Resumo: O presente artigo trata, de forma resumida, sobra o instituto de origem do direito comparado do punitive damage (dano punitivo), analisando o seu conceito, evolução histórica, funções e exemplos de sua aplicação no direito americano. Ocorre quando o agente infrator atinge não somente a vítima direta, como também, devido ao impacto social provocado, a própria sociedade, devendo a indenização incluir também valores a serem revertidos a esta, como forma de punição e prevenção.
Palavras-chave: Responsabilidade civil. Punitive Damage. Dano punitivo. Definição.
1. INTRODUÇÃO
A responsabilidade civil está em constante evolução, tentando ao máximo acompanhar os anseios do sistema social. Não só os tribunais pátrios, mas também doutrinadores e operadores do direito utilizam institutos do direito comparado para solucionar casos concretos levados à apreciação no Poder Judiciário. O punitive damage é exemplo de instituto do direito comparado que poderia ser aplicado no sistema de responsabilidade civil brasileiro.
O instituto da indenização punitiva tem adquirido cada vez mais apreciação no ordenamento jurídico e pelos tribunais. A presença desse elemento em julgados de todas as instâncias, sobre as mais variadas matérias, é crescente. Não obstante disseminação mais marcante nos sistemas de common law, a adoção nos países que adotam o civil law, a exemplo do Brasil, apesar de ainda se mostrar tímida, é considerável.
Quando se investiga esse instituto, vislumbra-se logo o sistema de responsabilização de determinado país, qual seja, os Estado Unidos da América, pois lá se utiliza frequentemente o dano punitivo em ações de indenização. Estipula-se quantum indenizatório mais elevado do que o atribuído ao dano que efetivamente sofreu a vítima, com intenção expressa de punir o ofensor.
O objeto fundamental do presente trabalho é examinar o instituto do direito comparado intitulado de punitive damage em todas suas nuances, características que o diferencia das demais figuras presentes em um sistema de responsabilidade civil.
2. O QUE É DANO PUNITIVO (PUNITIVE DAMAGE)
O punitive damage, também conhecido como exemplary damage, é teoria utilizada pelos países filiados ao sistema common law; consiste, basicamente, em elevar o valor da compensação pecuniária fixada por dano moral, a fim de punir o agente ofensor. Colhe-se o conceito de Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler (2005, p.16):
Tal qual delineada na tradição anglo-saxã, a figura dos punitive damages pode ser apreendida, numa forma introdutória e muito geral, pela ideia de indenização punitiva (e não “dano punitivo”, como às vezes se lê). Também chamados exemplar damages, vindictive damages ou smart money, consistem na soma em dinheiro conferida ao autor de uma ação indenizatória em valor expressivamente superior ao necessário à compensação do dano, tendo em vista a dupla finalidade de punição (punishment) e prevenção pela exemplaridade da punição (deterrence) opondo-se – nesse aspecto funcional – aos compensatory damages, que consistem no montante da indenização compatível ou equivalente ao dano causado, atribuído com o objetivo de ressarcir o prejuízo.
Nesta categoria de verba indenizatória, o sujeito ativo do dano, além de arcar com a responsabilização por prejuízos suportados pela vítima, compensando-a, vai ter o quantum devido majorado, em virtude da aplicabilidade de tal instituto.
A partir de uma análise preliminar, pode-se pensar que a ideia principal seria vingança, impondo-se uma penalidade, tendo em vista que a condenação suportada teria valor mais elevado do que o efetivo dano ocorrido. Tal concepção, entretanto, mostra-se equivocada.
A ideia central do punitive damage é a de desestímulo. Além de servir como meio de sanção ao ofensor, tal modelo de indenização iria desestimular o autor da ofensa a reincidir na prática do ato lesivo, pois a punição patrimonial o inibiria. Também serviria de exemplo para evitar que outros potenciais ofensores causassem tais danos a novas vítimas.
A fixação de uma condenação elevada demonstraria para futuros e potenciais ofensores, que, caso praticassem a mesma conduta do ofensor condenado, o tribunal assumiria uma postura rígida para puni-lo, a fim de sempre desestimular novos comportamentos ilícitos.
Primordialmente, portanto, o punitive damage busca sancionar o causador do dano, mas também desestimular a praticar da conduta por outros membros da comunidade, inibindo o cometimento de ilícitos equivalentes no futuro.
André Gustavo Corrêa de Andrade (2006, p.195-196) menciona que "o objetivo principal dos punitive damages é exatamente o de punir o autor do ato danoso, estabelecendo uma sanção que lhe sirva de exemplo para que não repita o ato lesivo, além de dissuadir comportamentos semelhantes por parte de terceiros."
Justamente por possuir esse caráter dúplice, sancionador e preventivo ao mesmo tempo, o instituto deve servir de instrumento para aplicação aos ilícitos mais socialmente reprováveis, quando o ofensor assume comportamento malicioso, de maneira intencional, visando lesar interesses e direitos do ofendido.
O punitive damage não deve ser visto como nocivo para a sociedade; bem ao contrário, visa assegurar a harmonia a e paz social, tendo como função principal inibir prática de comportamentos ilícitos semelhantes, consoante preceitua Rafael Batista Leite (2010, p. 31):
Quando a compensação não constitui meio suficiente para restabelecer o sentimento do vitimado ou que não traz ao agressor qualquer sentimento de punição ou arrependimento, a indenização punitiva deve atuar como meio de eficácia da indenização, para fazer com que a indenização arbitrada seja, de fato, meio suficiente para reparar o dano e evitar um verdadeiro caos social, seja com o dano que nunca será reparado, seja com o agente que, mesmo com o dever de reparar o dano, terá a sensação de vantagem em cometê-los.
Acredita-se que uma possível adoção das indenizações punitivas no Direito Brasileiro seria também bastante positiva, visto que, de forma direta ou indireta, imporia maior respeito aos direitos da personalidade.
O instituto do punitive damage, apesar de ter ganhado bastante repercussão e desenvolvimento jurídico no direito norte-americano, tem sua origem no direito inglês. Foi por volta do século XVIII que começou a surgir sua aplicabilidade.
Nos casos em que se configurava má-fé, fraude, dolo ou culpa por parte do ofensor que, por meio de conduta ilícita, deseja deliberadamente atingir interesses e direitos da vítima, tribunais ingleses começaram a arbitrar quantias mais elevadas do que o real dano suportado. Martins-Costa e Pargendler (2005, p.18) ensinam que essas decisões foram o gérmen do punitive damage:
Em 1760, algumas cortes inglesas começaram a explicar grandes somas concedidas pelos júris em casos graves como compensação ao autor por mental suffering, wounded dignity e injured feelings. Essa indenização adicional por dano à pessoa era referida como exemplary pelas cortes que justificavam a condenação, afirmando-se que as indenizações elevadas tinham por objetivo não só compensar o lesado pelo prejuízo intangível sofrido, mas também punir o ofensor pela conduta ilícita. Na verdade as funções compensatória e punitiva foram confundidas pelas Cortes inglesas e norte-americanas até meados do século XIX.
Dois casos emblemáticos que ocorreram no ano de 1763 na Inglaterra merecem destaque, sendo as bases teóricas para o instituto, são eles: Wilkes X Wood e Huckle X Money.
No primeiro caso, o jornal britânico The North Briton publicara um artigo anônimo manifestando-se contrário ao governo do Rei George III. Inconformado com o ocorrido, o Rei ordenou que o Secretário Geral do governo fizesse busca no prédio onde se localizava o jornal, a fim de descobrir a autoria do referente artigo.
A busca por provas ocorreu de forma ilegal, pois além de ter se consubstanciado com base em mandado genérico, sem especificar as provas que seriam objeto da busca, houve a prisão dos funcionários que se encontravam no prédio, dentre eles, o autor do artigo, Mr. John Wilkes. Descoberto, depois, que este era o autor do artigo, teve sua residência e privacidade ofendidas por invasão de policiais, além de ter sofrido constrangimento ilegal pela prisão.
Irresignado, Wilkes levou as violações sofridas ao tribunal de júri inglês, onde ficou estabelecida uma condenação no valor de 1.000 (hum mil) libras, para as condutas de constrangimento ilegal e violação de intimidade. Um detalhe deve ser destacado: o quantum fixado a título de indenização abrangeu danos punitivos - exemplary damages - tendo em vista a gravidade das condutas praticadas.
O segundo caso é parecido, pois o tipógrafo Huckle sofreu as mesmas violações sofridas por Wilkes. Contudo, neste segundo caso, o júri arbitrou uma condenação de 300 (trezentas) libras. Insatisfeito com o elevado valor arbitrado, o réu recorreu da decisão, admitindo a responsabilidade pelos atos praticados, mas sustentou indenização excessiva. Argumentou que, durante o curto período em que ficara confinada, por volta de 6 (seis) horas, fora dispensado tratamento cortês à vítima, além de a baixa situação econômica do tipógrafo não justificar o valor fixado. Tais argumentos foram rejeitados, sob o fundamento de exemplary damages, vez que era necessário arbitrar quantia que desestimulasse prática autoritária e reiterada dos policiais reais.
André Gustavo Corrêa de Andrade (2006, p.188) assim se manifesta sobre: “esses precedentes assentaram as bases do instituto dos punitives ou exemplary damages, que poderiam ser invocados para punir os ofensores em casos de malícia, opressão ou fraude, ou seja, em casos nos quais o ato ilícito foi praticado de forma especialmente ultrajante.”
Tais precedentes foram de suma importância para firmar as bases jurisprudenciais e doutrinárias do instituto do punitive damage, sendo considerados os precursores da teoria da indenização punitiva. Foi a partir desses casos que a teoria começou a se desenvolver.
O punitive damage é instituto jurídico complexo, apresentando uma gama de funções para as quais foi desenvolvido do longo do tempo, algumas dessas funções originariamente não existiam, mas foram incorporadas em decorrência de mudanças sociais.
A primeira dessas funções a ser destacada é a preventiva, pela qual há um desestímulo para o cometimento de novos danos semelhantes. Ressalta-se que tal função se aplica não somente ao ofensor do dano objeto da condenação no caso concreto, mas também aos membros da sociedade em geral, a fim de que sirva de exemplo para futuros e potenciais ofensores não assumirem comportamentos parecidos.
A responsabilização do agente não se limita a reparar o dano consumado, mas busca impedir repetição ou continuação no futuro. Quando o sujeito ativo do dano suporta um valor elevado a título de condenação, por sofrer as consequências negativas da sanção – patrimoniais e morais, como a reprovação social - desejará não repetir a conduta anterior, a fim de não evitar os efeitos negativos experimentados.
A fixação de um valor elevado de indenização provoca sentimento de desestímulo, incutindo na sociedade que o cometimento de ilícito é atividade desvantajosa. Isso porque, em muitos casos, a fixação da obrigação pecuniária é tão baixa que compensa ocasionar o dano, pois o retorno financeiro obtido supera a condenação imposta. Citando D'Alessandro, Pedro Ricardo e Serpa (2011, p.42) asseveram:
Os punitive damages exercem também uma função preventiva pro futuro, na medida em que, por meio de sua imposição, busca-se evitar que no futuro sejam repetidos comportamentos danosos semelhantes ao cometido, quer por parte do sancionado (a assim chamada função preventiva especial), quer por parte da sociedade em geral (a assim chamada função preventiva geral).
A segunda função é a punitiva. Tal instituto se destina a sancionar aqueles agentes que cometeram ilícitos mais graves, cuja reprovação social é maior, nos quais o ofensor age com intenção deliberada de provocar dano à vítima, munido de sentimento de dolo, fraude, culpa ou malícia. É uma espécie de punição pela gravidade do ilícito cometido.
Deve-se considerar que a conduta praticada não ofende apenas a vítima, que teve seu patrimônio e dignidade ofendidos, mas também a sociedade, tendo em vista que condutas ilícitas como as descritas colocam em risco harmonia e bem estar social, merecendo uma punição exemplar.
A terceira função é a compensatória/reparatória. Talvez esta seja a de mais fácil compreensão, tendo em vista que se trata da mais tradicional função da responsabilidade civil. Aquele que causa dano tem de ressarcir ou compensar prejuízos provocados no patrimônio ou na dignidade da vítima. Deve-se ressarcir o dano suportado, em equivalente pecuniário, reestabelecendo, caso possível em concreto, situação jurídica anterior. Se o dano é moral, diante da inviabilidade de restabelecer o status quo ante, fixa-se quantia hábil a compensar pecuniariamente os sentimentos negativos experimentados.
Estas são, em suma, as principais funções que o punitive damage desempenha. Não se trata de rol exaustivo, tendo em vista que cada doutrinador apresenta uma função a mais ou a menos, todavia, estas são as mais relevantes.
O punitive damage goza de bastante prestígio doutrinário e jurisprudencial pelo papel que exerce em ordenamentos jurídicos adeptos ao sistema commom law. Entretanto, uma preocupação surge a respeito de sua aplicação em casos de responsabilidade civil, até mesmo daqueles defensores do instituto, qual seja, o problema de grandes indenizações poderem proporcionar enriquecimento sem causa, criando o que se convencionou chamar de indústria do dano moral.
A aplicação do instituto acabaria por proporcionar um injustificado acréscimo patrimonial da vítima, uma vez que haveria uma reparação, mas com recebimento de quantia mais elevada do que o compatível com o dano efetivamente sofrido.
Argumenta-se que o dano punitivo, por envolver valores elevados, a título de indenização, estimularia pessoas com objetivo de aproveitar o instituto jurídico para locupletamento, buscando enriquecimento fácil, aspecto que os tribunais tentam evitar. Criar-se-ia uma indústria de dano moral. Aduz-se que fixar uma condenação com base na capacidade econômica do sujeito ativo do dano não seria a forma mais correta e justa de arbitramento da condenação.
De outro lado, há quem sustente que considerar a pessoa do sujeito ativo do dano, mais precisamente sua capacidade econômica, é fator relevante para a fixação da condenação. Isso porque diversas ações de reparação de danos morais têm como ré empresas contumazes, conhecidas pelo mau comportamento que adotam. Nesse sentido preceitua José Torres, coordenador da publicação Perfil das maiores demandas judiciais do TJ/RJ (2008, p.22):
A atuação das empresas líderes em responder a demandas judiciais acarreta grande volume de processos, com largo reflexo social, posto que atinge, em especial, as classes menos favorecidas da população, tanto que 66% dos processos de responsabilidade civil dessas empresas, por danos decorrentes de seus serviços, tramitam sob o regime da gratuidade de justiça. Em outras palavras: 1/3 dos lesados pagam as custas processuais, para que 2/3 possam ser atendidos gratuitamente. [...]
Nessas circunstâncias, a questão de interesse comum do Judiciário e dos Jurisdicionados – estes, como autores ou réus dessas ações de responsabilização civil – é a de se saber qual seria o valor reparatório de danos a partir do qual as empresas fornecedoras de bens e serviços passariam a considerar necessário, do ponto de vista dos custos comparados, investir em medidas corretivas internas que fossem eficientes e eficazes para o fim de prevenir a ocorrência daqueles danos, de sorte a evitar demandas judiciais.
Nesses casos de reiterada prática de ilícitos, em que certas empresas são conhecidas social e juridicamente pelo comportamento indevido, seria necessária a adoção de punitive damage. Tais empresas deveriam sofrer condenações não somente reparatórias, mas também com função de punição e desestímulo. É que, devido ao poder econômico, continuam adotando condutas danosas porque compensa, já que a condenação é economicamente pequena. Esse conjunto de circunstâncias revela a importância de tal instituto.
O aspecto a ser considerado não é apenas o econômico, a reparação de dano sofrido pela vítima, mas, principalmente, a resposta jurídica eficaz e adequada ao caso concreto, a fim de levar o ofensor a repensar as atitudes tomadas, em especial naqueles casos em que é contumaz na prática de ilícitos.
6. A ANÁLISE DE DOIS CASOS DA JURISPRUDÊNCIA AMERICANA COM APLICAÇÃO DE INDENIZAÇÃO PUNITIVA
Conforme já relatado anteriormente, foi nos Estados Unidos que o referido instituto ganhou notória força jurídica e aplicabilidade jurisprudencial, assim sendo, faz-se mister apresentar dois emblemáticos casos que ganharam repercussão não somente no meio jurídico pela importância, como também no midiático. A partir da análise de dois casos em que o dano punitivo foi utilizado, ver-se-á a importância de sua aplicação no ordenamento jurídico de um Estado.
6.1 O caso McDonald's Coffee Case
Este é um caso bastante famoso na imprensa americana, tendo em vista que envolve uma grande empresa, McDonald's, e por não se saber, ao certo, o que efetivamente fixado em julgamento, porque, ao final do processo, as partes celebraram acordo de sigilo sobre o montante pago a título de indenização, o que gerou muita especulação midiática.
Segundo dados e fatos narrados por Salomão Rosedá, em sua dissertação de mestrado "A aplicabilidade do punitive damage nas ações de indenização por dano moral no ordenamento jurídico brasileiro" (2008, p.248),em fevereiro de 1992, uma senhora chamada Stella Lieback, 79 anos de idade, comprara um copo de café no referido estabelecimento por meio do sistema drive-through, aquele em que se compra determinado produto sem sair do carro. Este estava sendo guiado pelo neto da cliente, enquanto ela ocupava o banco do passageiro. Após receber o pedido, o neto da senhora Lieback estacionou o veículo e a avó colocou o copo entre as pernas e tentou retirar a tampa de plástico, a fim de adicionar mais açúcar. Nessa tentativa, o copo de café acabou por derramar em seu colo.
Constatou-se que o café derramado provocou queimaduras no corpo, atingindo a região interna da coxa e deixando a cliente internada durante 8 dias no hospital, onde teve que realizar procedimentos cirúrgicos. Depois de receber alta e voltar para casa, ficou durante 3 semanas em observação, findando com cicatrizes permanentes em cerca de 16% (dezesseis por cento) do corpo.Após o tratamento, Stella Lieback acionou judicialmente a empresa a fim de ser ressarcida de gastos hospitalares que somavam, aproximadamente, US$20.000,00. Houve tentativa de conciliação, mas sem sucesso.
Por meio de provas produzidas durante o trâmite processual, três fatos ficaram constatados: 1)a temperatura média dos cafés servidos por estabelecimentos similares variava entre 135 a 140 graus fahrenheit (em torno de 57 a 60 graus celsius), mas o servido no McDonald's estava entre 180 a 190 graus fahrenheit (cerca de 82 a 87 graus celsius); 2) o médico perito relatou que caso um café que seja servido a temperatura média de 170 graus fahrenheit e caia na pele de uma pessoa, o líquido derramado pode causar queimaduras de segundo grau após 3,5 segundos depois de ter atingido a pele; e 3) dentro de um período de 10 anos, a empresa recebeu 700 reclamações de consumidores a respeito justamente de queimaduras provocadas por café.
No momento da fixação do quantum indenizatório, o júri, inicialmente, condenou a empresa em US$200.000,00, a título de danos compensatórios/reparatórios, mas este valor foi reduzido para US$ 160.000,00, tendo em vista que a senhora Lieback foi considerada 20% culpada pelo acidente, configurando culpa concorrente, pois faltou diligência de sua parte. Porém, foram arbitrados US$2.700.000,00 a título de punitive damages, quantia posteriormente foi reduzida para US$480.000,00, o que correspondia a três vezes o valor dos danos reparatórios. Ao final do processo, conforme relatado, houve acordo de sigilo e não se sabe ao certo a quantia exatamente paga.
Apesar da incerteza sobre o montante efetivamente pago, o que se desataca é a adoção da indenização punitiva com a finalidade de reprimir conduta maliciosa e abusiva da empresa. O McDonald's, após o julgamento, reduziu a temperatura dos cafés servidos em suas lojas, demonstrando que a adoção do punitive damage contribuiu para o bem estar social, desestimulando o ofensor a cometer o ilícito (falta de cuidado).
6. 2 O caso Ford Pinto
Outro interessante caso julgado por cortes americanas refere-se ao processo envolvendo grande empresa montadora de veículos, a Ford Motor Company. No ano de 1972, a senhora Lily Gray conduzia seu veículo, um dos modelos da referida montadora, em estrada do interior dos Estados Unidos, quando outro colidiu na parte traseira de seu carro, provocando rompimento do tanque de gasolina e, consequentemente, explosão. Além de Lily Gray, que faleceu no local da explosão, estava um passageiro de 13 anos, Richard Grimshaw, que acabou sofrendo lesões corporais gravíssimas.
O caso foi levado para à Corte de Apelações da Califórnia, em ação buscando responsabilizar a empresa pelo acidente, tendo em vista que um simples abalroamento tomou consequência além do esperado para casos semelhantes. Durante o julgamento, restou demonstrado que engenheiros da Ford sabiam que eventual colisão na parte traseira poderia atingir o tanque de combustível e acarretar incêndio, o que ocorreu.
Contudo, somente se descobriu a falha quando a linha de produção do carro já estava pronta. Os engenheiros analisaram o fato e decidiram colocar o modelo à venda de acordo com o projeto original, pois corrigir a falha geraria prejuízo elevado para a empresa, mesmo sabendo que a falha ocasionaria acidentes fatais. Eventuais indenizações impostas à empresa custariam menos que retificar o defeito apontado.
Um documento oficial da empresa foi acostado aos autos do processo, revelando estudo financeiro prévio sobre custos que a correção da falha provocaria e custos de eventuais indenizações de mortes e lesões corporais. Constatou-se que não fazer o recall era mais vantajoso economicamente para a empresa.
A empresa foi condenada a pagar indenização de US$560.000,00 aos herdeiros da vítima fatal (senhora Gray); e US$2.500.000,00 para Richard Grimshaw, além de uma quantia de US$125.000.000,00 a título de indenização punitiva, sendo esta verba posteriormente reduzida para US$3.500.000,00.
Vislumbra-se caso repugnante a qualquer cidadão, uma vez que a empresa agiu de forma dolosa e intencional no momento da fabricação do carro. Sabia-se que a falha do carro poderia provocar acidentes fatais, mas, mesmo assim, por questões econômicas, preferiu-se colocar o modelo defeituoso à venda.
Percebe-se, em casos assim, inversão de valores sociais motivada por interesses empresariais e desejo de lucro, independente da forma de obtenção. A montadora optou por preservar lucros a proteger bens maiores, a saber, integridade física e vida de pessoas, somente para angariar mais dinheiro. É o que desnuda o estudo econômico prévio a fim de saber qual opção mais vantajosa para a empresa: corrigir o erro ou pagar eventuais indenizações.
A indenização punitiva tem justamente a função de punir severamente empresas que adotam comportamentos semelhantes, a fim de erradicar condutas socialmente repugnantes como essas. Claro que o instituto não é solução para todos o casos, mas é boa alternativa para atenuar práticas reprováveis como a verificada no caso.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consubstanciada no fundamento de que o dano moral possui finalidades além de simplesmente ressarcir a vítima pelo dano, surgiu na Inglaterra (criando, no entanto, maior força e repercussão nos Estados Unidos) o instituto do punitive damage, segundo o qual o sujeito ativo do ato ilícito deveria arcar com uma condenação em valores elevados. Sustentou-se que indenização a título de dano moral possuiria funções de prevenção e punição do ilícito.
A fixação do quantum indenizatório deveria ser em um valor elevado a fim de não somente o punir o ofensor pela agressão cometida, mas também para prevenir que outras práticas iguais ou semelhantes fossem novamente cometidas. Ter-se-ia o desígnio desencorajar não somente o próprio autor da conduta, a fim de não reincidir na prática, como também atingir a sociedade, servindo a indenização punitiva arbitrada como forma de desestimular outros possíveis e potenciais infratores.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VASCONCELOS, Derberth Paula de. Análise do instituto do dano punitivo (punitive damage) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 jun 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46765/analise-do-instituto-do-dano-punitivo-punitive-damage. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
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