RESUMO: Este trabalho visa analisar, de forma breve e sucinta, o atual cenário do sistema penitenciário brasileiro e a violação de direitos fundamentais dos presos. A Constituição Federal de 1988, ao tratar dos direitos fundamentais da pessoa humana, assegura aos presos o respeito à integridade física e moral. Todavia, a realidade vivenciada hodiernamente dentro do sistema prisional é de completa negação e violação de direitos basilares à vida humana, ferindo, deste modo, a dignidade da pessoa humana, vetor axiológico fundamental que norteia a ordem jurídica.
Palavras-chave: Sistema penitenciário. Direitos Fundamentais. Dignidade da pessoa humana. Ressocialização.
1. INTRODUÇÃO
O atual cenário do sistema penitenciário brasileiro encontra-se marcado por violações constantes de direitos fundamentais básicos do ser humano. A Constituição Federal de 1988 é afrontada e direitos mínimos nela estabelecidos não são cumpridos. O respeito à integridade física e moral dos presos é relegado a segundo plano e as condições mínimas necessárias a uma vida digna no cárcere não são observadas.
Assim, o indivíduo preso, teoricamente destinatário de direitos fundamentais dispostos no ordenamento jurídico pátrio, na prática, se vê desprovido de qualquer amparo e assistência estatal e social.
Nessa linha de entendimento, a dignidade da pessoa humana, fundamento sobre o qual está alicerçada a República Federativa do Brasil, é brutalmente afrontada e como consequência direta desse cenário assustador de violação de direitos visualiza-se a falta de ressocialização do preso, uma das finalidades da pena.
O preso, esquecido e marginalizado pela sociedade, para ela retorna e a maneira como for tratado no interior do cárcere indubitavelmente refletirá no seu comportamento ao sair.
O presente artigo tem por objetivo efetuar uma breve reflexão acerca do tema, sem pretensão de exauri-lo, tendo em vista a magnitude de sua complexidade.
2. TUTELA DOS DIREITOS DOS PRESOS: ORDENAMENTO JURÍDICO INTERNO E COMUNIDADE INTERNACIONAL
A privação da liberdade do indivíduo como resposta a uma infração penal cometida não autoriza o Estado a impor restrições além daquelas previamente dispostas na legislação pátria. A pessoa humana infratora da lei penal não está submetida a invasões estatais na sua esfera particular além daquelas expressamente estabelecidas na ordem jurídica. Os direitos fundamentais não atingidos pela sentença devem ser respeitados e garantidos pelo Poder Público.
No que se refere ao tema, René Dotti nos ensina que
Ao condenado devem ser resguardados os direitos não afetados pela sentença. São reconhecidos como principais: a) o direito ao tratamento; b) o direito de ser informado de seus direitos e obrigações; c) o direito de contato com o mundo exterior; d) o direito à educação intelectual, moral e religiosa; e) o direito ao trabalho; f) o direito à segurança.
Normalmente, a relação dos direitos e deveres é estabelecida em legislação própria. No entanto, existem alguns direitos que pela sua magnitude são previstos desde a Constituição e arrolados nos códigos Penal e de Processo. É possível exemplificar com as leis fundamentais do Brasil (art.153, §14). (DOTTI, 1998, p. 231)
Concernentemente ao tema, Alexandre de Moraes também leciona que:
A Constituição Federal, ao proclamar o respeito à integridade física e moral dos presos, em que pese a natureza das relações jurídicas estabelecidas entre a Administração Penitenciária e os sentenciados a penas privativas de liberdade, consagra a conservação por parte dos presos de todos os direitos fundamentais reconhecidos à pessoa livre, com exceção, obviamente, daqueles incompatíveis com a condição peculiar de preso, tais como liberdade de locomoção (CF, art.5º, XV), livre exercício de qualquer profissão (CF, art.5º, XIII), inviolabilidade domiciliar em relação a cela (CF, art.5º, VI), exercício dos direitos políticos (CF, art.15, III). Porém, o preso continua a sustentar os demais direitos e garantias fundamentais, por exemplo, à integridade física e moral (CF, art.5º, III, V, X, LXIV), à liberdade religiosa (CF, art.5º, VI), ao direito de propriedade (art.5ºXXII), entre inúmeros outros e, em especial, aos direitos à vida e dignidade humanos. (MORAES, 2013, p. 301/302)
O direito à liberdade, ou seja, o direito de ir e vir, é que está atingido pela sentença penal condenatória que impõe uma pena privativa da liberdade. Não há proporcionalidade, razoabilidade, legalidade e legitimidade para o Poder Público agir além desse parâmetro.
A Constituição Cidadã de 1988 previamente fixou garantias fundamentais para a tutela dos apenados. A vedação à tortura, ao tratamento desumano ou degradante; a proibição de penas cruéis; o respeito à integridade física e moral dos presos, são todas disposições normativas de caráter constitucional, resguardadas como núcleo essencial de direitos protegidos na qualidade de cláusulas pétreas e, ademais, dotadas de capacidade para aplicação plena e imediata. Por tais motivos e, levando-se em consideração o fundamento da dignidade da pessoa humana, não há espaço para a negação desses direitos.
Ainda no que tange ao tema, rica e preciosa é a lição trazida por Rogério Greco:
O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral (art.38 do CP). Talvez esse seja um dos artigos mais desrespeitados de nossa legislação penal. A toda hora testemunhamos, pelos meios de comunicação, a humilhação e o sofrimento daqueles que por algum motivo se encontram em nosso sistema carcerário. Não somente os presos provisórios, que ainda aguardam julgamento nas cadeias públicas, como também aqueles que já foram condenados e cumprem pena nas penitenciarias do Estado. Na verdade, temos problemas em toda a federação. Motins, rebeliões, mortes, tráfico de entorpecentes e de armas ocorrem com frequência em nosso sistema carcerário. A pena é um mal necessário. No entanto, o Estado, quando faz valer o seu ius puniendi, deve preservar as condições mínimas de dignidade da pessoa humana. O erro cometido pelo cidadão ao praticar um delito não permite que o Estado cometa outro, muito mais grave, de trata-lo como um animal. Se uma das funções da pena é a ressocialização do condenado, certamente num regime cruel e desumano isso não acontecerá. As leis surgem e desaparecem com a mesma facilidade. Direitos são outorgados, mas não são cumpridos. O Estado faz de conta que cumpre a lei, mas o preso, que sofre as consequências pela má administração, pela corrupção dos poderes públicos, pela ignorância da sociedade, sente-se cada vez mais revoltado, e a única coisa que pode pensar dentro daquele ambiente imundo, fétido, promíscuo, enfim, desumano, é em fugir e voltar a delinquir, já que a sociedade jamais o receberá com o fim de ajuda-lo. (GRECO, 2014, p.512/513)
Não se pode olvidar, nesse sentido que o princípio da legalidade aplicada na esfera do poder público apenas o autoriza a agir respaldado pela lei, de modo que, conforme garantido constitucionalmente, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão por lei. Adstrito ao princípio da legalidade, não pode o Estado submeter o agente encarcerado a condições e restrições de seus direitos, além dos parâmetros legais.
O agente transgressor da lei não perde, com a prática delituosa, a qualidade intrínseca de ser um ser humano e, portanto, detentor de direitos conferidos pela Constituição Federal, pelos tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte, bem como pela legislação infraconstitucional.
Ora, não é razoável, nem inerente ao senso comum que haja legitimidade para que o Poder Público, agindo no exercício do seu direito de punir o transgressor da lei, provoque novas violações da lei, ao deixar de cumprir direitos básicos do apenado.
A vedação à submissão do homem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante é previsto na Declaração de Direitos Humanos, integrante do sistema global de proteção aos direitos humanos.
O tratamento indigno a que tantas vezes é submetido o preso no Brasil não se distancia de ser uma pena cruel, vedada no ordenamento.
No que concerne às penas cruéis e infamantes, cumpre trazer à baila a lição de René Dotti “Ao progresso cultural das civilizações relativamente aos direitos humanos, deve corresponder a abolição das penas que perante a consciência universal se mostram indignas do processo de evolução ética da personalidade”. (DOTTI, 1998, p.159)
A Constituição Federal estabelece como direito fundamental a proibição das penas cruéis (artigo 5º, XLVII da CF/88), garantindo ao indivíduo preso a integridade física e moral (artigo 5º, XLIX, CF/88).
É imperioso destacar que o reconhecimento da força normativa da Constituição, uma das características do Neoconstitucionalismo, determina a aplicação e efetivação dos direitos nela consagrados. Desse modo, de nada adianta enumerar direitos, sem que estes sejam devidamente cumpridos e observados.
Verifica-se, todavia, que, embora a Constituição estabeleça como direito fundamental a garantia da integridade física e moral dos presos, na prática, a prisão se resume a um depósito de gente “coisificadas” e furtadas de seus direitos, valores e dignidade.
Os sistemas de proteção aos direitos humanos, global e regional, compreendem um arcabouço normativo que corrobora e reafirma a necessidade de garantia dos direitos do homem. Nesse sentido, observa René Dotti:
O regime jurídico de garantias envolve tais direitos desde a concepção até após a morte, quando em favor dos parentes do de cujus existe o direito de conservar a boa memória.
Os pactos internacionais de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais se inserem num vasto programa de proteção. Além da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) outros diplomas de grande expressão sintetizam fórmulas visando a satisfação das necessidades fundamentais do Homem. (DOTTI, 1998, p.166)
Alexandre de Morais, acerca das regras internacionais de proteção aos direitos dos reclusos, elenca a rica legislação:
Regras para tratamento de presos da Comissão Internacional Penitenciária, 1929, com alterações em 1933 e aprovação pela Liga das Nações em 1934; Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, 1948 (no tocante à proibição de tortura, tratamento cruel, desumano e degradante); “Regras mínimas” para tratamento de reclusos, aprovada em Genebra pela ONU, em 1955; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, 1966 (arts. 9º e 10); Recomendação do IV Congresso das Nações Unidas em Kyoto, para aplicação das regras mínimas, 1970; Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, 1984 (art.14 – no tocante à indenização); Regras mínimas para o tratamento de reclusos, publicação do Centro de Direitos do Homem das Nações Unidas - GE 94-15440); Convenção Americana de Direitos Humanos, 1969 (Pacto de San Jose da Costa Rica – arts.52 e 62). (MORAES, 2013, p. 305)
O artigo1º da Lei de Execução Penal clarifica o objetivo da execução penal, qual seja: efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado, denotando, desta forma, a primazia na necessidade de ressocialização do indivíduo.
A Lei das Execuções Penais (Lei 7.210/84) dispõe de forma expressa acerca dos direitos básicos dos detentos. Dentre eles, destacam-se os direitos: alimentação e vestimenta fornecidas pelo Estado; instalações arejadas e higiênicas; visita da família e amigos; ser chamado pelo nome, sem discriminação; trabalho remunerado; assistência médica (englobando o atendimento médico, farmacêutico e odontológico); assistência educacional; assistência social; assistência religiosa; assistência judiciária; proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; entrevista pessoal e reservada com o advogado (conforme se extrai do artigo 41).
A supramencionada Lei é inegavelmente assistencialista e possui disposições suficientes para tratamento digno mínimo ao apenado. O obstáculo, todavia, que impede resultados positivos no sistema penitenciário reside na efetividade e representação das disposições normativas no aspecto da realidade e do mundo dos fatos.
Em conformidade com a LEP, o objetivo da assistência ao preso e ao internado consiste em prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade (artigo 10 da Lei 7.210/84).
Cumpre ressaltar que ao tratar da assistência à saúde, a legislação prevê que esta terá caráter preventivo e curativo e que, na ausência de aparelhamento necessário no estabelecimento penal, a assistência deverá ser prestada em outro local, demonstrando, dessa forma a prioridade na recuperação da saúde do indivíduo (artigo 14 da Lei 7.210/84).
Não se pode olvidar, nesse contexto de direitos dos presos, a importância da assistência religiosa dentro dos presídios, responsável por contribuir de modo significativo na função de ressocialização do indivíduo, conferindo esperança e credibilidade na recuperação da pessoa humana.
O trabalho no interior dos presídios também compreende fator de relevante importância no processo de cumprimento de pena e na sua função ressocializadora, visto que, além de reduzir a ociosidade, tornando útil o tempo na prisão, serve para valorizar a pessoa humana e dignificar o indivíduo. Além disso, também é útil para, ainda que minimamente, auxiliar na formação profissional com vistas à obtenção de emprego ao sair do sistema carcerário, bem como em razão da contraprestação econômica auferida. Não bastassem todos esses benefícios, o trabalho ainda funciona como um benefício executório, remindo parte do tempo da pena.
Desse modo, não há dúvidas acerca da existência de legislação protetiva destinada aos presos. A comunidade internacional e o ordenamento interno formularam disposições normativas suficientes para a tutela dos indivíduos durante o cumprimento de pena. O que se verifica, todavia, de forma lamentável, é a negação ao cumprimento desses direitos e a inércia das autoridades em investir em políticas públicas e modificar esse estado de crise, que só aumenta.
3. VIOLAÇÃO DA DIGNIDADE DOS PRESOS
A dignidade da pessoa humana, na qualidade de valor axiológico que norteia todo o ordenamento jurídico, também é aplicada na relação jurídico-punitiva entre Estado e o indivíduo preso. Assim, não se pode conceber que a dignidade do agente privado de liberdade seja diuturnamente desrespeitada pelo próprio Poder Público.
O infrator da lei precisa receber a punição devida, mas a sua dignidade e seus direitos devem ser assegurados ao longo de todo o período de execução da pena.
No tocante ao tema, há que mencionar, inclusive, a já difundida teoria da co-culpabilidade, circunstância atenuante inominada, que atribui parcela da culpa do delito praticado à própria sociedade, tantas vezes omissa no seu dever de contribuir para a inserção social.
Analisando o contexto hodierno acerca do sistema penitenciário brasileiro, não raras vezes detecta-se que a perda da dignidade do homem parece ser inserida na sentença condenatória juntamente com a quantidade de pena a que foi submetido.
No que concerne ao alcance da pena, interessante é a observação feita por Raquel Ramalhete ao traduzir a obra “Vigiar e Punir” de Michel Foucault:
Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então, se exerce? A resposta dos teóricos – daqueles que abriram, por volta de 1780, o período que ainda não se encerrou – é simples, quase evidente. Dir-se-ia inscrita na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições. (FOUCAULT, 1987, p. 18)
Não é mais concebível no atual estágio de desenvolvimento da sociedade, que a pena adquira contornos brutais de negação da dignidade humana e tratamento do ser humano como “coisa” ou animal.
Com relação à origem das penas, destaca o professor Julio Fabbrini Mirabete que “Perde-se no tempo a origem das penas, pois os mais antigos grupamentos de homens foram levados a adotar certas normas disciplinadoras de modo a possibilitar a convivência social”. (MIRABETE; FABBRINI, 2009, p.229)
Ainda, assevera o Autor que:
A pena de prisão teve sua origem nos mosteiros da Idade Média, como punição imposta aos monges ou clérigos faltosos, fazendo com que se recolhessem às suas celas para se dedicarem, em silencio, à meditação e se arrependerem da falta cometida, reconciliando- se assim com Deus. essa ideia inspirou a construção da primeira prisão destinada ao recolhimento de criminosos, a House of Correction, construída em Londres entre 1550 e 1552, difundindo-se de modo marcante no século XVIII. (MIRABETE; FABBRINI, 2009, p.229)
O Autor Rogério Greco, ao tratar sobre o tema recorda que:
Na verdade, a primeira pena a ser aplicada na historia da humanidade ocorreu ainda no paraíso, quando, após ser induzida pela serpente, Eva, além de comer do fruto proibido, fez também com que Adão o comesse, razão pela qual, além de serem aplicadas outras sanções, foram expulsos do jardim do Éden.
Depois da primeira condenação aplicada por Deus, o homem, a partir do momento em que passou a viver em comunidade, também adotou o sistema de aplicação de penas toda vez que as regras da sociedade na qual estava inserido eram violadas. (GRECO, 2014, p.478/479)
Continuando, o Autor assevera ainda “As penas, anteriormente, tinham uma natureza aflitiva, ou seja, o corpo do delinquente pagava o mal que ele havia praticado. Era torturado, açoitado, crucificado, esquartejado, esfolado vivo, enfim, todo tipo de sevícias recaídas sobre seu corpo físico”. (GRECO, 2014, p.485)
Por todo o exposto, é evidente o desrespeito à dignidade do preso e, embora não mais se apliquem penas de açoitamento, crucificação e esquartejamento físico, por exemplo, a alma e o psicológico do detento são esquartejadas, dilaceradas e açoitadas com o tratamento recebido.
4. FUNÇÃO RESSOCIALIZADORA DA PENA
O Sistema Penitenciário Brasileiro, é certo, está em crise e falido e encontra-se completamente impotente de realizar a função basilar ressocializadora da pena.
Os presos, marginalizados e estigmatizados pela sociedade e pelo poder público, são privados não apenas do seu direito à liberdade, mas também de toda a sorte de dignidade e complexo de direitos fundamentais garantidos pela ordem jurídica.
Como consequência direta desse desprezo pela vida humana, o sistema penitenciário resta completamente desprovido de suporte necessário para reinserir o indivíduo no convívio social. Registre-se que a crise do sistema penitenciário é agravada pela problemática da superlotação dos presídios, depósito humano esquecido pelo Estado e sociedade.
No tocante ao tema ora analisado, o festejado Cézar Roberto Bitencourt reflete:
Os altos índices de reincidência têm sido, historicamente, invocados como um dos fatores principais da comprovação de efetivo fracasso da pena privativa de liberdade, a despeito da presunção de que, durante a reclusão, os internos são submetidos a um tratamento ressocializador. As estatísticas de diferentes países, dos mais variados parâmetros políticos, econômicos e culturais, são pouco animadoras, e, embora, os países latino-americanos não apresentem índices estatísticos confiáveis (quando não, inexistentes), é este um dos fatores que dificultam a realização de uma verdadeira política criminal. Apesar da deficiência dos dados estatísticos é inquestionável que a delinquência não diminui em toda a América Latina e que o sistema penitenciário tradicional não consegue reabilitar ninguém, ao contrário, constitui uma realidade violenta e opressiva e serve apenas para reforçar os valores negativos do condenado.
A prisão, em vez de conter a delinquência, tem lhe servido de estímulo, convertendo-se em um instrumento que oportuniza toda espécie de desumanidade. Não traz nenhum benefício ao apenado; ao contrário, possibilita toda a sorte de vícios e degradações. A literatura especializada é rica em exemplos dos efeitos criminógenos da prisão. Enfim, a maioria dos fatores que dominam a vida carcerária imprimem a esta um caráter criminógeno, de sorte que, em qualquer prisão clássica, as condições materiais e humanas podem exercer efeitos nefastos a personalidade dos reclusos. Mas apesar dessas condições altamente criminógenas das prisões clássicas, tem-se procurado, ao longo do tempo, atribuir ao condenado, exclusivamente, a culpa pela eventual reincidência, ignorando-se que é impossível alguém ingressar no sistema penitenciário e não sair de lá pior que entrou. (BITENCOURT, 2010, p. 125)
Não é recente a verificação da precariedade das condições do cárcere brasileiro, nem são poucas as notícias de tentativas de fugas, motins e rebeliões nos presídios. Ausência de condições mínimas de habitabilidade dentro do cárcere, instalações sem ventilação e iluminação, falta de salubridade e higiene nas celas, dependências sanitárias deterioradas e superlotação dos presídios são aspectos relacionados à crise e falência do sistema penitenciário brasileiro que carecem de solução e prioridade do Poder Público.
Não bastassem tais problemas, o que falar no direito à alimentação, ao uso de medicamentos necessários e indispensáveis ao tratamento da saúde e assistência médica dentro dos presídios? O ambiente insalubre, inclusive, é o elemento suficiente para proliferação de doenças e contágio entre os presos.
No entanto, pouco ou nada é feito para solucionar ou ao menos tentar solucionar tal problemática. Nesse sentido, interessante é a observação feita por Ana Messuti, traduzida por Tadeu Antonio Dix Silva:
Num sentido literal, o direito penal é o direito que aplica penas aos seres humanos, e os Direitos Humanos são os direitos que possuem os seres humanos, principalmente, de não sofrer penas.
Entretanto, parece estranho referir-nos às penas previstas pelo direito penal como violações dos direitos humanos. O direito penal está legitimado, sob determinadas condições jurídicas, políticas e institucionais para estabelecer penas. Assim como esteve até não muito tempo atrás para estabelecer como pena os suplícios mais espantosos, que hoje não vacilaríamos em qualificar como violações dos direitos humanos. (MESSUTI, 2003, p.79)
A “coisificação” do indivíduo preso, não sendo tratado como sujeito de direito, lamentavelmente, é constante na sociedade hodierna. E o Estado, a pretexto de efetuar a garantia da ordem pública e social, marginaliza e estigmatiza ainda mais aquele sujeito que deveria retornar à sociedade ressocializado.
O que se verifica, na prática, ainda é efetivamente uma justiça essencialmente retributiva, com foco principal na ação delituosa perpetrada pelo agente e a imposição da devida retribuição. Com relação à ação delituosa do agente, o Professor Catedrático Eduardo Correia dispõe:
Trata-se aqui de uma culpa do agente por não ter corrigido, educado ou mesmo tratado o seu modo de ser de maneira a modelá-lo com o tipo de personalidade que os valores jurídico-criminais de um certo sistema requerem. Na medida em que o direito criminal protege certos valores ou bens jurídicos, cria para os seus destinatários o dever jurídico de formar a sua personalidade de modo a que, na sua actuação na vida, se não ponha em conflito com aqueles valores ou interesses. (CORREIA, 1999, p.63)
Nesse contexto de negação de condições básicas ao patrimônio mínimo existencial do indivíduo, este se sente completamente abalado em seu emocional e psicológico, sentindo-se desprovido de valor como pessoa humana. Num ciclo vicioso, sem valor, não saberá valorizar o próximo e tratado como se animal fosse dentro das prisões, como tratará seu semelhante quando sair? Esses questionamentos devem ser refletidos pela sociedade.
5. PENA DE PRISÃO E O TEMPO
O indivíduo submetido à pena de prisão tem em seu desfavor o transcurso do tempo, que é elemento precioso na vida humana. Por meio dele, por exemplo, é que se desenvolvem os relacionamentos familiares e sociais. Assim, o preso, privado de sua liberdade num determinado espaço físico com condições precárias, também é penalizado pelo “tempo”, de modo que ao sair da prisão terá deixado de desfrutar momentos únicos com seus familiares e amigos.
O elemento tempo, inserido no contexto da pena privativa de liberdade, deve ser utilizada pelo Estado de uma forma positiva, propiciando ao indivíduo as condições necessárias para o seu retorno ao seio social. Concernentemente aos elementos tempo e espaço da pena de prisão, leciona Ana Messuti, traduzida por Tadeu Antonio Dix Silva:
A pena de prisão se diferencia de todas as outras pela forma como combina estres dois elementos: o tempo e o espaço. Esta interseção entre tempo e espaço marca o começo de uma duração distinta, qualitativamente diversa. E isto apesar da pena ser medida com a mesma unidade que se utiliza para medir o tempo social, o tempo comum.
A separação física não só define por si só a pena de prisão. Ao referir-nos a uma pena deste tipo é lógico perguntar: por quanto tempo? Porque o tempo, mais que o espaço, é o verdadeiro significante da pena. Existe uma enorme diferença entre passar três dias na prisão e passar toda a vida: há toda uma vida de diferença. (MESSUTI, 2003, p.33)
O tempo, portanto, no cumprimento da pena privativa de liberdade deve ser usufruído pelo indivíduo e pelo Estado da melhor forma possível, investido, de preferência em atividades que acarretem no crescimento do indivíduo como pessoa.
6. PREPARAÇÃO PARA REINSERÇÃO NO MERCADO DE TRABALHO
Uma das grandes dificuldades que envolvem a problemática da reinserção social consiste na dificuldade de inserção no mercado de trabalho. Hodiernamente verifica-se na sociedade o desemprego em grande escala e a ausência de oportunidades para aqueles que não possuem mão de obra qualificada. Ora, se para sujeitos livres no seio social já existe obstáculo para aquisição de emprego, o que dirá daqueles sujeitos que acabam de retornar à sociedade após determinado período privados da sua liberdade e isentos de toda sorte de qualificação para o trabalho?
Tal situação se agrava em decorrência da rotulação conferida pela sociedade, em geral, aos ex presidiários e o receio de ofertar oportunidade de emprego. É certo que o trabalho dignifica o homem e é necessário não apenas para valorizá-lo como pessoa humana, mas também para proporcionar condições mínimas de subsistência. Assim, ao cumprir a sua pena e quitar seus débitos com a Justiça e a sociedade, o indivíduo para ela retorna e ainda terá que sofrer novas penas, consistentes na dificuldade, preconceito, discriminação e humilhação na busca de um trabalho que lhe dignifique e seja suficiente para sua manutenção.
Nesse ciclo vicioso, o indivíduo, que na maioria das vezes foi alijado de seus direitos e tratado de forma brutal e desumana dentro dos presídios, retorna para a sociedade com sentimento de vingança, desgosto e desprezo pela vida e, agravando toda essa triste e lamentável realidade, se vê desempregado, desqualificado e despreparado para o mercado de trabalho. Consequentemente, não raras vezes, o indivíduo não ressocializado entende ser o retorno para o crime a única solução disponível, e os efeitos desastrosos desaguam na reincidência e a volta para o sistema prisional.
7. FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
É de imensurável importância o cuidado estatal no sentido de reformular as bases no sistema penitenciário brasileiro para que possa efetivamente se obter a ressocialização do agente, evitando, inclusive, os malefícios de eventual reincidência. No tocante ao tema, leciona René Dotti:
A prevenção especial consiste na função assinalada à pena, visando evitar ou atenuar a probabilidade de reincidência demonstrada pelo autor em face do delito cometido. Trata-se, é bem de ver, de uma projeção racional e idealista posto que não se admite a imposição da pena como um instrumento puramente compensatório e assim esvaziado de conteúdo ético. O mal deve também significar a esperança de um bem haurido pelo condenado, não como prazer em cumprir a pena – o que seria um absurdo – mas como um antidoto para o futuro. (DOTTI, 1998, p.228)
Nessa linha de entendimento, Raquel Ramalhete, traduzindo a obra “Vigiar e Punir” de Michel Foucault, alerta que “O regime da prisão deve ser, pelo menos em parte, controlado e assumido por um pessoal especializado que possua as capacidades morais e técnicas de zelar pela boa formação dos indivíduos”. (FOUCAULT, 1987, p. 225)
As demandas estatais na formulação e execução das políticas públicas não são poucas e a verba pública, escassa. Diante desse cenário, o Estado efetua escolhas trágicas, num critério de ponderação de interesses, conforme o princípio da proporcionalidade.
Todavia, é bem verdade que o problema que assola o sistema penitenciário não é recente e nunca foi uma preocupação e prioridade estatal. Parece ser mais confortável ao poder público depositar os transgressores e violadores da lei nas celas e esquecê-los enquanto eles recebem a retribuição pelo mal causado. Nesse ponto, a observância de direitos basilares à vida humana, garantidos constitucionalmente, não é efetivada e a função ressocializadora perde, por completo, seu sentido e desiderato.
O Estado, responsável pela garantia de direitos de fundamentais previamente assegurados a todos de forma indistinta, se revela omisso no momento de cumprir com seu poder-dever na observância de direitos aos presos, mas se revela pronto para exercer o seu poder punitivo para aquele sujeito que “não está apto para viver em sociedade”.
Assim, o Estado pune com rigor e prontidão aquele indivíduo violador da lei e, ao mesmo tempo, se torna um violador da lei, ao não efetivar devidamente os direitos fundamentais garantidos ao ser humano, o qual, frise-se, não perde essa qualidade pelo mero fato de ter sido privado da sua liberdade em razão do cometimento de ilícito penal, antes, preserva essa qualidade e deve ter assegurado a sua dignidade como pessoa humana, valor supremo na ordem jurídica.
Há uma urgente necessidade de preparação do apenado ao retorno à sociedade e tal preparação abrange aspectos referentes à moral, ao psicológico no que concerne ao seu valor na sociedade, à educação e aptidão para o trabalho.
A deficiência na função ressocializadora da pena também é reflexo, portanto, da ausência ou, ao menos, ineficácia de políticas públicas voltadas ao apenado e ao egresso. Além da necessidade imperiosa de políticas públicas focadas no apenado e egresso, há, ainda, que levar em consideração políticas públicas voltadas à conscientização da população contra o preconceito, discriminação, rotulação e estigmatização dos ex presidiários.
No que concerne ao tema, com maestria observa Cézar Roberto Bitencourt:
Quando a prisão se converteu na principal resposta penológica, especialmente a partir do século XIX, acreditou-se que poderia ser um meio adequado para conseguir a reforma do delinquente. Durante muitos anos imperou um ambiente otimista, predominando a firme convicção de que a prisão poderia ser um instrumento idôneo para realizar todas as finalidades da pena e que, dentro de certas condições, seria possível reabilitar o delinquente. Esse otimismo inicial desapareceu, e atualmente predomina uma atitude pessimista, que já não tem muitas esperanças sobre os resultados que se possa conseguir com a prisão tradicional. A crítica tem sido tão persistente que se pode afirmar, sem exagero, que a prisão está em crise. Essa crise abrange também o objetivo ressocializador da pena privativa de liberdade, visto que grande parte das criticas e questionamentos que se fazem à prisão refere-se à impossibilidade – absoluta ou relativa – de obter algum efeito positivo sobre o apenado. (BITENCOURT, 2010, p. 120)
É inegável, portanto, a importância e necessidade de efetivação de políticas públicas estatais, bem como de preparação do pessoal responsável pela fiscalização do cumprimento das penas para a minimização da crise verificada no sistema prisional.
Concluindo, com relação ao tema, imprescindível se faz mencionar, sem aprofundar o assunto, o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da crise no sistema prisional e o chamado “estado de coisas inconstitucional”, caracterizado pela violação generalizada dos direitos fundamentais, somada à inércia e omissão do Poder Público, em todas as suas esferas, em modificar tal quadro, concluindo que somente com transformações na estrutura da atuação estatal e atuação conjunta de todas as autoridades é que seria possível reverter tal crise e falência do sistema.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto, é inconteste de dúvidas que o ordenamento jurídico pátrio hodierno possui um arcabouço legislativo garantidor de direitos e garantias fundamentais aos presos, bem como estabelece, como fundamento da República Federativa do Brasil, o valor da dignidade da pessoa humana, inerente a todas as pessoas, pelo simples fato de existir.
Todavia, verifica-se de forma clara e evidente um distanciamento profundo entre o que prega a ordem jurídica e a realidade vivenciada no interior dos estabelecimentos prisionais.
O sistema penitenciário brasileiro está falido e em crise. Agora resta a mobilização social e estatal com vistas a solução da problemática que, reconhece-se, não é tarefa fácil.
O presente trabalho teve o objetivo de provocar o debate e a reflexão acerca do tema, relembrando aspectos e problemas que não são desconhecidos, com o anseio de ver, um dia, uma sociedade mais justa, em que o direito de todos, ricos e pobres, pretos e brancos, livres e encarcerados, seja devidamente cumprido.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral I. 15ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2010.
CORREIA, Eduardo. Direito Criminal – I. Coimbra: Livraria Almedina, 1999.
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Advogada. Pós-graduada em direito do trabalho e processo do trabalho pelo Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRA, Marília Guiomar Neves Pedrosa. O atual cenário do sistema penitenciário brasileiro e a violação de direitos fundamentais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 maio 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46658/o-atual-cenario-do-sistema-penitenciario-brasileiro-e-a-violacao-de-direitos-fundamentais. Acesso em: 22 nov 2024.
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