Resumo: O presente artigo tem como escopo fixar as balizas jurídicas adotadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando do julgamento das ADIs nº 2390, 2397 e 2859 e do RE 601.314 (repercussão geral), para fins de estabelecer a compreensão segundo a qual não se configura quebra de sigilo bancário, mas sim transferência de sigilo entre órgãos, quando um órgão da Administração Tributária solicita e recebe de instituições financeiras os dados das movimentações econômicas de terceiros, prescindindo de autorização judicial (reserva de jurisdição). Ver-se-á quais fundamentos jurídicos foram adotados pelo STF para fins de declarar a constitucionalidade do art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001, bem como para superar o antigo entendimento adotado pela Corte Excelsa.
Palavras Chaves: Sigilo bancário. Autoridades fiscais. Reserva de jurisdição. Transferência de Dados entre órgãos. Constitucionalidade do art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001.
01. Introdução:
O presente artigo tem como objetivo demonstrar a recente superação do entendimento jurisprudencial adotado até então pelo Supremo Tribunal Federal (STF) acerca do tema relativo a quebra de sigilo dos dados financeiros de contribuintes pelos órgãos de Administração Tributária, em todos os âmbitos da Federação, no exercício de suas atribuições de fiscalização.
Por meio do cotejo das decisões firmadas no recurso extraordinário (RE) nº 389.808 e nas ações diretas de inconstitucionalidades (ADIs) nº 2390, 2397, 2859, ver-se-á que a Corte Excelsa, através de um novo olhar sobre o tema, evoluiu o pensamento anteriormente fixado sobre a impossibilidade de a Receita Federal do Brasil (RFB) ter acesso, independentemente de autorização judicial, aos dados dos contribuintes investigados em processos administrativos que apuram suposta prática de ilícitos tributários.
Adiante-se, antes de tudo, sem, entretanto, esgotar os fundamentos da decisão ora em apreço, que o STF, de uma forma geral, como se verá, utilizou-se da técnica hermenêutica da ponderação de valores[1] e da invocação do princípio da harmonização[2] para enfrentar e encontrar a solução para o presente caso, pois os parâmetros de controle da constitucionalidade adotados pela Corte Maior apoiaram-se no direito fundamental à privacidade/intimidade, bem como no caro princípio da moralidade administrativa.
Nesse compasso, estar-se-á em debate, de um lado, a efetivação das normas de direito fundamentais consagradas nos incisos X e XII, do art. 5º da Constituição Federal de 1988 (CF/88), e, do outro, a norma prescrita no art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001 (LC nº 105/01), diploma normativo que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras.
Ver-se-á que, ao declarar a constitucionalidade do art. 6º da LC nº 105/01, o STF, ao invés de fazer a escolha por um daqueles valores, aniquilando o outro, optou por harmonizá-los, tendo decidido que a norma prevista naquele dispositivo legal não amolda-se a casos de quebra de sigilo bancário sem reserva de jurisdição, mas, ao revés, trata-se de norma que consagra e festeja o direito fundamental a privacidade do indivíduo (art. 5º, incisos X e XII da CF/88), vez que o acesso aos dados financeiros de investigados pelos órgãos de Administração Tributária corresponde a mera transferência de sigilo bancário entre instituições estabelecidas.
Importante perceber que o Supremo Tribunal Federal no enfrentamento da questão fixou pressupostos fáticos e jurídicos para a obtenção da finalidade da norma guerreada na análise da decisão objeto do presente estudo (art. 6º da LC nº 105/01), qual seja, garantir o respeito ao direito fundamental à privacidade dos cidadãos, bem como assegurar os compromissos internacionais assumidos pela República Federativa do Brasil no que diz respeito ao combate e prevenção a sonegação fiscal.
02. Desenvolvimento:
2.1. Balizas Constitucionais e legais do Direito ao Sigilo dos dados bancários e o direito a privacidade.
O denominado sigilo bancário, nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes[3], consiste na obrigação imposta aos bancos e a seus funcionários de discrição, a respeito de negócios, presentes e passados, de pessoas com que lidaram, abrangendo dados sobre abertura e o fechamento de contas e sua movimentação.
O direito fundamental a privacidade, por sua vez, consoante ensinamentos de Carlos Alberto Bittar, são os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de valores inatos no homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos. Interessante pontuar a menção feita pelo Ministro Marco Aurélio, do STF, no julgamento do recurso extraordinário nº 389.808/PR, sobre o direito à privacidade, tendo-o denominado de “irmão gêmeo do princípio da dignidade humana (art. 1º, III da CF/88)”.
Conforme entende a doutrina e jurisprudência, o direito fundamental a privacidade emana das normas insculpidas no art. 5º, incisos X e XII da Constituição Federal, que assim dispõe:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
[...]
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
No âmbito infraconstitucional, cabe pontuar que o sigilo de dados financeiros tem tratamento no art. 198 do Código Tributário Nacional (CTN), o qual veda a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. Tratando de forma ainda mais específica sobre o sigilo bancário pelas instituições financeiras, a Lei Complementar nº 105/2001 prescreve no seu art. 6º que as autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente, estando tais pessoas, nos termos do parágrafo único da norma mencionada, obrigadas a manter o sigilo das informações e documentos objeto do resultado da sua atuação. Mencione-se que o descumprimento da presente norma, na forma do art. 10 da presente lei, consubstancia prática criminosa a qual é sancionada com pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Conforme leciona Gilmar Ferreira Mendes, o direito ao sigilo fiscal é tratado pela doutrina e jurisprudência como expressão do direito fundamental a privacidade, querendo com isso registrar que ambos possuem a mesma face, estando imbricados um no outro. Por tal razão, é possível estabelecer que, como direito fundamental, o direito ao sigilo bancário não é de natureza absoluta, isto é, ele poderá sofrer mitigações e relativismos, máxime quando em linha de colisão com outros direitos igualmente fundamentais. Como exceção jurídica incontroversa sobre a vedação ao sigilo bancário, reconhece-se às comissões parlamentares de inquérito (CPIs) o condão de solicitar diretamente (sem intervenção do Poder Judiciário) informações financeiras das instituições bancárias relativo a seus investigados, isso porque, conforme aduz o art. 58, §3º da Lei Maior, as CPIs possuem poderes investigatórios próprios das autoridades judiciais.
Importa, antes de tudo, informar que a intenção do constituinte originário sempre foi a de enaltecer a observância e o respeito aos direitos fundamentais previsto no texto constitucional, tanto pelo Estado como pelos particulares (teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais), procurando conciliá-los, em dadas situações, com outros direitos igualmente constitucionais, como aquele atribuído aos órgãos da administração tributária para fiscalizar as atividades tributárias dos contribuintes.
Exemplo disso encontra-se consagrado no comando expresso do art. 145, §1º da Constituição Federal, o qual faculta a administração tributária identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte para conferir efetividade ao postulado da capacidade contributiva, desde que, entretanto, atue em respeito aos direitos individuais, nos termos da lei. Tal norma, segundo clássica divisão estabelecida por Paulo Bonavides, pode ser enquadrada como de eficácia limitada, isto é, sua aplicabilidade dependerá da existência de norma infraconstitucional que a regule. Fora exatamente nesse contexto a concepção da Lei Complementar nº 105/2001, a qual debruçara-se o Supremo Tribunal Federal, por mais de uma vez, acerca do tema do sigilo bancário ora em estudo.
Como se verá doravante, a Corte Excelsa, num período de aproximadamente seis anos (2010 a 2016), evoluíra no próprio entendimento inicial, pela inconstitucionalidade do art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001, para o entendimento recentemente firmado no julgamento das ADI 2390, 2397 e 2859 que, por nove votos a dois, reconheceu a constitucionalidade da norma indigitada.
2.2. Antigas Balizas Sobre a quebra do Sigilo Bancário pelo STF, no Julgamento da do Recurso Extraordinário (RE) nº 389808/PR.
A apreciação inicial pelo Supremo Tribunal Federal acerca da constitucionalidade do art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001, a qual trata da possibilidade de solicitação direta, pela Receita Federal do Brasil (RFB), de informações bancárias às instituições financeiras dos seus investigados, ocorreu no bojo do julgamento do Recurso Extraordinário nº 389.808/PR, da relatoria do Ministro Marco Aurélio, tendo sido fixado, na ocasião, o entendimento segundo qual não resta possível a Receita Federal do Brasil solicitar diretamente a quebra de sigilo bancário das instituições financeiras, relativo a seus investigados, tendo em vista tratar-se de violação ao direito fundamental à privacidade do cidadão, sindicável tão somente pelo Poder Judiciário. Veja-se:
SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte.
(RE 389.808/PR. Tribunal pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgado em 15/12/2010).
O fundamento do voto do relator no presente caso apoiou-se na idéia de que a Constituição Federal, quanto ao tema da quebra de sigilo, só excepciona a regra da inviolabilidade nos casos de quebra do sigilo de dados e comunicações telefônicas e quando envolver investigação criminal ou instrução processual penal em curso, aduzindo, como reforço de argumentação, que nem mesmo é dado ao Ministro de Estado da Fazenda tal poder. Estabelece, na linha do raciocínio deduzido, que a sindicabilidade de um direito fundamental do cidadão somente pode ser realizado pelo Poder Judiciário, e, este, mesmo assim, deverá atuar conforme fixação de regras expressas no ordenamento jurídico em vigor.
Percebe-se, do exposto, que a técnica de interpretação adotada, predominante, no presente julgamento fora apoiada na regra hermenêutica segundo a qual “o interprete não pode prever exceções onde o legislador não as previu”, restando, pois, configurada autêntica interpretação restritiva. Nessa linha de intelecção votaram, além do relator, os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello, para quem somente o Poder Judiciário poderá autorizar os órgãos da administração tributária a terem acesso aos dados bancários dos contribuintes investigados em processos administrativos tributários.
Votando de forma contrária ao entendimento majoritário firmado no julgado, os Ministros Dias Toffoli, Carmen Lúcia, Ayres Brito e Ellen Gracie fixaram a compreensão segundo a qual o art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001 não autoriza a quebra de sigilo bancário dos contribuintes pela Receita Federal do Brasil, mas sim, trata-se de norma que, autorizada pelo art. 145, §1º da CF/88, permite a mera transferência de informações entre os órgãos das instituições financeiras e àquele outro, ocasião em que, nos termos do parágrafo único do mesmo art. 6º da Lei Complementar citada, o sigilo das informações ficará resguardado, sob pena de caracterização de crime funcional (art. 10 da LC nº 105/2001), estando, com efeito, garantido o respeito a cláusula da confidencialidade.
2.3. Constitucionalidade do art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001 e os pressupostos para evolução jurisprudencial pelo STF.
Decorridos aproximadamente seis anos do julgamento do RE 389.808/PR, o Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 24 de fevereiro de 2016, já com diferente composição de outrora, apreciou, no bojo das ações diretas de inconstitucionalidade nº 2390/DF, 2386/DF, 2397/DF e 2859/DF, o tema, tendo fixado novo entendimento. Restou assentado que as autoridades e agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios podem requisitar diretamente das instituições financeiras informações sobre as movimentações bancárias dos contribuintes.
Com a presente compreensão, o STF, em posição diametralmente oposta àquela estabelecida no julgamento do RE nº 389.808/PR, declarou a constitucionalidade do art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001, ao fundamento de que essa previsão normativa não se caracteriza como quebra de sigilo bancário, mas, ao revés, tratar-se-ia de “transferência de sigilo” das instituições financeiras ao fisco. Interessa anotar que a tese firmada pela Advocacia Geral da União, ao manifestar-se nas referidas ações objetivas, perfilhara o mesmo caminho adotado mais tarde pela Corte Excelsa.
Destaque-se que no julgamento da presente questão mantiveram o voto anterior os Ministros Marco Aurélio e Celso de Melo, havendo mudança de posição no voto do Ministro Ricardo Lewandowski, que se alinhou ao posicionamento do Relator, Ministro Dias Toffoli e do voto dos demais Ministros.
Basicamente, os fundamentos invocados nos votos vencedores passaram pela análise sistêmica do texto constitucional, bem como da Lei Complementar nº 105/2001 e sua teleologia. Para o relator das ações, o art. 145, §1º da CF/88 é o pressuposto autorizador da manutenção das garantias fundamentais do cidadão contra possíveis atos arbitrários do Estado, já que resta indubitável na presente norma o respeito, em eventuais situações de vulnerabilidades provocadas pelo fisco, as garantias fundamentais, das quais se inclui a garantia a privacidade e intimidade.
Utilizando-se do argumento invocado pelo Procurador Geral da República, em seu parecer na ação ora em análise, para quem “a afronta à garantia do sigilo bancário, como dito, compreendida no âmbito de proteção do inciso X do artigo 5º da Carta da República, não ocorre com o simples acesso a esses dados, mas verdadeiramente com a circulação desses dados”, o Min. Dias Toffoli ao cotejar os art. 10 e 11 da LC nº 105/2001, que tratam, respectivamente, da responsabilidade penal e civil dos agentes financeiros pela violação do sigilo de dados financeiros dos contribuintes, com o parágrafo único do art. 6º igualmente do mesmo diploma, fixou a compreensão segundo a qual o tema em apreço trata de transferência de sigilo entre as instituições financeiras e fisco e não quebra de sigilo.
Otimizando seu pensamento, assim expressou-se o Ministro: “Em síntese, tenho que o que fez a LC 105/01 foi possibilitar o acesso de dados bancários pelo Fisco, para identificação, com maior precisão, por meio de legítima atividade fiscalizatória, do patrimônio, dos rendimentos e das atividades econômicas do contribuinte, sem permitir, contudo, a divulgação dessas informações, resguardando-se a intimidade e a vida íntima do correntista”.
Para o eminente relator, “a utilização dos dados pelo fisco não desnatura o carater sigiloso da movimentação bancária do contribuinte, e, dessa forma, não tem o condão de implicar violação de sua privacidade”. Acrescentou que o conhecimento da notícia, do dado, da informação não implica violação da privacidade, desde que (i) não seja seguido de divulgação e (ii) seja do domínio apenas de quem legitimamente a detenha. Por fim, aduziu o ministro que em tal caso, para a análise das informações transferidas pelas autoridades fiscais seria necessário a existência de processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso, bem como a inexistência de outro meio hábil para esclarecer os fatos investigados pela autoridade administrativa.
Com efeito, não havendo de se falar em “quebra de sigilo bancário” pelos órgãos fiscais, despicienda qualquer intervenção ou autorização do Poder Judiciário, por revelar-se inapropriado caso de reserva de jurisdição. Por essa razão, inclusive, é que deve-se afastar a ideia de que há violação ao direito de privacidade do contribuinte em manter os seus dados bancários em sigilo. Nessa linha de pensamento, apropriado mencionar a indagação feita pelo ministro relator em seu voto: “Como se haveria de falar em violação ao sigilo bancário, no presente caso, se não há qualquer acesso de terceiros a tais dados, que não tão somente as autoridades tributárias investigatórias?”.
Avulta notar, ainda na análise dos argumentos invocados pelo relator em seu voto, a idéia de que uma eventual declaração de inconstitucionalidade do art. 6º da LC 105/01 poderia representar um retrocesso no país em matéria de combate à sonegação fiscal e a uma série de crimes que envolvem a circulação internacional de dinheiro de origem ilícita, isso porque o Brasil assumiu uma série de compromissos com a comunidade internacional, visando combater ilícitos como lavagem de dinheiro e evasão de divisas, além de buscar coibir a atuação das organizações criminosas.
Consigne-se, por relevante, o que ficara fixado na argumentação do voto vencedor, o qual mencionara a necessidade de observância de um parâmetro objetivo para fins de concretização e satisfação do direito invocado em testilha, qual seja a necessidade de ser a matéria regulamentada por meio de ato normativo da modalidade “decreto”[4], devendo este ter pertinência temática entre a obtenção das informações bancárias e o tributo objeto de cobrança no procedimento administrativo instaurado; a prévia notificação do contribuinte quanto a instauração do processo e a todos os demais atos; sujeição do pedido de acesso a um superior quanto a instauração do processo e a todos os demais atos; sujeição do pedido de acesso a um superior hierárquico; existência de sistemas eletrônicos de segurança que sejam certificados e com registro de acesso; estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de desvios.
Realizando-se uma análise de tais argumentos invocados no posicionamento vencedor é possível evidenciar que a prevalência de uma interpretação literal, restritiva e estanque, marcada no julgamento do RE 389.808/PR, cedera espaço para a utilização de novas técnicas de hermenêutica constitucional, como a da interpretação conforme[5], da harmonização, da interpretação sistemática[6] e da força normativa da Constituição[7].
A ponderação de valores aquilatada no julgamento, embora não tenha sido expressamente enfrentada, restringiu-se ao aparente conflito entre a garantia da privacidade e intimidade frente ao princípio da moralidade administrativa. Na solução do caso em tela, observa-se que não houve o sacrifício de um desses caros valores em detrimento do outro, pois ambos foram harmonizados ao final, isso porque, tratando-se de transferência de dados entre os órgãos financeiros e o fisco, o sigilo de dados bancários restou preservado, ao mesmo tempo em que o poder atribuído ao fisco para ter acesso a tais dados sem intermediação do Poder Judiciário fora assim atribuído em homenagem ao princípio da moralidade administrativa. A revelação deste princípio torna-se patente no caso em estudo a partir da necessidade de atuação independente e proativa dos órgãos de administração tributária, os quais buscam combater transgressões bancárias que indiquem ilicitudes, o que espelha um atuar com probidade e dever de honestidade do administrador no trato com a res pública.
De mais a mais, percebe-se que a aplicação prática da interpretação conforme e sistemática foram substratos fundamentais para a conclusão do julgado. Ambas as técnicas ficaram bastante evidenciadas quando da análise da questão de fundo, a qual perpassou pelo cotejo de dispositivos constitucionais (art. 5º, X e XII; art. 145, §1º, 37º, XXII), invocação de princípios e a análise finalística das normas previstas na Lei Complementar nº 105/2001, sob à luz dos valores constitucionais, o que, ao final, revelou a manifestação da força normativa desta.
03.Conclusão:
A partir da análise das decisões e fundamentos estabelecidos no julgamento do recurso extraordinário nº 389.808/PR e das ações diretas de inconstitucionalidade nº 2390/DF, 2386/DF, 2397/DF e 2859/DF, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal, em recente decisão do plenário, passou a ter novo entendimento a respeito da “quebra de sigilo bancário” pelas autoridades fiscais, tendo fixado a compreensão de que o art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001 é constitucional, o que resulta na desnecessidade de o Poder Judiciário ser provocado (reserva de jurisdição) para permitir que os órgãos fiscais tenham acesso direto aos dados bancários dos contribuintes investigados por ilícitos tributários no âmbito administrativo.
A partir do estudo dos argumentos dos votos vencedores dos ministros nos autos daqueles processos objetivos foi possível elencar, objetivamente, os seguintes fundamentos[8], verbis:
1) O sigilo bancário não é absoluto e deve ceder espaço ao princípio da moralidade nas hipóteses em que transações bancárias indiquem ilicitudes;
2) A prática prevista na LC 105/2001 é comum em vários países desenvolvidos e a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo questionado seria um retrocesso diante dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil para combater ilícitos como a lavagem de dinheiro e evasão de divisas e para coibir práticas de organizações criminosas;
3) A LC 105/2001 não viola a CF/88. Isso porque o legislador não estabeleceu requisitos objetivos para requisição de informação pela administração tributária às instituições financeiras e exigiu que, quando essas informações chegassem ao Fisco, ali mantivessem o dever de sigilo. Com efeito, o parágrafo único do art. 6º preconiza que o resultado dos exames, as informações e os documentos deverão ser conservados em sigilo, observada a legislação tributária. Assim, não há ofensa a intimidade ou qualquer outro direito fundamental, pois a LC 105/2001 não permite a "quebra de sigilo bancário", mas sim a transferência desse sigilo dos bancos ao Fisco;
4) O art. 6º da LC 105/2001 é taxativo e razoável ao facultar o exame de documentos, livros e registros de instituições financeiras somente se houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
Afora a fixação desses argumentos, torna-se mister elencar, igualmente de forma objetiva, os pressupostos referidos pelo STF para fins de legitimar a solicitação, pelos órgãos tributários, dos dados bancários dos contribuintes. Desta feita, é necessária a observância dos seguintes parâmetros[9]:
1) Estados, Municípios e Distrito Federal podem obter as informações previstas no art. 6º da LC 105/01, uma vez regulamentada a matéria por meio de Decreto, nos moldes do Decreto nº 3.724/2001, existente no âmbito da administração pública federal;
2) É necessário haver pertinência temática entre a obtenção das informações bancárias e o tributo objeto de cobrança no procedimento administrativo instaurado;
3) Observância ao contraditório pelo fisco, a fim de que o contribuinte tenha ciência e participe do processo administrativo instaurado em seu desfavor;
4) Necessidade de a solicitação do pedido de acesso aos dados a uma autoridade competente, com poder hierárquico;
5) Existência de sistemas eletrônicos de segurança capazes de controlar e permitir a identificação dos agentes responsáveis pelo manejo das informações solicitadas (facilitação da responsabilização de uso indevido);
6) Estabelecimento de mecanismos efetivos de apuração e correção de desvios.
Se, por um lado, o Supremo Tribunal Federal, na análise do tema em estudo, afastou a idéia de violação ao sigilo bancário pelas autoridades administrativas fiscais, ele estabeleceu, por outro, parâmetros objetivos para que referidos órgãos passem a ter o acesso direto aos dados fiscais de seus contribuintes, o que permite a conclusão conciliadora segundo a qual as autoridades fiscais, ao terem acesso direto aos dados fiscais de seus contribuintes por intermédio das instituições financeiras, os mantém em sigilo, respeitando o direito à privacidade e intimidade dos contribuintes, em autêntica consagração ao princípio da dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
01. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional, 10. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
02. BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
03. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
04. BULOS, UADI LAMMEGO. Curso de Direito Constitucional, 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
05. LENZA, PEDRO. Direito Constitucional Esquematizado. 19. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
06. RE 389.808/PR, Relatoria do Ministro Marco Aurélio, julgado em 15.12.2010, Dje 08.02.2011.
07. ADIs 2390/DF, 2386/DF, 2397/DF e ADI 2859/DF, Relatoria do Ministro Dias Toffoli, julgado em 24.02.2016, DJ 29.02.2016.
08. Site Dizer o Direito <www.dizerodireito.com.br>.
[1] Para Uadi Lammêgo Bulos (2015, p. 463), a técnica da ponderação de valores ou interesses é o recurso colocado ao dispor do intérprete para que avalie qual o bem constitucional que deve prevalecer perante situações de conflito. Pelo seu intermédio, procura-se estabelecer o peso relativo de cada um dos princípios contrapostos.
[2] Segundo Gilmar Mendes (2015, p. 97) os problemas de concordância prática ou harmonização surgem, sobretudo, em casos de colisão de princípios, especialmente de direitos fundamentais, em que o interprete se vê desafiado a encontrar um desfecho de harmonização máxima entre os direitos em atributo, buscando sempre que a medida de sacrifício de um deles, para uma solução justa e proporcional do caso concreto, não exceda o estritamente necessário. A concordância prática, segundo o doutrinador, deverá ser encontrada no caso concreto, segundo os parâmetros oferecidos pelo princípio da proporcionalidade.
[3] CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL, Gilmar Ferreira Mendes, Ed. 10, Saraiva, 2015, página 287.
[4] Âmbito federal o nº 3.724/2001 trata especificamente da matéria incursa na Lei Complementar nº 105/2001.
[5] Segundo lições de Barroso (2015, p. 336) o princípio da interpretação conforme destina-se à preservação da validade de determinadas normas, suspeitas de inconstitucionalidade, assim como à atribuição de sentido às normas infraconstitucionais, da forma que melhor realizem os mandamentos constitucionais.
[6] Para Barroso (2015, p. 329 e 330), a ordem jurídica é um sistema e, como tal, deve ser dotada de unidade e harmonia. A constituição, afirma, é responsável pela unidade do sistema, ao passo que a harmonia é proporcionada pela prevenção ou pela solução de conflitos normativos.
[7] Pedro Lenza (2015, p. 183), discorrendo sobre o princípio da força normativa da Constituição aduz que os aplicadores da Constituição, ao solucionar conflitos, devem conferir a máxima efetividade às normas constitucionais.
[8] Disponível em <http://www.dizerodireito.com.br/2016/02/a-receita-pode-requisitar-das.html>, acessado em 16/05/2016.
[9] Disponível em <http://www.dizerodireito.com.br/2016/02/a-receita-pode-requisitar-das.html>, acessado em 16/05/2016.
Técnico Judiciário do TRE/RN. Graduado em Direito pela Universidade Federal do RN e Especialista em Direito Público pela Universidade Anhaguera/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Paulo Roberto Almeida e. Evolução jurisprudencial pelo STF e a quebra de sigilo bancário pelos Órgãos Tributários Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 maio 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46732/evolucao-jurisprudencial-pelo-stf-e-a-quebra-de-sigilo-bancario-pelos-orgaos-tributarios. Acesso em: 22 nov 2024.
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