RESUMO: Este artigo apresenta, de forma clara e sucinta, a evolução histórica do controle de constitucionalidade, primeiramente abordar-se-á suas principais manifestações no mundo, com foco naquelas que influenciaram o sistema brasileiro de controle e, após, o reflexo de tais manifestações na doutrina brasileira, com foco em como se deu cada momento constitucional brasileiro de controle judicial de constitucionalidade de atos normativos. Perquirida essa evolução histórica, analisar-se-á, à luz da Constituição Federal de 1988, quais os efeitos podem gerar uma decisão que declara a constitucionalidade/inconstitucionalidade de uma norma jurídica, com ênfase na jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal sobre Teoria da Abstrativização do Controle Difuso e Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes.
Palavras-chave: nulidade; anulabilidade; controle concentrado; controle difuso; transcendência da ratio decidendi.
Este artigo é idealizado com o objetivo de fazer uma análise histórica do controle de constitucionalidade no Brasil até as recentes manifestações do Supremo Tribunal Federal sobre Teoria da Abstrativização do Controle Difuso e Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes.
Buscar-se-á, primeiramente, a origem da ideia de controle de constitucionalidade, pois, conforme é sabido, ele é resultado de um paulatino processo de amadurecimento histórico e sua aparição precípua remonta à antiguidade clássica, em especial à civilização ateniense. Porém, é mister ressaltar que as principais contribuições para a evolução desse instituto são a doutrina americana da judicial review of legislation, que idealizou o sistema incidental-difuso de controle de normas; e o sistema austríaco, criado por Hans Kelsen, que inovou com a possibilidade de um controle concentrado de normas. (KELSEN, Hans. apud LENZA, 2010)
Frise-se que a supramencionada diferença não é o único ponto que distingue o sistema americano do sistema austríaco, pois, enquanto nesse os efeitos da decisão operam retroativamente (ex tunc) e geram nulidade absoluta, naquele, os efeitos da decisão perfazem-se ex nunc (efeitos prospectivos) e causam apenas anulabilidade da lei ou ato normativo. E, é nesse aspecto que reside o ponto mais importante deste artigo, porquanto, paralelamente à evolução do cenário histórico de sistemas de controle de constitucionalidade, percebe-se que houve, também, uma evolução quanto aos efeitos produzidos pelas decisões geradas.
Assim, inicialmente, com o judicial review of law, a lei contrária a uma Constituição rígida era absolutamente nula e, por isso, os efeitos da decisão que a declaravam como tal operavam-se ex tunc. Após, com Hans Kelsen e o sistema austríaco, vem a ideia de mera anulabilidade, ou seja, às decisões, de natureza meramente constitutivas, eram emprestados efeitos ex nunc; e, hoje, já admite-se, no Brasil, a modulação dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal tanto em sede de controle concentrado quanto em sede de controle difuso de constitucionalidade. (KELSEN, Hans. apud LENZA, 2010)
A modulação dos efeitos pelo Supremo Tribunal Federal, além de presente em inúmeras de suas decisões, foi positivada pelas Leis n. 9.898/99 e pela Lei n. 9.882/99 que disciplinaram, respectivamente, o processo e julgamento das ações direta de inconstitucionalidade e de constitucionalidade no âmbito federal e a arguição de descumprimento de preceito fundamental.
Enfim, buscar-se-á identificar quais os efeitos podem ser produzidos pela decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de uma lei ou de uma ato normativo e a possibilidade de modulação desses efeitos, lembrando inclusive, que o Supremo Tribunal Federal admite a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade do controle difuso.
Atualmente, são travadas discussões sobre a aplicabilidade de duas teorias no cenário do controle difuso de constitucionalidade brasileiro, quais sejam, Teoria da Abstrativização do Controle Difuso e Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes, sendo Gilmar Mendes e Eros Grau defensores de tais ideias.
Traçou-se, alhures, a maneira como será desenvolvido o tema.
Por último, imperioso é tecer algumas considerações acerca da Supremacia da Constituição, uma vez que ela é pressuposto do controle de constitucionalidade.
Controlar a constitucionalidade é verificar a adequação de uma lei ou de um ato normativo com a Constituição, nos seus aspectos formais e materiais; o controle de constitucionalidade é um juízo de adequação da norma infraconstitucional (objeto) à norma constitucional (parâmetro), por meio da verticalização da relação imediata de conformidade vertical entre aquela e esta, com o fim de impor sanção de invalidade à norma que seja revestida de incompatibilidade material ou formal com a Constituição. (CARVALHO, 2009, p. 362).
Hans Kelsen, com sua clássica teoria do escalonamento da ordem jurídica, concebeu o Direito como um sistema hierarquizado de normas, em que no ápice da ordem jurídica está a Constituição, considerada fundamento de validade de todas as normas jurídicas e de forma que os atos normativos do poder público só são válidos e constitucionais na medida em que forem compatíveis, formal e materialmente, com a Constituição. Nesse ponto, esclarecedora é a exposição de Dirley da Cunha Júnior quanto à dependência do controle de constitucionalidade em relação à supremacia constitucional:
A norma infraconstitucional, que fere norma constitucional, torna-se norma inconstitucional, írrita e absolutamente nula. À rigidez constitucional é correlativa à noção de supremacia constitucional, que encontra sua garantia máxima no controle de constitucionalidade. (JÚNIOR, 2010, p. 109/110).
Nessa última abordagem, percebe-se o quão importante revela-se o aprofundamento da temática proposta. O Direito Constitucional é considerado pela doutrina a mais importante esfera da ordem jurídica, pois dele derivam todos os ramos do Direito positivo, além de ser ele o responsável pela unidade do ordenamento jurídico e também sua fonte de validade. Nesse condão, mantém relação com todos os demais ramos do Direito, de forma que essa relação só é legítima quando em consonância com as normas e princípios-regras do texto constitucional, restando demonstrado, assim, a aplicação prática do controle de constitucionalidade.
O controle de constitucionalidade é resultado de um paulatino processo de amadurecimento através de séculos de história e sua existência remonta à antiguidade clássica, tendo se manifestado nitidamente em Atenas.
Na Idade Média, como precedente do atual sistema de controle de constitucionalidade está a concepção de direito natural, que, naquela época, tinha status de norma superior. Consagrou-se a dicotomia entre duas classes de normas, o jus naturale, superior e incontestável, e o jus positum, que àquele se subordinava (CARVALHO, 2009, p. 367).
Após, na Inglaterra, em meados no século XVII, predominou a doutrina de Sir Edward Coke, que pregava a superioridade das Common Law, de tal forma que os juízes controlavam a legitimidade das leis votadas pelo Parlamento, negando aplicabilidade àquelas contrárias ao referido dispositivo legal (JÚNIOR, 2010; p. 267).
Posteriormente, dois outros sistemas mereceram destaque, quais sejam o constitucionalismo norte-americano e o constitucionalismo europeu, porquanto deles nasceram os critérios difuso e concreto de controle de constitucionalidade, critérios esses que ainda hoje preponderam.
Apesar da diversidade de modelos de justiça constitucional, historicamente, é possível identificar esses dois últimos como os mais importantes, conforme a lição de Louis Favoreau:
(...) a diversidade de organização da justiça constitucional é muito grande, sem embargo disso, os diferentes sistemas podem reagrupar-se basicamente em grandes modelos: Ou se confia a justica constitucional ao ordenamento jurídico ordinário, sempre dependendo de um Tribunal Supremo, conforme o chamado modelo americano, ou se atribui a justica constitucional a uma jurisdição especialmente constituída para esse fim, cujo primeiro exemplo foi o Tribunal Supremo Constitucional da Áustria. Sem embargo e por cima dessas diferenças, há que se ressaltar que na medida em que no primeiro modelo, os litígios constitucionais chegam ao Tribunal Supremo – e inclusive em algumas ocasiões são dirigidos diretamente a ele, o problema do estatuto e do lugar dos juízes constitucionais em um sistema político se coloca do mesmo modo em ambos os modelos (Louis Favoreau apud Alexandre de Moraes, p. 679)
Atentar-se-á, na explanação deste artigo, à doutrina norte-americana e à doutrina europeia (austríaca) de controle de constitucionalidade, devido ao exposto acima e à grande influência exercida sobre o Direito brasileiro.
2.1 SISTEMA AMERICANO DO JUDICIAL REVIEW OF LEGISLATION
Aos Estados Unidos da América atribui-se importante manifestação acerca do conceito de supremacia da Constituição, porquanto, na Carta de 17 de setembro de 1787 daquele país, ficou consagrada a denominada supremacy clause, que dizia ser ela o direito supremo do país e vinculadora dos juízes de todos os Estados-membros, ainda que a lei de algum Estado dispusesse de forma diversa (MENDES, 2007, p. 1005).
Nessa cláusula, a partir do caso Marbury v. Madison, julgado em 1803, por John Marshall, baseou-se o sistema do judicial review of legislation de controle de constitucionalidade (MORAES, 2005, p. 630).
Da decisão que colocou fim ao caso, nasceu a tese de que as Constituições são normas supremas e devem preponderar sobre qualquer outra norma jurídica, de tal forma que, diante de conflito entre duas leis, o juiz deve sempre aplicar aquela que está em consonância com os ditames constitucionais, rejeitando, portanto, a lei inconstitucional. A Corte, influenciada por John Marshall, aderiu a esse posicionamento, rejeitando qualquer possibilidade de o Poder Legislativo contrariá-la editando leis ordinárias aplicáveis. Aqui, surgiu o controle de constitucionalidade propriamente dito.
A doutrina Marshall consagrou-se nos Estados Unidos da América, lá prevalecendo até hoje. Diversos outros países americanos aderiram à orientação do caso William Marbury v. James Madison, inclusive o Brasil, com a Constituição de 1891 (JÚNIOR, 2010; p. 274).
Para modelo norte-americano, o controle de constitucionalidade é exercido por qualquer juiz ou tribunal diante de um caso concreto, ou seja, é um controle difuso, no sentido de que todos os órgãos do Poder Judiciário podem exercê-lo, e incidental, por via de exceção ou de defesa, pois somente pode ser realizado no bojo de uma demanda concreta (JÚNIOR, 2010; p. 274)..
Quanto aos efeitos da decisão de inconstitucionalidade, para doutrina Marshall, a lei inconstitucional é, uma vez que contrária à Constituição, absolutamente nula, limitando-se o órgão do Poder Judiciário a declará-la como tal, ou seja, a norma jurídica aferida no caso concreto carrega uma nulidade preexistente.
Assim, tal decisão é meramente declaratória e produz efeitos ex tunc, uma vez que alcança a norma inconstitucional desde seu nascimento, e inter partes, pois somente irradia sobre os sujeitos o caso concreto.
Contudo, ressalta-se que, embora todo órgão judicial seja competente para exercer o controle de constitucionalidade, à Suprema Corte cabe a decisão definitiva em matéria constitucional em razão do princípio do stare decisis, isto é, da força vinculante de suas decisões ou da força de seus precedentes. Diante disso, mesmo sendo exercitável em face de uma controvérsia real e concreta, as decisões desse órgão produzem eficácia erga omnes.
Em síntese, a doutrina Marshall apregoa a produção, pela decisão de inconstitucionalidade/constitucionalidade, de efeitos ex tunc e inter partes, podendo essas decisões, se proferidas pela Supreme Court, vincularem a todos (JÚNIOR, 2010; p. 277).
O sistema norte-americano da judicial review disseminou-se, porém, ao longo do século XX, cedeu espaço para expansão de outro modelo de jurisdição constitucional, o sistema austríaco (Bonavides, 2006, p. 309)
2.2 O SISTEMA AUSTRÍACO OU CONCENTRADO DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
No século XX, surgiu, com a promulgação da Constituição austríaca de 01 de outubro de 1920, o modelo concentrado de jurisdição constitucional. Diz-se concentrado, pois exercido, com exclusividade, pelo Tribunal Constitucional.
Na Europa, por razões históricas, inicialmente, não foi adotado nenhum dos sistemas de jurisdição constitucional. Nesse continente, a ideia de justiça constitucional somente foi recepcionada em 1920 quando Hans Kelsen apresentou, ao governo austríaco, um projeto de Constituição para o país, o qual previa a existência de uma jurisdição constitucional confiada a um único órgão especial, o Tribunal Constitucional (JÚNIOR, 2010; p. 280).
Formou-se, com o projeto de Hans Kelsen, o sistema concentrado de controle de constitucionalidade, que se espalhou ao longo do século XX, principalmente nos países da Europa Ocidental (JÚNIOR, 2010; p. 281).
Na doutrina muito já se discutiu acerca das razões que levaram esses países a adotar o sistema concentrado de jurisdição constitucional em detrimento do sistema difuso do direito norte-americano. Concluiu-se que, como nesses países vigorava o sistema da civil law, no qual inexiste o princípio da stare decisis, que é típico dos sistemas da commom law, a introdução do sistema difuso traria incerteza do direito, porque, enquanto alguns juízes deixariam de aplicar uma norma que considerassem inconstitucional, outros, que reputassem constitucional a mesma norma, aplicariam-na (JÚNIOR, 2010; p. 282).
Outro aspecto apontado pela doutrina como determinante na opção desses países pelo sistema concentrado, é o fato de que a ausência do stare decisis acarretaria multiplicidade de demandas, uma vez que seriam analisadas as mesmas normas toda vez que alegada a inconstitucionalidade na demanda concreta.
Então, a solução encontrada pelos países europeus onde vigorava a civil law foi a criação de um Tribunal ao qual se pudesse atribuir a função de decidir questões de constitucionalidade das leis com eficácia erga omnes. Nesse cenário, Hans Kelsen, no projeto da Constituição austríaca, propôs ao governo a criação do Tribunal Constitucional, o que impossibilitou conflitos entre órgãos judiciários e garantiu a certeza do direito.
Com a promulgação da Constituição austríaca de 1920, cujo projeto foi idealizado por Hans Kelsen, nasceu o controle concentrado de constitucionalidade dos atos normativos, que atribui a jurisdição constitucional ao Tribunal Constitucional com a exclusão de qualquer outro órgão.
Cumpre ressaltar que a esse Tribunal foi dada uma função constitucional e não uma função judicial propriamente dita, pois, pela visão kelsiana, tal órgão não aprecia nenhuma demanda concreta, mas, tão somente, analisa a compatibilidade da norma jurídica com a Constituição.
Para essa corrente, enquanto o do Tribunal Constitucional não declarar uma norma inconstitucional, os juízes e tribunais ordinários jamais poderão deixar de aplicá-la diante da presunção de validade que ela carrega.
Inicialmente, na versão originária do sistema austríaco, o pedido de declaração de inconstitucionalidade perfazia-se mediante um pedido especial deduzido em uma ação especial direta, perante o Tribunal Constitucional (via principal), para a qual só tinha legitimidade o Governo Federal e os Governos do Lander. Com a reforma de 1975, tal legitimidade também foi conferida a um terço dos membros do Parlamento.
Contudo, essa situação foi modificada com a revisão constitucional de 1929, a partir da qual se conferiu legitimidade para deduzir a ação de constitucionalidade a dois outros órgãos da justiça ordinária: a Corte Suprema para as causa cíveis e penais e o a Corte Suprema para as causas administrativas. A esses órgãos, porém, foi concedida, para arguição de inconstitucionalidade, a via incidental, ou seja, eles avaliavam a constitucionalidade de uma lei aplicável ao caso a eles submetido.
Consolidou-se, então, na Áustria, um sistema de controle de constitucionalidade composto por duas formas: a forma principal, provocada por via de ação, e a forma incidental, provocada por via de exceção ou de defesa. Esse modelo é até hoje vigente.
Por fim, esclarece-se que os efeitos da decisão que analisa a constitucionalidade de uma norma jurídica, nesse sistema, perfazem-se ex nunc (efeitos prospectivos) e causam mera anulabilidade da lei. Tal decisão, quando proferida por uma Corte Constitucional, em sede de controle concentrado, gera, ainda, efeito erga omnes.
Nesse último aspecto está uma diferença relevante entre o sistema difuso e o sistema kelsiano. Enquanto para aquele existe um vício de nulidade, para esse há mera anulabilidade, o que significa que as decisões da Corte Constitucional possuem natureza meramente constitutiva, com eficácia ex tunc, isto é, somente para o futuro.
No Brasil, hoje, após um longo período de mudanças e amadurecimento, o controle de constitucionalidade conjuga o modelo difuso, oriundo do direito americano, e o modelo concentrado, proveniente dos países europeus continentais.
A Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, não contemplou modelo algum de controle de constitucionalidade de normas.
Ao Poder Legislativo competia elaborar leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las e, também, valer pela guarda da Constituição.
Só o poder que faz a lei é o único competente para declarar por via de autoridade ou por disposição geral obrigatória o pensamento, o preceito dela. Só ele e exclusivamente ele é que tem o direito de interpretar o seu próprio ato, suas próprias vistas, sua vontade e seus fins. Nenhum outro poder tem o direito de interpretar por igual modo, já porque nenhuma lei lhe deu essa faculdade, já porque seria absurda a que lhe desse (José Antonio Pimenta apud Gilmar Ferreira Mendes, p. 1034).
Naquela época, forte era a influência da concepção inglesa de supremacia do Parlamento e da doutrina francesa da rígida separação entre os poderes e, por isso, não se admitia a possibilidade de um poder invalidar os atos de competência de um outro, sob pena de se afastar o equilíbrio e a harmonia que existia entre os poderes.
Dessa forma, a Carta de 1824, já que atribui competência de elaboração de leis ao Poder Legislativo, a ele também outorgou a competência para fiscalizar seus aos e verificar a compatibilidade desses atos com a Constituição.
Nesse momento histórico, o Poder Legislativo editava atos normativos e averiguava sua validade, ficando afastada a possibilidade de o Poder Judiciário negar aplicabilidade às normas que reputasse inconstitucionais. Existia, assim, tão somente, um sistema político de controle de constitucionalidade.
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, influenciada pelo constitucionalismo norte-americano, ou seja, pela doutrina da judicial review of legislation, abandona o sistema exclusivamente político de controle de constitucionalidade e atribui ao Poder Judiciário a competência para apreciar, diante de um caso concreto, a constitucionalidade de uma norma.
Inicialmente, a Constituição de 1891 facultou recurso para o Supremo Tribunal Federal “quando se questionar sobre a validade ou a aplicação de tratados e leis federais” (artigo 59, §1, alínea a, de Constituição de 1891).
Mas foi somente com a reforma constitucional de 1926 que o controle de constitucionalidade de tornou, no Brasil, explícito. Após tal reforma, a Constituição de 1891 expressou a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar os recursos sempre que se questionasse “sobre a vigência ou a validade das leis federais em face da Constituição” e a decisão do tribunal do Estado que lhe negasse aplicação (artigo 60, §1, alínea a).
A partir dessa Constituição, ao molde do que propunha o sistema do judicial review of legisletion, o Poder Judiciário passou a ser competente para, diante de um caso concreto e por provocação dos interessados, exercer controle de constitucionalidade das leis e atos normativos do poder público.
Nessa manifestação, uma possível declaração de inconstitucionalidade do ato impugnado não o retirava do ordenamento jurídico, mas, somente, afastava sua aplicação na demanda concreta, porquanto seus efeitos operavam-se inter partes.
No entanto, esse sistema apresentava uma grava deficiência: a existência de várias decisões conflitantes oriundas de diferentes órgãos judiciários frente a inexistência do princípio do stare decisis.
Tal problema foi amenizado pela Constituição de 1934, que previu a competência do Senado Federal para suspender, em caráter geral, a execução da norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, introduziu profundas alterações no sistema judicial de controle de constitucionalidade de leis e atos normativos do poder público.
Com a Carta de 1934, a denominada “reserva de plenário” (MORAES, 2005; p. 638) passou a integrar o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. Por reserva de plenário entende-se que somente a maioria absoluta de diferentes tribunais do Poder Judiciário dispõe de competência para declarar a inconstitucionalidade das leis e atos normativos, evitando-se a insegurança jurídica decorrente das continuas flutuações de entendimentos nos tribunais.
Além da previsão do instituto da reserva de plenário, inovou a Constituição ao prever, como já referido no tópico anterior, a possibilidade de se atribuir efeitos gerais à pronúncia de inconstitucionalidade. Ao Senado Federal foi dada a competência para suspender a execução de uma lei, com eficácia erga omnes, em face da declaração de sua inconstitucionalidade pelo Poder Judiciário proferida em um caso concreto (MENDES, 2007; p. 1036).
Criou-se, com previsão no artigo 12, inciso V, ainda, a chamada representação interventiva (atualmente conhecida como ação direta de inconstitucionalidade interventiva), confiada ao Procurador Geral da República e sujeita à competência do Supremo Tribunal Federal, no caso de ofensa aos princípios constitucionais sensíveis (CARVALHO, 2009; p. 414).
Na criação da representação interventiva está o marco para o desenvolvimento, no Brasil, do sistema europeu ou concentrado de controle de constitucionalidade.
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, representou um retrocesso no sistema de controle de constitucionalidade no Brasil.
Apesar de ter mantido o modelo de controle de constitucionalidade inaugurado em 1891, criou a possibilidade de o Poder Executivo tornar sem efeito a decisão de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal, quando a lei declarada inconstitucional, por iniciativa do Presidente da República, fosse confirmada pelo voto de dois terços de cada uma das Casas Legislativas. É o que dispunha o parágrafo único do artigo 96 da Constituição de 1937:
No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal
Além do dispositivo transcrito, outra característica relevante está no fato de que desse texto constitucional deixou de constar a competência do Senado Federal para suspender, em caráter geral, a execução de lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal e, também, não foi feita referência alguma à representação interventiva.
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, recuperou as disposições suprimidas pela Constituição anterior e impôs, novamente, a supremacia do Poder Judiciário em matéria de controle de constitucionalidade.
Revogou-se a norma arbitrária contida no parágrafo único do artigo 96 da Constituição de 1937 e foram reinseridas no texto constitucional a representação interventiva e a suspensão pelo Senado Federal da execução da lei declarada inconstitucional pelo Poder Judiciário.
Em 1965, a Emenda Constitucional n. 16 à Constituição de 1946 introduziu no ordenamento jurídico brasileiro o controle concentrado ou abstrato de normas, com a criação da representação genérica de inconstitucionalidade, a então ação direta de inconstitucionalidade.
A partir dessa emenda, passou-se a admitir, no Brasil, a declaração de inconstitucionalidade em tese de atos normativos do poder público, mediante controle concentrado, pela via direta.
Solidificou-se, então, no país, com a coexistência do sistema difuso-incidental e do sistema concentrado-principal, um modelo misto ou eclético de controle judicial de constitucionalidade, de competência exclusivamente do Supremo Tribunal Federal das leis e atos normativos estaduais e federais em face da Constituição Federal, e dos Tribunais de Justiça das leis e atos normativos municipais em face das Constituições estaduais.
A Constituição do Brasil, de 24 de janeiro de 1967, preservou o sistema misto de controle judicial de constitucionalidade, contudo, não manteve o dispositivo acrescentado pela EC n. 16/65, que autorizava os Estados a representarem pela inconstitucionalidade genérica das leis municipais em face de suas Constituições estaduais.
Após, com a Emenda n. 01 de 1969, passou-se a admitir a instituição, pelos Estados, da representação interventiva para assegurar a observância dos princípios constitucionais sensíveis constantes das respectivas Constituições estaduais.
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, preservou o sistema de controle de constitucionalidade eclético composto pelos métodos difuso-incidental e concentrado-principal e agregou quatro principais novidades.
A primeira delas foi a ampliação do rol de legitimados para a propositura da representação de inconstitucionalidade, antes privativa do Procurador Geral da República, abarcando, agora, também, para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade, o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa da Assembléia Legislativa ou Mesa da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador de Estado ou Governador do Distrito Federal, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, qualquer partido político com representação no Congresso Nacional e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. Esse é o entendimento jurisprudencial da Suprema Corte e o disposto no artigo 103 da Constituição Federal e no artigo 2° da Lei n. 9.868/99.
Inovou o texto constitucional ao prever a possibilidade de controle de constitucionalidade das omissões legislativas, seja de forma concentrada através da ADO por omissão (artigo 103, §2°, CF/88), seja de modo incidental por meio do mandado de injunção (artigo 5°, LXXI, CF/88).
Institui-se a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), no parágrafo único do artigo 102 e, com a Emenda Constitucional n. 3/93, a ação declaratória de constitucionalidade (ADC).
Finalmente, a Emenda Constitucional n. 45/04 ampliou a legitimação ativa para o ajuizamento da ADC, igualando aos legitimados da ADI e estendeu o efeito vinculante, que era previsto de maneira expressa somente para a ADC, para a ADI, com a finalidade de unificar essas duas espécies de ações constitucionais, uma vez que suas decisões possuem efeitos ambivalentes.
E, quanto a competência em matéria de jurisdição constitucional, esclarecedora é a doutrina:
(...) no Brasil a jurisdição constitucional não é privilégio dos tribunais ou do Supremo Tribunal Federal. Aqui, todo e qualquer órgão do Poder Judiciário, independentemente da instancia (juiz ou tribunal), pode exercer o controle de constitucionalidade. Somente o controle de constitucionalidade pela via principal ou abstrata é exclusiva do Supremo Tribunal Federal (em face da Constituição Federal) ou dos Tribunais de Justiça (em face da Constituição do Estado)” (JÚNIOR, 2010; p. 295)
No que se refere a competência para o controle concentrado das normas em face da Constituição da República é, em regra, do Supremo Tribunal Federal, competindo-lhe processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (artigo 102, I, a, da CF/88). Já a competência para o exercício da jurisdição constitucional concentrada de leis estaduais ou municipais, tendo como parâmetro uma Constituição estadual, é do Tribunal de Justiça ou do Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
Em suma síntese traçou-se um esboço do histórico do controle de constitucionalidade no direito comparado e no Brasil.
Após esse apanhado histórico, impõe-se, como objetivo dessa explanação, analisar quais efeitos, no ordenamento jurídico brasileiro, com a vigência da Constituição Federal de 1988, pode produzir uma decisão que declara a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo proferida em sede de ADI, ADC e controle difuso, especificamente quanto à modulação da eficácia temporal dessa decisão.
3.7.1 Efeitos da decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo na ADI e na ADC
A decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida em sede de ADI ou ADC, que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo impugnado, de modo geral, tem eficácia contra todos (erga omnes) e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.
Nessa modalidade de controle, no tocante ao efeito vinculante, ele foi primeiramente introduzido pela Lei n. 9.868/99 (artigo 28, parágrafo único), apesar de já estar previsto, no ordenamento jurídico brasileiro, para a ação declaratória de constitucionalidade desde a edição da Emenda Constitucional n. 03/93.
Com o advento da Emenda Constitucional n. 45/04, o entendimento do legislador infraconstitucional ganhou índole constitucional, conforme a nova redação atribuída ao §2º do artigo 102 da Constituição:
Art.102. (…)
§2º. As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade (…) produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
No julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 1-1-DF, de que foi relator o Ministro Moreira Alves, em que se seu pela constitucionalidade da própria Emenda n. 3/93, consignou-se que a ação declaratória de constitucionalidade, assim como a ação direta de inconstitucionalidade, inserem-se no sistema de controle concentrado de constitucionalidade das normas, no qual o Supremo Tribunal Federal aprecia a controvérsia em tese, declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, com eficácia erga omnes.
Importante ressaltar, nesse tópico, que o Supremo Tribunal Federal vinha atribuindo efeito vinculante não somente ao dispositivo da sentença, mas, também, aos fundamentos determinantes da decisão. É o que se denominava transcendência dos motivos determinantes, ou efeitos irradiantes ou transbordantes dos motivos determinantes.
Nessa linha de ideias, a ratio decidendi (fundamentos da decisão), e não o obter dictum (comentários laterais ao tema), também seria capaz de produzir efeitos vinculantes.
No julgamento da Reclamação 4.219, o STF trouxe novamente à baila discussão sobre a aplicabilidade dessa mesma teoria da “transcendência dos motivos determinantes, tecendo que sua adoção implicaria prestígio máximo ao órgão e desprestígio aos demais membros do Poder Judiciário, distorcendo a lógica do regime democrático, uma vez que resultaria em concentração do poder decisório.
No julgamento da Rcl 10.604, o STF, mais uma vez, negou aplicação à teoria do transbordamento.
Ademais, já no ano de 2016, o a jurisprudência do STF segue o mesmo caminho. Senão, vejamos:
AGRAVO REGIMENTAL EM RECLAMAÇÃO. DIREITO PROCESSUAL PENAL. AUDIÊNCIA DE APRESENTAÇÃO. AFERIÇÃO DA REGULARIDADE DA CUSTÓDIA EM FLAGRANTE. PROVIMENTO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. ATO NORMATIVO SECUNDÁRIO. AUSÊNCIA DE IDENTIDADE MATERIAL ENTRE OS COMANDOS NORMATIVOS. PERTINÊNCIA ESTRITA. TRANSCENDÊNCIA DOS MOTIVOS DETERMINANTES. INAPLICABILIDADE. 1. Ao julgar a ADI 5240/SP, o Tribunal Pleno não conheceu da ação direta de inconstitucionalidade no que toca às normas administrativas atinentes à obrigatoriedade e prazo de apresentação em Juízo do acusado, na medida em que tais dispositivos, mera regulamentação do Pacto de São José da Costa Rica e da legislação processual penal, não detêm aptidão para figurar como objeto de controle de constitucionalidade. Sendo assim, a presente reclamação é incabível, por tratar de situação que não guarda relação de estrita pertinência com o parâmetro de controle. 2. Ainda que se admita a correspondência da ratio decidendi entre as matérias, a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme em afirmar o não cabimento de reclamação, na hipótese em que fundada na transcendência dos motivos determinantes de acórdão com efeito vinculante, na medida em que tal efeito abrange apenas o objeto da ação. Idêntica conclusão, com maior razão, é aplicável na hipótese de considerações tecidas no julgamento a título de obiter dictum e que, portanto, sequer sustentam a decisão apontada como paradigma. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (Rcl 21884 AgR, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 15/03/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-066 DIVULG 08-04-2016 PUBLIC 11-04-2016)
EMENTA AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO. ALEGADA AFRONTA AO QUE DECIDIDO NA ADIS 1.770 e 1.721. AUSÊNCIA DE ESTRITA ADERÊNCIA ENTRE O ATO RECLAMADO E A DECISÃO PARADIGMA. INAPLICABILIDADE DA TRANSCENDÊNCIA DOS MOTIVOS DETERMINANTES. PRECEDENTES. 1. À míngua de identidade material entre os paradigmas invocados e os atos reclamados, não há como divisar a alegada afronta à autoridade de decisão desta Excelsa Corte, mormente porque a exegese jurisprudencial conferida ao art. 102, I, l, da Magna Carta rechaça o cabimento de reclamação constitucional fundada na tese da transcendência dos motivos determinantes. 2. Inexistente estrita aderência entre o que decidido no julgamento das ADIs 1.770 e 1.721 e decisão que julga improcedente a ação rescisória ante a ausência de configuração dos fundamentos de rescindibilidade previstos no art. 485, V, do CPC. 3. Agravo regimental conhecido e não provido. (Rcl 9342 AgR, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 15/03/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-069 DIVULG 13-04-2016 PUBLIC 14-04-2016)
Além dos efeitos citados, a declaração de inconstitucionalidade proferida no controle concentrado-principal, implica, ainda, a pronúncia de nulidade ab initio da lei ou ato normativo impugnado, ou seja, terá efeito retroativo (ex tunc), sendo tal decisão de natureza declaratória, pois somente reconhece situação preexistente.
Hoje, após a edição da Lei n. 9.868/99, pode o STF, tendo em vista razões de segurança jurídica ou excepcional interesse público, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos das decisões proferidas nos processos de controle de constitucionalidade ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser esse fixado. Assim, ao STF foi dado o poder de excepcionar a regra do efeito erga omnes e do efeito declaratório ou ex tunc das decisões proferidas em sede de controle concentrado-principal, para emprestar a essas decisões efeitos ex nunc ou pro futuro. É o teor do artigo 27 da citada lei.
Importante atentar-se para o fato de que a declaração de inconstitucionalidade deve respeito à coisa julgada, ou seja, não tem o condão de rescindir a sentença passada em julgado, que teve fundamento na lei ou ato normativo declarado inconstitucional. Assim, o efeito retroativo da declaração de inconstitucionalidade não afeta a coisa julgada, de forma que, para que isso aconteça, é necessário a propositura de ação rescisória.
3.7.2 Efeitos da decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo no controle difuso-incidental
Entendendo a doutrina e os tribunais pátrios que o ato inconstitucional é nulo, consoante apregoa a doutrina norte-americana do caso Marbury v. Madison, a decisão que declara a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público no caso concreto tem efeito declaratório, retroagindo à origem do ato impugnado, declarando sua nulidade.
Ante tal entendimento, a declaração de inconstitucionalidade fulmina de nulidade o ato impugnado e todas as relações nele fundadas são desconstituídas; ou seja, produz efeitos ex tunc.
Aspecto interessante quanto à declaração de inconstitucionalidade no sistema difuso-incidental é que, pelo fato de seus efeitos restringirem-se às partes litigantes, a decisão que a declara, mesmo que em face de recurso extraordinário seja julgada pelo Supremo Tribunal Federal, nunca terá o condão de vigorar em relação a outras pessoas. Isso, aliado à inexistência do princípio do stare decisis, abre a possibilidade para que, no Brasil, possam existir leis e atos normativos inconstitucionais para uns e constitucionais para outros.
Diante dessa realidade, o legislador pátrio inseriu na Constituição Federal de 1988, como já previsto em algumas Constituições anteriores, a possibilidade de o Senado Federal, ao suspender a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, conferir efeito erga omnes a essa decisão. Preceitua o artigo 52, X, da CF/88, que compete privativamente ao Senado Federal “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”.
Quanto a essa competência, cumpre esclarecer que o dispositivo constitucional supramencionado não autoriza o Senado Federal a declarar inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, mas, tão somente, emprestar efeito erga omnes à decisão definitiva de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
Frise-se que, aqui, apesar de o dispositivo constitucional referir-se somente à lei, menciona-se, também a possibilidade de o Senado Federal suspender a execução de qualquer ato normativo declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, porquanto é entendimento majoritário. Aliás, é esse o entendimento que vigora desde a Constituição de 1934, que previa essa competência do Senado para suspender a execução de lei, ato, deliberação ou regulamento declarado inconstitucional pelo Poder Judiciário.
Não obstante, no controle difuso-incidental, seja a regra a produção de efeitos retroativos ou ex tunc da declaração de inconstitucionalidade, esse sistema admite sejam tais efeitos limitados, podendo a decisão perfazer-se ex nunc ou, também, produzir efeitos prospectivos.
No direito brasileiro, tal possibilidade tem supedâneo na Lei n. 9.868/99 e Lei n. 9.882/99, que dispõem, respectivamente, sobre o processo e julgamento da ADI, ADC e ADPF. Dispõem o artigo 27 da Lei 9.868/99 e o artigo 11 da Lei 9.882/99:
Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Em que pese os preceitos acima mencionados constarem de leis reguladoras do processo e julgamento das ações diretas de controle concentrado-abstrato de constitucionalidade, é pacífico que eles podem servir de base para a modulação da eficácia temporal também no sistema difuso-incidental de controle de constitucionalidade.
O Supremo Tribunal Federal já discutiu, em alguns casos, essa possibilidade. O primeiro deles abordou a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 6º da Lei Orgânica n. 222, de 31/03/1990, do Município de Mira Estrela, no estado São Paulo, que teria fixado seu número de vereadores em afronta ao que dispunha o artigo 29, IV, da Constituição Federal, antes da Emenda Constitucional n.58, de 2009. Referida disposição legal previa que o número de vereadores fosse fixado proporcionalmente à população local, observando-se, nos Municípios de até um milhão de habitantes, a relação de um mínimo de nove e um máximo de vinte e um. Nessa ocasião, a Corte Suprema declarou a inconstitucionalidade do dispositivo da citada Lei Orgânica e, a ela, atribui efeito pro futuro. É a ementa do julgamento:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MUNICÍPIOS. CÂMARA DE VEREADORES. COMPOSIÇÃO. AUTONOMIA MUNICIPAL. LIMITES CONSTITUCIONAIS. NÚMERO DE VEREADORES PROPORCIONAL À POPULAÇÃO. CF, ARTIGO 29, IV. APLICAÇÃO DE CRITÉRIO ARITMÉTICO RÍGIDO. INVOCAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA RAZOABILIDADE. INCOMPATIBILIDADE ENTRE A POPULAÇÃO E O NÚMERO DE VEREADORES. INCONSTITUCIONALIDADE, INCIDENTER TANTUM, DA NORMA MUNICIPAL. EFEITOS PARA O FUTURO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL. 1. O artigo 29, inciso IV da Constituição Federal, exige que o número de Vereadores seja proporcional à população dos Municípios, observados os limites mínimos e máximos fixados pelas alíneas a, b e c. 2. Deixar a critério do legislador municipal o estabelecimento da composição das Câmaras Municipais, com observância apenas dos limites máximos e mínimos do preceito (CF, artigo 29) é tornar sem sentido a previsão constitucional expressa da proporcionalidade. 3. Situação real e contemporânea em que Municípios menos populosos têm mais Vereadores do que outros com um número de habitantes várias vezes maior. Casos em que a falta de um parâmetro matemático rígido que delimite a ação dos legislativos Municipais implica evidente afronta ao postulado da isonomia. 4. Princípio da razoabilidade. Restrição legislativa. A aprovação de norma municipal que estabelece a composição da Câmara de Vereadores sem observância da relação cogente de proporção com a respectiva população configura excesso do poder de legislar, não encontrando eco no sistema constitucional vigente. 5. Parâmetro aritmético que atende ao comando expresso na Constituição Federal, sem que a proporcionalidade reclamada traduza qualquer afronta aos demais princípios constitucionais e nem resulte formas estranhas e distantes da realidade dos Municípios brasileiros. Atendimento aos postulados da moralidade, impessoalidade e economicidade dos atos administrativos (CF, artigo 37). 6. Fronteiras da autonomia municipal impostas pela própria Carta da República, que admite a proporcionalidade da representação política em face do número de habitantes. Orientação que se confirma e se reitera segundo o modelo de composição da Câmara dos Deputados e das Assembléias Legislativas (CF, artigos 27 e 45, § 1º). 7. Inconstitucionalidade, incidenter tantun, da lei local que fixou em 11 (onze) o número de Vereadores, dado que sua população de pouco mais de 2600 habitantes somente comporta 09 representantes. 8. Efeitos. Princípio da segurança jurídica. Situação excepcional em que a declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria grave ameaça a todo o sistema legislativo vigente. Prevalência do interesse público para assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionalidade. Recurso extraordinário conhecido e em parte provido. (grifou-se) (STF, RE 197.917, Rel. Maurício Corrêa, DJ de 07/05/2004).
Em 2008, o Supremo Tribunal Federal, nos autos dos Recursos Extraordinários números 556.664, 559.882 e 559.943, mais uma vez, modulou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade dos artigos 45 e 46 da Lei n. 8.212/91, definindo como inconstitucional o prazo prescricional e decadencial de dez anos e limitando a eficácia retroativa destas decisões, ao atribuir-lhe parcial efeito prospectivo. Ao assim decidir, a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade parcial da referida lei e determinou que os efeitos de sua decisão não atingiriam os contribuintes que haviam pagado as contribuições para a seguridade social e não haviam iniciado discussão sobre a legalidade do tributo questionado até a data da conclusão do julgamento.
Pela possibilidade de modulação dos efeitos no controle difuso-incidental, é a doutrina:
A declaração de inconstitucionalidade in concreto também se mostra passível de limitação de efeitos. A base constitucional dessa limitação – necessidade de um outro princípio que justifique a não-aplicação do princípio da nulidade – parece sugerir que, se aplicável, a declaração de constitucionalidade restrita revela-se abrangente do modelo de controle de constitucionalidade como um todo. (MENDES, 2007, p. 1044).
Assim, o Supremo Tribunal Federal, hoje, aceita com tranquilidade a modulação dos efeitos em sede de controle difuso de constitucionalidade.
Em 23 de fevereiro de 2008, o STF, ao julgar o HC 82.959/SP, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, impetrado em favor de um único preso, declarou inconstitucional esse § 1º do art. 2º da Lei n.? 8.072/90, que proibia a progressão de regime de cumprimento de pena.
Questiona-se: os demais membros do Poder Judiciário estavam obrigados a acatar a decisão tomada pelo Supremo no referido habeas corpus? Pela concepção tradicional, não. Pela teoria da abstrativização do controle difuso, sim.
Pela teoria tradicional, em regra, a declaração de inconstitucionalidade no controle difuso produz efeitos inter partes e não vinculantes. Após declarar a inconstitucionalidade, o STF, no caso de interposição de Recurso Extraordinário, deverá comunicar essa decisão ao Senado Federal que poderá suspender a execução, no todo ou em parte, da lei viciada, nos termos do artigo 52, inciso X, da Constituição Federal.
Por outro lado, a teoria da abstrativização do controle difuso prega que, se o Plenário do STF decidir a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, ainda que em controle difuso, essa decisão, ou melhor, seus fundamentos, terão os mesmos efeitos do controle concentrado, ou seja, eficácia erga omnes e vinculante.
Para essa corrente, capitaneada por Gilmar Mendes e Eros Grau, o artigo 52, inciso X, da CF/88 teria sofrido mutação constitucional, de forma que a função do Senado Federal seria somente dar publicidade à decisão de inconstitucionalidade declarada de modo incidental no controle difuso pelo Supremo Tribunal Federal.
Assim, segundo essa concepção, se, em abril/2006, um juiz criminal de São Paulo/SP, por exemplo, decidisse que era constitucional a proibição de progressão de regime em crime hediondo, o réu prejudicado poderia formular uma reclamação diretamente ao STF, alegando que a autoridade de sua decisão estaria sendo desrespeitada.
A história constitucional brasileira, que teve início com a Constituição de 1824, não trouxe, inicialmente, qualquer controle judicial de constitucionalidade.
Com a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, o país aderiu a orientação norte-americana de controle de constitucionalidade, ou seja, ao sistema do judicial review.
Quanto ao sistema austríaco, no ordenamento brasileiro, sua primeira manifestação se deu na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934.
Não obstante tal manifestação, somente com a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, após a edição da Emenda Constitucional n. 16, de 26 de novembro de 1965, foi inaugurado, no Brasil, o controle concentrado ou abstrato de constitucionalidade dos atos normativos federais e estaduais, com a criação da representação genérica de inconstitucionalidade.
Segundo a doutrina constitucional brasileira:
(...) já aqui se encontrava perfeitamente definido um modelo misto ou eclético de controle judicial de constitucionalidade, que combinava os sistemas difuso-incidental, de competência de todos os juízes e tribunais nos casos concretos sujeitos às apreciações, e o concentrado-principal, de competência exclusivamente do Supremo Tribunal Federal das leis e atos normativos estaduais e federais em face da Constituição Federal (...) (JÚNIOR, 2010, p. 293)
Por fim, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 aperfeiçoou o sistema judicial de controle de constitucionalidade, mantendo a combinação dos métodos difuso-incidental e concentrado-principal.
Vigora, assim, no Brasil, um sistema misto de controle de constitucionalidade, composto por uma forma concentrada-principal de controle, derivada do sistema austríaco de Hans Kelsen, e por uma forma difusa-incidental, baseada no sistema americano.
A par de tais considerações meramente históricas, é sabido que as decisões que declaram a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade de uma lei ou de um ato normativo produzem determinados efeitos de acordo com a via utilizada para provocar o Poder Judiciário para a apreciação da conformidade de tais normas com a Constituição. Assim, de forma sucinta, passa-se a analisar quais são esses efeitos.
Na Ação Declaratória de Constitucionalidade e na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, ações da via concentrada-principal, são produzidos, independentemente da procedência ou improcedência do pedido deduzido, o efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal, nos termos do artigo 102, §2º, da CF/88, a eficácia erga omnes e a pronúncia de nulidade ab initio da lei ou do ato normativo.
Já no controle pela via difusa-incidental, a decisão que julga procedente ou improcedente o pedido geram, respectivamente, inconstitucionalidade ou constitucionalidade inter partes da lei ou do ato normativo impugnado e, também, a pronúncia da nulidade do ato com a produção de efeitos retroativos.
Para essa última modalidade de controle, a Constituição Federal, em seu artigo 52, X, atribuiu ao Senado Federal a competência para, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, suspender a execução do ato normativo declarado incidentalmente inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, conferindo-lhe efeitos erga omnes
Porém, a edição da Lei n. 9.868/99 e 9.882/99, que dispõem, respectivamente, sobre processo e julgamento da ADI, ADC e ADPF, alterou, nesse aspecto, o cenário jurídico brasileiro.
O artigo 27 da ei n. 9.868/99 e o artigo 11 da Lei n. 9.882/99, com a mesma redação, assim dispõem:
Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Assim, não obstante a regra dos efeitos retroativos ou ex tunc da declaração de inconstitucionalidade, conforme doutrina e jurisprudência pátrias, passou-se a admitir, atendidos os requisitos materiais e formais exigidos, no ordenamento jurídico brasileiro, a denominada modulação ou limitação temporal dos efeitos da decisão que a declarava.
Cumpre ressaltar que o fato de a supracitada disposição legal estar prevista expressamente em leis que cuidam do processamento e julgamento de ações do controle abstrato não exclui, pelo entendimento dominante na doutrina, sua incidência também no controle pela via difusa
O Supremo Tribunal Federal já decidiu nesse sentido, conforme se depreende do RE 197.917/SP:
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, dar parcial provimento ao recurso para, restabelecendo, em parte, a decisão de primeiro grau, declarar inconstitucional, incidenter tantum, o parágrafo único do artigo 6º da lei orgânica nº 226, de 31 de março de 1990, do município de Mira Estrela/SP, e determinar à Câmara de Vereadores que, após o trânsito em julgado, adote as medidas cabíveis para adequar a sua composição aos parâmetros ora fixados, respeitados os mandatos dos atuais vereadores (RE 197.917/SP, STF, Ministro Relator Mauricio Correia. DJ 07/05/2004).
Assim, é hoje predominante a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de ato normativo tanto no controle abstrato, conforme previsão expressa em lei, quanto no controle difuso.
Por fim, conforme visto, o Supremo Tribunal Federal nega aplicação às teorias da transcendência dos motivos determinantes (no controle abstrato) e da abstrativização (no controle difuso), contudo ressalto que decisões proferidas pela Suprema Corte, mesmo em controle concreto de constitucionalidade, são de incontestável e natural vocação expansiva.
BRASIL, Código Civil (2002). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 20.jan.2014
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BRASIL. Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Diário Oficial da União de 11 de novembro de 1999.
BRASIL. Lei n. 9.882, de 03 de dezembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1o do art. 102 da Constituição Federal. Diário Oficial da União de 06 de dezembro de 1999.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 197.917/SP. Relator: Ministro Mauricio Correia. DJ de 07/05/2004.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALVES, Brunna Melgaço. Controle de constitucionalidade: evolução até a irradiação dos efeitos da ratio decidendi Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 maio 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46589/controle-de-constitucionalidade-evolucao-ate-a-irradiacao-dos-efeitos-da-ratio-decidendi. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: JAQUELINA LEITE DA SILVA MITRE
Por: Elisa Maria Ferreira da Silva
Por: Hannah Sayuri Kamogari Baldan
Por: Arlan Marcos Lima Sousa
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