúde, alimentação, lazer, moradia, educação etc.). Seu acatamento representa a vitória contra a intolerância, o preconceito, a exclusão social, a ignorância e a opressão. A dignidade humana reflete, portanto, um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio do homem. [...] A força jurídica do pórtico da dignidade começa a espargir efeitos desde o ventre materno, perdurando até a morte, sendo inata ao homem. Notório é o caráter instrumental do princípio, afinal, ele propicia o acesso à justiça de quem se sentir prejudicado pela sua inobservância. [...][8]. (Destaques acrescidos).
Na sequência, cumpre discorrer sobre a natureza jurídica do princípio da dignidade da pessoa humana, citando, para tanto, a doutrina de Marcelo Novelino, que sintetiza:
[...] é possível afirmar que a dignidade da pessoa humana, enquanto fundamento da República Federativa do Brasil, possui uma tripla dimensão normativa. Isso significa que, por meio da interpretação do dispositivo constitucional que a consagra (CF, art. 1. °, III), é possível extrair três distintas espécies de normas:
I) uma metanorma, que atua como diretriz a ser observada na criação e interpretação de outras normas. A atuação como elemento informador do desenvolvimento do conteúdo da Constituição faz da dignidade uma importante diretriz hermenêutica, cujos efeitos se estendem por todo o ordenamento jurídico. Mesmo quando possível o recurso a um direito fundamental específico, ela deve ser considerada como parâmetro valorativo;
II) um princípio, que impõe aos poderes públicos o dever de proteção da dignidade e de promoção dos valores, bens e utilidades indispensáveis a uma vida digna; e,
III) uma regra, a qual determina o dever de respeito à dignidade, seja pelo Estado, seja por terceiros, no sentido de impedir o tratamento de qualquer pessoa como um objeto, quando este tratamento for decorrente de uma expressão do desprezo pelo ser humano[9]. (Destaques acrescidos).
A dignidade da pessoa humana é considerada, portanto, a um só tempo, uma metanorma, diretriz que deve ser observada quando da criação e interpretação de outras normas, um princípio, capaz de infligir aos poderes públicos o dever de proteção e promoção dos valores que lhe são próprios e, por fim, uma regra, que impõe o dever de respeito, impedindo sua violação, pelo Estado ou por terceiros.
A Carta Política, em seu art. 1º, III, consagrou a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. É dizer que o Estado Brasileiro, que constitui-se um Estado Democrático de Direito, estabelece-se em função do homem, sendo a sua dignidade valor essencial a ser preservado pelo ordenamento jurídico.
O princípio da dignidade da pessoa humana passou a ser inserido como valor fundamental nas Cartas Constitucionais a partir do final da segunda guerra mundial, motivado pelas atrocidades cometidas contra os seres humanos pelo Estado Nazista, barbaridades fundamentadas na ideologia da soberania ariana pregada por esse Estado. Tais atrocidades não ficaram restritas apenas ao Estado Nazista, no Brasil, durante o período da Ditadura Militar (1964-1985) eram práticas comuns as torturas, execuções e exílios, aqui também indivíduos foram perseguidos e tratados de maneira cruel por se mostrarem contrários à ideologia dominante no Estado.
O reconhecimento da dignidade da pessoa humana como fundamento da República do Brasil revela, portanto, o compromisso do nosso Estado em não mais repetir práticas que rebaixem a dignidade humana. Isto significa que independente da ideologia e dos valores a serem perseguidos pelo Estado, os indivíduos têm que ter sua dignidade resguardada.
Sobre o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, a doutrina de Juliano Taveira Bernardes e Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira:
[...] A proteção à dignidade da pessoa humana passa pelo reconhecimento de que o indivíduo é o objetivo primacial da ordem jurídica. Envolve tanto a repulsa às práticas que coloquem a pessoa em posição de desigualdade perante as demais quanto as que acabem por desconsiderar o ser humano como pessoa, seja reduzindo-o ou assemelhando-o à condição de "coisa", seja privando-o dos meios minimamente necessários à subsistência com dignidade. [...][10]. (Destaques acrescidos).
Deveras, não se pode olvidar que a dignidade humana dos apenados tem sido permanentemente violada pelo Estado brasileiro. Não há como negar que na grande maioria dos estabelecimentos penitenciários aos presos tem sido destinado tratamento que a legislação pátria, acertadamente, proíbe até aos animais.
De fato, o histórico de superlotações, de violência, de abusos sexuais, de torturas, de completa ausência de higiene e infraestrutura básica de sobrevivência, exposto em linhas anteriores, permitem afirmar que o nosso sistema está fazendo letra morta do seu princípio fundamental, negando a condição humana aos seus apenados.
Nesse sentido, trecho do voto do Ilustre Ministro Ricardo Lewandoski, proferido no Recurso Extraordinário nº 592.581/RS.
Nessa linha, erigiu-se a dignidade da pessoa humana à categoria de um “sobreprincípio” justamente para impor limites expressos à atuação do Estado e de seus agentes, com reflexo direto no jus puniendi que ele detém como ultima ratio para garantir a convivência pacífica das pessoas em sociedade.
Mas o que se verifica, hoje, relativamente às prisões brasileiras, é uma completa ruptura com toda a doutrina legal de cunho civilizatório construída no pós-guerra. Trata-se de um processo de verdadeira “coisificação” de seres humanos presos, amontoados em verdadeiras “masmorras medievais”, que indica claro retrocesso relativamente a essa nova lógica jurídica.
O fato é que a sujeição dos presos às condições até aqui descritas mostra, com clareza meridiana, que o Estado os está sujeitando a uma pena que ultrapassa a mera privação da liberdade prevista na sentença, porquanto acresce a ela um sofrimento físico, psicológico e moral, o qual, além de atentar contra toda a noção que se possa ter de respeito à dignidade humana, retira da sanção qualquer potencial de ressocialização. (RE 592581, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 13/08/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016). (Destaques acrescidos).
Certo é que os que ali estão descumpriram regras de convivência que colocam em risco a paz social, entretanto, manter-se inerte diante das inquestionáveis violações ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana é negar à República Federativa do Brasil a qualidade de Estado Democrático de Direito, capaz de se submeter as normas instituídas pelo seu ordenamento jurídico.
Manter esse quadro, não apenas contraria o sentimento de humanidade, mas aproxima o país de regimes totalitários e afasta-o de nações desenvolvidas que há muito tempo consagraram o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento de seus ordenamentos jurídicos, concretizando-o.
2.3. Da irrefutável violação aos direitos fundamentais concernentes à impossibilidade de imposição de penas cruéis (art. 5º, XLVII, “e”, CF/88), ao direito ao cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, idade e sexo do apenado (art. 5º, XLVIII, CF/88) e, especialmente, ao respeito à integridade física e moral dos presos (art. 5º, XLIX, CF/88).
Antes de adentrar ao tema proposto no tópico, se faz necessário expor breves considerações sobre os direitos fundamentais.
Ingo Wolfgang Sarlet (2005), destaca que os direitos fundamentais podem ser compreendidos como posições jurídicas relacionadas às pessoas que, por sua importância e conteúdo, foram incorporadas ao texto da Constituição, bem assim as que, pelo seu objeto e significado, possam ser a eles equiparados, estando ou não incluídos no texto constitucional.
Já Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2015) esclarecem que os direitos fundamentais assumem posição de destaque, pois representam a inversão da tradicional relação Estado-indivíduo, na medida em que se reconhece aos indivíduos primeiramente direitos e, somente depois, deveres perante o Estado. Em verdade, os direitos que o Estado tem em relação ao indivíduo se fundamentam no objetivo de melhor tutelar as necessidades dos cidadãos.
A doutrina costuma dividir os direitos fundamentais em gerações ou, hodiernamente, em dimensões, que se reportam à consolidação histórica de tais direitos. Sob esse prisma, classicamente se fala em direitos fundamentais de primeira, segunda, e terceira dimensões.
Resumidamente, os direitos de primeira dimensão foram os primeiros a serem positivados, remetem-se ao contexto histórico das revoluções americana e francesa. São direitos liberais, tutelam, portanto, o valor liberdade, consignando um dever de abstenção do Estado. São exemplos de direitos de primeira dimensão o direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade (formal) e à participação política.
Por sua vez, os direitos de segunda dimensão, remetem ao contexto histórico do pós-liberalismo, provêm do impacto da industrialização e dos graves problemas sociais dela decorrentes. São direitos econômicos, sociais e culturais, tutelam o valor igualdade em seu sentido material. Aqui é cobrada uma postura mais ativa do Estado, que possui o dever de reduzir as desigualdades sociais, conferindo aos indivíduos, por conseguinte, direitos a prestações sociais. São exemplos de direitos de segunda dimensão o direito à moradia, à alimentação, à assistência social, à saúde, à educação, ao trabalho e ao lazer.
Já os direitos da terceira dimensão remetem ao contexto histórico do pós-guerra. Tutelam os valores fraternidade e solidariedade. Segundo Juliano Taveira Bernardes e Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira (2015, p. 631), “Decorrem da divisão entre Estados desenvolvidos e subdesenvolvidos. Surgiram em cartas e tratados internacionais de direitos humanos assinados a partir da segunda metade do século XX”. São direitos de titularidade difusa. São citados pela doutrina como exemplo de direitos de terceira dimensão os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e a qualidade de vida.
Tendo em vista que os direitos fundamentais são históricos, isto é, consolidados ao longo do tempo, já se fala em direitos de quarta e quinta dimensão, todavia, não há consenso na doutrina sobre quais seriam esses direitos. Considerando que essa discussão, eminentemente doutrinária, foge ao tema do presente ensaio, essas classificações não serão objeto de maiores aprofundamentos neste trabalho.
Após breve contextualização, passa-se a à reflexão sobre os direitos fundamentais violados pelo Estado no contexto do sistema penitenciário brasileiro. Certo é que o caos generalizado verificado nos estabelecimentos prisionais acaba por sufragar direitos fundamentais que pertencentes as três dimensões supracitadas.
Ora, uma penitenciária superlotada, que apresenta celas desprovidas de camas ou mesmo colchões para todos os presos, constituindo-se em cubículos úmidos, sujos, sem ventilação ou instalação sanitária adequada, onde se acumulam restos de comida e excrementos humanos, representam atentado ao direito à vida, à saúde, à qualidade de vida, dentre outros direitos, resumidos no acórdão do Supremo Tribunal Federal como a violação à dignidade da pessoa humana e à integridade física e moral dos presos.
A Constituição Federal, em seu art. 5º, XLVII, determina:
Art. 5º, XLVII, CF/88 - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
e) cruéis; (destaques acrescidos).
Deveras, uma pena cumprida na situação delineada nas linhas anteriores se revela, no mínimo, cruel. O indivíduo acaba por suportar uma pena muito mais grave do que é permitida pela Constituição, prevista na lei e imposta na sentença condenatória.
Decerto, cumprir a pena em condições mais severas do que a lei prevê, sendo tratado pela sociedade como alguém a ser enjaulado e esquecido, somente pode acender nos apenados o sentimento de revolta e a vontade de retribuir com violência os abusos que lhe foram infligidos.
Por sua vez, o art. 5º, XLVIII, da Carta Magna estabelece que “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”. (Destaques acrescidos).
Em consonância com o direito previsto no art. 5º, XLVIII, da Constituição Federal, o art. 84, da Lei de Execução Penal prevê:
Art. 84. O preso provisório ficará separado do condenado por sentença transitada em julgado.
§ 1o Os presos provisórios ficarão separados de acordo com os seguintes critérios:
I - acusados pela prática de crimes hediondos ou equiparados
II - acusados pela prática de crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa;
III - acusados pela prática de outros crimes ou contravenções diversos dos apontados nos incisos I e II.
§ 2° O preso que, ao tempo do fato, era funcionário da Administração da Justiça Criminal ficará em dependência separada.
§ 3o Os presos condenados ficarão separados de acordo com os seguintes critérios:
I - condenados pela prática de crimes hediondos ou equiparados;
II - reincidentes condenados pela prática de crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa;
III - primários condenados pela prática de crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa;
IV - demais condenados pela prática de outros crimes ou contravenções em situação diversa das previstas nos incisos I, II e III.
§ 4o O preso que tiver sua integridade física, moral ou psicológica ameaçada pela convivência com os demais presos ficará segregado em local próprio.
Neste ponto cumpre frisar que o relatório do Conselho Nacional do Ministério Público, já citado em linhas anteriores, apresentou dados, números, que revelam que a imensa maioria dos presídios brasileiros não efetuam a separação dos presos. Conforme exposto, em 79% dos presídios não se separam os presos provisórios dos definitivos; em 67% das penitenciárias não se separam os presos que cumprem penas em diferentes regimes; em 78% dos presídios não há separação entre presos primários e reincidentes; e em 68% dos presídios não é observada a separação dos presos pela periculosidade do delito cometido.
Vê-se que a lei de Execução Penal, alterada pela lei 13.167/2015, na esteira do direito fundamental previsto na Constituição Federal – que determina que a pena deverá ser cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito – estabeleceu criterioso sistema para evitar que as penitenciárias continuem se revelando verdadeiras “escolas do crime”.
Para a concretização da lei, todavia, faz-se imprescindível a construção de novos presídios, a realização de reformas emergenciais, que permitam que administração penitenciária possa proceder com a separação dos presos em conformidade com os critérios estabelecidos na norma. É necessário, enfim, o comprometimento e empenho da Administração Pública.
Por fim, o inciso XLIX, art. 5º, da CF/88, estabelece que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.
Por tudo que já foi exposto, pelos abusos já exaustivamente relatados, é de se notar que o respeito à integridade física e moral dos presos está longe se ser observado. Com efeito, a Lei de Execução Penal institui, em seu Capítulo II, deveres de assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa. Tais obrigações, se efetivamente cumpridas, assegurar-lhes-iam o respeito à integridade física e moral. A efetividade da lei esbarra, contudo, na vontade do Poder Público cumprir o programa normativo determinado tanto pela Carta-Mãe como pela legislação pátria.
Nesse pórtico, importante recordar que o art. 5º, § 1º, da Constituição Federal decreta que “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
Sobre a aplicação imediata das normas constitucionais, a doutrina de Marcelo Novelino:
[...] entendemos que este dispositivo possui a estrutura de uma regra, não de um princípio. Não cabe ao intérprete ponderar esta norma constitucional para aplicá-la em maior ou menor medida. Trata-se de uma norma que deve ser aplicada na medida exata de sua prescrição. Se o dispositivo constitucional estabelece que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, não se pode exigir, a princípio, algum tipo de condição para que estas normas sejam aplicadas ao caso concreto.
[...] a norma resultante da interpretação do dispositivo (CF, art. 5. °, § 1. °) tem a estrutura de uma regra que pode ser formulada através do seguinte enunciado: as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, salvo nas hipóteses em que o legislador constituinte originário expressamente estabelecer uma cláusula de exceção[11]. (Destaques acrescidos).
O Supremo Tribunal Federal enfrentou a questão da aplicabilidade dos princípios e direitos fundamentais na ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 592.581/RS, rechaçando a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que entendia que os direitos fundamentais instituíam normas de natureza programática. Ao reformar o acórdão do mencionado Tribunal de Justiça, em seu voto, o Ministro Relator consignou que:
[...] Sabe-se hoje, que os princípios constitucionais, longe de configurarem meras recomendações de caráter moral ou ético, consubstanciam regras jurídicas de caráter prescritivo, hierarquicamente superiores às demais e “positivamente vinculantes”, como ensina Gomes Canotilho.
A sua inobservância, ao contrário do que muitos pregavam até recentemente, atribuindo-lhes uma natureza apenas programática, deflagra sempre uma consequência jurídica, de maneira compatível com a carga de normatividade que encerram.
Independentemente da preeminência que ostentam no âmbito do sistema ou da abrangência de seu impacto sobre a ordem legal, os princípios constitucionais, como se reconhece atualmente, são sempre dotados de eficácia, cuja materialização pode ser cobrada judicialmente, se necessário. [...]. (RE 592581, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 13/08/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016). (Destaques acrescidos).
Pelo exposto, mostrando-se evidente a violação de diversos direitos fundamentais pelo sistema prisional e, tendo em vista a interpretação dada pelo Constituinte Originário e pela Suprema Corte que consagram a aplicação imediata desses direitos, resta ao Poder Judiciário, exercendo sua função de controle do ordenamento jurídico, fazer valer as normas constitucionais e legais.
2.4. Da possibilidade de determinação judicial de providências necessárias à implementação de direitos fundamentais no âmbito do sistema carcerário. Ausência de violação ao princípio da separação de poderes. Concretização do princípio da inafastabilidade da jurisdição.
Verificada a inquestionável violação ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e a diversos princípios constitucionais, resumidos no dever de respeito à integridade física e moral dos presos (art. 5º, XLIX, CF/88), cumpre ao Poder Judiciário, órgão a quem a Constituição incumbiu o dever de apreciar e julgar as lesões aos direitos consagrados pelo ordenamento jurídico, impor medidas capazes de adequar a realidade fática ao programa normativo assumido pelo Estado.
Deveras, não há que se falar em violação ao princípio da separação de poderes, previsto no art. 2º, da Carta Magna. De fato, cumpre ao Poder Executivo formular e executar as políticas públicas, em conformidade com a lei e a Constituição Federal. Entretanto, constando-se que a reiterada omissão desse Poder em cumprir com seu papel está infringindo prerrogativas dos cidadãos, plenamente justificada estará a intercessão do Poder Judiciário. Isso porque a implementação de direitos e garantias não pode ficar ao alvedrio da Administração Pública.
Vale ressaltar que o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal institui o princípio da inafastabilidade da jurisdição, estabelecendo que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Esse princípio se revela essencial à organização da vida em sociedade, na medida em que garante que sempre que alguém tiver seu direito ameaçado por ato de terceiros ou do próprio Estado terá direito de levar a questão ao Poder Judiciário, a fim de que o assunto seja apreciado e solucionado, em conformidade com as normas eleitas por aquela coletividade.
Observe que se o Poder judiciário se negasse a intervir nas arbitrariedades cometidas pelo Estado no contexto do sistema penitenciário estaria, ele também, violando a Constituição Federal ao recursar-se a apreciar a lesão a direitos conferidos aos indivíduos pela Carta-Mãe, Tratados Internacionais e legislação infraconstitucional.
Nesse sentido, manifestou-se o Eminente Ministro Relator ao proferir o voto no Recurso Extraordinário 592.581/RS:
[...] existe todo um complexo normativo de índole interna e internacional, que exige a pronta ação do Judiciário para recompor a ordem jurídica violada, em especial para fazer valer os direitos fundamentais - de eficácia plena e aplicabilidade imediata - daqueles que se encontram, temporariamente, repita-se, sob a custódia do Estado.
A hipótese aqui examinada não cuida, insisto, de implementação direta, pelo Judiciário, de políticas públicas, amparadas em normas programáticas, supostamente abrigadas na Carta Magna, em alegada ofensa ao princípio da reserva do possível. Ao revés, trata-se do cumprimento da obrigação mais elementar deste Poder que é justamente a de dar concreção aos direitos fundamentais, abrigados em normas constitucionais, ordinárias, regulamentares e internacionais.
A reiterada omissão do Estado brasileiro em oferecer condições de vida minimamente digna aos detentos exige uma intervenção enérgica do Judiciário para que, pelo menos, o núcleo essencial da dignidade da pessoa humana lhes seja assegurada, não havendo margem para qualquer discricionariedade por parte das autoridades prisionais no tocante a esse tema. [...]. (RE 592581, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 13/08/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016). (Destaques acrescidos).
Noutro viés, conforme bem destacou o Pretório Excelso, não é admitido à Administração Pública sustentar a tese da reserva do possível[12] como obstáculo ao cumprimento das políticas públicas no contexto do sistema penitenciário. Primeiro, porque essa cláusula não pode ser oposta em face de direitos inerentes ao mínimo existencial[13], segundo, porque o Fundo Penitenciário Nacional computa valores que não são utilizados por falta de projetos. A verdade é que há falta de vontade política em resolver a situação.
Não é difícil imaginar o porquê da ausência de formulação de políticas públicas no contexto do sistema penitenciário. O preso, condenado com trânsito em julgado, tem seus direitos políticos suspensos, ficando impedido de votar e ser votado (art. 15, III, CF/88). A sociedade, por sua vez, fragilizada com a violência, não se mostra sensível ao sofrimento suportado pelos presos. De um modo geral, a sociedade, direcionada por uma mídia sensacionalista e rasa, não parece compreender que os abusos praticados contra os apenados somente podem resultar em mais violência quando essas pessoas retornarem ao convívio em sociedade.
Nessa conjuntura, cabe ao Poder Judiciário exercer o papel contramajoritário, salvaguardando os direitos fundamentais de uma minoria sem voz, sem apreço da sociedade e desrespeitada pelos Poderes Públicos.
Por todo exposto, é de se concluir que agiu com acerto a Corte Constitucional ao fixar, em sede de repercussão geral, a seguinte tese:
É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5º, XLIX, da Constituição Federal, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes. (RE 592581, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 13/08/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016). (Destaques acrescidos).
Compete agora aos juízes e tribunais aplicar, de acordo com sua competência, a tese jurídica fixada segundo a sistemática da repercussão geral (art. 976 e seguintes, NCPC). De igual modo, ao Ministério Público, à Defensoria Pública e à sociedade organizada, utilizando-se do precedente, pugnar pela observância dos direitos fundamentais previstos no ordenamento jurídico.
3. CONCLUSÃO.
Conforme exposto, o desrespeito ao valor supremo da dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais dos presos tem sido a regra do sistema prisional brasileiro. A realidade dos cárceres desse país revela não apenas a crueldade, desumanidade, mas o descompromisso com a função de ressocialização da pena.
O princípio da separação de poderes e a cláusula da reserva do possível não outorgam à Administração Pública a liberdade para deixar de cumprir o programa normativo da Constituição Federal, outrossim, tampouco podem servir de empecilho à concretização dos direitos fundamentais.
Destarte, conclui-se que é legítimo ao Poder Judiciário, quando provocado, diante da reiterada omissão estatal, intervir nas políticas públicas, impondo à Administração Pública o dever de observar os direitos fundamentais. Isso porque não pode o Poder Judiciário se furtar à apreciação de lesão aos direitos garantidos pela Constituição Federal, por Tratados Internacionais, bem como pela legislação pátria. Agiu com acerto, portanto, o Supremo Tribunal Federal ao fixar tese jurídica que permite ao Judiciário determinar obrigação de fazer consistentes na promoção de medidas ou execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luís Roberto. NEOCONSTITUCIONALISMO E CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/neoconstitucionalismo_e_constitucionalizacao_do_direito_pt.pdf>. Acesso em: 29/04/2016.
BERNARDES, Juliano Taveira; FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Direito Constitucional - Tomo I. 5. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. Juspodivm, 2015.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 9. ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a Emenda Constitucional nº 83/2014, e os últimos julgados do Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva, 2015.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Principais Julgados STF e STJ comentados 2015. Manaus: Editora Dizer o Direito, 2016.
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MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015.
NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. 11. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. Juspodivm, 2016.
NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 9. ed. rev., e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005
[1] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 9. ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a Emenda Constitucional nº 83/2014, e os últimos julgados do Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva, 2015.p. 513
[2] Art. 5, 6 e 8 da Declaração Universal dos Direitos Humanos; art. 7 e 10 do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos; art. 5, 1 e 2 da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos.
[3] Lei nº 7.210/1984 – Lei de Execução Penal.
[4] < https://pt.wikipedia.org/wiki/Carandiru_(filme)>. Acesso em: 28/04/2016.
[5] < https://pt.wikipedia.org/wiki/Esta%C3%A7%C3%A3o_Carandiru_(livro)>. Acesso em: 28/04/2016.
[6] < https://pt.wikipedia.org/wiki/Massacre_do_Carandiru>. Acesso em: 28/04/2016.
[7] Disponível em <http://www.cnmp.mp.br/portal/noticia/3486-dadosineditos-
do-cnmp-sobre-sistema-prisional>. Acesso em 12/8/2015 apud STF, RE 592581, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 13/08/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016. p. 15-17.
[8] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 9. ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a Emenda Constitucional nº 83/2014, e os últimos julgados do Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 513.
[9] NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. 11. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. Juspodivm, 2016. p. 254.
[10] BERNARDES, Juliano Taveira; FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Direito Constitucional - Tomo I. 5. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. Juspodivm, 2015. p. 201.
[11] NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 9. ed. rev., e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 533-534.
[12] A chamada cláusula da “reserva do possível” reserva do possível (Der Vorbehalt des Möglichen) que começou a ser alegada a partir da década de 1970, é criação do Tribunal Constitucional alemão e compreende a possibilidade material (financeira) para prestação dos direitos sociais por parte do Estado, uma vez que tais prestações positivas são dependentes de recursos presentes nos cofres públicos. (FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 7. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. Juspodivm, 2015. p. 594). (Destaques originais).
[13] [...] A cláusula da reserva do possível - que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição - encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. [...] (STF, ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125).
Servidora Pública, atualmente ocupa o cargo de Técnico do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. Graduada em Direito pela Universidade Potiguar. Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera - UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINTO, Simone Carlos Maia. Reflexões sobre a transgressão ao postulado da dignidade da pessoa humana no âmbito do sistema penitenciário brasileiro e implementação judicial do direito fundamental que assegura aos presos o respeito à integridade física e moral Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 maio 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46567/reflexoes-sobre-a-transgressao-ao-postulado-da-dignidade-da-pessoa-humana-no-ambito-do-sistema-penitenciario-brasileiro-e-implementacao-judicial-do-direito-fundamental-que-assegura-aos-presos-o-respeito-a-integridade-fisica-e-moral. Acesso em: 22 nov 2024.
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