RESUMO: O presente trabalho pretende fazer uma análise conceitual e pragmática sobre o fenômeno do assédio moral organizacional, dada a relevância da questão para as relações contemporâneas de trabalho, evidenciada pela recorrência da matéria nas causas levadas ao conhecimento do poder judiciário, hodiernamente. Para tanto, com base no estudo histórico do controle exercido sobre os trabalhadores e dos métodos de gestão empresarial utilizados pelo empregador, faz-se um exame sobre o poder diretivo do empregador e os seus limites axiológico-materiais. Enfatiza-se, assim, a função dos princípios constitucionais como balizadores da administração empresarial, de modo a impedir a perpetuação de práticas abusivas, humilhantes e degradantes no trabalho, ressaltando, por fim, as medidas judiciais e extrajudiciais a serem tomadas para prevenir e coibir o assédio.
Palavras-Chave: Assédio moral organizacional; Poder diretivo; Limitação constitucional; Dignidade da Pessoa Humana.
1 INTRODUÇÃO
O assédio moral é questão que acomete parcela significativa das relações de trabalho contemporâneas, sendo tema recorrente nas reclamações intentadas pelo trabalhador perante a justiça laboral. Diante disso, e mormente pela falta de regulamentação legal específica sobre o tema, a doutrina e a jurisprudência pátrias se encarregaram de elaborar um conceito para o fenômeno, o qual evolui com o passar do tempo, tomando sempre como base os princípios de proteção ao trabalhador.
Todavia, observou-se que a maioria das lições sobre o assédio moral toma como base o seu caráter meramente individual, quando decorre da intenção deliberada do assediador em diminuir e perseguir a vítima ou forçá-la a deixar o trabalho, não abarcando as situações de assédio mais gravosas ao meio ambiente laboral.
Nesse sentido, o presente trabalho pretende trazer à baila considerações acerca do assédio moral no seu aspecto coletivo e organizacional, quando deriva de uma prática de gestão disseminada na empresa com o objetivo de aumentar a produtividade e lucratividade pela imposição agressiva de metas desarrazoadas, em evidente detrimento da dignidade do trabalhador.
Para tanto, discorre-se sobre o poder diretivo do empregador, com ênfase nos seus limites axiológicos-materiais estabelecidos na Constituição Federal, a fim de melhor identificar a extensão do problema e apontar as formas adequadas de combatê-lo com base nos institutos jurídicos disponíveis.
2 HISTÓRICO DE CONTROLE
2.1 Poder disciplinar
Considerando que a questão aqui abordada está inserida no contexto das relações de trabalho, e, consequentemente, das relações de poder, para o melhor entendimento dos fatores que levam à ocorrência do assédio moral, mostra-se imperiosa uma breve análise histórica das teorias do exercício do poder nas relações da sociedade de forma geral e sua evolução, bem como dos instrumentos de controle social da empresa.
Na obra Vigiar e Punir[1], Michel Foucault analisa o poder disciplinar na modernidade como uma nova tecnologia de dominação, aplicável às áreas mais variadas de espaços sociais com caráter de estabelecimentos disciplinares, tais como as escolas, as forças armadas, os hospitais, as fábricas e prisões.
O autor toma como base o estudo do sistema carcerário utilizado até então, empregando a ideia do modelo panóptico pensado por Bentham, o qual pretende romper com a prática das punições corporais para implantar, inicialmente nas prisões, a vigilância constante e generalizada, a inspeção central, a rigorosa disposição do espaço e o disciplinamento pelo trabalho.
Discorrendo sobre o tema do poder disciplinar Adriane Araújo Reis destaca que:
Nesses estabelecimentos, a vigilância sempre se apresenta como valioso instrumento disciplinar. Ela se exerce sobre os corpos dos indivíduos a ela submetidos e tem como finalidade a sua modelagem, mediante o controle e correção, para propiciara inserção útil e produtiva. Nesses espaços o interesse tem seu foco central fixado na pessoa do indivíduo submetido, deixando à sombra a motivação para sua submissão (aprendizagem, trabalho, expiação, saúde).[2]
Foucault ensina, ainda, que “A vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar”.[3]
Assim, as sociedades disciplinares - merecendo ênfase para nós o modelo de produção fabril introduzido pela Revolução Industrial, no qual o homem é considerado um fator de produção - se utilizam de instrumentos tecnológicos, tais como a racionalização do espaço, das atividades e do tempo para alcançar um aparelho eficiente. Somente desta forma seria possível atingir o objetivo maior, que é o aumento da produtividade por meio do adestramento, docilização e alienação dos homens.
Voltando-se especificamente para as grandes manufaturas, insurgentes no contexto avaliado por Foucault, o autor aduz que:
À medida que o aparelho de produção se torna mais importante e mais complexo, à medida que aumentam o número de operários e a divisão do trabalho, as tarefas de controle se fazem mais necessárias e mais difíceis. Vigiar torna-se então uma função definida, mas deve fazer parte integrante do processo de produção; deve duplicá-lo em todo o seu comprimento. Um pessoal especializado torna-se indispensável, constantemente presente, e distinto dos operários.[4]
Além disso, atrelada à vigilância – olhar hierárquico – coloca-se como elemento fundamental do poder disciplinar a sanção normalizadora, composta de pequenos mecanismos de penalização que visam o enquadramento do indivíduo num padrão pré-estabelecido. Assim dispõe Foucault:
Na essência de todos os sistemas disciplinares, [a sanção normalizadora] funciona um pequeno mecanismo penal. É beneficiado por uma espécie de privilégio de justiça, com suas leis próprias, seus delitos especificados, suas formas particulares de sanção, suas instâncias de julgamento. As disciplinas estabelecem uma “infra-penalidade”; quadriculam um espaço deixado vazio pelas leis; qualificam e reprimem um conjunto de comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por sua relativa indiferença.[5]
Nota-se, portanto, que atualmente ainda subsistem nas relações de poder, e em especial na seara trabalhista, traços marcantes da sociedade disciplinar inicialmente estudada por Foucault. Não obstante permaneça a ideia de vigilância constante e busca incessante de melhores resultados através da otimização do tempo, as técnicas utilizadas pelo empregador para controlar as ações dos seus empregados evoluíram com o passar do tempo.
As inovações tecnológicas aparecem como aliadas do empregador dentro do contexto do desenvolvimento da informática, microeletrônica e telecomunicações. Com esses instrumentos o controle é feito ininterruptamente, de forma mais eficiente e até à distância, sendo desnecessária uma estrutura física de vigilância quando se vale da rede interna ou internacional de computadores para examinar as informações recebidas e transmitidas pelo empregado.
Ademais, para fiscalizar a atividade e produtividade do trabalhador, recorre-se a uma nova forma de controle visual pelos circuitos internos de câmeras, bem como aos próprios dados registrados na empresa acerca da atuação de cada empregado no processo produtivo. Assim, diante da vigilância adjacente e da nova perspectiva do capitalismo, mais dinâmico, o empregado se vê constantemente pressionado a se aperfeiçoar e adquirir maior qualificação profissional, sob pena de perder a empregabilidade.
2.2 Modelos de gestão empresarial
Com o desenvolver da atividade industrial e empresarial, atrelada ao crescimento e mudanças de perspectiva do capitalismo moderno, as formas de controle sobre a produção e, consequentemente, os empregados se aperfeiçoaram, tornando-se insustentável a proposta de que a docilização do empregado por meio da vigilância constante e do controle de jornada seriam suficientes para obter altos níveis de produtividade e eficiência.
A crescente automação permite a racionalização da atividade do indivíduo, facilitando seu trabalho de modo a propiciar um melhor controle de qualidade e de desperdício, ao mesmo tempo em que determina o ritmo da fábrica, retirando do trabalhador o domínio sobre a produção e aprimorando os instrumentos de controle do empregador sobre o trabalho. O administrador, então, exerce o controle integral do indivíduo (atividade, produção, comportamento, conhecimento), de maneira a obter seu pleno ajustamento aos objetivos da fábrica[6].
Todavia, o capitalismo dinâmico caracterizado pela prestação de serviços e troca de mercadorias globalizadas dão ensejo a uma relativização do tempo e do espaço, que somente pode ser acompanhada por um empregado engajado e sintonizado com os interesses da empresa. A nova arma do empregador para aumento da sua lucratividade consiste, portanto, na mobilização geral dos trabalhadores, comprometidos com o processo produtivo e instigados pelos seus líderes a trabalhar em grupo para alcançar metas, sem, no entanto, formar laços de solidariedade entre si.
Para atingir tal patamar, os modelos de gestão empresarial passaram por uma evolução histórica, guiados pelo contexto econômico global e pelas necessidades do mercado a cada época, de tal sorte que o padrão atual de gestão e controle foi construído a partir da sobreposição e reinterpretação dos padrões dos modelos anteriores.
O primeiro modelo de gestão identificado pelos estudiosos da administração e aplicado no setor fabril foi idealizado por Taylor, que pretendeu em sua obra estabelecer leis universais para a organização dos trabalhadores braçais, tais como a Lei da Fadiga. Objetivando o aumento da produção, o Taylorismo introduziu nas grandes manufaturas o rigoroso controle do tempo despendido pelo empregado na realização de suas tarefas, bem como a remuneração por peça, forçando-o a elevar seus resultados para obter o ganho necessário à sua subsistência.
Com o tempo, o sistema de premiação para os mais eficientes implementado por Taylor perdeu a eficácia, mormente pelo contingente crescente de mão de obra, conjugado com a falta de domínio dos empregados sobre o modo de produção decorrente da centralização do conhecimento necessário para o andamento da cadeia produtiva nas mãos do empregador.
Ao taylorismo sucedeu o modelo criado por Henry Ford, que preservou a forma de gestão no que tange ao distanciamento entre a elaboração e a execução do trabalho, contudo revolucionou o setor fabril ao acrescentar a mecanização, consolidando o processo de trabalho baseado na cadeia de produção semiautomática. O fordismo prezava pela redução do tempo de produção (intensificação), otimização da capacidade produtiva de cada trabalhador por meio da inserção da esteira (produtividade) e redução do volume da matéria em curso (economicidade), sempre em busca da mais-valia relativa.
Esse modelo visava a produção em massa, ao mesmo tempo em que propiciava o consumo em massa, limitando a jornada de trabalho a menos horas e aumentando o salário dos empregados, sob um discurso de comunhão de interesses entre capital e trabalho. Em contrapartida, Henry Ford impunha aos seus empregados o regime máximo de controle e vigilância, chegando a atingir a vida privada destes quando possuía algum fator considerado prejudicial à saúde do sistema e à sociedade do consumo[7].
Contudo, verificou-se que o mercado, sozinho, não tinha a capacidade de regular completamente a economia, de modo que o keynesianismo veio para completar o pensamento de Henry Ford, agregando o Estado como interventor indispensável ao equilíbrio econômico e à manutenção da produção, o qual passou a investir, por exemplo, em transportes, saúde, seguridade social, a fim de dar subsídio e impulsionar o setor industrial.
A ruína desse modelo coincide com a crise econômica de 1970, a partir da qual o Estado do Bem-Estar Social começou a ser questionado por não mais conseguir custear programas assistenciais para todos os setores da comunidade, sob a justificativa de garantir a igualdade material dos cidadãos.
Opera-se o enxugamento da máquina estatal, que passa a atuar somente nas áreas mais importantes para a sociedade, aplicando ao mercado e às empresas o princípio da intervenção e regulação mínima. Sobre o tema, Adriane Araújo:
Os grandes complexos fabris, assentados em um único território, abrangendo todo o processo produtivo cedem lugar à empresa, mais ágil, composta internamente apenas por um pequeno núcleo de trabalhadores incumbidos da elaboração do produto final e assessorada por inúmeros fornecedores e prestadores de serviços disseminados pelo mundo (sistema de redes e contratadas). A prática de grandes estoques de materiais e produtos é abandonada, a produção segue o sistema do Just in time em que a atividade empresarial é provocada pela demanda.[8]
Nesse contexto se insere o toyotismo, que segue na direção contrária ao idealizado por Henry Ford na medida em que elabora uma forma de trabalho em grupo, baseada na autonomia do trabalhador e no controle de qualidade realizado por todos os componentes da empresa. Assim, o empregado aproxima-se do processo produtivo, conhecendo-o, discutindo melhoramentos e soluções para seus problemas com os colegas de base, e possuindo poderes, inclusive, para identificar falhas em qualquer fase.
Na dinâmica atual, a busca da qualidade total compreende o constante aprimoramento dos meios de produção e do próprio empregado, que não é mais tido como elemento alheio à organização do trabalho, mas como colaborador e, como tal, deve dedicar-se integralmente à empresa, ser competente, flexível, criativo e autônomo, preocupando-se e participando como se fosse o proprietário.
De grande valia os apontamentos feitos por Wilson Ramos Filho, em sua obra:
O novo sistema de legitimação capitalista busca a eficiência por intermédio da flexibilidade e pela defesa de um modelo no qual as empresas esbeltas, geridas por executivos, profissionais impregnados pela ideologia que se configurava hegemônica, trabalhariam em rede organizadas por equipes orientadas para a satisfação dos clientes e dos acionistas. Essa satisfação haveria de ser alcançada por intermédio da mobilização geral dos trabalhadores, seja através da motivação proveniente de seus líderes, seja através da precarização das relações na produção, que produzindo temor pela perda dos postos de trabalho induziria a subserviência à custa do aumento dos níveis de ansiedade no trabalho.[9]
A precarização laboral apontada pelo autor trata-se de estratégia organizacional que visa a um incremento da dominação sobre o trabalhador através de duas técnicas, a qualidade total e a avaliação individual. Tais técnicas induzem à maximização dos resultados e a um comprometimento impulsionado pela ansiedade, com metas e objetivos vinculados a processos de remuneração variável com pagamento por produtividade, por exemplo.[10]
Esse padrão de atuação retira a subjetividade do trabalhador, confundindo seus interesses com os da empresa, uma vez que o fantasma do desemprego estrutural obriga-o a arraigar-se em uma busca incessante da atualização do conhecimento pertinente à sua atividade produtiva, que é dinâmica, onde o mais bem sucedido nas avaliações institucionais não é necessariamente o mais qualificado.
A exaltação da competitividade, o discurso empresarial de guerra instaurado no ambiente laboral e a colocação do mercado como agente externo pressionador em constante mudança e atualização, são alguns dos fatores ensejadores do mal-estar no trabalho. Por outro lado, a falsa ideia de vantagem na autonomia e responsabilidade conferidas ao trabalhador, na verdade desencadeiam altos níveis de estresse, transtornos psicossociais que, pelo excesso de poder diretivo, podem chegar aos limites do assédio moral.
Assim, nota-se que o modelo atual de gestão desconcentrada, característico do atual espírito do capitalismo reproduz uma agressividade no local de trabalho decorrente da necessidade exagerada de alcance de metas e expectativas da empresa, contribuindo para as mais variadas espécies de violência psicológica, dentre as quais merece destaque o assédio moral, sob o enfoque organizacional.
3 ASSÉDIO MORAL
3.1 Conceito
O ambiente laboral por todas as suas características intrínsecas é propício ao desenvolvimento de diversas formas e técnicas de assédio moral, usadas pelo empregador, que, abusando do poder oriundo da relação de trabalho subordinada, gera uma violência psicológica extrema sobre seus empregados.
Nesse diapasão, afigura-se indispensável uma maior preocupação conceitual acerca do tema, mormente porque, no contexto social atual, a expressão assédio moral tem sido utilizada - às vezes equivocadamente - para identificar toda sorte de problemas, conflitos e agressões existentes no âmbito trabalhista, distanciando-se da ideia real do assédio como um processo sistemático e contínuo de hostilidades que no mais das vezes gera graves danos à saúde física e psíquica do empregado.
Inexiste no ordenamento jurídico brasileiro uma definição legal do que seja o assédio moral, de tal modo que os diversos conceitos aplicados atualmente derivam tanto de estudos doutrinários, da área jurídica, da psicologia e da medicina, quanto da própria jurisprudência, que se depara diariamente com questões relacionadas ao assédio no âmbito trabalhista.
A depender da perspectiva adotada por cada pesquisador, bem como de sua nacionalidade e da época em que viveu, foram adotadas terminologias para esse fenômeno, como bullying, mobbing, harassment moral, tendo se consolidado no Brasil o termo assédio moral para definir, inicialmente, os ataques repetitivos e intencionais de uma pessoa ou grupo a uma ou mais pessoas, com o objetivo de atormentá-la, prejudicá-la ou provocá-la, com efeitos nocivos à saúde.
No Brasil, o tema ganhou relevância social e acadêmica a partir de 2000, com a publicação da obra de Margarida Barreto[11] e dos ensinamentos de Marie-France Hirigoyen, psiquiatra francesa autora de “Assédio Moral: a violência perversa no cotidiano”. Tais apontamentos abordavam a questão sob a perspectiva dos efeitos psicológicos causados pelo assédio moral, tomando como base as características pessoais da vítima e do agressor, comumente apontado como perverso ou propenso a agredir.
Hirigoyen, em seu segundo livro sobre o tema assim conceitua:
(...) o assédio moral no trabalho é definido como qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude...) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho. Qualquer que seja a definição adotada, o assédio moral é uma violência sub-reptícia, não assinalável, mas que, no entanto, é muito destrutiva. Cada ataque tomado de forma isolada não é verdadeiramente grave; o efeito cumulativo dos microtraumatismos frequentes e repetidos é que constitui a agressão. [12]
Ao discorrer sobre o assédio moral, Rufino afirma que este,
caracteriza-se pela degradação deliberada das condições de trabalho em que prevalecem atitudes e condutas negativas dos chefes em relação a seus subordinados, constituindo uma experiência subjetiva que acarreta prejuízos práticos e emocionais para o trabalhador e a organização.[13]
Assim, nas palavras de Soboll:
Os comportamentos hostis ocorrem repetidas vezes e por um período de tempo estendido, quando se trata de assédio moral. Sua prática é permeada de intencionalidade no sentido de usar o poder contra outra pessoa ou grupo (OMS, 2002), com o objetivo de prejudicá-la ou excluí-la simbolizando a violação de regras que possibilitam um convívio social harmonioso, sendo, portanto, um ataque à moral.[14]
Trata-se, portanto, de um conceito amplo, que engloba tanto o assédio praticado pelo superior hierárquico da vítima (vertical descendente), a perseguição realizada pelos próprios colegas (horizontal), quanto aquele perpetrado pelos subordinados contra o superior hierárquico (vertical ascendente).
Sobre as condutas abusivas em si, Marie-France Hirigoyen[15] lista uma série de atitudes que configuram o assédio moral, dividindo-as em quatro categorias: deterioração proposital das condições de trabalho; isolamento e recusa de comunicação; atentado contra a dignidade e violência verbal, física ou sexual. Por sua vez, são condutas comuns de assédio moral na empresa observadas na práxis social o fornecimento de instruções confusas ou imprecisas, bloqueio do andamento do trabalho, atribuição de erros imaginários, ausência de designação de tarefas para o empregado, destrato dos trabalhadores, imputação metas inatingíveis, etc.
Como as relações pessoais, em especial as de natureza trabalhista, são dinâmicas e possuem especificidades, torna-se inviável a elaboração de uma lista extenuante de condutas concretas que caracterizam o assédio moral. Se admitida tal proposição deixariam de ser contempladas situações não previstas que sejam tão ou mais gravosas que as já identificadas, em patente prejuízo ao trabalhador, cabendo, portanto, aos Tribunais, caso a caso, verificar a presença do elemento assediador.
3.2 Elementos
Do conceito tradicional de assédio moral, voltado basicamente para a sua forma interpessoal e individual, a doutrina extrai os elementos e características definidores deste fenômeno, que auxiliam na construção de parâmetros para identificação das práticas de assédio moral no trabalho, quais sejam: habitualidade, pessoalidade, dano psíquico e intencionalidade.
O assédio moral, assim como o bullying empresarial e o mobbing, possui como atributo imperativo para sua configuração a reiteração das práticas abusivas, que são perpetuadas e repetidas por um período considerável de tempo. Por isso, o assédio moral se apresenta como um processo evolutivo e gradual, que se intensifica e gera consequências gravosas somente quando considerados em sua integralidade. A habitualidade é, portanto, indispensável para a verificação do assédio moral, sob pena de, se desconsiderada, culminar a penalização de agressões pontuais e generalizar o conceito, banalizando-o.
Em seus estudos iniciais, Leymann definia o mobbing ou terror psicológico como interação social através da qual um indivíduo é atacado por um ou mais indivíduos, diariamente e por um período de, no mínimo, seis meses, levando-o a uma posição quase indefesa e de alto risco de demissão.[16] Todavia, com a evolução dos estudos sobre o tema tal concepção foi superada, uma vez que o que evidencia a ocorrência do assédio moral é o seu caráter procedimental, sendo temerária a adoção de determinada frequência ou duração como parâmetros definidores do assédio, por não atenderem à complexidade da realidade fática e das diferentes possibilidades de sua expressão.
Também como elemento do assédio moral tem-se a pessoalidade, sustentando alguns autores que o assédio é obrigatoriamente orientado a um alvo específico, seja ele um único indivíduo ou um grupo determinado de pessoas que, de alguma forma, se diferenciam do restante do grupo de trabalhadores. A partir desse atributo é que se distingue o assédio moral de outras formas de agressão, tais como gestão por injúria e gestão por estresse.
A gestão por injúria seria o “comportamento despótico de certos administradores, despreparados, que submetem os empregados a uma pressão terrível ou os tratam com violência, injuriando-os e insultando-os com total falta de respeito”[17]. A gestão por estresse, por sua vez, é observada quando os atos do empregador têm como objetivo o melhoramento do desempenho dos trabalhadores e acabam por tornar o ambiente de trabalho extremamente estressante, inexistindo direcionamento agressivo para determinada pessoa.
Contudo, não podemos concordar com tal distinção. Atualmente o assédio se materializa de variadas formas, inclusive no seu contorno coletivo, o qual é tão ou mais frequente que o assédio interpessoal. Assim, não se pode restringir o conceito de assédio moral à perseguição psicológica, atribuindo às vítimas do acosso psíquico empresarial a culpa por terem sido molestadas.
A violência, no caso do assédio moral coletivo empresarial, por exemplo, é estrutural, decorrente do poder diretivo dos empregadores e deriva dos modos de gestão característicos do capitalismo contemporâneo, recaindo sobre todos os empregados indistintamente, independentemente da individualidade de cada empregado.
Ademais, mesmo nos casos de assédio individual, é desaconselhável o foco na pessoa do agressor, bem como na da vítima. Sobre o primeiro, ressalte-se que o assédio não deve ser concebido como produto da ação de um “perverso narcisista” ou agressor patológico, pois qualquer pessoa pode vir a ser um assediador, desde que se encontre em crise na empresa ou sinta-se ameaçada. Por outro lado, jamais pode ser considerado como uma atitude isolada de determinado chefe ou trabalhador, afastando a responsabilidade da empresa, quando esta contribuiu, no mínimo, com a omissão das autoridades internas competentes para resolver o problema.
Quanto à vítima, apontada muitas vezes como pessoa ou grupo mais vulnerável ao assédio moral, temos que essa classificação, além de deslocar para o assediado a responsabilidade para a ocorrência dos fatos, desconsidera a possibilidade daquela ser selecionada sem nenhum motivo a si vinculado, como nos casos de que o agressor escolhe um “bode expiatório” para servir de exemplo aos demais.
O terceiro elemento apontado como componente do assédio moral é a intencionalidade, sendo considerada como assediante toda conduta habitual que objetive, deliberadamente, constranger a vítima a solicitar a sua auto-exclusão da empresa (assédio moral estratégico) ou simplesmente causar transtornos psíquicos visando destruir a saúde mental da vítima (assédio moral perverso).
Desta feita, parte da doutrina considera essencial, além da perpetuação no tempo, o objetivo de destruir a pessoa, fragilizando-a, minando-a e desestabilizando-a perante o ambiente de trabalho, a fim de tornar-lhe impossível a mantença do contrato com o empregador. Nas palavras de Rezende (2009):
Elas [atitudes assediadoras] visam, em um primeiro momento, à criação de condições que propiciem a humilhação da vítima e sua submissão a uma série de disposições abusivas e, em determinadas condições, não somente esta desestabilização física e psicológica, mas seu desligamento voluntário do local de trabalho.
Contudo, data vênia, tal posicionamento é passível de crítica sob a ótica do direito do trabalho contemporâneo, pois, segundo este, é irrelevante para a caracterização do assédio moral a demonstração de existência de intenção deliberada de prejudicar, enquadrar ou excluir o assediado, haja vista que o empregador é responsável pelo ambiente de trabalho saudável e isento de assédio.
Ademais, ainda que a intenção do empregador seja somente aumentar a produtividade, eficiência e lucratividade dos negócios e, para tanto, se utilize de práticas nefastas no ambiente de trabalho, há a criação de uma atmosfera de labor repleta de hostilidade e tensão, potencialmente danosa. Assim, o ato é antijurídico independentemente da motivação da empresa que pratique ou que permita que pratiquem em seu nome, pois o que importa é o resultado.
Segundo ensina Muçoçah, sob uma perspectiva constitucional do tema, tem-se que:
A motivação pode fazer parte da conduta, mas não a delimita; o terror psicológico e os possíveis danos causados à vítima são efeitos da conduta, e não a conduta per se. [...] Sua integridade física e psíquica, em nossa visão, encontra-se ameaçada – potencialmente ameaçada, ao menos, vez que houve violação sistemática dos direitos de personalidade.[18]
Noutro giro, impõe ressaltar que tradicionalmente os efeitos da violência psicológica são colocados como aspectos definidores do assédio moral. In verbis:
A prática dessa violência interfere nas condições psíquicas da vítima, em face da violação de sua personalidade, de sua liberdade, desarmonizando o ambiente de trabalho e desequilibrando o contrato de trabalho. Esta conduta desestabiliza a vítima e a deixa fragilizada, acarretando efeitos negativos na saúde psíquica e até física do empregado, o qual inicia involuntariamente um processo degradante e de queda de produção, além de um isolamento que pode acarretar na perda do emprego, refletindo problemas familiares e sociais de grande monta.[19]
Contudo, com a evolução do conceito do assédio moral, resta evidente que a comprovação do dano psíquico eventualmente sofrido, não obstante contribua na análise e apuração do caso concreto, mormente para fins de cálculo de indenização, não constitui elemento caracterizador do assédio. Merece acolhida o pensamento de Muçoçah, ao esclarecer que:
Assim, não se pode tomar a causa pelo seu efeito: o desrespeito à dignidade da pessoa humana que seja reiterado, sistemático, protraindo-se no tempo, poderá causar danos psíquicos ou mesmo físicos a uma pessoa. Quando se atenta diretamente contra a dignidade humana, podemos ter efeitos vários: dano moral, dano psíquico, dano físico, dano existencial ou, simplesmente, dano algum.[20]
Assim, fazendo-se uma análise crítica acerca dos tradicionais elementos caracterizadores do assédio moral, devem estes ser interpretados com base também nas novas formas de assédio, dentre as quais merece destaque o assédio moral organizacional. Noutro passo, diante do contexto jurídico atual de constitucionalização das demais áreas do direito, imperioso o enfoque do assédio moral como uma prática atentatória aos direitos fundamentais, em especial ao direito ao trabalho em todos os seus aspectos e à dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, o assédio constituiria um comportamento hostil de violência moral reiterada, voltados contra a dignidade da pessoa do empregado. Vejamos:
Sendo certo que os direitos fundamentais não são aplicáveis apenas no âmbito da relação indivíduo-Estado, traduzindo, deste modo, a eficácia vertical dos direitos fundamentais, mas, desenganadamente, estão também vocacionados para a incidência no campo das relações indivíduo-indivíduo, determinando-se a eficácia horizontal desses direitos, parece evidente que as práticas assediantes, todas elas vulneradoras de direitos fundamentais, devem receber pronta repulsa, seja originária de comportamento de agente público, seja proveniente de ato particular.[21]
Nesse diapasão, para a caracterização do assédio se faz necessária a verificação da reiteração das condutas, perpetuadas no tempo e com um viés procedimental, bem como da idoneidade destas em, pelo menos no patamar hipotético, serem lesivas, incidindo negativamente sobre a esfera de direitos subjetivos dos empregados, seja diretamente ou pela degradação do meio ambiente laboral.
3.3 Assédio Moral Interpessoal e Organizacional
Conforme se observa, o conceito de assédio moral engloba tanto a sua forma interpessoal quanto a organizacional, espécies de um gênero que guardam semelhança no que tange aos requisitos supramencionados. Todavia, cada vertente possui particularidades que merecem atenção na melhor identificação do problema no caso concreto, bem como na adoção das medidas preventivas e repressivas mais adequadas.
Em ambas há a participação da empresa como instituição, contribuindo para a perpetuação do assédio. Contudo, a diferença crucial entre elas verifica-se na postura tomada pelo empregador diante das práticas atentatórias à dignidade e saúde de seus empregados. No assédio interpessoal a empresa coloca-se como agente externo, que sabe da existência das práticas entre seus funcionários, mas se omite, tirando vantagem delas. Vejamos:
Embora os aspectos individuais também possam ser definidores da ocorrência do assédio moral (Chappell e Di Martino, 2006), a organização do trabalho desempenha um papel central para sua concretização, pois, sendo este um processo prolongado, é necessário que exista permissividade, conivência ou estímulo por parte da organização para que as hostilidades perdurem por semanas, meses, até anos (Soboll, 2004). Assim, as organizações são co-responsáveis quando ocorre uma situação de assédio moral, por mais pessoalizada e localizada que esta se apresente.[22]
No assédio organizacional, o assédio é promovido pela própria empresa, através de políticas de gestão, de modo que nem sempre é possível identificar a figura do assediador, uma vez que as práticas abusivas decorrem da própria administração.
A conduta da empresa passa a ser, portanto, comissiva no lugar de omissiva, à medida que se apropria da relação de subordinação existente no âmbito trabalhista para assegurar o cumprimento de metas irrealistas e a adesão às normas organizacionais através do uso de práticas de humilhação, pressões demasiadamente estressantes, constrangimentos, etc.
O conceito do assédio moral organizacional elaborado por Thereza Cristina Gosdal é elucidativo para entender a diferença estrutural entre o assédio moral na forma como já é conhecido pela doutrina e jurisprudência e o assédio organizacional. In verbis:
O assédio moral é um conjunto sistemático de práticas reiteradas, inseridas nas estratégias de métodos de gestão, por meio de pressões, humilhações e constrangimentos, para que sejam alcançados determinados objetivos empresariais ou institucionais, relativos ao controle do trabalhador ( aqui incluído o corpo, o comportamento e o tempo de trabalho), ou ao custo do trabalho,ou ao aumento de produtividade e resultados, ou à exclusão ou prejuízo de indivíduos ou grupos com fundamentos discriminatórios.[23]
Seja no estabelecimento de metas ou na intensidade imposta na prestação laboral sob a justificativa do discurso de guerra do mercado, o assédio moral na empresa se legitima com maior facilidade entre os trabalhadores, como prática necessária ao desenvolvimento econômico e continuidade no emprego. Os estilos gerenciais fundados na violência psíquica evidenciam uma cumplicidade da organização com seus gestores e representantes, de forma que o abuso do poder diretivo se incorpora como um dispositivo de gestão.
Com base nessa ideia é possível identificar várias diferenças entre o assédio organizacional e o assédio interpessoal. A principal delas é, sem dúvida, a finalidade das práticas perpetradas contra o trabalhador, haja vista que a intenção do primeiro é, em regra, humilhar, diminuir e fragilizar o empregado ou forçá-lo a desligar-se da empresa (aspecto excludente), enquanto que o segundo, não obstante também se utilize de técnicas que retiram a subjetividade do empregado, possui como objetivo principal o engajamento excessivo do trabalhador, que se submete a situações degradantes para atingir maiores níveis de produtividade.
A segunda peculiaridade que serve como elemento de distinção entre as supramencionadas formas de assédio é a figura do agressor. No assédio moral interpessoal o agressor pode ser qualquer pessoa ou grupo de pessoas inseridas no contexto do trabalho, sendo possível, inclusive, o assédio vertical ascendente e horizontal. Entretanto, o assédio organizacional, ocorrerá sempre na forma descendente, haja vista que a empresa, na figura do próprio empregador ou por meio de gerentes e representantes, impõe a política de gestão abusiva a seus subordinados, sendo comum, inclusive, a disseminação desta de uma maneira tal a impossibilitar a identificação dos agressores.
Nessa perspectiva infere-se, ainda, que os alvos do assédio em cada uma das modalidades são distintos, sendo este um dos motivos que leva a alguns doutrinadores não admitirem o assédio na sua forma organizacional.[24] Ocorre que no assédio interpessoal o alvo dos atos humilhantes é um indivíduo específico ou grupo de indivíduos previamente escolhidos, em regra por uma característica pessoal, ao passo que no assédio organizacional a prática é genérica, atingindo todos os empregados que se sentem pressionados a cumprir as ordens e metas abusivas da empresa.
Por fim, conforme já mencionado, a forma de participação da empresa como instituição diverge nos dois tipos de assédio. Em um ela simplesmente omite-se, permitindo a continuidade das discriminações enquanto que no outro estimula e promove a ocorrência das práticas de assédio moral, como elemento motivacional e como forma de exercer o controle absoluto sobre seus empregados.
Logo, no assédio moral organizacional os métodos de gestão empresarial aplicados evidenciam um abuso de direito pelo empregador, ao se aproveitar do poder diretivo que lhe é juridicamente reconhecido nas relações laborais de subordinação para uma finalidade que não é tutelada pelo direito, mas ao revés, rechaçada pelos princípios balisares do direito constitucional. Por isso, faz-se mister uma análise mais detalhada sobre os limites do poder diretivo, conforme tópico abaixo.
4 O PODER DIRETIVO DO EMPREGADOR
4.1 Subordinação e limites do poder diretivo do empregador
Dentre os requisitos indispensáveis à caracterização da relação empregatícia, expressamente previstos na Consolidação das Leis Trabalhistas, em seus artigos 2º e 3º, está a prestação de serviços na modalidade subordinada, sendo o Direito do Trabalho o ramo especializado que regula as relações de subordinação existentes entre empregado e empregador.
Segundo Stadler a “subordinação” é “o marco diferencial da relação empregatícia em relação a outras modalidades de relação de produção, como a servidão e a escravidão, que já foram hegemônicas na história dos sistemas socioeconômicos ocidentais”.[25]
Assim, o empregado, ao celebrar o contrato de trabalho, fica sujeito à condição de se submeter às regras e determinações que lhes são impostas, posto que estas derivam do próprio regime, a partir de então estabelecido. Logo, a subordinação a que se faz referência é a subordinação jurídica, de natureza contratual e objetiva, que incide sobre o modo de realização do serviço e não sobre a pessoa do trabalhador, não havendo que se falar, necessariamente, em subordinação econômica ou técnica.
Dessa relação subordinada é que se extrai o poder diretivo do empregador, que assume os riscos da atividade econômica e dirige a prestação pessoal do serviço, compreendendo não só a organização das atividades na empresa, como também, o poder de controlar e disciplinar[26] o trabalho de acordo com os fins do empreendimento. Dentre as suas funções estão as de regulamentar as relações de emprego, distribuir, dirigir, orientar, fiscalizar, e impor as sanções disciplinares ao empregado faltoso.[27]
O exercício de tal poder é indispensável à boa condução das atividades empresariais, pois esta é dinâmica e envolve uma coletividade de fatores e agentes, sendo inviável a definição prévia, de forma exaustiva de todos os atos a serem executados pelo trabalhador na sua jornada. Assim, o conteúdo do contrato de trabalho é definido somente em termos gerais, sendo materializado ao longo da prestação do serviço sob as ordens e instruções do empregador, haja vista que, independentemente da função desempenhada, ela deve se amoldar aos fatores que incidam sobre a atividade, tais como, demanda de mercado, novas tecnologias empregadas, reestruturação de pessoal, etc.
Trata-se do jus variandi, prerrogativa que o empregador tem de tomar decisões no sentido de alterar unilateralmente nuances do contrato de trabalho ou tratar de situações nele não previstas, com o fito de atingir maior produtividade e lucratividade, objetivos legítimos da atividade empresarial. Por isso, é juridicamente válida a adoção de medidas no âmbito laboral que visem a otimização de resultados, tais como estabelecimento de metas, concessão de promoção a determinado empregado, alteração de jornada de trabalho e transferência de empregado para outro posto de serviço, por exemplo.
Destaque-se, sobremaneira, que o exercício do poder diretivo não é ilimitado, sua extensão é estabelecida pelo próprio contrato de trabalho, bem como pela legislação, negociações coletivas e, em especial, dos princípios gerais de direito e dos princípios que gerem o direito do trabalho, sempre em consonância com as normas constitucionais fundamentais, tais como os valores sociais do trabalho, princípio da dignidade da pessoa humana, direito à saúde e segurança do trabalhador, etc.
Nesse sentido, insta ressaltar que a Constituição Federal, logo no seu artigo 1º institui o Estado Democrático de direito, apontando como fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, assim como traz em seu artigo 6º os direitos sociais à saúde e ao trabalho.
O artigo 170 da Carta Magna, por sua vez, estabelece que a ordem econômica funda-se na valorização do trabalho humano e tem por finalidade assegurar a todos uma existência digna conforme os ditames da justiça social. Resta claro, portanto, que o jus variandi do empregador encontra limite nos princípios constitucionais, de tal sorte que eventuais atos praticados pelo empregador, sob a justificativa do exercício do poder diretivo, que tenham como resultado a degradação do ambiente de trabalho serão, na verdade, abusivas.
Contudo, em razão da desigualdade de forças entre as partes da relação jurídica, o ambiente laboral é propício à ocorrência destes abusos, aqui consubstanciados no assédio moral organizacional. Não raras vezes o empregador deixa de dirigir a atividade desempenhada para reger a própria pessoa do empregado, retirando-lhe a sua subjetividade através de modelos de gestão extremos, desvirtuando o instituto da subordinação jurídica para transformá-lo em verdadeira sujeição ou submissão, conceitos incompatíveis com os princípios trabalhistas de proteção ao trabalhador.[28]
Sobre a linha tênue que existe entre a o exercício do poder legítimo e o vedado pela ordem jurídica, esclarece Adriane Reis Araújo:
Nessa espécie contratual, compra-se, por um determinado tempo, a força de trabalho de alguém (mas não a sua pessoa) e, no entanto, o vendedor segue junto com o objeto da venda e indiscutivelmente tende estruturalmente a sofrer efeitos abusivos do vínculo contratual. A luta do Direito do Trabalho, que marca a sua especificidade desde o seu surgimento como ramo próprio do Direito, resume-se justamente na busca por estabelecer, mediante princípios de ordem pública, liberdade na coerção econômica, igualdade na subordinação jurídica e garantir àquele que vive do trabalho o respeito à sua dignidade humana.[29]
Merecem destaque as lições de Muçoçah, in verbis:
A ideia de domesticar, de transformar a vontade da vítima na vontade do próprio agressor ou de, em outras palavras, utilizar o poder diretivo do empregador para transformar e nivelar as distintas individualidades presentes num ambiente de trabalho constitui, sem sombra de dúvidas, um atentado à dignidade da pessoa humana e aos seus direitos de personalidade.[30]
Assim, é possível concluir que as formas de gestão utilizadas pela empresa na organização de sua atividade econômica somente serão válidas na medida em que atendam à função social do trabalho, valorizando-o como forma de construção da subjetividade e dignidade humana. O que se vê, entretanto, é o inverso, onde o labor é visto como um processo precário e flexível, com jornadas prolongadas, marcado pela confusão entre os interesses da empresa e do empregado, o qual, para manter-se no mercado, precisa responder desumanamente às demandas de um sistema cada vez mais restrito e competitivo, sustentado pelas ideias de colaboração, qualificação, eficiência e empreendedorismo.
4.3 Abuso do poder do empregador e o abuso de direito
No contexto do abuso do poder diretivo do empregador, que finda por configurar o assédio moral no trabalho, faz-se mister discorrer, rapidamente, sobre o instituto do abuso de direito no ordenamento jurídico vigente.
O Código Civil brasileiro, em seu artigo 187, aduz que: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”.
Trata-se, portanto, de um ato que na sua forma é originalmente lícito, haja vista que não atenta diretamente contra nenhum dispositivo legal agindo o sujeito, em tese, no exercício regular do seu direito. Entretanto, a conduta que se baseia em uma norma permissiva, ultrapassa os limites dos princípios que regem o ordenamento, violando, inclusive, os valores que anteriormente justificaram o reconhecimento daquele direito.
Difere-se do ato ilícito stricto sensu, que constitui a desobediência a um dever e afronta direta a dispositivo legal, mas é igualmente antijurídico a partir do momento que viola os limites axiológico-materiais que permeiam as relações de trabalho, tais como o princípio da boa-fé. Na situação aqui versada tem-se que, o empregador ao exercer o seu poder diretivo estaria praticando ato formalmente lícito, contudo, o conteúdo das ordens por si emanadas acaba por tornar-lhe antijurídico. Vejamos:
É de se observar, por oportuno, que uma conduta poderá ser, num primeiro momento lícita e chegar ao ilícito no momento em que o titular de um direito vai além do que seria razoável esperar, situação que se verifica quando o empregador, no exercício regular de seu poder diretivo, age com rigor excessivo com seu(s) subordinado(s), extrapolando os limites estritos do seu poder, causando-lhe dano à sua esfera extrapatrimonial. [31]
A jurisprudência dos tribunais pátrios vem admitindo a configuração de assédio moral oriundo do abuso do poder diretivo. In verbis:
ASSÉDIO MORAL INDENIZAÇÃO Constatado que a reclamante foi vítima de assédio moral, consistente na imposição de metas de vendas sabidamente inatingíveis e a consequente diminuição das comissões recebidas, atos estes que extrapolaram o limite do poder diretivo do empregador e atentaram contra a dignidade da empregada, prejudicando sua auto-estima, correta a decisão que a condenou a reparar o dano. (RO 0203700-2620095070014, Relator: Paulo Régis Machado Botelho, J. em 12/09/2011, Primeira Turma, DEJT 16/09/2011)
Assim sendo, resta claro que o empregador, ao administrar o empreendimento, não pode se pautar pela insensibilidade, desconsiderando a condição humana do empregado, ao submetê-lo a um meio ambiente de trabalho degradante e potencialmente causar sérios danos à sua saúde física e psíquica, mediante práticas caracterizadoras de assédio moral organizacional, sob pena de configurar o abuso de direito nas relações de trabalho.
5 FORMAS DE MANIFESTAÇÃO DO ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL
5.1 Gestão por estresse e políticas de metas abusivas
Com base nas considerações acima tecidas, é fácil observar que a prática do assédio moral organizacional constitui-se em uma das mais nefastas enraizadas na práxis empresarial característica do capitalismo contemporâneo. Segundo conceito de Adriane Reis:
(...) configura o assédio moral organizacional o conjunto de condutas abusivas, de qualquer natureza, exercido de forma sistemática durante um certo tempo, em decorrência de uma relação de trabalho e que resulte no vexame, humilhação ou constrangimento de uma ou mais vítimas com a finalidade de se obter o engajamento subjetivo de todo o grupo às políticas e metas da administração, por meio de ofensa a seus direitos fundamentais, podendo resultar em danos morais, físicos ou psíquicos. [32]
Rúbia Zanotelli, aprimorando o conceito elaborado pela autora aduz que:
O assédio moral organizacional compreende, assim, um conjunto sistemático de práticas reiteradas, provindas dos métodos de gestão empresarial, que tem por finalidade atingir determinados objetivos empresariais relativos ao aumento de produtividade e à diminuição do custo do trabalho, por meio de pressões, humilhações e constrangimento aos trabalhadores na empresa.[33]
Logo, no assédio moral organizacional, em regra, a finalidade não reside na diminuição do trabalhador em si, mas, ao revés, no seu envolvimento subjetivo com as regras de administração, pressionando-o à resignação aos parâmetros da empresa, que correspondem a agressivas políticas mercantilistas de busca incessante de altos níveis de produção.
Como ensina Ebérle[34], com base no discurso da guerra econômica e diante da incorporação de novas tecnologias, flexibilização dos contratos de trabalho e disseminação do desemprego estrutural, as empresas se utilizam de políticas de gestão que incitam a competitividade e a lucratividade em sua maior expressão, dando ensejo a uma precarização do trabalho, onde as relações humanas se tornam utilitárias e superficiais, permeadas de falta de solidariedade, de individualismo e de neutralização da mobilização coletiva em face dos sofrimentos de outrem.
Nas palavras de Hirigoyen “sob o pretexto de estabelecer uma concorrência estimulante, mas também com o objetivo de destruir alianças, o sistema atual de gerência tende a instigar os grupos uns contra os outros”[35]. Logo, instaura-se um ambiente de competitividade extrema, que obriga o trabalhador ao cumprimento máximo dos trabalhos impostos, por mais penoso que sejam.
Sobre o tema, serve de exemplo o caso das novas organizações produtivas, que, após a concretização de fusões e incorporações, não querem assumir os custos da demissão de parte dos trabalhadores que compunham o quadro da empresa incorporada. Para esquivar-se desta responsabilidade, a incorporadora mantém duas ou mais pessoas na mesma posição hierárquica e responsáveis pelo mesmo setor, de modo que se instaura uma competição e rivalidade entre elas, criando uma atmosfera propícia para o assédio, na qual sobreviverá aquele que mais comprometer a sua dignidade para atingir os objetivos da empresa.
Mari-France Hirigoyen[36], ao abordar o tema em palestra proferida no Brasil, enfatizou que a alta exigência dos tempos modernos gera uma insegurança no mercado de trabalho, que estaria levando as pessoas a comportamentos desleais para proteger o emprego. Em suas palavras: “É a globalização do sofrimento no mundo do trabalho. A verdade é que a transformação no mundo do trabalho e a preocupação com a eficiência econômica geram novas patologias. E o assédio moral é apenas um dos aspectos.”
O método mais utilizado pelas empresas para atingir tal fim é o da gestão por estresse, fundado na pressão psicológica diretamente ligada ao estabelecimento de metas sem critérios de bom-senso ou de razoabilidade, gerando uma constante opressão no meio ambiente de trabalho, que se irradia da administração para os gerentes, encarregados e os demais trabalhadores, dando ensejo a um clima de terror no ambiente laboral, degradando-o.
Sobre a questão da falsa política motivacional empresarial, Soboll enfatiza que:
Para assegurar o cumprimento de metas irrealistas e a adesão às normas organizacionais, as empresas podem tomar como recursos práticas de humilhação, exposições exageradas, pressões intensas, constrangimentos, ameaças e o estímulo à competição para além da ética.[37]
Assim, o assédio moral consiste em práticas institucionais reiteradas de ampliação dos níveis de ansiedade e estresse nos empregados, tanto pelo estabelecimento desarrazoado de metas quanto pelo modo e intensidade impostos na prestação laboral e, principalmente, nos mecanismos de controle, comumente humilhantes e degradantes.
Na jurisprudência pátria são recorrentes os casos em que se verifica a utilização das mais variadas formas de humilhação e constrangimento para coibir o trabalhador a atingir as metas de produtividade abusivamente estabelecidas, tais como fixação de apelidos para os empregados que não atingiram a meta, divulgação pública dos resultados de todos os empregados, cobranças agressivas e humilhantes na frente de todos, obrigação de pagar prendas, isolamento do empregado ou grupo de trabalho menos produtivo, etc. Vejamos repositórios jurisprudenciais de grande valia para o entendimento da questão:
ADMINISTRAÇÃO POR ESTRESSE - DANO MORAL. A adoção de estratégias empresariais agressivas, baseadas no cumprimento de metas elevadas, aliadas a imposição de jornadas exaustivas, sob a constante ameaça da perda do emprego, com a submissão dos trabalhadores a intensa pressão psicológica, vem sendo classificada pela doutrina como "administração por estresse" ou assédio organizacional, técnica gerencial voltada exclusivamente a obtenção do lucro, em prejuízo da dignidade humana dos empregados, representando uma espécie de assédio moral coletivo, por afetar, indistintamente, um grupo de empregados, expondo-os a um meio-ambiente de trabalho degradado pelas constantes humilhações praticadas pelos superiores hierárquicos. [...] . (880200801516001 MA 00880-2008-015-16-00-1, Relator: JOSÉ EVANDRO DE SOUZA, Data de Julgamento: 03/02/2010, Data de Publicação: 12/03/2010)
ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL. GESTÃO POR ESTRESSE. STRAINING. PRÁTICA CONSISTENTE NO INCENTIVO AOS EMPREGADOS DE ELEVAREM SUA PRODUTIVIDADE, POR MEIO DE MÉTODOS CONDENÁVEIS, COMO AMEAÇAS DE HUMILHAÇÕES E RIDICULARIZAÇÕES. DEVIDA INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS COLETIVOS. REDUÇÃO DO QUANTUM FIXADO PELA INSTÂNCIA A QUO.A gestão por estresse, também conhecida como assédio moral organizacional ou straining consiste em uma "técnica gerencial" por meio da qual os empregados são levados ao limite de sua produtividade em razão de ameaças que vão desde a humilhação e ridicularização em público até a demissão, sendo consideravelmente mais grave que o assédio moral interpessoal (tradicional) por se tratar de uma prática institucionalizada pela empresa, no sentido de incrementar seus lucros às custas da dignidade humana dos trabalhadores. Caracterizada tal situação, é devida indenização pelo dano moral coletivo causado, que deve ser suficiente, sobretudo, para punir a conduta (função punitiva) e para desincentivar os infratores (função pedagógica específica) e a sociedade (função pedagógica genérica) a incorrerem em tal prática, mas também para proporcionar, na medida do possível, a reparação dos bens lesados, como preceitua o art. 13 da Lei 7.347/85. Assim, tendo em vista a amplitude das lesões e suas repercussões, razoável a redução do quantum indenizatório para R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). Recurso ordinário do Sr. Alessandro Martins não admitido, por deserto. Recurso ordinário da Euromar conhecido e, no mérito, parcialmente provido.137.347(772200801616005 MA 00772-2008-016-16-00-5, Relator: JOSÉ EVANDRO DE SOUZA, Data de Julgamento: 13/04/2011, Data de Publicação: 26/04/2011)
Desta feita, o assédio moral organizacional se difunde na empresa como instituição, atingindo todos os empregados indistintamente, os quais pelo temor da humilhação são impulsionados a produzir mais e se calar diante de quaisquer irregularidades. Nesse ponto, merece destaque a lição de Adriane Araújo[38], in verbis:
O assédio moral abrange também o trabalhador que não é diretamente submetido a condições vexatórias, afinal, aquele que testemunha a conduta abusiva por vias oblíquas sofre a mesma cobrança de engajamento e é acuado na vivência do medo e sofrimento de seu colega.[39]
Por óbvio, o contrato de trabalho, fundado na subordinação e superioridade econômica de uma das partes, sempre causou ansiedade e estresse para o polo mais fraco da relação. Todavia, o que aqui se pretende fazer é a distinção entre o estresse comum e a violência psíquica oriunda de estratégias empresariais fundadas no medo que conduzem a submissão do empregado a toda e qualquer ordem do empregador, levando aquele a se expor a limites extremos para o alcance das metas impostas. Nesses casos, o estresse ocupacional surge como consequência do assédio.
5.2 Conseqüências (Síndrome de burn out)
Conforme já supramencionado, em razão das suas características intrínsecas, no assédio moral empresarial[40] ou coletivo, para sua configuração é prescindível a prova do efetivo dano psíquico sofrido em razão dos modelos de gestão abusivos, pois é a conduta concreta da empresa que evidencia o assédio, e não o efeito dos atos do assediador na subjetividade de cada indivíduo.
Logo, ainda que incapaz de gerar consequências graves ao psicológico do empregado, atenta contra a dignidade de todos aqueles genericamente atingidos pela degradação do meio ambiente de trabalho. Isso se dá pela pulverização da doutrina do terror e pressão por exigências excessivas, numa organização de trabalho dominada pela política do rendimento máximo, despreocupada com o fator humano da produção.
Conforme ensina Muçoçah:
O assédio moral é uma prática reiterada que atenta contra direitos e contra a dignidade da pessoa humana. Esse é o seu conceito. O dano, seja ele físico ou psíquico, é o efeito, a consequência da conduta assediante. Essa confusão parece permear não apenas a doutrina, como a jurisprudência brasileira também.[41]
Assim, as principais conseqüências do assédio moral organizacional são a mitigação da dignidade humana do trabalhador[42] e a degradação do meio ambiente laboral, o qual é tutelado constitucionalmente pelos artigos 200, inciso VIII e 225, §1º, circunstâncias que ensejam potencial dano à saúde dos trabalhadores.
Longe de serem considerados elementos indispensáveis à identificação do problema, os efeitos gerados pelo assédio no psicológico do empregado, tais como as doenças psicossomáticas, possuem extrema relevância para o estudo do tema, mormente pela sua gravidade, chegando, por vezes, a conduzir o empregado à inatividade.
Nesse sentido, uma das moléstias que recentemente vem atingindo negativamente a saúde mental dos empregados pela exigência desequilibrada de metas nas relações laborais é a síndrome de Burnout. Esta pode ser considerada como doença de trabalho, capaz de ocasionar a incapacidade temporária ou definitiva para o trabalho, e consiste, basicamente, numa espécie de esgotamento físico e mental do empregado oriundo dos níveis de estresse e terror a que foi submetido.
Para melhor compreensão do tema, cite-se o pensamente da Cândido (2011),
O Burnout é a reação psíquica de caráter depressivo, precedida do esgotamento físico e mental crônico, resultante da dedicação excessiva e estressante ao trabalho. Suas principais características são a ausência de motivação e a insatisfação profissional. O perfil dessa síndrome é marcado por condutas negativas como, por exemplo, a perda de responsabilidade com tarefas desenvolvidas e perda de motivação para realizar as atividades profissionais, ou, traduzindo de outra maneira, é uma reação ao estresse ocupacional crônico. [43]
Segundo Dallegrave Neto[44], o assédio, independentemente de sua forma de expressão (moral lato sensu, organizacional ou até sexual), constitui-se na principal causa de contração da síndrome de burnout, uma enfermidade que vem afetando milhares de trabalhadores anualmente em todo o país.
Contudo, ressaltamos, que o assédio moral organizacional é o que mais se compatibiliza com a doença, mormente porque tem como principal forma de expressão a gestão por estresse, que leva o empregado ao esgotamento físico e mental. Serve de exemplo o caso citado por Soboll, no qual o empregado descreve as condutas abusivas do empregador da seguinte maneira:
Então não é assim em um evento, é uma coisa que toda reunião o gerente fala assim ‘vocês não querem bater a meta, por quê? Estão cansados? Vocês têm que se aposentar. Quem que trabalhar, trabalhe; quem não quer, peça a conta’. E começa assim todo o tipo de pressão. O gerente chega e escracha, humilha, dá bronca. Então a intensificação do assédio moral hoje é na cobrança do atingimento de metas. É uma exigência que a pessoa atinge em um mês, atinge em outro, depois no outro já não dá muito certo. Ele vai se esgotando. Ele vai ficando profissionalmente esgotado, a bateria dele vai abaixando, chega uma hora que ele não agüenta mais. – representante sindical local, sexo masculino. (sic)[45]
Mister destacar, ainda, que o Regulamento da Previdência Social, Decreto n. 3.048/99, coloca a referida síndrome como acidente de trabalho, de tal modo que os reflexos do assédio moral são encontrados também na seguridade social, recaindo sobre a sociedade como um todo.
Segundo explica Juliana Teixeira Esteves[46], atualmente é grande a demanda previdenciária por afastamento do trabalho por depressão que leva, inclusive, a tentativas de suicídio, em razão do qual, se for demonstrado o nexo causal entre a depressão e o trabalho desenvolvido pelo empregado, fará jus ao auxílio-acidente e à correspondente estabilidade provisória por doença de trabalho.
Por todo o exposto, é possível inferir que o empregador não pode se valer de políticas de gestão abusivas fundadas no excesso de cobrança e humilhações para o atingimento de metas excessivas, haja vista que estas ferem a dignidade humana e podem gerar consequências gravíssimas à saúde do trabalhador. Sua postura deve ser, consequentemente, a de zelar pela integridade física e psíquica do trabalhador no ambiente de trabalho, adequando suas políticas empresariais às normas e preceitos constitucionais atinentes à matéria.
5.3 Medidas preventivas e repressivas
Recentemente, Marie-France Hirigoyen expôs o problema do assédio moral empresarial em palestra ministrada no Brasil[47]. Para ela, é necessária a reintrodução da dimensão humana no trabalho, comunicando com clareza as estratégias da empresa aos empregados, convivendo com conflitos para que as pessoas possam falar e discordar, além de acabar com o elitismo nas empresas.
Segundo a autora, o ponto fundamental para a solução da questão está na obrigação do empregador em tomar medidas que assegurem a segurança e saúde dos trabalhadores, asseverando que “O direito francês passou da lógica de reparação para uma obrigação de prevenção. A prevenção é uma verdadeira oportunidade de modernização das relações sociais humanas”.[48]
Inicialmente, imperioso que se faça o deslocamento do foco do problema, passando da pessoa dos gestores para a própria empresa, considerada como um órgão. Tal medida é de grande valia, pois, muitas vezes os próprios agentes do assédio moral empresarial são, simultaneamente, agressores e agredidos, vítimas do processo empresarial decorrente dos métodos de gestão amplamente implantados nas empresas, bem como da ideologia neoliberal que os fundamentam. [49]
Logo, para melhor combater o assédio organizacional, interessante que sejam explorados pelo movimento sindical, por exemplo, os aspectos do sistema produtivo e da forma de organização do trabalho, sendo secundária a análise das características do agressor imediato.
Com efeito, numa empresa que tem o assédio moral como política de gestão para aumento de produtividade, o afastamento do gerente responsável pelo setor à época não será medida eficaz para eliminá-la. A responsabilização, portanto, deve recair sobre a empresa, que tem o dever legal de zelar pelo meio ambiente laboral.
Adriane Reis Araújo[50] destaca a ineficácia dos meios internos de repressão ao assédio moral, tais como a regulamentação da questão por meio da elaboração de Códigos de Ética, por exemplo. Como bem ensina a autora, tais códigos raramente são aplicados e só servem para isentar a empresa de sua responsabilidade, haja vista que repudiam no âmbito ideal o assédio, instaurando a falsa ideia de que a empresa não contribui para este, imputando a conduta exclusivamente ao “agressor perverso”.
O recurso aos órgãos oficiais de fiscalização para a solução de conflitos envolvendo o assédio moral é o que tem se mostrado mais eficiente para combater o fenômeno, tal como a denúncia às Superintendências Regionais do Trabalho ou a apresentação do caso ao Ministério Público do Trabalho.
Ademais, no que se refere às medidas repressivas, o maior diferencial do assédio moral organizacional em relação ao assédio interpessoal encontra-se nos mecanismos de tutela. Por tratar-se de um fenômeno com amplitude coletiva, incidindo sobre todos os empregados da empresa, ultrapassa a esfera de interesses do trabalhador ou trabalhadores assediados, abrindo caminho para a tutela coletiva de direitos, a fim de que a prática seja extirpada dos métodos de administração da empresa.
No assédio moral organizacional as ações individuais ajuizadas pelos trabalhadores são pouco eficazes para inibir os atos abusivos, haja vista que, em regra, a lucratividade almejada com a estratégia do assédio se sobrepõe aos prejuízos suportados.
A intervenção do Ministério Público do Trabalho é, nesses casos, indispensável para alterar a organização do trabalho e as políticas de gerenciamento organizacional lesivas, se valendo, para tanto, de prerrogativas constitucionais que servem à sua atuação, tanto no âmbito extrajudicial – instauração de inquérito civil, celebração de termo de ajustamento de conduta, etc – quanto no judicial, através, por exemplo, do ajuizamento de ação civil pública, que possui efeitos erga omnes.
Por fim, ressalte-se que, pelo seu maior potencial lesivo, considerando o número de atingidos e a instauração da política do terror, forçoso admitir que o assédio moral organizacional deve ser tratado com maior rigor que o de natureza interpessoal, tanto na fixação de multas administrativas quanto na cominação do dano moral coletivo correspondente.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme se observa do disposto até então, no contexto do capitalismo neoliberal, dinâmico e polivalente, a empresa impõe no ambiente laboral a busca da produtividade e lucratividade a qualquer custo, instaurando um clima de competitividade exacerbada e terror psicológico sobre os empregados.
As políticas de gestão empresariais atuais, ao fixar metas inatingíveis e utilizar-se de métodos humilhantes e agressivos para controlar o alcance de tais objetivos, praticam verdadeiro assédio moral em face dos empregados, mitigando a sua dignidade.
Logo, o exercício do poder diretivo juridicamente conferido aos empregados, se faz de maneira abusiva, desrespeitando as balizas axiológicas constitucionais, mormente o princípio da dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e o direito ao saudável meio ambiente laboral.
Por isso, se faz mister a aplicação das medidas preventivas e repressivas reconhecidas pelo ordenamento jurídico a fim de extirpar tal prática da gestão organizacional empresarial atual, mormente pelos potenciais danos psicológicos e físicos que podem dela incorrer.
Dentre as medidas direcionadas ao combate ao assédio moral organizacional tem se mostrado eficaz, em especial, a tutela coletiva dos direitos do trabalhador, mas ainda é tímido o reconhecimento dos tribunais pátrios acerca da lesividade do assédio na sua faceta organizacional. Deste modo, impõe-se uma atuação mais eficaz do ordenamento jurídico pátrio em entender o fenômeno sob a perspectiva da preservação do meio ambiente de trabalho, rechaçando atos de gestão que retirem integralmente a subjetividade do trabalhador.
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[1] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 34. Ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
[2] ARAÚJO, Adriane Reis. O Assédio Moral organizacional. São Paulo: Ltr, 2012, p. 26.
[3] Idem, op. cit., p. 147.
[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 34. Ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 146.
[5] Idem, op. cit., p. 148
[6] ARAÚJO, Adriane Reis. O Assédio Moral organizacional. São Paulo: Ltr, 2012.
[7] ARAÚJO, Adriane Reis. O Assédio Moral organizacional. São Paulo: Ltr, 2012.
[8] ARAÚJO, Adriane Reis. O assédio moral organizacional e medidas internas preventivas e repressivas. In: GOSDAL, Thereza Cristina; SOBOLL, Lis Andrea Pereira. Assédio moral interpessoal e organizacional. São Paulo: Ltr, 2009. p. 55
[9] RAMOS FILHO, Wilson. O assédio moral empresarial como modo de gestão de recursos humanos. O Trabalho: Doutrina em Fascículos Mensais, Curitiba, n. 149, jul. 2009, p. 5103.
[10] Idem, op. cit., p. 5103-5104
[11] A autora foi a pioneira a tratar do tema no Brasil, abordado em sua Dissertação de Mestrado em Psicologia Social, defendida em 22 de maio de 2000 na PUC/ SP, sob o título "Uma jornada de humilhações"
[12] HIRIGOYEN, Marie-france. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 17.
[13] RUFINO, Regina Célia Pezzuto. Assédio moral no âmbito da empresa. São Paulo: Ltr, 2006, p. 61.
[14] SOBOLL, Lis Andrea Pereira (Org.). Violência Psicológica e Assédio Moral no Trabalho: Pesquisas Brasileiras. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008, p. 32.
[15] HIRIGOYEN, Marie-france. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 108-109.
[16] GOSDAL, Thereza Cristina; SOBOLL, Lis Andrea Pereira (Org.). Assédio Moral Interpessoal e Organizacional. São Paulo: Ltr, 2009, p. 24.
[17] HIRIGOYEN, Marie-france. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 28.
[18] MUÇOUÇAH, Renato de Almeida Oliveira. Assédio Moral Coletivo nas Relações de Trabalho. São Paulo: Ltr, 2011, p. 136.
[19] RUFINO, Regina Célia Pezzuto. Assédio moral no âmbito da empresa. São Paulo: Ltr, 2006, p. 61.
[20] MUÇOUÇAH, Renato de Almeida Oliveira. Assédio Moral Coletivo nas Relações de Trabalho. São Paulo: Ltr, 2011, p. 129.
[21] SILVA NETO, Manoel Jorge e. Teoria Jurídica do Assédio e Sua Fundamentação Constitucional. São Paulo: Ltr, 2012, p. 68.
[22] SOBOLL, Lis Andrea Pereira (Org.). Violência Psicológica e Assédio Moral no Trabalho: Pesquisas Brasileiras. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008, p. 36.
[23] GOSDAL, Thereza Cristina; SOBOLL, Lis Andrea Pereira. Assédio moral interpessoal e organizacional. São Paulo: Ltr, 2009. p. 37.
[24] V. tópico anterior.
[25] STADLER, Denise Fátima. Assédio Moral: Uma Análise da Teoria do Abuso de Direito Aplicada ao Poder do Empregador. São Paulo: Ltr, 2008, p. 26.
[26] V. tópico 2.1
[27] RAMOS, Luis Leandro Gomes; GALIA, Rodrigo Wasem. Assédio Moral no Trabalho: O abuso do poder diretivo do empregador e a responsabilidade civil pelas danos causados ao empregado - atuação do Ministério Público do Trabalho. São Paulo: Livraria do Advogado, 2012, p. 149.
[28] STADLER, Denise Fátima. Assédio Moral: Uma Análise da Teoria do Abuso de Direito Aplicada ao Poder do Empregador. São Paulo: Ltr, 2008, p. 27.
[29] ARAÚJO, Adriane Reis. O Assédio Moral organizacional. São Paulo: Ltr, 2012, p. 94.
[30] MUÇOUÇAH, Renato de Almeida Oliveira. Assédio Moral Coletivo nas Relações de Trabalho. São Paulo: Ltr, 2011, p. 130.
[31] RAMOS, Luis Leandro Gomes; GALIA, Rodrigo Wasem. Assédio Moral no Trabalho: O abuso do poder diretivo do empregador e a responsabilidade civil pelas danos causados ao empregado - atuação do Ministério Público do Trabalho. São Paulo: Livraria do Advogado, 2012, p. 162-163.
[32] ARAÚJO, Adriane Reis. O assédio moral organizacional e medidas internas preventivas e repressivas. In: GOSDAL, Thereza Cristina; SOBOLL, Lis Andrea Pereira. Assédio moral interpessoal e organizacional. São Paulo: Ltr, 2009. p. 76
[33] ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de. Assédio moral organizacional. Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. São Paulo, v. 23, n. 276, jun. 2012, p. 25.
[34] EBÉRLE, André Davi; SOBOLL, Lis Andrea Pereira; CREMASCO, Maria Virgínia Filomena. Compreensões sobre o assédio moral no trabalho a partir da psicodinâmica do trabalho. In: GOSDAL, Thereza Cristina; SOBOLL, Lis Andrea Pereira. Assédio moral interpessoal e organizacional. São Paulo: Ltr, 2009. p. 109
[35] HIRIGOYEN, Marie-france. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 42.
[36] Hirigoyen apud Juliana Teixeira Esteves 16º Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Conamat) realizado entre 2 e 4 de maio de 2012, p. 43.
[37] SOBOLL, Lis Andrea Pereira (Org.). Violência Psicológica e Assédio Moral no Trabalho: Pesquisas Brasileiras. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008, p. 43.
[38] A autora destaca, ainda, em sua obra que “A sobrecarga de trabalho e modulação da remuneração rompe laços de solidariedade entre os membros da equipe, que são impulsionados a seguir no trabalho a despeito da dificuldade alheia. Nesse cenário o grupo facilmente chega a hostilizar qualquer integrante com dificuldades pessoais comprometedoras da produção”.
[39] ARAÚJO, Adriane Reis. O Assédio Moral organizacional. São Paulo: Ltr, 2012, p. 77.
[40] Denominação utilizada pelo autor Wison Ramos Filho para definir o assédio moral organizacional
[41] MUÇOUÇAH, Renato de Almeida Oliveira. Assédio Moral Coletivo nas Relações de Trabalho. São Paulo: Ltr, 2011, p. 135.
[42] Conforme Engel (apud Rúbia Zanotelli de Alvarenga, op. cit.) o princípio da dignidade da pessoa humana “constitui fundamento de humanização do trabalho, envolvendo o respeito à pessoa do trabalhador no ambiente de trabalho, com evidentes reflexos fora dele, sobretudo na vida familiar”.
[43]CANDIDO, Tchilla Helena. Assédio Moral: acidente laboral. São Paulo: LTr, 2011, p. 235; apud ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de. Assédio moral organizacional. Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. São Paulo, v. 23, n. 276, jun. 2012, p. 30.
[44] DALLEGRAVE NETO, José Afonso. Responsabilidade civil no direito do Trabalho. 3. Ed. São Paulo: LTr, 2009; apud ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de. Assédio moral organizacional. Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. São Paulo, v. 23, n. 276, jun. 2012, p. 33
[45] SOBOLL, Lis Andrea Pereira (Org.). Violência Psicológica e Assédio Moral no Trabalho: Pesquisas Brasileiras. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008, p. 41.
[46] ESTEVES, Juliana Teixeira. Análise do assédio moral no ambiente de trabalho em tempos de globalização. LTr Suplemento Trabalhista., São Paulo, v. 48, n. 128, p. 659.
[47] 16º Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Conamat) realizado entre 2 e 4 de maio de 2012, mencionado por Juliana Teixeira Esteves, ibidem.
[48] ESTEVES, Juliana Teixeira. Análise do assédio moral no ambiente de trabalho em tempos de globalização. LTr Suplemento Trabalhista., São Paulo, v. 48, n. 128, p. 660.
[49] RAMOS FILHO, Wilson. O assédio moral empresarial como modo de gestão de recursos humanos. O Trabalho: Doutrina em Fascículos Mensais, Curitiba, n. 149, jul. 2009, p. 5109.
[50] ARAÚJO, Adriane Reis. O assédio moral organizacional e medidas internas preventivas e repressivas. In: GOSDAL, Thereza Cristina; SOBOLL, Lis Andrea Pereira. Assédio moral interpessoal e organizacional. São Paulo: Ltr, 2009. p. 65.
Advogada, graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Pós-graduada em Residência Judicial pela Escola de Magistratura do Rio Grande do Norte.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DANTAS, Luana Karla de Araújo. Assédio moral organizacional: uma análise das políticas de gestão e do abuso do poder diretivo do empregador Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 maio 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46600/assedio-moral-organizacional-uma-analise-das-politicas-de-gestao-e-do-abuso-do-poder-diretivo-do-empregador. Acesso em: 22 nov 2024.
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