Sumário: 1 Introdução; 2 Das Origens do Estado Democrático de Direito; 2.1 Do Ideal Constitucionalista; 2.2 Da Marcha Constitucional Brasileira; 2.2.1 Da Supremacia Normativa da Constituição De 1988; 2.3 Do Princípio da Laicidade; 2.3.1 Da Secularização, as Bases Conceituais da Laicidade Estatal; 2.3.2 O Princípio Da Laicidade Na Constituição De 1988; 2.3.2.1 A Duplice Dimensão Do Principio Da Laicidade No Direito Brasileiro; 2.3.2.2 Principio Da Laicidade como meio de Proteção das religiões contra o assédio do Estado; 2.3.2.1.2 Principio Da Laicidade como meio de proteção do Estado contra o assédio religioso; 2.4 Laicidade e laicismo; 3 Dos atos atentatórios ao Princípio da laicidade; 3.1 Atos atentatórios emanados do executivo; 3.2 Atos atentatórios emanados do legislativo; 3.3 Atos atentatórios emanados do judiciário; 3.4 A crise do estado laico e o risco às liberdades e à solidez do Estado Democrático de Direito; 3.5 Costume contra legem; 4 Enfraquecimento democrático ante o posicionamento antilaico estatal; 4.1 Conceito e função da democracia; 4.2 Laicidade Ficta; 4.3 A urgente imposição da eficácia da laicidade estatal como método de promoção da democracia, liberdade plena de expressão religiosa e igualdade; 5 Considerações finais; Referencial Bibliográfico.
1. INTRODUÇÃO
Funda-se o atual Estado nacional com a promulgação, em 5 de outubro de 1988, da lei fundamental: a Constituição da República Federativa do Brasil. Em seu texto e teor, a Carta Magna reflete uma marcha, para muito além das fronteiras nacionais, em direção à conquista, manutenção e ampliação de direitos e garantias fundamentais.
Em sua magistral obra, Bulos (2014) assevera que “a história das civilizações resume-se, até nossos dias, no embate entre a opressão e a liberdade. Daí a busca pelo reconhecimento dos direitos fundamentais”, de modo que não apenas devessem existir e serem percebidos numa esfera abstrata, sujeita aos interesses dos homens que regulassem o poder e nele exprimissem seus ideias, mas acima deles e sobre eles mesmos superior. Na esteira das lutas pela igualdade entre os povos, surgem ideais como o Constitucionalismo, materializando a peleja para efetivação das conquistas jurídicas e sociais gradativa e historicamente alcançadas[1], livrando-as do aspecto de fragilidade decorrente de um ausente positivismo. Assim, este constitucionalismo[2] desponta para muito além da simples técnica jurídica de tutela das liberdades, mas, como destaca Bulos (2014), em direção a uma “nova ideologia ou método de análise do Direito”, que “inaugura um novo modelo de Estado de Direito”[3].
Neste diapasão, incontáveis poderiam ser os tópicos abordados, quando pensadas as fragilidades jurídicas que outrora pairavam e se perpetravam em torno das garantias e direitos fundamentais. Todavia, é objetivo deste estudo dedicar-se a uma delas especificamente, qual seja a garantia da Laicidade Estatal, que se manifesta, de forma dúplice[4], pela garantia da inviolabilidade à liberdade de consciência e crença e pela determinação de distanciamento, que deve o Estado assumir, em relação à toda e qualquer manifestação religiosa.
A problemática central abordada neste trabalho é a observação do quão eficaz é o Principio da Laicidade, quando analisada a efetivação de atos emanados dos três poderes, indo estes de encontro ao ideal de proteção e distanciamento das liberdades religiosas. Em outros termos, questiona-se se, em manifestando o Estado, por meio de seus agentes presentes nos três poderes, atos que tendem ou assemelham-se à predileção por determinadas manifestações religiosas, não estaria atendando contra tal principio aquele que precipuamente deveria protegê-lo, e quais efeitos jurídicos restariam manifestos e irradiados, em se concluído o efetivo atentado estatal à laicidade.
A questão é admitida em abstrato, considerada não a partir de um determinado caso concreto, pois o que se pretende é a observação da eficácia (ou não) principiológica. Logo, quando elencado, a título exemplificativo, um rol de situações que demonstrem estes mesmos atos, emanados pelos poderes, deseja-se demonstrar e analisar eventual atentado contra o principio em estudo, sendo eles meros exemplos do quadro maior que se intenta apreciar, sem contudo configurar distanciamento da seara da análise jurídico-teórica que ocasione prejuízo ao estudo.
Em que pese a aparente simplicidade e irrelevância do tema, destaque-se que as questões relativas à proteção às liberdades são desdobramentos imperativos à própria manutenção da democracia, e por sua vez do próprio ideal de Estado Democrático, de modo que, em sendo observada e demonstrada, por mais sutil que possa vir a ser, ameaça ou lesão a dado direito ou garantia, restaria flagrante o atentado contra o próprio Estado. Neste sentido, e nele logrando aprofundamento, como bem aponta Lorea et al (2008), o mundo moderno marcado essencialmente pelo pluralismo e multiculturalismo somente poderia ser protegido em um ambiente regido pela laicidade, em que o Estado estaria apto, efetivamente, à promoção da democracia. Portanto, há que se destinar necessária atenção ao estudo do tema.
Como metodologia compreende-se um conjunto de métodos, processos ou técnicas que uma vez conjugados possibilitam ao pesquisador o regular desenvolvimento do trabalho científico. No tocante ao método empregado para implemento deste trabalho, utilizou-se uma combinação de distintos processos e técnicas de investigação. Primeiramente recorreu-se ao processo analítico-sintético, que leva o pesquisador a uma observação do conteúdo global de modo a dirigir-se ao exame de suas partes, isoladamente admitidas, após uma percepção mais ampla. Tal processo é largamente utilizado em produções jurídicas, haja vista a necessidade de análise prévia de dispositivos legais gerais para compreensão de diplomas mais específicos, ou mesmo de situações fáticas decorrentes e interligadas ao teor legal, o que se manifestou no curso da produção pela análise previa do conteúdo principiológico para apenas em seguida passar-se ao estudo e observação dos casos concretos. Nesse ínterim, o método dedutivo, no qual o pesquisador parte de princípios gerais para a compressão das particularidades, é notadamente aplicado, e associado, em grande parte deste trabalho, ao método comparativo, que implica no estudo comparado de distintos sistemas jurídicos, de leis ou códigos anteriores ou externos ao ordenamento pátrio, com intuito de ampliação das possibilidades hermenêuticas pretendidas nesta produção. E, finalmente, utilizou-se o método dogmático, que preconiza a apreensão e compreensão das normas jurídicas, em sua natureza abstrata, geral e cogente, haja vista a essência do tema e sua inafastável imperatividade.
No tocante à estrutura, o trabalho apresenta já em seu Capítulo II uma abordagem dos conceitos de Estado Democrático e Constitucionalismo, bem como da importância dos princípios e garantias para os atuais contornos dos Estados Democráticos de Direito, além de adentrar no Princípio da Laicidade. No Capítulo III, é abordado, em caráter exemplificativo, um rol de atos, emanados pelos poderes, que podem ser considerados como atentatórios à garantia constitucional em estudo, momento no qual o questionamento central da produção é tangenciado. Em seguida, no Capítulo IV é tratada a crise do Estado laico e o risco que isto representa às liberdades, momento em que será abordada a jurisprudência pátria e internacional, além do direito comparado. Finalmente, no Capítulo V os pontos mais relevantes ao tema serão analisados, fazendo-se uso da produção doutrinária, e num encaminhamento para as Considerações Finais, onde serão tecidas as ponderações que encerram a produção científica.
Por tudo, pretende-se demonstrar, por meio do material agrupado, produzido e aqui exposto, a importância ímpar da proteção às liberdades, sobretudo àquelas impressas nos direitos à manifestação de crença, que consagram em si mesmas facetas dos pilares do Estado Democrático.
2. DAS ORIGENS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Os limites epistemológicos do presente trabalho podem ser percebidos na apreensão do conteúdo do Principio da Laicidade, e na explanação acerca de sua eficácia em nosso sistema jurídico. Por conseguinte, para êxito deste propósito, antes mesmo de adentrar, especificamente, no conteúdo proposto, faz-se necessário algumas brevíssimas considerações sobre o próprio sistema jurídico em que se insere este estudo, haja vista não ser o direito um fenômeno estanque e sim uma materialização simbólica contínua dos povos, como já apontava Savigny. Imprescindível se faz, portanto, ter uma perspectiva, por mais rasa que seja, sobre o processo de construção histórica que resultou no atual momento em que se situa esta produção.
Ao estudar as raízes do Estado moderno, Streck e Morais (2003) recorrem aos ensinamentos de Bobbio, que por sua vez elenca três características essenciais ao homem, que devem ser consideradas quando tratado este tema:
O homem é um animal teleológico, que cumpre ações e se serve de coisas úteis para obter seus objetivos [...] é um animal simbólico, que se comunica com seus semelhantes através de símbolos dos quais o mais importante é a linguagem [...] é um animal ideológico, que utiliza valores vigentes no sistema cultural noqual está inserido, a fim de racionalizar seu comportamento, alegando motivos diferentes dos reais, com o fim de justificar-se ou de obter o consenso dos demais. (STRECK e MORAIS, 2003, p. 17-18)
É preciso considerar, conforme ensina o referido autor, que cada ação humana está sempre impregnada, de forma evidente ou não, por inúmeros significados provenientes dos símbolos instrumentalizados pela sociedade em que está inserido e que este movimento simbólico do qual fazem uso os indivíduos, justifica-se pelo fim para qual se dirigem, mesmo quando não é este claramente manifesto[5].
Streck e Morais (2003) consideram que o termo Estado é relativamente novo[6], porem seu conteúdo sempre esteve presente nesta intenção final do homem, qual fosse a de, ajuntando-se em grupos, escapar da barbárie e da fragilidade oriunda do isolamento, aumentando assim suas chances de sobrevivência e prosperidade. Portanto considerando o termo e não o ideal em si, ao menos por ora, dividem Streck e Morais (2003) dois períodos em que o Estado pode ser considerado (o pré-moderno e o moderno), considerações que serão deveras importantes a este estudo em um momento próximo:
É importante que se estabeleçam alguns parâmetros identificadores do que nominamos “formas estatais pré-modernas, saber: A – O Estado Antigo (oriente ou Teocrático), como sendo uma forma estatal definida entre as antigas civilizações do Oriente ou do Mediterrâneo, onde a família, a religião, o Estado e a organizações econômica formavam um conjunto confuso, sem diferenciação aparente. Em consequência, não se distinguia o pensamento político da religião [...] B – O Estado Grego, cujas características fundamentais podem ser elencadas como sendo: a) cidades-Estados, ou seja, a polis como sociedade politica de maior expressão, visando ao ideal da auto-suficiencia; b) uma elite (classe política), com intensa participação nas decisões do Estado nos assuntos públicos [...] D – O Estado Antigo, que tinha as seguintes características: a) não eram Estados nacionais, ou seja, o povo não estava ainda ligado por tradições, lembranças, costumes língua e cultura, mas por produtos de guerras e conquistas; b) modelo social baseado na separação rígida das classes e no sistema de castas; c) governos marcados pela autocracia ou por monarquias despóticas e o caráter autoritário e teocrático do poder político; d) sistema econômico (produção rural e mercantil) baseado na escravidão; e) profunda influencia religiosa. (STRECK e MORAIS, 2003, p.20) (grifo nosso)
Deste modo, Streck e Morais destacam que, a despeito de poucas variações, um dos traços marcantes desta seleção histórica que caracteriza os estados pré-modernos é a presença do fator religioso na determinação do modo de vida social e na organização política. Desde os primeiros conceitos de Estado (o antigo), já lhe era sinônimo o aspecto teocrático e, embora tenha evoluído, conforme a marcha social, perpassando pelo gregos, romanos e mais recentemente na era medieval, preservou-se aquele caráter confuso onde a influência religiosa determina as condutas sociais, revelando em verdade a sobreposição de um específico grupo composto por aqueles que detêm as revelações e verdades divinas sobre todos os demais.
Existe assim uma nítida dependência dos ditames religiosos[7], vigentes em cada época, na composição do arcabouço ideológico que compõe estes Estados; são eles mesmos os paradigmas elementares que sustentam esse modo de viver.
Como mencionado há pouco, os autores citados distinguem dois períodos da história dos Estados, sendo o pré-moderno este mencionado até aqui, e o moderno, que se abordará mais adiante. Porém, entendem necessário aprofundar o porquê de tal dicotomia[8], de modo a ser prudente pontuar a importância da separação dos dois termos:
O Estado moderno é uma inovação. A começar pelo fato de que, no feudalismo, o poder individualizado – encarna-se num homem que concentra na sua pessoa os instrumentos da potência e a justificação da autoridade [...] como contraponto, no Estado Moderno a dominação passa a ser legal-racional [...] como aquela decorrente de estatuto, sendo seu tipo mais puro a “dominação burocrática”, onde qualquer direito pode ser criado e modificado mediante um estatuto sancionado corretamente quanto à forma; ou seja, obedece-se não à pessoa em virtude de seu direito próprio, mas à regra estatuída. (STRECK e MORAIS, 2003, p.26)
Observa-se então, como importante fator histórico que recebe destaque pelos autores que, o arcabouço que legitima os Estados migra da figura exclusiva do individuo, que é respaldado pela religião (aquele que melhor a representa, muitos vezes por ser o detentor dos conhecimentos inerentes a ela), para a própria lei. Para um sistema racional que não sustenta-se diretamente no homem, mas antes num conjunto racional lógico que, uma vez estatuído, em regra, não deveria dele mais depender, subjugando, inclusive, aqueles que o criam. Neste sentido destacam Streck e Morais (2003) que é “característica do Estado Moderno [...] essa autonomia, essa plena soberania do estado, a qual não permite que sua autoridade dependa de nenhuma outra autoridade”, apontando esse momento como marcado pelo “direito através da lei, [...] à diferença do direito consuetudinário”.
O Estado Democrático de Direito, hoje modelo vigente, deriva de uma sequência de mudanças sociais e políticas que converge elementos dos modelos imediatamente anteriores, na busca de um possível equilíbrio proveniente das diferentes entre o Estado Liberal[9], em que predominava a inércia estatal em relação às preocupações sociais, e o desprezo à democracia, caraterístico ao Estado Social.
O paradigma, segundo Habermas (1997) é “pano de fundo não temático” que determina diretamente a percepção dos atores sociais, de suas realidades e do modo como as interações se produzem. Desta feita, dedica-se o referido autor em sua obra[10] a expor a sucessão dos paradigmas constitucionais que acompanharam as realidades sociais de cada período. Sendo assim, quando se diz que no Estado liberal a intervenção e proteção aos interesses difusos era mínima, certamente há uma relação direta com o texto constitucional que regia o Estado àquela época, haja vista a necessária relação entre o paradigma vivenciado e a Constituição vigente, que era sem dúvida reflexo daquele.
É sabido que historicamente não logra êxito o Estado Liberal, por distanciar-se por demais das demandas sociais. Quando de sua derrocada, ergue-se o Estado Social, cujo papel é consideravelmente ampliado, com intensa participação em diversas áreas da vida social. Neste sistema jurídico, o intervencionismo estatal é nítido, demasiado, sobretudo na seara econômica, por meio da produção de inúmeros regulamentos, instrumentos normativos e até mesmo na confusão de atribuições entre os poderes, em que o Executivo fazia as vezes de Legislativo, quando lhe era conveniente. No entanto, embora agindo de maneira exacerbada, em determinados aspectos, restou ausente no tocante ao implemento de uma igualdade material entre os indivíduos, produzindo uma realidade formal que em nada se aproximava da vida real dos cidadãos, fomentando deste modo o próximo momento histórico.
O Estado Democrático de Direito surge exatamente como resposta ao desejo de maior intervenção estatal para promoção de uma igualdade material e controle dos excessos da administração pública, que eventualmente atingiam os interesses dos particulares. Neste sentido erige-se importante paradigma, qual seja o da legitimação da ordem pública por meio de uma maior participação social.
Ganha assim novos contornos este novo formato de ordenamento jurídico, que busca o equilíbrio entre os aspectos bem sucedidos de seus antecessores. A ideia central passa a ser a de promoção de segurança jurídica, na aplicação de um direito destinado tanto aos indivíduos quanto ao próprio Estado, exaltando-se desta forma a visão, então emergente, de um ordenamento jurídico complexo, regido pelo positivismo jurídico, e concretizado a partir do ideal constitucional, que a seu turno privilegia a razão em detrimento da religiosidade tão presente no Estado pré-moderno, isto num evidente reflexo das mudanças intelectuais e sociais que experimentava o mundo àquele período.
Todavia, para além de um mero reflexo histórico, a predileção pela analise racional dos processos jurídicos mostra-se, ao longo dos anos, como o melhor caminho encontrado pelo homem para o vislumbre do equilíbrio, sobretudo quando pensado aquele ideal de Estado autônomo, aqui já mencionado. Machado Neto (1996) bem comenta a esse respeito, ao destacar que “o estudo do ordenamento jurídico como uma estrutura sistemática coerente é um estudo ainda de lógica jurídica formal, pelo menos no essencial, tal como a análise lógica de um discurso, que procurasse expungi-lo de toda contradição interna”.
Assim, para avançar na compreensão deste Estado Moderno e de suas mais atuais manifestações, faz-se oportuno abordar, mesmo que de modo igualmente sucinto, as questões relativas ao movimento constitucionalista, seu conteúdo ideológico e sua relevância para a consolidação dos Estados, fundados na razão humana (e não na inspiração divina) como recurso de legitimação do poder.
2.1 DO IDEAL CONSTITUCIONALISTA
Um dos grandes problemas na transição entre Estados pré-modernos e modernos é a questão da legitimidade necessária à sua sustentação. No período definido por Streck e Morais (2003) como anterior à modernidade, fundava-se o Estado no império dos homens imbuídos de responsabilidades predominantemente divinas, haja vista o preponderante teor religioso que perpassava as culturas. No entanto, era evidente, por este mesmo fator recorrente de legitimação, sua ilegitimidade, por emanar de determinado seguimento, grupo ou prisma isolado, e não representar toda a coletividade para qual se destinava aquele Estado.
Tinha-se ainda o problema da religiosidade como recurso de estruturação lógica, que especialmente durante a modernidade foi um aspecto social amplamente combatido[11], alvo de incontáveis construções filosóficas e políticas cujo objetivo era deslocar o centro do pensamento, do campo religioso para o racional, retirando de “Deus” o controle da sociedade e entregando-o aos “homens”. Obviamente, o que se pretende colocar aqui é a notória mudança de pensamento que ocorreu na Europa no período de transição entre a idade média e a moderna, em que se buscou difundir o antropocentrismo e o racionalismo para suplantar o teocentrismo.
Passaram portanto os pensadores a dotar o Estado de uma necessária autonomia, dos antigos arquétipos legitimadores, capacitando-o a existir por si mesmo, pela necessidade prévia do homem em organizar-se em sociedade guiado pela racionalidade.
O Estado busca assim meios de externar e consolidar aquela autonomia, distante dos ditames teocráticos, buscando um eixo seguro nos alicerces da razão, de onde poderia extrair a solidez necessária a sua perpetuação. Por isso mesmo, este Estado Moderno passa a ser pensado e lapidado, como já dito, em torno da razão humana, como ensina Canotilho (1993); “O Estado [...] constitui forma de racionalização e generalização do político nas sociedades modernas”.
Neste diapasão, emerge o ideal constitucional como recurso hábil para instrumentalizar, tanto o reconhecimento dos direitos mais elementares, carentes de perpetua proteção, quanto à limitações do arbítrio dos antigos legitimadores, como se observa no fragmento abaixo:
A história das civilizações resume-se, até os nossos dias, no embate entre a opressão e a liberdade. Daí a busca pelo reconhecimento dos direitos fundamentais, de modo que a razão sobrepuje a força e a violência. Se é exato que este embate culminou com a eclosão da Revolução Francesa, mais certo ainda é que os ideais de liberdade, democracia e justiça sempre foram a tônica dos reclame contra os processos de domínio das coletividades. Por isso, sempre existiu uma norma básica para conferir poderes ao soberano. Aqui pouco importa se o documento constitucional impõe limites, ou não, aos atos de governo, se é escrito ou consuetudinário. O que interessa, apenas, é a existência, explicita ou tácita, de um conjunto de princípios, preceitos, praxes, usos, costumes etc., que ordenava, com supremacia e coercitividade, a vida de um povo. É nessa vertente que desponta o sentido amplo do constitucionalismo. (BULOS, 2014, p.64-65)
Como precisamente aponta Bulos (2014), o constitucionalismo, antes de ser uma técnica de interpretação dos preceitos integrantes das Normas Hipotéticas Fundamentais, é a própria pedra angular do Estado Moderno, pois não somente o funda, como concentra em si todo o arcabouço sistemático de direitos e garantias que devem assistir ao povo contra si mesmo, livrando-o do estado da natureza[12] e do arbítrio do soberano, experimentado no período medieval e absolutista. Neste sentido aponta Canotilho (1993, p.17):
As constituições ligam-se ao “nascimento do Estado” [...] quer à construção ou sedimentação de uma comunidade nacional. Daí a “representação” constitucional do Estado-Nação: um centro político – o Estado – , conformado por normas – as normas da constituição – exerce a coacção(sic) física legítima” – poder – dentro de um território nacional.
Assume então a Constituição o papel de instrumento máximo de legitimação, por encerrar em si mesma os preceitos mais elementares de proteção a todos os indivíduos que hão de submeter-se ao Estado que por ela se inaugura. Mas antes disso, deve-se elucidar que há o ideal Constitucional, que além de lhe ser a causa primeira, é intenção dirigida a ordenar, racionalmente, tais paradigmas em um documento escrito, que como bem ensina Bulos (2014), é o “pacto fundante do ordenamento supremo de um povo”.
Deste modo, a legitimidade Constitucional derivaria do ideal de encerrar em seu conteúdo os ideais humanos de justiça, igualdade e liberdade mais elevados. Como preleciona Canotilho (1993, p.18):
Um topos caracterizador da modernidade e do constitucionalismo foi sempre a consideração dos “direitos do homem” como ratio essendi[13] do estado Constitucional [...] quer fossem considerados como “direitos naturais”, “direitos inalienáveis” ou “direitos racionais” do individuo, os direitos do homem, constitucionalmente reconhecidos, possuíam uma dimensão projectiva (sic) de comensuração universal.
Expondo ainda o papel de legitimação racional que assumem as Constituições, comenta o renomado jurista português:
Como explicar a emergência de novos “pactos fundadores”? Em termos de narratividade moderna a resposta é racional: pretende-se um esquema político de regras que definam um esquema de atividades e uma justa configuração das instituições sociais – “estruturas básicas” – de forma a permitir aos homens a organização e funcionamento de uma “sociedade bem ordenada” [...] a criação de um “pacto fundador”, como é a constituição, procura-se, antes, em estruturas simbólicas, míticas ou arquetípicas. Em vez de “pacto fundador” fala-se em “mito” ou “mitos fundadores”. (CANOTILHO, 1993, p. 18) (grifo nosso)
Expressões como “justa configuração”, “estruturas básicas” e “sociedade bem ordenada”, presentes na fala do doutrinador, revelam os objetivos que integram este “pacto fundador”, ou seja, este documento escrito que cria o Estado, de modo a refletir diretamente os paradigmas fundamentais que irão dirigir, racionalmente, as mais elevadas expectativas de toda a sociedade, encerrando em si mesmo sua legitimidade. Assim, ao passo em que este documento instituído encontra sua validade sem socorrer-se dos anteriores recursos, como designação divina ou poderio bélico, mas se valendo tão somente na racionalidade humana, converte-se este “Estado [em] uma categoria nuclear da semântica política da modernidade”, como destaca Canotilho (1993), sendo, finalmente, a Constituição e o ideal constitucional exemplos das maiores e mais esplêndidas construções da racionalidade humana na busca pela organização social.
Indubitavelmente, o estudo que este trabalho se propõe a apresentar localiza-se na seara constitucional, haja vista estar esculpido na própria Carta Magna vigente o Princípio que se pretende analisar. O estudo sistemático do conteúdo Constitucional cabe, hodiernamente, a um ramo especifico da ciência jurídica, qual seja o Direito Constitucional, que nas palavras de Silva (2005) “pertence ao setor do Direito público [e] distingue-se dos demais ramos do Direito [...] pela natureza especifica de seu objeto e pelos princípios peculiares que o informam”. Preceitua ainda o importante jurista que:
Cabe ao Direito Constitucional o estudo sistemático das normas que integram a constituição do Estado. Sendo ciência, há de ser forçosamente um conhecimento sistematizado sobre determinado objeto, e este é o constituído pelas normas fundamentais da organização do Estado, isto é, pelas normas relativas à estrutura do Estado. (SILVA, 2005, p.34)
Desta feita, pode-se concluir que são as Constituições, elementos fundadores dos Estados Modernos, o pacto que a sociedade firma e que estabelece o marco inicial deste modelo organizacional que dirige-se pela legitimidade produzida através da razão humana. Sendo imprescindível o avanço e continuo estudo deste fenômeno haja vista ser dinâmica a sociedade para qual se destina, o que justifica a igual dinamicidade das compreensões sobre estes pilares.
2.2 DA MARCHA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA
O estudo sistemático do fenômeno constitucional, como já dito, cabe a ramo especifico da ciência jurídica, que objeta compreender este Estado através do debruçamento sobre a própria Cosntituição vigente, para apreensão desta “forma do estado, dos órgãos que integram a sua estrutura, das competências desses órgãos, da aquisição do poder e de seu exercício”, como elucidam Alexandrino e Paulo (2010). Mas, indo um pouco além disto, o estudo da Constituição possui verdadeiro valor semântico, como se pode aferir:
Existe uma disciplina cientifica cujo desiderato é expor o conjunto de conceitos operacionais que dão suporte ao entendimento daquela estrutura – o Direito Constitucional. [...] portanto é substrato e o ponto de convergência de todas as matérias: [...] trata-se, pois, de uma disciplina síntese, que nos permite visualizar as conexões do fenômeno jurídico em sua plenitude, haja vista a influência que exerce sobre todos os ramos do Direito. (BULOS, 2014, p.56-57)
Certamente, muito felizes são as colocações do doutrinador quando aponta na direção de que é esta espécie de fragmento da ciência jurídica o de maior relevância, por influir em todos os demais, e isto por uma razão muito evidente: informar qual é este Estado, de onde todo o ordenamento emana, e como se constitui este pacto que lhe funda. Logo, é momento oportuno dedicar parte deste estudo a traçar um rápido apanhado sobre as constituições, as quais fundaram os distintos Estados que foram experimentados em nosso território nacional até o momento mais atual.
Muitas foram, ao longo da história brasileira, as Constituições que formularam distintos Estados vivenciados no território nacional, sendo especificamente sete, nos quase 180 anos que compõem a independência e no pouco mais de 100 anos de República.
O inicio do período Constitucional Brasileiro se dá, flagrantemente, sob o manto da ilegitimidade, haja vista ter sua promulgação, em 1824, decorrida de outorga a todas as províncias e dotada de plena ausência popular e, embora exaltasse o ideal liberal, que consagra os conceitos de liberdades, jamais fora cogitada pelo Imperador como fonte de sua legitimidade, sendo inclusive por ele mesmo ignorada no exercício de suas atividades. Nas palavras de Barroso (2000) “a autoridade, em vez de institucionalizar-se, personaliza-se”.
Cabe frisar que o Constitucionalismo, como ensina Bulos (2014), em seu sentido estrito, mais especificamente em seu caráter ideológico, determina a existência do governo das leis sobre os homens e não dos homens sobre os homens e leis, importando isto na supremacia legal aos interesses peculiares dos lideres, isoladamente considerados, e mais que isto, devendo estas constituições escritas funcionarem como “instrumentos assecuratórios dos direitos e garantias fundamentais”, de modo que “a sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos, nem determinada a separação dos poderes, não tem constituição”, como preleciona Bulos (2014). É, portanto, evidente a mera existência formal do documento que funda o Estado em 1824, por ser amplamente vazio do teor constitucional.
É de suma relevância, para o objetivo deste trabalho, destacar que é na vigência desta Constituição, mediante a promulgação do Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, que é estabelecida a laicidade do Estado Brasileiro. Mais adiante, em momento oportuno, será melhor aprofundada esta informação.
Pouco tempo depois, em 24 de fevereiro de 1891, funda-se um novo Estado, que segundo Barroso (2000), ao citar Seabra Fagundes, continua distante do ideal republicano, pela elaboração elitista e distanciamento das grandes massas. Sua inspiração é nitidamente norte-americana, e é marcada por três modificações, em relação a sua antecessora: altera-se a forma de governo de monarquia para república, transmuta-se o sistema de governo de parlamentarismo para presidencialismo, e por fim é instituída a forma federativa do Estado, em substituição ao modelo unitário vigente até então.
No entanto, tendo em vista o ideal constitucional, que evidentemente difere do mero documento nomeado “Constituição”, padece esta de vícios igualmente irremediáveis, como assevera Barroso (2000, p.13):
A República inicia de forma melancólica, densamente autoritária, omissa na questão social, elitista no seu desprezo à conscientização popular. Prenunciava-se, desde que promulgada a nova carta, a convulsiva instabilidade das instituições, golpeadas logo à primeira hora pelo Marechal Deodoro, que em gesto de força, decretou a dissolução das Câmaras Legislativas.
Destaque-se que a laicidade instituída no Decreto 119-A, de 1890, fora alçada à condição de Princípio norteador do Estado na Constituição de 1891, conforme era a dicção do art. 11, § 2º da então carta magna[14]. Todavia, apresentava-se visivelmente frágil para todos os contemporâneos, inspirando manifestações da população, como a Revolta de Canudos, a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul e a Revolta Armada, que se insurgiram contra este modelo inconstitucional de Estado.
Por influência de acontecimentos e movimentos internacionais, como a crise de 1929, o fortalecimento dos movimentos nacionais dos trabalhadores e do poderio industrial, frente ao setor agrário, vê-se derrubada a antiga e estabelecida nova ordem, em 16 de julho de 1934.
A constituição de 1934, influenciada pela Constituição de Weimar, de 1919 ,e pelo corporativismo, continha inovações e virtudes, dedicou um título à Ordem Econômica e Social, iniciando a era da intervenção estatal. Criou a Justiça do Trabalho e o salário mínimo, instituiu o mandado de segurança, acolheu expressamente a ação popular e manteve a Justiça Eleitoral, criada em 1932. Em uma fórmula de compromisso entre capital e trabalho, delineou o arcabouço formal de uma democracia social, que não se consumou. (BARROSO, 2000, p.20)
Embora demonstrando importantes avanços sociais em seu texto, restara ineficaz, em face dos movimentos políticos que se articulavam desde sua origem para a modificação do Estado, especialmente pelos setores militares, que demonstravam desde aquele momento interesse em assumir as rédeas da condução do país. Assim, em 1937, passada menos de uma década da promulgação da Constituição de 34, é fundando novo Estado, cujos contornos se aproximavam no unitarismo do império, com a figura do Poder Central, que sendo Executivo, sobrepujava o Legislativo que lhe servia unicamente de apoio formal, porquanto inoperante na prática, rompendo-se a independência dos poderes, por meio do art. 180, que dotava o Ditador de poderes supremos diante de quaisquer outros.
Na esteira das mudanças nacionais e internacionais, anuncia Barroso (2000) mudanças relevantes no curso da historia constitucional brasileira:
O crescente desgaste político do Estado Novo era de certa forma atenuado pela conflagração mundial, em curso de 1939 [...] captando a evidencia e rendendo-se aos novos tempos, Vargas deu início a uma série de medidas liberalizantes ,a partir da Lei Constitucional nº 9, de 28 de fevereiro de 1945, que alterou profundamente a feição da Carta de 1937. (p.24)
Das alterações implementadas destaca-se a experiência, inaugural na história brasileira, de partidos políticos de âmbito nacional, convocados para eleições gerais, convocadas por meio das medidas adotadas à época. No curso daquelas mudanças, foi instituída Assembleia Constituinte em 2 de dezembro de 1945, dando fim à Carta de 1937, a qual, em estrito sensu, jamais chegou a ter vigência regular e efetiva.
Nas palavras de Barroso (2000), o ciclo iniciado em 18 de setembro de 1946, com a promulgação da nova Constituição, acompanhou uma fase fértil percebida em todo o mundo, quando vários Estados novos surgiam e buscavam no ideal constitucional a produção de seus pactos fundadores. Esta Carta Magna é exaltada pela doutrina como nossa melhor carta, sendo inspirada diretamente pela Constituição norte-americana, pelo federalismo Francês e pela Constituição de Weimar.
Um profundo quadro de instabilidade política precede o Golpe Militar de 31 de março de 1964, que inaugura um período tenebroso no campo de direitos e garantias fundamentais, como se pode perceber:
Iniciou-se intensa repressão, disseminada e anárquica, aos adversários da véspera, encubalhados todos sob o rótulo de “subversivos ou corruptos”. Pouco à frente, a intolerância política, acirrada pela vitória de oposicionistas aos governos estaduais da Guanabara e Minas Gerais, materializou-se no Ato Institucional nº 2, de 27.10.65. Em dias de desmando e prepotência, as instituições entraram em colapso, a legitimidade, já contestável, esvaziou-se e a autocracia se instituiu. (BARROSO, 2000, p.24)
Sob o esmagador efeito de três atos institucionais, vinte emendas constitucionais e algo em torno de quarenta atos complementares, ruiu o que restava da Constituição de 1946. Em 13 de dezembro de 1968, como consequência do discurso do Deputado Márcio Moreira Alves, instaurou-se uma profunda crise entre Governo e Congresso, que ensejou o Ato Institucional nº 5, pelo que se decretou “recesso” do Congresso Nacional. Esta medida estabeleceu o governo militar acima da ordem constitucional, dotando-o de poderes para legislar quando do período relativo ao recesso imposto ao Congresso, para proceder intervenção federal nos estados membros e municípios, poder de suspensão dos direitos políticos e cassação de mandatos eletivos de todo e qualquer nível, além do poder para suspensão de garantias da magistratura, confisco de bens, suspensão de hebeas corpus em casos de crimes políticos, e exclusão da apreciação pelo judiciário de atos praticados sob a égide do AI nº 5.
Em 30 de outubro de 1969, ascende à presidência da República o General Emílio Garrastazu Médici. Dias antes, em 17 de outubro do mesmo ano[15], é promulgada a Constituição de 1967, totalmente dirigida pelos militares, e nitidamente eivada de total ilegitimidade. Embora tenha sido um período em que, economicamente, tenha se obtido certo êxito, quando analisado o aspecto constitucional, sobretudo no tocante aos ideais constitucionalistas de proteção ao individuo e a direitos e garantias fundamentais, sem sombra de dúvidas, resta configurado este período da história recente brasileira como um dos mais tortuosos e repulsivos, tanto pelo indiscutível distanciamento democrático, quanto pelo esmagamento daquilo que deveria ser o cerne da proteção estatal.
Em 1 de fevereiro de 1987, após vinte e cinco anos de regime militar, o então presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro José Carlos Moreira Alves, instalou a Assembleia Constituinte[16], tendo como presidente o principal líder parlamentar de oposição ao regime militar, o Deputado Ulisses Guimarães, conduzindo os trabalhos para elaboração da nova Constituição que inauguraria o atual Estado Democrático Brasileiro.
Notadamente, a atual Lex Legum marca a reconquista de direitos e garantias fundamentais e a retomada do processo democrático nacional, erguendo-se como símbolo maior da superação do período de arbítrio que lhe é anterior.
Desde sua promulgação, o Direito Pátrio, sobretudo o ramo Consitucional, se esmera em aprofundar os estudos possíveis e necessários para sua máxima compreensão e promoção do maior grau possível de eficácia do seu teor normativo.
2.2.1 DA SUPREMACIA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Uma vez fundando este Novo Estado, por esta Nova Constituição, há que se observar determinados aspectos que lhe são peculiares e, quando comparados com os textos máximos que lhe são prévios, dão importantíssimo relevo ao seu texto.
De todas cartas Magnas que o Brasil já veio a ter, sem dúvida alguma, é esta a que mais se aproxima do Ideal Constitucionalista, por ter efetivamente emanado do povo em um período de intensa movimentação intelectual e enfrentamento a um dos momentos mais antidemocráticos de toda a história nacional. Seu próprio texto reflete não apenas o repúdio às condutas ditatoriais e contrárias aos mais elementares ideais de proteção aos direitos humanos, praticadas no período ditatorial, mas também abre caminho para a construção das bases de uma sociedade sobre os pilares de proteção e ampliação de direitos e garantias.
Como este Estado nasce diretamente deste pacto que o institui, há que se falar em uma decorrente superioridade constitucional sobre toda e qualquer lei que lhe seja ulterior. Não se distanciando disto, Bulos (2014), ao qualificar normativamente a Lex Mater, utiliza expressões como “preeminência, hegemonia e superioridade”, e vai além , sendo categórico ao determinar que “em virtude de sua supremacia, subordinam-se a ela os atos materiais exercidos pelos homens e os atos jurídicos que criam direitos e estabelecem deveres”, de modo que sua força normativa, como bem alude o autor, “esparge em todos os segmentos do ordenamento jurídico”.
Esta força normativa suprema tem sua razão de ser na necessidade ontológica[17]de figurar o texto normativo como lex legum, leis das leis, aquela que não é derivada de nenhuma outra e encontra legitimidade em si mesma, legitimidade esta imprescindível à validade do próprio Estado, de modo que sua inobservância ocasionaria um ruir na pedra angular do ideal de organização coletiva e do pacto social estabelecido com a instituição da Carta Magna.
Constituição e Constitucionalismo, são termos distintos, como já abordado previamente. Utilizando-se a lição de Bulos (2014), vemos que “a existência de uma constituição escrita não se identifica necessariamente com a deflagração da ideia de Constitucionalismo”. Isto porque o ideal Constitucionalista esta muito acima da produção de um texto escrito, ele reflete tanto a limitação dos poderes do governante, como, mais relevante que isto, o reconhecimento e a persecução dos “postulados supremos da personalidade humana, consectários da igualdade, da fraternidade, da legalidade, da liberdade e da democracia”, nas mais precisas palavras do autor. A mera produção escrita pode sequer vir a considerar este objetivo máximo, ou quando muito, registrá-lo mas mantê-lo distante do plano da materialidade fática, sendo ambas as situações experimentadas por ordenamentos anteriores, cujas Constituições eram amplamente vazias do ideal que deveriam ser reflexo.
Portanto, é preciso, no curso do estudo hermenêutico constitucional, observar a presença de elementos neste texto primeiro que identifiquem-no com o ideal Constitucional. Bulos (2014) considera certos elementos que são inafastáveis ao texto constitucional que se pretende adequar ao Constitucionalismo, os quais o autor chama de elementos mínimo-irredutíveis das constituições. Tais elementos são itens indispensáveis à configuração dos textos constitucionais, como ensina Bulos (2014) e sem estes qualquer constituição seria considerada adversa ao ideal Constitucional.
Certamente, a generalidade dos textos supremos em vigor apresenta, em seus articulados, itens de presença obrigatória, como aqueles ligados à parte orgânica, à limitação dos poderes estatais, ao caráter compromissório das cartas constitucionais modernas, às defesas das instituições, ao modo de aplicação dos textos magnos. (BULOS, 2014, p.123)
Da generalidade que se refere Bulos (2014) é que se deve extrair os elementos mínimo-irredutíveis das constituições, e consoante o entendimento do autor, seguindo a mais atual doutrina constitucionalista, “se eles [os elementos] faltassem nos textos constitucionais, a organização político-jurídica do Estado ficaria desconfigurada em suas linhas-mestras”.
Deste modo, seguindo sua análise no Texto Constitucional vigente, não apenas identifica o autor a presença de tais elementos, como enumera-os, numa classificação em seis categorias distintas, sendo elas:
Elementos mínimo-irredutíveis orgânicos ou dogmáticos – organizam o estado brasileiro e a estrutura do poder [...] Elementos mínimo-irredutíveis limitativos – freiam o poder estatal perante os cidadãos, evitando o arbítrio, o abuso de autoridade, o desrespeito aos direitos e garantias fundamentais [...] Elementos mínimo-irredutíveis socioideológicos – assinalam os fins sociais e econômicos do Estado, refletindo os anseios por uma sociedade mais justa [...] Elementos mínimo-irredutíveis de estabilização constitucional – buscam manter a normalidade institucional e a paz coletiva [...] Elementos mínimo-irredutíveis de aplicabilidade constitucional – estabelecem o procedimento formal para promulgação, vigência e aplicação das normas supremas do Estado. bem como o grau de eficácia dos preceitos definidores dos direitos e garantias fundamentais[18]. (BULOS, 2014, p.123-124) (grifo nosso)
Para efeito do estudo presente, é importante destacar que os elementos mínimo-irredutíveis dogmáticos, segundo Bulos (2014), compreendem os arts. 18 a 43; 44 a 135; 142 a 144 e 145 a 169 do texto Constitucional, e por estar o Princípio da Laicidade, objeto central desta analise, esculpido no art. 19, inciso I, figura esta classificação no rol dos Elementos mínimo-irredutíveis.
Uma vez percebida a atual Carta Magna como pacto fundante do atual Estado e legítima quanto a sua correspondência, tanto com o ideal Constitucionalista, pela presença em seu conteúdo dos pilares universais constitucionais, como também com o ideal democrático, resta questionar a mais relevante das ponderações, a que atine à sua eficácia.
Um dos mais severos vícios, que eivou textos fundadores anteriores, fora exatamente a inobservância do teor constitucional ou o desinteresse direto de sua aplicação, porquanto é sabido que a simples existência de texto normativo não é capaz de irradiar efeitos na esfera da vida prática dos indivíduos. Neste sentido comenta Barroso (2000), citando renomado jurista:
As diversas situações jurídicas criadas pela Constituição seriam de ínfima valia se não houvesse meios adequados para garantir a concretização de seus efeitos. É preciso que existam instrumentos e procedimentos capazes de fazer com que as normas jurídicas se transformem, de exigências abstratas dirigidas à vontade humana, em ações concretas. (JELLINEK apud BARROSO, 2000, p.121)
Há que se avaliar se o princípio da laicidade, que é um dos pilares elementares do Ideal Constitucional Brasileiro, tem encontrando, no campo prático, na esfera de concretude da vida cotidiana, a eficácia necessária que revelaria sua percepção e observância, e em sendo percebidas e demonstradas, quaisquer evidências do contrário (indícios de sua ineficácia), que espécie de dano ao Ideal supracitado e, por conseguinte, ao Estado Democrático de Direito restaria configurado e, quais meios poderiam existir para sanar tais incongruências jurídicas. Todavia, antes de adentrar nestes questionamentos, mister se faz tratar efetivamente, do conteúdo e história do principio-eixo desta discussão.
2.3 DO PRINCÍPIO DA LAICIDADE
A laicidade não pode ser, ao menos não aprioristicamente, considerada como um direito natural que assiste ao homem, haja vista estar relacionada diretamente ao fenômeno histórico e social da vedação/mitigação de uma liberdade, esta sim natural, da manifestação da consciência. De modo que, para se falar em laicidade, necessariamente deve-se falar antes em um Estado que usurpou este direito inafastável ao homem, escolhendo por ele sua crença, manifestando atos que se igualem a isto, num atentado direto ao homem e a um dos elementos legitimadores deste ideal de Estado: suas liberdades.
A marcha pela laicidade dos Estados é característica essencial da modernidade, havendo inclusive quem[19] afirma ser ela a própria matriz semântica deste Estado Novo.
Em 09 de dezembro de 2005, fora realizada na França a celebração do centenário da separação entre Estado e Igrejas. Na ocasião, Jean Baubérot, historiador francês e sociólogo, especialista em sociologia das religiões, auxiliado por Cheline Milot e Roberto Blancarte, redigiu e apresentou ao Senado daquele país, o documento intitulado “Declaração Universal da Laicidade no Século XXI”, do qual pode ser extraído, em seu art. 4º, o conceito de laicidade:
Definimos a laicidade como a harmonização, em diversas conjunturas sócio-históricas e geopolíticas, dos três princípios já indicados: respeito à liberdade de consciência e à sua prática individual e coletiva: autonomia da política e da sociedade civil com relação às normas religiosas e filosóficas particulares; nenhuma discriminação direta ou indireta contra os seres humanos. (LOREA et al, 2008,p.10)
Deste modo, a laicidade passa a ser um direito, uma garantia fundamental que se impõe ao Estado, numa postura coerente destinada a proteger o indivíduo e as instituições.
A despeito de ser este um dos conceitos mais atuais de laicidade, constante em documento apresentado com status mundial, cujo intuito é mesmo de reforçar a validade desta que é uma das bases do próprio Estado (de qualquer Estado), não pode ele ser admitido como exauriente do seu teor, indo o conteúdo deste principio além do que está expresso no art. 4º da Declaração Universal da Laicidade no século XXI, entendimento este que pode ser apreendido a partir da apreciação da história que envolve seu próprio surgimento, ou ainda, de um outro movimento intelectual e ideológico que lhe é prévio e lhe dá origem: a secularização.
2.3.1 DA SECULARIZAÇÃO, AS BASES CONCEITUAIS DA LAICIDADE ESTATAL
A Idade Moderna, didaticamente falando, inicia-se com os movimentos intelectuais que se proliferam pela Europa e em seguida pela América, no intuito de frear os desastrosos efeitos do mundo medieval e, modificando-os, lançar as bases de uma nova realidade, em todos os aspectos e áreas possíveis.
Notadamente, o império da Igreja Cristã Católica, prévio ao período de transição história, atingiu níveis inadmissíveis em todas s áreas da vida social, de modo que, em razão desta realidade repulsiva, os vários movimentos intelectuais, nos mais diversos setores, dispuseram-se a formular novos modelos de sociedade, longe dos domínios da religião e dos desastres que ela demonstrou ser capaz de produzir.
Neste diapasão, o ideal burguês, como se sabe, ganhou força e propagou-se pelas vozes de mentes brilhantes, iluminadas, como notoriamente ficaram conhecidas, construindo uma nova realidade social que experimentaria toda a Europa a partir daquele momento.
John Locke foi um dos pensadores mais influentes daquele período, e que contribuiu amplamente para a formulação do Estado Moderno e de suas bases teóricas. Catroga (2010), comentando as ideias daquele pensador, menciona que para ele a origem contratualista estaria condicionada ao interesse pela promoção e manutenção do bem comum e da paz civil, apesar de incompatíveis com os antigos modelos estatais, como o absolutista e o medieval:
As religiões e o Estado são instituições absolutamente diferentes e separadas, pelo que tanto a fusão da primeira com a segunda, como o inverso, produziriam intolerância e impediriam a paz civil [...] com esta proposta, Locke fixou a matriz do conceito liberal de tolerância. (CATROGA, 2010, p. 81)
Catroga (2010) segue:
Bastando provar que, para ele [Locke], a pedra-de-toque do ideal de tolerância não é tanto a liberdade de consciência, mas mais a sustentabilidade do contrato social, isto é, dos laços morais necessários à vida colectiva (sic). Assim, se o núcleo forte do problema da organização da cidade consistia na garantia da liberdade do homem e na salvaguarda da paz do Estado. (CATROGA, 2010, p.84)
Deste modo, mais que uma mera expressão de proteção às liberdades, era um dos pilares do próprio Estado, pois um Estado incapaz de proteger liberdades daquela natureza não poderia ser considerado legitimado a perpetuar-se.
O pensamento de que seria impossível a existência de um Estado sendo ele ainda ligado em qualquer nível à religião, não era exclusivo de Locke, como aponta Catroga (2010):
As possibilidades de concretização dos direitos naturais exigiam um clima de tolerância e este, como salientaram o americano Roger Williams e o inglês Locke – na linha de outros (Tomás More, Milton, Jonh Good-Win) –, só podia ser criado quando as Igrejas e o Estado se posicionassem como sociedades exteriores e diferentes. Tais condições requeriam a separabilidade. (CATROGA, 2010, p. 90)
É exatamente neste contexto histórico, em que se vê como condicionante para o nascimento do estado, legitimado em suas próprias bases e não em fatores externos a si, que se é fomentado o pensamento que restaria conhecido como secularização:
A secularização como a saída de sectores da sociedade e da cultura do domínio do religioso [...], ou melhor, como o processo “by which religious institutions, actions and consciousness lose their social significance[20]”, em consequência da irradiação de princípios enformadores da mundividência moderna, nomeadamente o crescimento da consciência do eu, correlato de que os homens seriam capazes, cada vez mais, de “fazer” a história. (CATROGA, 2010, p. 16)
Esta capacidade de fazer história, uma história diferente da anterior, reflete o conteúdo do método pelo qual esta secularização viria a lograr êxito em seu objeto de proporcionar ao Estado as bases de sua autonomia, sendo este método, propriamente, o uso da razão humana, como se observa pelas palavras do autor:
As apologias acerca da natureza perfectível do ser humano (Rousseau, Turgot), as teses contratualistas sobre as origens da sociedade e do poder político, as fundamentações filosófico-progressistas do tempo histórico (condorcet, Hegel) e, mais tarde, os esforços, mesmo ilusórios, para se cientificar a sociedade (Comte, Proudhon, Spencer, Marx), foram projectos (sic) que emanaram do mesmo centro secular, perspectiva que fez da apoteose a razão, da ciência e do ideal emancipatório uma das características mais fortes da modernidade. (CATROGA, 2010, p. 28)
Aquilo que o Catroga (2010) chama de “centro secular”, nada mais é do que e reconhecimento da separação entre o Estado e a Igreja, como fenômeno indispensável a operacionalização da razão, para fomento dos mais importantes movimentos que viriam a fundar efetivamente não apenas o Estado, mas a própria modernidade, como o antropocentrismo, o contratualismo, o positivismo, o cientificismo e outros.
Obviamente, a considerar o momento histórico, tratava-se de um passo demasiadamente complexo, como menciona o catedrático da faculdade de Letras da Universidade de Coimbra: “o novo interesse geral, reivindicado pelo Estado, entrou em atrito com a vocação totalizadora das Igrejas (e, em particular, da Igreja Católica), o choque entre ambas as instituições foi igualmente global.” Informa, assim, Catroga (2010) que a racionalização, e todos os movimentos intelectuais modernos, jamais poderiam ser implementados, sem que houvesse antes a secularização. Reforça então este entendimento, ao citar fragmento da obra de Cf. Pierre Fuster, “Utopic et marxisme selon E. Bloch”:
O humanismo e o historicismo evolucionista, valores que se tornarão dominantes na Modernidade, são um dos pontos de chegada do longo percurso da secularização, e o desejo utópico –enquanto aspiração à cidade de Deus na terra – funcionou como um apelo praxístico activado pelo compromisso demiúrgico da divindade do homem com a as historicidade. (FUSTER apud CATROGA, 2010, p.33).
Destarte, antes que se possa tratar da laicidade, que é um dos pilares deste Estado que se legitima em si mesmo, há que se falar na secularização, haja vista ser um movimento intelectual que dá a sustentação indispensável ao surgimento e expansão dos movimentos que deram as bases para a própria modernidade, de modo que se pode afirmar que a secularização é o fenômeno que emancipa aquele Estado que ainda sequer existe, pois não se pode concebê-lo sob os domínios da religiosidade e, somente em seguida, quando já existente, dotado de autonomia e em sendo provido todo o arcabouço suficiente para perpetuidade, é que se pode falar em laicidade, haja vista ser esta um fenômeno de natureza diversa daquela, pois destina-se a manter este Estado distante de qualquer espécie de envolvimento e manifestação religiosa especifica, que inevitavelmente, fulminaria sua legitimidade e por conseguinte sua própria existência.
2.3.2 O PRINCÍPIO DA LAICIDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Apenas na vigência da segunda Constituição Brasileira, em 1891, é que se pretendeu instituir expressamente a laicidade como principio constitucional do Estado Brasileiro, vez que, até então, a confissão do credo católico em âmbito estatal era uma realidade.
A alteração então veio com a promulgação, em 7 de janeiro de 1890, do Decreto 119-A, que proibia a intervenção da autoridade federal e dos Estados em matéria religiosa, como se observa o texto, reproduzido na íntegra a seguir:
Art. 1º E' prohibido á autoridade federal, assim como a dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e crear differenças entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas.
Art. 2º a todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que interessem o exercicio deste decreto.
Art. 3º A liberdade aqui instituida abrange não só os individuos nos actos individuaes, sinão tabem as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituirem e viverem collectivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder publico.
Art. 4º Fica extincto o padroado com todas as suas instituições, recursos e prerogativas.
Art. 5º A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade juridica, para adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis concernentes á propriedade de mão-morta, mantendo-se a cada uma o dominio de seus haveres actuaes, bem como dos seus edificios de culto.
Art. 6º O Governo Federal continúa a prover á congrua, sustentação dos actuaes serventuarios do culto catholico e subvencionará por anno as cadeiras dos seminarios; ficando livre a cada Estado o arbitrio de manter os futuros ministros desse ou de outro culto, sem contravenção do disposto nos artigos antecedentes.
Art. 7º Revogam-se as disposições em contrario. (BRASIL, 1890)
Da leitura do texto pode-se extrair alguns conceitos importantes que refletem e jogam luz sobre aquele momento: é determinado, legalmente, pela primeira vez no Brasil, a vedação, dirigida ao Estado, de atos que importassem em embaraço para quaisquer manifestações religiosas. Resta igualmente vedada qualquer espécie de tratativa diferenciada entre os indivíduos por razões de crença, e fica também vedado o Poder Público de instituir ou sancionar qualquer espécie de religião.
No entanto, embora o texto deixe aparentar que uma separação entre Estado e religião fora inteiramente instituído por meio do Decreto, resta, em seu art.6º, flagrante manutenção de ato estatal, desde antes praticado, e de caráter nitidamente religioso, qual seja a continuidade da côngrua, que implicava no pagamento de contribuição/benefício, ao representante paroquial da confissão católica de cada localidade, pelo desempenho de seu oficio religioso, configurando indiscutível envolvimento entre e Estado e o credo Católico.
Destaque-se, como já mencionado, que embora seja registrado formalmente nos textos legais este primeiro ensaio sobre o que viria a ser uma laicidade plena no ordenamento jurídico nacional, não gozaram de qualquer eficácia ou mesmo legitimidade[21] as primeiras constituições em nosso país.
Esta laicidade deficiente, ficta, é replicada, com certas modificações, ao longo dos textos Constitucionais supervenientes, até a vigente Carta, que esculpiu este pilar democrático em seu art.19, I, como se pode observar:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
[...]
III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. (BRASIL, 1988)
Comente-se que, embora mais conciso que o texto presente no Decreto 119-A de 1890, notadamente é mais expressivo e abrangente no sentido de estabelecer uma visível separação entre o Poder Estatal e a manifestação religiosa. Esta vedação de envolvimento ou embaraço, do Estado, para toda e qualquer religião, deve ser combinada com o teor de outra garantia constitucionalmente assegurada, qual seja aquela estabelecida no art. 5º, VI:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. (BRASIL, 1988)
Desta forma, não seria possível conceber um exercício da liberdade de consciência e crença sem que fosse este Estado vetado numa eventual intervenção ou embaraço, no sentido de ocasionar privilégio a qualquer credo em prejuízo de outros. É neste mesmo entendimento que se pode alcançar a definição de laicidade, firmada na Declaração Universal da Laicidade, como a conjugação de três outros princípios que lhe são intrínsecos; respeito à liberdade de consciência e prática individual e coletiva, autonomia na escolha destas diretrizes particulares de cunho religioso, e direito ao não embaraço e à não discriminação pelo exercício dos anteriores.
Deste modo, e seguindo o posicionamento de Marco Huaco[22], pode-se determinar o conteúdo do Princípio da Laicidade, a partir deste entendimento aqui exposto, delineando-o em cinco elementos essenciais, sendo eles: o fundamento secularizador deste Estado, a separação orgânica das funções do Estado numa indissociável autonomia, a diretriz normativa para produção legal ulterior que promova a eficácia deste conteúdo, a imparcialidade frente às diferentes cosmovisões ideológicas, filosóficas e religiosas que existam no seio social, e, finalmente, a não intervenção estatal nas manifestações de fé dos indivíduos.
Superada a definição do Principio da Laicidade e seu conteúdo, resta ainda uma importante consideração, ainda na seara da percepção plena de seu conceito, qual seja a dúplice dimensão que o princípio assume em sua produção de efeitos.
2.3.2.1 A DÚPLICE DIMENSÃO DO PRINCIPIO DA LAICIDADE NO DIREITO BRASILEIRO
O principio da laicidade mantém relação direta e primordial com o respeito aos direitos fundamentais e com a própria legitimidade do Estado, de modo que a produção de seus efeitos se projeta necessária e concomitantemente em duas direções, o que será neste trabalho chamado de dúplice dimensão do principio da laicidade, seguindo o acertado entendimento de Daniel Sarmento[23].
2.3.2.1.1 PRINCIPIO DA LAICIDADE COMO MEIO DE PROTEÇÃO DAS RELIGIÕES CONTRA O ASSÉDIO DO ESTADO
Primeiramente, importa a percepção da eficácia principiológica, de modo que as liberdades individuais sejam asseguradas, e portanto, num primeiro momento, espera-se que a laicidade se manifeste diretamente na esfera social, ao permitir a livre escolha e experiência religiosa sem qualquer intervenção do poderio estatal. Sendo esta primeira dimensão, ou direção, voltada a proteger os indivíduos de atos estatais invasivos ou constrangedores, como bem aduz Sarmento (2008, p.190)[24]:
A laicidade estatal, que é adotada na maioria das democracias ocidentais contemporâneas, é um principio que opera em duas direções. Por um lado, ela salvaguarda as diversas confissões religiosas do risco de intervenções abusivas do Estado nas suas questões internas, concernentes a aspectos como os valores e doutrinas professados.
Desta forma, a primeira dimensão do princípio é a proteção, conferida aos indivíduos, de ações do Estado limitadoras ao exercício deste direito.
2.3.2.1.2 PRINCIPIO DA LAICIDADE COMO MEIO DE PROTEÇÃO DO ESTADO CONTRA O ASSÉDIO RELIGIOSO
O princípio deve, igualmente, operar o efeito de blindagem deste Estado, contra quaisquer investidas e assédios religiosos de qualquer natureza, no intuito de levá-lo a posicionar-se, de modo a privilegiar dado credo em prejuízo de outro, maculando assim a sua imparcialidade essencial. Citando Sarmento (2008, p.191)[25]:
A laicidade também protege o Estado de influencias indevidas provenientes da seara religiosa, impedindo todo tipo de confusão entre o poder secular e democrático, em que estão investidas as autoridades públicas, e qualquer confissão religiosa, inclusive a majoritária.
Destaque-se a este ponto que não se poderia conceber a eficácia do Principio da Laicidade sem que ambas as dimensões operem seus efeitos concomitantemente, pois em se observando a mitigação de qualquer delas, restaria inevitavelmente fulminado.
2.4 LAICIDADE E LAICISMO
Na esteira das definições e apreensão conceitual, mais uma ponderação indispensável precisa ser levantada, que é a diferenciação, necessária, entre laicidade e laicismo.
Por vezes confundidos entre si, os conceitos na verdade não guardam nenhuma margem de semelhança, e refletem diretamente posturas a serem adotadas e repudiadas pelo Estado Democrático de Direito.
Essencialmente, a semântica que distancia os dois termos firma-se na questão histórica do estabelecimento da secularização, do uso racional como veículo para firmamento das bases do Estado Moderno e, evidentemente, de todo o agressivo processo que envolve este ideal, no desvencilhamento das amarras culturais religiosas que todos os séculos anteriores de dominação foram capazes de produzir. Neste sentido as lições de Catroga (2010, p.296-297):
Ao que parece, expressões como as de estado laico ou laicismo não aparecem com muita frequência até os princípios do século XX. A primeira foi detectada, em 1885, num jornal republicano e anticlerical (O Século), mas a sua maior utilização, na linguagem erudita, foi um pouco mais tardia: somente se deu por volta de 1902, isto é, quando se agudizou a crise (religiosa, política, social) que terminará na revolução republicana de 5 de Outubro de 1910. Essa foi a conjuntura em que, em França, o termo laicisme também ganhou autonomia, não se confundindo, por inteiro, com o de laïcité, pois ambos se foram distinguindo no decurso da primeira metade do século XX.
No entanto, também considera Catroga (2010) que o termo laicidade já era empregado no século XIX, mesmo em baixa escala, inclusive com registro em notáveis dicionários franceses:
Só a partir de 1871 emergiu "laicidade", palavra logo integrada ,em 1873, no Grand Dictionnaire Universel, de Larousse, que esclarecia: " Laïcité: caractere de ce qui est laïque, d'une personanne laique: la laïcité de l'enseignement. Il fut un temps oú lá laïcité était comme une note d'infamie. laïque: Qui n'est ni ecclésiastique, ni religieux: juge laïque. 'Il ne doit pas y avoir un citoyen, clerc ou laïque, que soit soustrait à l'action des loi's[26] (CATROGA, 2010, p.293-294)
As diferenças entre os termos acentuam-se na medida em que o conflito de interesses também ganha contornos cada vez mais agressivos, por parte tanto de religiosos que não estavam interessados em aceitar a marcha de esvaziamento do conteúdo religioso dos governos quanto do próprio corpo social que, defendendo a secularização, levou-a a um extremo perigoso.
Segundo Huaco[27], pode-se entender a laicidade, em concordância com o conceito extraído do Grand Dictionnaire Universel, como “regime de convivência social complexo, à medida que se estabelece nas normas institucionais preferidas pela maioria para gestão com tolerância de uma realidade igualmente diversa”. Enquanto que, de outro lado, ainda segundo o autor, o vocábulo “laicismo” assume distinto significado:
O laicismo é uma expressão do anti-clericanismo decimonômico, que propõe a hostilidade ou a diferença perante o fenômeno religioso coletivo que pode acabar radicalizando a laicidade, sobrepondo-a aos direitos fundamentais básicos como a liberdade religiosa e suas diversas formas de expressão. (2008, p.47)
Assim, o laicismo é considerado como movimento de combate à manifestação religiosa, num exagerado e descabido “manifesto racional”, que pretende a racionalização extrema da sociedade com o expurgo de todo e qualquer traço religioso, o que evidentemente mitiga a própria liberdade que pretende proteger, a livre manifestação de consciência. Não se pode confundir o distanciamento estatal, com vistas a permissão de toda e qualquer manifestação religiosa, com um embate a estas, num ataque ao “deísmo”. Pois tal postura caracterizaria a assunção de um Estado que se posiciona contra a crença “deísta”, o que configura uma postura “ateísta”, que nada mais é, que mais uma das possíveis manifestações de consciência, o que resultaria na violação direta da impossibilidade de imposição Estatal de qualquer credo. Além do que, tal postura hostil à crença seria facilmente identificada como embaraço ao livre exercício de direito, o que igualmente fulminaria o ideal laico.
Portanto, laicidade e laicismo são termos que embora graficamente parecidos; encerram em seu conteúdo conceitos que jamais poderiam ser confundidos, devendo o Estado manter-se laico e afastar-se de quaisquer posturas que se possam assemelhar ao laicismo.
3. DOS ATOS ATENTATÓRIOS AO PRINCÍPIO DA LAICIDADE
Este Estado Moderno, que se funda em suas próprias bases, instituindo sua legitimidade a partir da promessa de igualdade e liberdade entre todos aqueles que lhe são submetidos, deve encontrar meios para manter-se distante dos antigos regimes, sejam absolutistas, ou teocráticos, e para tanto desenvolve teorias, algumas delas até hoje válidas, que promovem tal sustentação. Dentre as várias teorias surgidas nos primeiros períodos da modernidade, merece destaque, nesse contexto, a teoria da tripartição dos poderes de Montesquieu[28], que hoje se é vislumbrada no Princípio da Tripartição dos Poderes, presente em praticamente todos os Estados Democráticos de Direito, sendo sua relevância de maneira tal que “não se pode prescindir sem correr o risco de recair nos regimes de exceção e arbítrio”, como coloca, muito prudentemente, Bonavides (2007).
Adianta-se Dallari (1998) na defesa deste princípio, ao posicioná-lo não apenas como recurso de manifestação eficaz deste Estado, mas também como meio de proteção dos seus próprios fundamentos, quais sejam as liberdades e garantias fundamentais:
Proposta essa ideia de maneira sistemática no século XVIII, com o fim exclusivo de proteção da liberdade, mais tarde seria desenvolvia e adaptada a novas concepções, pretendendo-se então que a separação dos poderes tivesse também o objetivo de aumentar a eficiência do Estado, pela distribuição de suas atribuições entre órgãos especializados. Esta última ideia, na verdade, só apareceu no final do século XIX, quando já se havia convertido em dogma a doutrina da separação dos poderes, como um artifício eficaz e necessário para evitar a formação de governos absolutos. É importante assinalar que essa teoria teve acolhida e foi consagrada numa época em que se buscavam meios para enfraquecer o Estado, uma vez que não se admitia sua interferência na vida social, a não ser como vigilante e conservador das situações estabelecidas pelos indivíduos. ( p. 215)
Postos os pilares teóricos desta produção e o Princípio da Tripartição dos Poderes, passa-se, a partir deste ponto, a examinar a atual relação entre Estado e religiões, manifesta por estes três poderes que representam o Estado, aqui exemplificada por meio de uma pequena seleção de atos implementados. Destaque-se que, embora tais atos se apresentem numa quantidade infinitamente menor, se comparada com o que efetivamente possa ocorrer na realidade experimentada por cada indivíduo, a presente enumeração é suficiente para elucidar a abordagem, ao passo em que, mesmo em ínfima quantidade, faz-se capaz de revelar, pelo seu teor, a natureza da relação analisada, neles ou em quaisquer outros que lhe sejam equiparados analogamente.
Serão, portanto, expostos um pequeno rol de atos, realizados pelos três poderes, não sendo superior ao número de dez situações por cada poder. Sendo apreciada a postura do executivo, do legislativo e do judiciário, por meio destas seleções, com vistas a verificar a presença, ou não, do conteúdo laico e constitucionalista nas relações apresentadas.
3.1 ATOS ATENTATÓRIOS EMANADOS DO EXECUTIVO
Nas palavras de Alexandrino e Paulo (2010), cabe ao Poder Executivo “administrar, aplicar de ofício o Direito, compreendendo não só a função de governo, relacionada às atribuições políticas e de decisão, mas também a função meramente administrativa”. Noutras palavras, é função do Poder Executivo, em todas as suas esferas, tanto federal quanto estadual ou municipal, gerir todos os aspectos que tangenciam a vida social, de modo a promover os fins a que o Estado se propõe, e devendo, ainda, em todas as suas atividades, ser coerente com os postulados que lhe são basilares.
O portal de notícias online “G1”, do Grupo Globo de Comunicações, veiculou em 02 de setembro de 2014 matéria intitulada “Aluno é barrado em escola municipal do Rio por usar guias do candomblé”. No material jornalístico é narrado evento envolvendo menor de idade, aluno da Escola Municipal Francisco Campos, localizada no Grajaú, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, sua mãe e a diretora da instituição pública de ensino.
Conforme a narrativa, a criança que professava religião de matriz africana, o candomblé, passou a sofrer constrangimento no ambiente educacional, em razão de sua orientação religiosa. De acordo com o noticiado, dirigiu-se a mãe da criança, previamente, até a instituição, para estabelecer contato com diretores sobre a religião do filho, no intuito de evitar quaisquer problemas e assegurar-lhe seus direitos. Porém, ainda de acordo com o relato, em 25 de agosto de 2014, a criança chegou a ser barrada na entrada da escola pela diretora em razão de portar adereços típicos daquela religião. A situação ocasionou um constrangimento público, em que a diretora, diante de todos os que naquele momento chegavam para adentrar o local, impediu mãe e filho de entrar na escola, alegando abertamente não aceitar a religião da criança naquele ambiente.
A situação foi resolvida com a transferência do aluno para outra instituição de ensino, que não manifestou nenhum óbice quanto à orientação religiosa do estudante.
Em 28 de março de 2012 (algum tempo antes), outro portal de notícias, o “Diário do Grande ABC” havia noticiado situação similar. O fato ocorreu na Escola Estadual Antonio Caputo, no Riacho Grande, em São Bernardo do Campo, Grande São Paulo. Segundo o registro, a professora de história, Roseli Tadeu Tavares de Santana, possuía uma hábito um tanto quanto distinto para ministrar suas aulas na sua disciplina. Antes de introduzir o conteúdo programático do dia, promovia vinte minutos de pregação bíblica, condicionando os alunos à concordância de suas conclusões religiosas. O aluno em questão, cuja família também professava religião de matriz africana, o candomblé, passou a ser alvo das pregações e de ataques dos demais alunos da sala. O constrangimento, considerado pelo aluno como bullying[29], levou-o a buscar ajuda dos pais, que ao procurarem a direção da escola, não receberam nenhuma garantia de que tal postura seria reprimida, sendo-lhes informado apenas que procederiam a averiguação da situação e que havia a ciência, por parte da instituição pública, de que a pregação religiosa não deveria fazer parte do ambiente escolar, sobretudo naquela disciplina.
Outro caso, noticiado em 16 de abril de 2013, no sítio da Revista Portal Fórum, narra uma situação ainda mais gravosa envolvendo alunos e professores. O fato ocorreu na cidade de Miraí, no Estado de Minas Gerais, na Escola Estadual Santo Antonio, no mesmo mês em que a noticia fora veiculada. De acordo com a publicação, a professora de geografia Lila Jane De Paula possuía o hábito de iniciar suas aulas com uma oração cristã (o pai nosso). O discente Ciel Vieira, que a época contava com 17 anos, negou-se a participar da oração, por ser ateu, mantendo-se em silêncio, o que levou a educadora a se pronunciar dizendo que “jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na vida”. O ataque não produziu efeitos em Ciel, mas o fez na turma, que passou a praticar bullyng contra o adolescente em razão de sua orientação religiosa. O assédio chegou ao ponto de todos, incluindo a professora, realizarem em outra ocasião uma oração em sala, substituindo a expressão “livrai-nos do mal”, por “livrai-nos do Ciel”[30], num flagrante fomento ao ódio. Em um dado momento, segundo o conteúdo da matéria, o aluno alerta a profissional sobre seu desrespeito à Constituição, chegando a mencionar o caráter laico do Estado, ocasião em que fora repreendido com a resposta de que “não havia nenhuma lei que a impedisse de rezar”. A mãe do adolescente informou ao editorial, que publicou a matéria, que desconhecia o assédio que vinha sofrendo seu filho no ambiente educacional e que ao tomar conhecimento após a visibilidade do vídeo, viu-se emocionada por não aceitar que o filho fosse exposto àquela espécie de circunstancia em razão de sua postura religiosa. Tanto a direção quanto a Secretaria de Educação do Estado assumiram uma postura amena em relação ao caso, defendendo o “direito de rezar” da professora, desde que respeitado o direito do aluno de não participar daqueles atos.
Sobre este incidente pronunciou-se o presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos[31], Daniel Sottomaior, que informou ter sido procurado à época pelo adolescente na busca de informações sobre possíveis direitos que poderia ter acerca de sua orientação religiosa, vez que, no ambiente educacional, não havia qualquer intenção em esclarecê-lo ou apoia-lo. Na reportagem concedida ao portal Terra de Noticias, o responsável pela ATEA denunciou que casos como o de Ciel, de bullying dentro das instituições de ensino públicas no país, são cada vez mais frequentes, e que muitos jovens ateus procuram na busca de ajuda e informação, concluindo que “a maioria das vezes somos procurados por jovens que sofrem preconceito em sala de aula e não sabem como agir. [...] Infelizmente, os próprios educadores não estão cientes das leis e acabam discriminando esses estudantes”.
No entanto, este tipo de constrangimento em razão da orientação religiosa não atinge exclusivamente os discentes. Maristela Gomes de Souza Guedes, em seu artigo “Exu, escola e racismo”[32] denuncia uma realidade pouco abordada na sociedade brasileira: a discriminação às religiões de matriz africana e toda cultura em seu entorno.
Já no inicio de seu trabalho a autora relata o preconceito vivido pela professora Maria Cristina Marques, em outubro de 2009, quando fora proibida de dar aulas em uma escola pública do Rio de Janeiro. As aulas em questão eram de ensino religioso e a educadora intencionava expor algo além do culto cristão, abordando também elementos das religiões de cunho africano[33] utilizando como material de apoio didático o livro “Lendas de Exu”. Ao tomar ciência disto a diretora da instituição, cujo nome não fora mencionado no artigo, iniciou uma sequência de humilhações que culminou na retirada da professora do quadro de funcionários. A diretora era evangélica.
A pesquisadora avança, expondo o resultado de suas pesquisas sobre a educação de crianças em terreiros de candomblé, sobre a cultura religiosa que se forma no seio das famílias que professam o culto de matriz afro, bem como nos locais de culto, isto a partir dos muitos anos de observação e coleta de dados, em que acompanhou mais de uma geração:
Nos terreiros, crianças e adolescentes sentem orgulho da religião que praticam, ocupam cargos importantes do culto, partilham um conhecimento vasto sobre mitos, canções e o ioruba, uma das línguas que circulam na comunidade, por exemplo. Na escola, no entanto, são discriminadas, sentem vergonha da religião, escondem seu conhecimento e sua fé. (GUEDES, 2010)
Aponta ainda que:
As vítimas de discriminação tem plena consciência do porquê são discriminadas. Elas são categóricas ao associarem a rejeição de sua religião e de suas culturas ao fato de serem negras e praticarem uma religião afro-descendente [...] quando a diretora de uma escola proíbe um livro de lendas africanas ela quer apagar a diversidade presente na sociedade e na escola, quer silenciar culturas não hegemônicas, como as culturas afro-descendentes. (op. cit)
Ainda sobre as questões relacionadas à presença da religião nas instituições de ensino, em entrevista ao Portal de comunicação social, história e educação “Fazendo Média” concedida em 03 de outubro de 2013, a pesquisadora Maristela Gomes de Souza Guedes aborda sua perspectiva na defesa da extinção do ensino religioso, sendo categórica ao afirmar que:
O ER [ensino religioso] contribui muito para o obscurantismo, legitima o racismo e a discriminação religiosa. É claro que existem exceções, professores que realizam uma aula plural. Mas é com a regra que humilha diariamente principalmente as crianças de candomblé que estou preocupada. É com a confusão que se faz entre a fé privada e a individual, com o espaço de educação pública e coletiva, que estou preocupada.
Indo um pouco além dos atos do executivo que ocorrem diariamente nas escolas públicas do pais, relevando claramente uma seleção de conteúdo religioso, como asseveram Guedes e Sottomaior, outros aspectos da atuação executiva podem estar eivados de igual seleção. Um exemplo deste tipo de situação pode ser extraída do ocorrido em uma cidade no sertão de Pernambuco, envolvendo atos do poder executivo e legislativo.
Em meados de 2012, a cidade de Petrolina, no interior de Pernambuco, presenciou grande celeuma envolvendo a construção e inauguração de alguns monumentos culturais, o que ensejou um exaustivo debate local pelo teor religioso que as intervenções possuíam.
O artista plástico Lêdo Ivo esculpiu, sob encomenda do então prefeito municipal Julio Lóssio, uma escultura da figura mítica de Iemanjá. Como é sabido por grande parte dos brasileiros, tal personagem é parte da cultura e credo de religiões de matriz africana. Uma das razões para escolha do monumento, segundo as informações veiculas á época, era a proximidade com a cidade de Juazeiro, que embora se localize no Estado da Bahia, é vizinha da cidade de Petrolina, sendo ambas separadas unicamente pelas águas do Rio São Francisco, sendo a escultura colocada especificamente em um aglomerado de rochas, no próprio Rio, como homenagem à cultura baiana e sua estreita relação com os pernambucanos. A inauguração do monumento despertou a ira e histeria de parte da população, de determinada ala dos católicos e evangélicos, que se viram representados na pessoa do vereador local Osinaldo Souza, que desencadeou verdadeira cruzada em prol da retirada da escultura. Em matéria publicada no sitio local de notícias, o “Portal SG” foi registrado seu posicionamento enquanto membro do legislativo local:
Eu notei que os dias em Petrolina agora estão mais tristes, quando eu passo ali na orla que eu olho para a estátua que fizeram a Iemanjá, eu digo: o que é que está acontecendo em Petrolina? Iemanjá na Umbanda significa a deusa das águas. Isso é uma blasfêmia contra Deus, porque a própria Bíblia Sagrada diz que só existe um Deus. É a estátua do demônio na orla de Petrolina que os católicos e evangélicos não aceitam isso. A imagem de Iemanjá nem folclórica é, é sim uma aberração (grifo nosso)
Para o vereador, a cidade “pertence a Jesus” e consequentemente ao Cristianismo e aos cristãos, de modo que não haveria lugar para quaisquer outras manifestações religiosas. Este posicionamento, amplamente veiculado à época nos mais diversos veículos locais, é considerado como ofensa ao folclore afro e, segundo matéria divulgada no sitio da Gazzeta, jornal impresso local, atacou o prefeito ao afirmar que o ato de inauguração da estátua era na verdade um pacto religioso.
Muitos evangélicos e católicos se manifestaram contrários à permanência da obra de arte, ao passo em que a administração local evitou quaisquer pronunciamentos que gerassem maiores constrangimentos. A situação obteve grande repercussão até que culminou na decisão do escultor pela retirada da obra[34].
Poucos dias após a decisão da retirada do monumento, fortemente influenciada pela postura do vereador mencionado e por setores conservadores da sociedade local, ocorreu um fato novo, de natureza bastante similar, todavia com reflexos diametralmente opostos. Um novo monumento fora inaugurado, o artista que o realizara é exatamente o mesmo, Lêdo Ivo, e igualmente a pedido da Prefeitura local, porém, desta vez a obra de arte era uma gigantesca Bíblia.
Conforme matéria publicada no próprio sitio da Prefeitura local, a obra agradou sobremaneira os populares:
Com a animação do louvor do coral católico infantil ‘Amigos de Jesus’ do bairro Santa Luzia, e do músico Renato Augusto da igreja Assembleia de Deus do bairro José e Maria, o prefeito Julio Lossio inaugurou na noite de ontem (25), o mais novo monumento público da cidade, denominado ‘A Bíblia’ [...] Para o Frei Erivan Nuto, da Paróquia de São Francisco de Assis, que estava representando o Bispo da Diocese de Petrolina, Dom Manoel dos Reis de Farias, a obra é muito importante porque a Bíblia é a lei que rege a vida dos cristãos. “A Bíblia para nós é um livro sagrado e o mais importante na vida de todos nós católicos. Esse monumento é fundamental porque, com certeza, motivará nas pessoas o desejo de ler mais o livro sagrado” [...]Elogiando também a iniciativa da prefeitura, o Pastor Manuel Moreira, da Igreja Batista Missionária da Nova Aliança, agradeceu pela criação da obra. “A Bíblia não é apenas destinada a um grupo religioso, mas a todos os homens da terra.
A inauguração contou com vários representantes cristãos, entre católicos e evangélicos e, segundo os veículos de comunicação locais, à época, nenhuma manifestação de repúdio fora registrada.
Em meados de 2011, uma ação do Governo Federal causou alvoroço nos setores mais conservadores da sociedade em todo país, e não se tratava de uma escultura sobre uma personagem folclórica de matriz africana. Buscando combater o preconceito e os altos índices de crimes relacionados à homofobia, é anunciado pelo Ministério da Educação um conjunto de ações, envolvendo dentre outras coisas a distribuição de cartilhas e vídeos nas escolas da rede pública estadual, inicialmente em São Paulo e em seguida em todo o país. A iniciativa foi inicialmente nomeada de “kit anti-homofobia” e mais tarde apelidada pela bancada evangélica de “kit-gay”.
O objetivo central do material era, segundo as declarações do Ministro da Educação o fomento ao diálogo nas escolas, em que a formação do cidadão é acompanhada pelo Estado, acerca de temas como sexualidade e preconceito. A mensagem de aceitação a este grupo, os homossexuais e transgêneros, era clara e contrariava diretamente os interesses dos parlamentares religiosos, que não tardaram a se articular para barrar a inciativa.
Em 25 de maio de 2011, o Portal de Educação da UOL publicou matéria assinada pelas jornalistas Camila Campanerut e Karina Yamamoto, tratando da pressão da bancada evangélica pelo abortamento do “kit-gay” e o recuo do Governo frente a esta ofensiva.
Depois da pressão da bancada evangélica e de grupos católicos do Congresso e das ameaças dos parlamentares desses grupos de apoiar investigações sobre o ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, o governo federal decidiu suspender a produção e a distribuição do kit anti-homofobia, que estava em planejamento no Ministério da Educação.
As jornalistas registram em sua matéria que o principal interesse da bancada, em relação ao “kit-gay”, é se posicionar “contra o plano nacional que defende os direitos dos gays”. Este mesmo entendimento foi manifestado pelo representante do Programa da AIDS da ONU no Brasil, Pedro Chequer, em 13 de junho de 2012, durante o Terceiro Seminário Nacional de Direitos Humanos e DST/AIDS, em Brasília. Segundo o representante da UNAIDS "A mensagem de independência pode ser substituída por uma postura retrógrada, de quem restringe suas ações em virtude de dogmas religiosos" disse referindo-se à ameaça que concessões como estas representam à laicidade do Estado, ao passo em que alertou para a necessidade de implementação de politicas públicas voltadas à saúde e educação fundadas nas diretrizes do Estado, e não em interesses religiosos[35].
3.2 ATOS ATENTATÓRIOS EMANADOS DO LEGISLATIVO
Em consonância com a mais acertada doutrina pátria, eis as funções primordiais do poder legislativo em nosso ordenamento:
Ao consagrar o principio da separação dos poderes, a Constituição Federal de 1988 atribuiu funções determinadas a cada um dos poderes [...] as funções típicas do Poder Legislativo são legislar e fiscalizar. No desempenho da função legislativa, cabe a ele, obedecidas as regras constitucionais do processo legislativo, elaborar as normas jurídicas gerais e abstratas. (ALEXANDRINO; PAULO, 2010, p. 159)
Cabe assim aos membros do legislativo, em todas suas esferas, elaborar as regras que acompanhando a marcha social e os limites constitucionais, hão de reger a sociedade e, ainda, acompanhar os atos do executivo, de modo a fiscalizá-lo.
Em 11 de julho de 2014, o portal de noticias online “G1” noticiou as atividades da Câmara Municipal da cidade de Nova Odessa, no Estado de São Paulo. Segundo a matéria, havia sido aprovado, por cinco votos a dois, projeto de lei proposto pelo Vereador Vladimir Antônio da Fonseca, que determina leitura, diária e obrigatória, de versículos bíblicos nas escolas públicas municipais. Segundo o autor, em entrevista concedida ao veículo de jornalismo, não há pretensão de impor sua religião aos demais, e sim de apenas promover a reflexão sobre valores. No sítio oficial da prefeitura de Nova Odessa, foi publicada, em 21 de julho de 2014, nota informando o veto ao projeto e a informação de que a Diretoria de Assuntos Jurídicos emitiu parecer no sentido de elucidar a inconstitucionalidade da Lei aprovada pela Câmara.
Atos como estes, que tentam legislar acerca de uma determinada prática religiosa, dotando-a de generalidade e abstração, espalham-se pelo território nacional nas Câmaras Legislativas. Outros dois exemplos são os ocorridos na cidade de Araguaína, no Estado de Tocantins, e na Assembleia Legislativa do Estado de Goiás.
A cidade de Araguaína, a 350 km da capital Palmas, com pouco mais de 150 mil habitantes, teve em 2011, em sua Câmara Municipal, a aprovação de Lei proposta pelo vereador Manoel Moreira de Brito, que determina a obrigatoriedade da leitura de versículos bíblicos pelos alunos das escolas da rede pública municipal. A notícia, veiculada no blog do jornalista local Paulo Lopes, em 23 de novembro de 2011, também registra que este procedimento, de leitura obrigatória, já é prática na própria casa legislativa que, por sua vez, decidiu estender a obrigatoriedade aos alunos da rede de ensino. Ainda na matéria, é informado que o Ministério Público “poderia” tentar a invalidade da norma.
A situação não é tão distinta em Goiás. O deputado Daniel Messac, cristão, membro da igreja Assembleia de Deus, como informa a matéria publicada no veículo digital “Notícias Gospel Mais”, em 6 de maio de 2012, entendeu que o regimento interno da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás deveria ser alterado, de modo a passar a prever a obrigatoriedade da leitura Bíblica em seu teor. Para aquele representante, a obrigatoriedade é decorrência natural do fato de serem os cristãos “maioria esmagadora” da população Brasileira e daquele estado. O projeto de lei, aprovado, encontra-se em vigência, sendo as sessões, de acordo com as informações prestadas no sítio, abertas com a frase: “Sob a proteção de Deus, havendo número legal, declaro aberta a presente sessão, convidando um dos deputados para fazer a leitura de um trecho da Bíblia Sagrada”.
Em outros locais do país, projetos de lei similares seguem seu curso, como na cidade de Fortaleza, onde Vereador Mairton Felix propôs Projeto de Lei, sob o número 0179/2014, com o objetivo de tornar obrigatória a leitura da Bíblia em escolas públicas e privadas da capital do Ceará. Segundo o propositor, o projeto em nada fere o Estado laico, por ser dotado, exclusivamente de caráter cultural, e por isso mesmo entendeu bem o plenário pela aprovação do mesmo, o que autorizou a avaliação pela Comissão de Legislação, Justiça e Cidadania do Município[36], que até data da finalização deste trabalho encontra-se não concluída.
Também não enxerga ofensa ao princípio da laicidade o Vereador Zezito Salu, integrante do corpo legislativo do município de Cabrobó, no interior pernambucano, que elaborou e conduziu o processo de aprovação, por unanimidade, de projeto de lei que obriga a leitura da Bíblia nas escolas Estaduais e Municipais situadas na cidade. Para o autor do projeto de lei a iniciativa vem corrigir um equívoco nas grades curriculares, haja vista o ensino religioso não estar voltado exclusivamente para a Bíblia e o cristianismo. Para o Vereador, “as ciências humanas e exatas são importantes, mas a religiosa não fica atrás”, de modo que este entendimento embasa a obrigatoriedade e generalidade daquela determinação. Em Curitiba, Paraná, a vereadora Carla Pimentel também compreende que a leitura bíblica deva ser obrigatória na rede de ensino municipal, por isso mesmo propôs Projeto de Lei sob número 005.00131.2014, que determina a imperatividade desta conduta. Para a representante popular, a leitura justifica-se também como fonte de pesquisa científica, pelo valor “cultural e arqueológico” que o livro possui.
No interior de São Paulo, na cidade de Piracicaba, um outro Projeto de Lei, igualmente voltado a interesses religiosos, causa ainda mais comoção. Trata-se do Projeto de Lei nº 202/2010 de autoria do Vereador Laércio Trevisan. O texto do projeto veda o uso e sacrifício de animais em cultos religiosos, prevendo multa de R$ 2.000,00 a R$ 5.000,00 (dois mil a cinco mil) para quem incida na prática, numa evidente vedação ao culto afro. O autor do projeto, que integra a bancada evangélica do município, entende que não há nenhuma perseguição religiosa na lei. O blog local “Blog do Branquinho”, veiculou em 11 de abril de 2013 o corrido:
Apesar do projeto ter sido aprovado por unanimidade, tendo como argumento o fim da crueldade contra animais, os movimentos religiosos de matriz africana se articularam e foram ao prefeito Barjas Negri (PSDB, ex-ministro da Saúde de FHC) pedir o veto da lei, sendo atendidos. O veto retornou à Câmara, onde, em meio a discursos preconceituosos e intolerantes, teve maioria dos votos mas não conseguiu atingir o quórum regulamentar, e a lei não entrou em vigor. O proponente disse que voltaria a tentar aprová-lo numa nova legislatura.
A tentativa de cerceamento foi barrada pelo executivo, pressionado por setores da sociedade, mas a ameaça foi reiterada e anunciada para próxima legislatura, que certamente ocorrerá, haja vista o crescente número de religiosos, legislando para as religiões, nas Câmaras Municipais do país.
O Projeto de Lei de nº 992/2011, de igual conteúdo, é voltado a vedar, indiretamente, as práticas relacionadas ao culto de religiões de matriz africana. Proposto desta vez na Assembleia Legislativa de São Paulo, pelo Deputado Estadual Feliciano Filho, também cristão, como sugere a fonte jornalística, teria como objeto principal evitar a crueldade contra animais sacrificados em cultos religiosos, prevendo multa e até R$ 5,2 mil para cada infração, dobrando de valor nos casos de reincidência. A noticia veiculada no portal “G1”, em 18 de outubro de 2011, informa que setores internos da Assembleia Legislativa se articularam para, assim como em Piracicaba, vetar o projeto.
Outra propositura legal que caminha em direção similar ocorreu na cidade de Manaus, no Amazonas. De acordo com informações disponíveis em 08 de maio de 2014, no sitio da Câmara Municipal de Manaus, o Vereador e pastor Carlos Alberto defende a criação de um Conselho Municipal de Pastores Evangélicos na cidade de Manaus, com o objetivo de, junto com as secretarias do município, desenvolver estudos, debates e pesquisas. Ou seja, uma atuação conjunta de determinadas secretarias do Município, que não se sabe quais seriam pelo conteúdo da matéria, e deste Conselho, formado exclusivamente por pastores. Eis a Justificativa do parlamentar:
Através do Conselho Municipal de Pastores Evangélicos da cidade de Manaus, os líderes evangélicos poderão encontrar apoio para os projetos sociais que desenvolvem em suas igrejas e bairros, que vem beneficiando diretamente a vida da nossa população no que diz respeito ao resgate de vidas de jovens, restaurando famílias e educando as crianças no caminho que se deve andar.
Dessa forma, com a chancela do executivo, o Conselho teria liberdade para atuar com força pública na sociedade e difundir sua crença, como já vem fazendo, determinando “o caminho que se deve andar” para toda a sociedade local.
Todos os exemplos trazidos até aqui, por mais que reflitam outros tantos que certamente se multiplicam pelo país, restringem-se aos municípios onde ocorreram e na maioria das vezes não chegam a lograr êxito pelos vetos do executivo; em outras palavras, se um município institui a obrigatoriedade do culto cristão nas escolas, isto não se estende aos municípios circunvizinhos. O que não pode passar desapercebido é uma configuração peculiar: é função precípua do legislativo fiscalizar a atuação do executivo, que por sua vez, como já mencionado, deve implementar a lei no que se refere à instituição de direitos, garantias fundamentais e a própria governança que reflete o ideal republicano e democrático. No entanto, não é precípua ao executivo a função de fiscalizar o legislativo[37], sendo contudo o que se tem observado no território nacional. O que dizer então se condutas desta natureza se instaurassem no Congresso Nacional?
As frentes parlamentares são um fenômeno peculiar, porém não exclusivo, da política brasileira, que se constituem em grupos de parlamentares que se articulam, a despeito de pertencerem geralmente a partidos distintos, em torno de interesses similares. A grande mídia nacional atribuiu o nome de “bancadas” a este fenômeno político, ganhando popularidade no seio social. Dentre as mais conhecidas tem-se a ruralista, a da bola[38] e a evangélica.
Embora bastante conhecida nacionalmente, não goza de muita credibilidade a bancada evangélica, nem entre os evangélicos do país, nem entre eleitores que se situam para além dos domínios da religião, sendo alvo de ataques, ora pelos posicionamentos religiosos, ora pelos escândalos[39] envolvendo seus integrantes. Cabe ao bojo destes estudos, destarte, tratar alguns atos implementados por esta frente parlamentar em especial.
A revista Veja, em seu periódico digital, publicou a matéria “Vinde a mim os eleitores: a força da bancada evangélica no Congresso”, assinada por Gabriel Castro e Marcela Mattos, em que são apresentadas algumas situações que poderiam ser consideradas verdadeiras denúncias, se não fosse o aspecto de normalidade que certas condutas têm assumido atualmente em nosso legislativo. Sobre as atividades rotineiras desta frente em questão, comentam os jornalistas:
Com o colarinho desabotoado, terno e gravata escuros e camisa branca, o pastor Henrique Afonso (PV-AC) faz um alerta às pessoas que acompanham sua pregação na manhã da última quarta-feira. O local: o plenário número dois das comissões da Câmara dos Deputados. O público: oito deputados federais e trinta servidores do Congresso. O culto ocorre semanalmente. Os parlamentares-pastores fazem um rodízio. A cada semana, uma dupla divide a direção do serviço e a pregação do dia.
A matéria informa acerca da utilização do plenário número dois das comissões da Câmara dos Deputados para realização de culto religioso, ao tempo em que também coloca:
Em Brasília, chama a atenção a atuação organizada desse grupo de parlamentares que, apesar de pertencerem a partidos diferentes, se articulam na defesa de suas bandeiras. E elas costumam ser mais contra do que a favor: contra a legalização do aborto, o casamento gay, a eutanásia e a liberação das drogas.
Quando Gabriel Castro e Marcela Mattos utilizam a expressão “mais contra do que a favor” estão realmente se referindo àquilo que aparentemente configura a razão de ser desta frente parlamentar, qual seja, militar, na seara legiferante, contra o avanço de direitos de grupos que sejam considerados como “pecaminosos” ou “pecadores”, segundo os dogmas das religiões que professam aqueles parlamentares. E isto se percebe, sem muita dificuldade, pelas ações implementadas, como o já mencionado “Kit-Gay”, que fora abortado pelo Ministério da Educação em razão de chantagens de cunho político promovidas pela bancada, como denuncia o periódico “Veja”, na sua versão online, em 25 de maio de 2011:
A presidente Dilma Rousseff determinou nesta terça-feira a suspensão da produção e distribuição do kit anti-homofobia em planejamento no Ministério da Educação, e definiu que todo material do governo que se refira a “costumes” passe por uma consulta aos setores interessados da sociedade antes de serem publicados ou divulgados.
A matéria é especifica ao determinar a causa da suspensão:
A manifestação ocorreu na esteira de uma reunião de Carvalho com a bancada evangélica da Câmara. O grupo de parlamentares chegou a ameaçar o governo com obstrução da pauta no Congresso, colaborar com assinaturas para convocar o ministro Antonio Palocci (Casa Civil) a se explicar sobre sua evolução patrimonial e propor uma CPI para investigar o MEC. Ontem, no plenário, o deputado Anthony Garotinho (PR-RJ) chegou a pedir a demissão do ministro da Educação, Fernando Haddad. Na semana passada, o mesmo Garotinho, que é vice-presidente da Frente Parlamentar Evangélica, afirmou que a bancada evangélica, composta por 74 deputados, não votaria “nada”, nenhum projeto na Câmara, até que o governo recolhesse os vídeos anti-homofobia.
Outro exemplo emblemático da luta da Bancada contra os Direitos das minorias é a batalha travada contra o já famigerado PLC 122/2006. O sítio do Partido Social Cristão, PSC, informa, sem qualquer constrangimento, as ações no intuito de vetar o avanço de direitos dos grupos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBTT), uma minoria comprovadamente perseguida e vitimada socialmente. Na página do partido, em matéria publicada em outubro de 2013, é relatada a empreitada de vedação do Projeto de Lei. O PLC em questão tinha como objetivo original tornar crime a discriminação ou o preconceito em razão da orientação sexual e da identidade de gênero, com vistas à diminuição da violência psicológica e física a que é submetido este grupo. Ainda pelo texto original da proposta, pastores ou padres não poderiam citar trechos da Bíblia com objeto de fomentar o ódio contra homossexuais e transgêneros. A bancada, entendendo se tratar de cerceamento de liberdade (da liberdade de ofender fundada na fé), passou sistematicamente a boicotar o projeto, como se pode perceber da leitura do texto encontrado no próprio sítio do PSC; “o PLC 122/2006 já foi aprovado na Câmara dos Deputados e tramita no Senado há sete anos. O texto passou pela Comissão de Assuntos Sociais (CAS), onde foi modificado por substitutivo apresentado pela então senadora Fátima Cleide”. Destaque-se que o intervalo de sete anos é contabilizado até 2013, quando daquela publicação. A modificação a que se refere o texto mencionado diz respeito à tentativa de “agradar” a bancada, como se pode ver:
Para atender a demandas dos grupos religiosos, o relator já havia, por exemplo, modificado artigo que torna crime “impedir ou restringir a manifestação de afetividade de qualquer pessoa em local público ou privado aberto ao público”, incluindo ressalva para que seja “resguardado o respeito devido aos espaços religiosos”. A medida, no entanto, não foi suficiente para o entendimento.
Frise-se, “não foi suficiente para o entendimento”, o projeto encontra-se afastado da pauta até a data da publicação desta pesquisa.
A luta da bancada contra os direitos LGBTT segue e aprofunda-se. É o que constata Sylvia Maria Mendonça do Amaral (2010), em seu artigo intitulado “Leis benéficas a homossexuais ainda são barradas”, publicado no portal online “Consultor Jurídico”. Já em seu parágrafo inicial ela sintetiza todo o quadro exposto até aqui:
O não-reconhecimento dos direitos do segmento LGBT é notório, sendo-lhes negados até aqueles previstos em nossa Constituição Federal, como o direito à igualdade, liberdade, dignidade, dentre outros. Bastaria nossos legisladores reconhecerem a união estável entre pessoas do mesmo sexo e isso já será o bilhete para acesso a outros tantos direitos dela decorrentes, como o direito à sucessão e à partilha de bens.
A advogada civilista discorre acerca da perseguição aberta da bancada aos direitos dos homossexuais, referindo-se aos fatos envolvidos com a aprovação da Lei 12.010, de 3/8/2009:
O Projeto de Lei 314/2004, sancionado em 2009, que recebeu o nº de Lei 12.010, de 3/8/2009, a Nova Lei da Adoção, trata da redução de tempo no qual as crianças permanecem em abrigos, aguardando por uma eventual adoção. Havia no texto do projeto de lei a previsão de que casais homossexuais pudessem adotar. Essa possibilidade, sem dúvida, seria conceder aos homossexuais direito de contribuir para a redução do tempo de permanência das crianças em abrigos. Aliás, esse era o objetivo do projeto. Porém, a bancada evangélica, nas negociações que antecedem a aprovação de quaisquer projetos de lei, manifestou-se no sentido de que votaria rápida e favoravelmente aquele em específico, desde que suprimido o artigo que concedia aos homossexuais o direito de adotar. E, pelo “bem estar” das crianças, o projeto de lei, que precisava ser aprovado com rapidez, teve retirado de seu texto aquilo que era atinente aos homossexuais, que assistiram, novamente, à negação de seu direito à igualdade. (2010) (grifo nosso)
Não se limitando à supressão de fragmentos do texto original, que assegurariam o direito de igualdade aos homossexuais no tocante à adoção, adiantou-se o deputado Zequinha Marinho, também do PSC, em propor o Projeto de Lei nº 7.018/2010 na Câmara dos Deputados, o qual tem como objetivo alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente[40] de modo a vedar a adoção por casais do mesmo sexo.
Outro alvo recorrente dos ataques desta frente parlamentar é o rol de direitos das mulheres, mais recentemente as questões relacionadas ao aborto. Grande foi a celeuma, hoje já pacificada acerca do aborto de anencéfalo. E mais recentemente o tema aborto voltou à pauta de ataques, em razão de proposta do Conselho Federal de Medicina em legalizar o aborto, indiscriminado, até a 12ª semana. Em resposta a tal propositura, o Senador Magno Malta, sem qualquer respaldo científico, classificou a medida como a promoção da “morte em série no país”. A reportagem de 23 de março de 2013, da Veja online, faz uma menção à postura do Senador Malta, ao registrar que “não raro parece confundir a função de pastor da Igreja Batista com a de parlamentar. No plenário, ele usa a tribuna para citar trechos da Bíblia mesmo quando o assunto em pauta nada tem a ver com religião.”
Outra ação notória, orquestrada pela Bancada na defesa de seus interesses religiosos, é a propositura, em 2011, pelo deputado federal João Campos, na Câmara dos Deputados, de Projeto de Decreto Legislativo que propunha suprimir a Resolução CFP n° 001/99[41], de 22 de março de 1999. No projeto do parlamentar (PDC 234/11), dever-se-ia sustar o parágrafo único do art. 3º e o art. 4º, que estabelecem normas de atuação para os psicólogos e a vedação da tratativa da homossexualidade como doença. A intenção era clara: classificar novamente a homossexualidade como doença psicológica e autorizar os profissionais a proceder tratamentos para estes supostos casos. O projeto foi retirado da pauta, em razão da grande repercussão popular.
Todavia, poucas ações refletem tão diretamente a presença religiosa na atuação politica como a propositura da PEC 99/11. A Proposta de Emenda à Constituição, de autoria do deputado João Campos, intenta acrescentar ao art. 103, da Constituição Federal, o inciso X, que dotará de capacidade postulatória as Associações Religiosas, as quais a partir de então poderão propor ação de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade de leis ou atos normativos. O texto segue, até a data presente, aguardando votação.
O repúdio ao Projeto de Emenda foi amplamente manifesto por vários setores da sociedade, por ser considerada uma ameaça direta ao Estado laico, ao legitimar instituições religiosas para interferirem diretamente no questionamento da constitucionalidade de decisões judiciais e normas, num flagrante e profundo infiltramento religioso na prática jurídica.
A atuação desta frente parlamentar em uma das casas legislativas mais importantes do país, cujos temas e normas afetam diretamente a vida de toda a sociedade, configura para alguns atentado direto aos fundamentos do Estado, como aponta Simone Andréa Barcelos Coutinho, procuradora do município de São Paulo em Brasília, que em artigo publicado no portal Consultor Jurídico, em 23 de agosto de 2011, intitulado “Escolha eleitoral deve considerar secularismo do Estado”, assevera:
Ainda, no Estado laico, não há direito que não o produzido pelo Estado através de seus poderes constituídos. De princípios e normas religiosas, não decorrem direitos nem obrigações para ninguém. Com isso, outras autoridades não existem que não as civis e militares, constituídas pelo Estado. Destarte, não há que se falar em “autoridade religiosa”. Isso tem consequências(sic) capitais: ninguém, a pretexto de crença ou de liberdade de culto, poderá embaraçar a ação das pessoas ou do Estado.
E conclui:
No que tange à ação de um Estado que se pretenda laico, jamais o interesse público poderá ser aferido segundo sentimentos ou ideias religiosas, ainda que se trate de religião da grande maioria da população nele residente.
A crítica se faz não ao direito de votar e ser votado de que gozam todos os religiosos em nossa sociedade civil; obviamente, o que se pretende abordar é uma relação paradoxal e insustentável que se deflagra ao momento em que aquele representante, eleito com base em promessas de cunho religioso, ao exercer sua legislatura, age amplamente pautado nesses princípios, e não o faz de modo a proteger o direito de crença de seus eleitores, mas para perpetrar para toda a sociedade tais convicções de modo imperativo, numa tentativa de dogmatizar todo o povo, valendo-se do Estado, da lei. Mais gravosa ainda é a situação em que o poder público, movido por estes interesses, passa a esmagar direitos e garantias de outros grupos, que lhe sendo contrários, são impedidos de usufruir dos mesmos postulados legais, numa indiscutível instrumentalização estatal em prol de um ideal religioso especifico e de interesses, não da coletividade mas de um aglomerado em especial.
3.3 ATOS ATENTATÓRIOS EMANADOS DO JUDICIÁRIO
Cabe ao poder judiciário a “solução definitiva dos conflitos intersubjetivos” e mais do que isso, a busca contínua e ininterrupta pela “garantia da integridade do ordenamento jurídico, mediante a aferição da compatibilidade entre os atos estatais e os comandos vazados na Constituição” conforme lecionam, muito precisamente, Alexandrino e Paulo (2010) . Não se pode sequer conceber a permanência de um Estado Democrático de Direito sem que se fale em um Poder Judiciário independente e atuante. No entanto, a despeito disto, também á possível observar o implemento de atos, na esfera de atuação judiciária, que podem ser classificados como atentados à laicidade, princípio este que deveria precipuamente proteger.
Uma decisão interlocutória proferida em 2014, por um juiz monocrático no Rio de Janeiro, chamou a atenção da mídia e da sociedade, mais especificamente a fundamentação do pronunciamento. É sabido que pelo princípio da motivação não podem os magistrados prolatar decisão qualquer sem que esta venha fundada em pilares legais que, previamente postos aduzam ao direito que o magistrado exalta em sua decisão. O decisum em questão ocorreu no curso de Ação Civil Pública, de nº 0004747-33.2014.4.02.5101, movida pelo Ministério Público Federal em face da Google Brasil Internet Ltda, tendo por objetivo a condenação da referida empresa na obrigação de retirar conteúdos ilícitos hospedados na internet, em que a ilicitude alegada era a de ataques ao culto de religiões de matriz africana. Nos vídeos que se intentava remover da rede mundial de computadores era promovido o ódio e o preconceito a práticas daquela religião, numa clara ação de preconceito e intolerância religiosa.
No processo em questão, o magistrado não apenas sinalizou o direito de agressão do grupo religioso que atacou o culto de matriz afro, legitimando o direito ao exercício da intolerância religiosa, como tentou argumentar pela não configuração dos cultos de matriz africana como “regulares manifestações religiosas”, pelo fato, exclusivo, de não guardarem similaridades com o culto cristão. Ou seja, para aquele árbitro, em não sendo cristianismo, não é configurada religião. Jaime Mitropoulos, Procurador da República, representante do Ministério Público Federal que interpôs Agravo de Instrumento junto ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região, sobre a questão, coloca-se:
A decisão judicial, numa canetada, catalogou ou pretendeu catalogar quais seriam os requisitos para que uma manifestação de fé seja caracterizada como religião. Dessa forma, a justiça brasileira, através de uma decisão monocrática, estaria criando um “sistema tarifado de fé”, excluindo, com isso, determinados núcleos de pertencimento religioso da esfera de proteção judicial (vale anotar que no Rio de Janeiro existem mais de oitocentos locais de culto de religiões de matrizes africanas).
Eis aqui, na íntegra, a “canetada” a que se refere o Procurador Federal:
Em primeiro lugar, revogo, em parte, a decisão de fls. 145/146 que determinou a formação de existência de litisconsórcio passivo necessário.
Deverá, portanto, tramitar somente em face do GOOGLE BRASIL INTERNET LTDA.
Em relação à retirada dos vídeos , bem como o fornecimento do IP dos divulgadores, indefiro a antecipação da tutela, com base nos seguintes argumentos.
Com efeito, a retirada dos vídeos referentes a opiniões da igreja Universal sobre a crença afro-brasileira envolve a concorrência não a colidência entre alguns direitos fundamentais, dentre os quais estaco:
Liberdade de opinião;
Liberdade de reunião;
Liberdade de religião.
Começo por delimitar o campo semântico de liberdade , o qual se insere no espaço de atuação livre de intervenção estatal e de terceiros.
No caso, ambas manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado.
Não se vai entrar , neste momento, no pantanoso campo do que venha a ser religião, apenas, para ao exame da tutela, não se apresenta malferimento de um sistema de fé. As manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões, muito menos os vídeos contidos no Google refletem um sistema de crença - são de mau gosto, mas são manifestações de livre expressão de opinião.
Quanto ao aspecto do direito fundamental de reunião, os vídeos e bem como os cultos afro-brasileiros, não compõem uma vedação à continuidade da existência de reuniões de macumba, umbanda, candomblé ou quimbanda.
Não há nos autos prova de que tais cultos afro-brasileiros - expressão que será desenvolvida no mérito ¿ estejam sendo efetivamente turbados pelos vídeos inseridos no Google.
Enfim, inexiste perigo na demora, posto que não há perigo de perecimento de direito, tampouco fumaça do bom direito na vertente da concorrência, não colidência, de regular exercício de liberdades públicas.
Não há , do mesmo modo, perigo de irreversibilidade, posto que as práticas das manifestações afro-brasileiras são centenárias, e não há prova inequívoca que os vídeos possam colocar em risco a prática cultural profundamente enraizada na cultura coletiva brasileira.
Isto posto, revogo a decisão de emenda da inicial, indefiro a tutela pelas razões expostas e determino a citação da empresa ré para apresentar a defesa que tiver no prazo legal.
Após a contestação, ao MPF”.(Grifo do Autor)
Os grifos, de autoria do Procurador, destacam os fundamentos da decisão, em que alega não conterem traços suficientes de religião os cultos afro-brasileiros, e que os vídeos, de nítida intolerância e incentivo ao ódio para com estas crenças, não teria contornos de impedimento de continuidade das reuniões daquilo, que para o magistrado, não seria religião, o que foi considerado pelo membro do MP que assina o recurso como “fundamentos estarrecedores”.
A decisão, não corresponde, evidentemente, ao posicionamento de todo o judiciário brasileiro, mesmo porque não há que se esquecer da autonomia dos juízos quando da formulação do suas convicções. Porém o ato, isoladamente considerado, revela a presença no judiciário da forte influência religiosa quando da prolatação das decisões, chegando ao despautério, como neste caso em separado, de se fazer uso do poder de que goza o Estado, não somente para permitir a intolerância, como robustecê-la quando da tentativa de desqualificação das praticas dos cultos de matriz africana como religião.
Outra conduta sustentada pelos tribunais, esta não em pronunciamentos difusos, mas no próprio espaço físico dos órgãos, é a manutenção dos símbolos cristãos como o crucifixo e a Bíblia, questão que vem gerando intensa discussão.
A retirada dos símbolos cristãos das repartições públicas já foi suscitada diversas vezes, em todas as instâncias, sendo as demandas, em sua maioria, decididas no sentido da permanência de tais símbolos. Uma das abordagens presente nos fundamentos das decisões é a de que, antes de religiosos, são culturais os ícones ostentados nos órgãos do judiciário, de modo a não configurar atentado algum à pluralidade religiosa de que goza o Estado ou mesmo à laicidade.
Este entendimento não é unânime e o posicionamento contrário a ele vem sendo objeto de estudo e vasta produção cientifica jurídica, como é o caso do artigo “O crucifixo nos tribunais e a laicidade do Estado”, parte integrante da obra “Em defesa das liberdades laicas”[42] de Daniel Sarmento. Na produção são expostos e rebatidos os argumentos mais frequentes utilizados pela manutenção dos símbolos religiosos. Para o autor, nenhum deles se sustenta haja vista serem tentativas pífias de ocultar a predileção do poder judiciário por um determinado culto, manifesta pela exposição e manutenção dos símbolos no espaço dos órgãos, predileção esta que configura claramente violação ao principio da laicidade, segundo o autor.
A questão similar fora suscitada no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em sede administrativa, por meio da requisição movida pela Liga Brasileira de Lésbicas junto presidência do TJ-RS, que pleiteava a remoção dos símbolos religiosos dos tribunais. O procedimento foi acompanhado por diversos setores da sociedade, incluindo grupos religiosos cristãos, tendo em 6 de março de 2012 decisão favorável a retirada dos ícones cristãos presentes nos espaços públicos dos prédios da Justiça gaúcha[43]. Cabe destacar que a referida decisão reformou o entendimento anterior daquele tribunal, que em 2011 havia se inclinado pela manutenção dos símbolos religiosos nas dependências dos prédios públicos.
O relator, Desembargador Cláudio Baldino Maciel, em seu voto defende a retirada dos símbolos e a proteção ao Estado Laico sob os seguintes argumentos:
Vê-se, assim, que a questão ora analisada não é prosaica ou simples, já que não se trata de julgar forma de decoração ou preferência estética em ambientes de prédios do Poder Judiciário, senão de dispor sobre a importante forma de relação entre Estado e Religião num país constituído como república democrática e laica.
[...]
No entanto, à luz da Constituição, na sala de sessões de um tribunal, na sala de audiências de um foro, nos corredores de um prédio do Judiciário mostra-se ainda mais indevida a presença de um crucifixo (ou uma estrela de Davi do judaísmo, ou a Lua Crescente e Estrela do Islamismo) do que uma grande bandeira de um clube de futebol.
Isto porque, ao passo em que a presença da bandeira de um clube de futebol na sala de sessões de um tribunal não fere o princípio da laicidade do Estado (ao contrário da presença do crucifixo, que fere tal princípio), a presença de qualquer deles – bandeira de clube ou crucifixo – em espaços públicos do Judiciário fere o elementar princípio constitucional da impessoalidade no exercício da administração pública. Ou seja, a presença de símbolos religiosos em tais locais viola, além do princípio da laicidade do Estado e da liberdade religiosa, também o princípio da impessoalidade que rege a administração pública.
Os símbolos oficiais da nação brasileira estão previstos na Constituição Federal, sendo eles a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais.[8] São símbolos do Estado do Rio Grande do Sul a bandeira rio-grandense, o hino farroupilha e as armas tradicionais[9]. Tais são os símbolos, portanto, que podem ser ostentados em ambientes formais do Poder Judiciário, abertos ao público, sem violação do princípio constitucional da impessoalidade.
Sendo a questão, muito mais ampla do que meramente pertinente à decoração dos tribunais, como querem defender alguns, ou ainda inofensiva à legitimação do Estado. De modo que se adiantou a justiça gaúcha na proteção do principio constitucional.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), “órgão de controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”, como ensinam Alexandrino e Paulo (2010) tem se manifestado sobre o tema muito timidamente, o que pode ser percebido pelas decisões proferidas e pelo silencio acerca das questões jurídicas difusas e latentes, como esta ocorrida no Rio Grande do Sul. A decisão proferida a que se refere o texto ocorreu em 2007, quando a ONG Brasil para Todos formulou requerimento ao órgão de controle pela determinação de retirada, em todo o território nacional, de tais símbolos, bem como pela proibição desta prática aos magistrados. À época inclinou-se o CNJ pela manutenção dos símbolos, negando provimento ao pedido. Porém, mesmo esquivando-se de decidir de modo a impor uma postura aos magistrados em todo o pais, vem sinalizando, o órgão de controle, no sentido de promover a informação e o debate sobre o tema. Isto é percebido pela realização, em 2011, do Seminário Internacional sobre o Estado Laico e a Liberdade Religiosa. O evento realizado em Brasília tinha razões e objetivos claros, como registra o portal jurídico de noticias JusBrasil:
O Estado Laico e A Liberdade Religiosa é o tema do Seminário Internacional que será realizado no próximo dia 16 de junho, no Centro de Convenções Brasil 21, em Brasília, organizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com o objetivo de oferecer elementos para a compreensão das questões jurídicas que envolvem as relações entre a Igreja e o Estado, tanto no que diz respeito às consequências jurídicas da separação entre ambos, quanto em relação às formas e limites da cooperação mútua e da garantia do respeito à liberdade religiosa num Estado plural e democrático de direito. A necessidade do seminário, conforme o CNJ, nasceu da crescente discussão na esfera judiciária sobre questões de caráter administrativo ou judicial envolvendo as relações entre o espiritual e o temporal, tais como a presença de símbolos religiosos em órgãos públicos, o funcionamento ou não desses órgãos em dias santos, ou o enquadramento de determinados argumentos como de caráter religioso, para descartá-los do discurso jurídico.
Embora tenha se furtado da obrigação de posicionar-se, como fez o Tribunal de Justiça no Rio Grande do Sul, não deve ser desprezada a iniciativa do CNJ em promover o debate em um âmbito nacional, o que pode fomentar a discussão, geral e pontual, acerca do tema, numa tendência que, inegavelmente, evidencia de per si uma situação de crise no judiciário, o qual, devendo agir de modo a proteger os fundamentos do Estado e os direitos e garantias fundamentais, assume posição partidária religiosa, tanto no espaço físico dos órgãos quanto em suas decisões.
3.4 A CRISE DO ESTADO LAICO E O RISCO ÀS LIBERDADES E À SOLIDEZ DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Professores que, em sala de aula, pregam a palavra como se em um culto estivessem e, quando questionados sobre este suposto direito de impor a religião, aceitam e promovem a prática do bullying contra os alunos que se posicionam desfavoráveis ao culto escolar. Chefes do executivo, que se esquecendo de suas mais urgentes demandas passam a exaltar sua própria crença, em obras, atos e declarações, privilegiando seu grupo a despeito dos interesses coletivos ou mesmo da mais apropriada observância aos princípios norteadores da governança. Membros do legislativo, que se valendo de suas atribuições precípuas põem-se a normatizar suas convicções religiosos pessoais, direcionando-as a todos que se encontrem sob os domínios de sua legislatura, gerando uma imperatividade que sequer no âmbito religioso é aceitável. Erguem-se ainda contra a livre manifestação da população, barrando-a, mitigando-a, nas mais claras e constrangedoras tentativas de extermínio do diferente, em atos de declarado combate aos direitos daqueles que lhes são religiosamente estranhos, disseminando do alto das mais elevadas tribunas, ditas laicas, impropérios, agressões e ataques que somente podem fomentar o ódio e a segregação social. Tal separação resta igualmente visível no judiciário, que resiste, quando de ofício deveria se opor, preservando em suas salas símbolos que anunciam qual religião professa esse Estado que se intitula laico, mas reza para um deus em particular antes de prolatar os destinos da nação, ou quando se dirige a negar o direito à crença e sua legitimação religiosa, ao apoiar a discriminação, alegando não ser religião o que notoriamente é, aos olhos da população e da própria história nacional, num cruel atentado à dignidade que deveria banhar o direito personalíssimo de crença.
Ecoam vozes em nossa nação. Nitidamente são ouvidas. Vozes que bradam pela desigualdade, vozes que repetem sombrios cânticos de segregação, de opressão e ódio. Semeando a divisão e a extinção de tudo aquilo que destoa de seus traços peculiares, de sua cultura preferencial, de seus dogmas particulares e verdades irretocáveis. Vozes são ouvidas evocando uma autoridade que jamais lhe poderia ser dada, não em um terreno propenso a liberdades, numa era onde é celebrada a igualdade e por ela se constroem pontes para o futuro. Vozes, essas vozes ecoam, ainda, em nossa nação.
Outras tantas vozes, no entanto, igualmente se erguem para exaltar e proteger os pilares que sustentam este Estado que se dispõe a dirigir-se isonomicamente a todos. Vozes que surgem de diversos lugares: da filosofia, do pensamento social, da academia jurídica, dos Tribunais. Vozes que se propõe a questionar, a pensar o Estado e sua melhor manifestação, aquela que efetivamente possa a todos oferecer guarida.
Roberto Arriada Lorea, em seu artigo “O assédio religioso”, comenta dois fatos pertinentes ao estudo em tela. No primeiro deles, é relatada notícia veiculada por jornal de grande circulação no Rio Grande do Sul, que tratava da posse de determinado secretário de Secretaria de Segurança Pública, cujo nome não fora divulgado, e que, em seu primeiro dia de trabalho, adota procedimento bastante peculiar contra o crime: a fé, levando todos os funcionários sob sua chefia a participar por cinco minutos de um “mini-culto”, no qual procedia a leitura de trecho bíblico, seguida de oração coletiva. Já segunda narrativa diz respeito ao constrangimento, em empresa privada, dos funcionários para a participação em um culto cristão.
Nas duas situações, aquele que detém autoridade sob os subordinados impõe a conduta, direta ou indiretamente, de participação em um culto religioso a despeito de qualquer que seja a crença dos funcionários, como se este fosse um ato próprio à atividade laboral, incorporando-o à mesma. E segundo o autor, embora guardando ampla similaridade, os efeitos e repercussão das duas situações foram bastante distintos.
A segunda situação foi levada a juízo, sendo apreciada pelo Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina, na 3ª Turma, em sede do Processo nº 00826-2005-025-12-00-2, do qual determinada funcionária pleiteou indenização por dano moral em razão do constrangimento ao qual fora exposta por se negar a participar do culto cristão. Conforme a narrativa dos autos, a autora professava fé cristã, porém católica, enquanto que uma das sócias da empresa, a qual promovia as orações matinais obrigatórias, participava da Igreja Evangélica Quadrangular. No julgamento da pretensão, proferiu a juíza-relatora, Gisele Alexandrino:
É absolutamente reprovável o procedimento da ré em obrigar seus funcionários a participarem de orações de religião diversa da que crêem, o que, sem dúvida alguma, atenta contra a moral do trabalhador, principalmente pelo fato dos proprietários da ré ameaçarem os empregados que não participassem das orações com rescisão contratual (TRT-SC apud LOREA et al, 2007, p.164)
Entendeu-se portanto, naquele julgado, que o constrangimento por parte das autoridades laborais à pratica de determinada manifestação religiosa, diversa da professada pelo constrangido, configuraria violação de direito, o que ensejaria a reparação pelo dano moral. Desta feita, o que haveria de ser dito em relação ao Estado, que precipuamente deveria proteger os indivíduos destas circunstâncias e, em vez disso, passa ele próprio a promover o constrangimento? Sobre a questão posiciona-se Lorea et al:
Impor (ainda que veladamente) a prática religiosa aos servidores constitui-se em grave violação das liberdades laicas, pois ninguém pode sofrer coação estatal em matéria religiosa, sob pena de violação da liberdade de consciência e de crença assegurados na Constituição. (2008, p.164)
Sobre este suposto direito de constranger, de que pensam gozar determinados agentes estatais, firmou posição a doutrinadora Maria Berenice Dias[44], em discurso publicado sob o título “A Justiça e a laicidade”[45], quando comentou sobre a problemática que atinge certos setores do Estado. No fragmento abaixo comenta a autora sobre a contaminação que afeta o poder legislativo:
A postura discriminatória da sociedade, encharcada de preconceito, acaba se refletindo no legislador. Claro que ele não vai se manifestar a favor de um segmento que é alvo do repúdio da maioria. Como referendar o interesse de uma minoria? Como votar a favor de uma lei que atente a uma parcela de excluídos? Ao depois, há risco de quem abraça a causa dos homossexuais ser identificado como um deles. Parece impossível que alguém defenda interesse de outros. (2008, 142)
Dedica-se, no mesmo discurso, a expor a postura omissa e perniciosa da magistratura:
Diante da postura omissiva do legislador, existe vácuo no sistema jurídico [...] situação que gera um circulo vicioso [...] O magistrado nada concede porque acha que a vontade do estado é não reconhecer direitos. Mas não é essa a intenção do parlamentar. Simplesmente se omite por absoluta covardia de enfrentar uma situação que pode excluí-lo do poder. (op. cit.)
Embora não aborde, diretamente, as questões pertinentes às praticas do legislativo e judiciário, de ostensiva perseguição religiosa, o faz indiretamente, ao questionar os motivos pelos quais deixam de agir, cumprindo os preceitos constitucionais, ao legislarem ou se omitirem a fazê-lo, e quando decidem, pendendo para um lado especifico da crença. Conclui a doutrinadora seu entendimento ao assentar que “o Poder Judiciário, ainda encharcado com preconceitos de ordens religiosas, acaba descumprindo com o seu papel de fazer justiça”.
O pensamento de Dias, embora não podendo ser compreendido como geral, e aplicado a todos os magistrados do país, infelizmente abarca grande maioria, que ainda se posiciona como se num Estado confessional estivessem. Todavia, sobre as questões do judiciário, ainda haverá uma oportunidade para abordagem nesse capítulo.
Enquanto Dias (2008) condena a postura do legislativo, que encharcado pelo preconceito social, e eivado do receio de prejuízo próprio, deixa de legislar em benefício de minorias, Coutinho (2011) aponta a postura legiferante, contaminada pela religião, como algo a ser extirpado da realidade jurídica nacional:
Num Estado laico, não se pode admitir a fundação de partidos políticos religiosos. Assim, por exemplo, eventual partido “cristão”, “judeu” ou “católico”, é incompatível com o Estado laico. Os partidos políticos fornecem os candidatos aos cargos eletivos dos Poderes Legislativo e Executivo, poderes esses que devem ser exercidos com absoluta independência das religiões.
Dedica-se a Procuradora a demonstrar que se torna impossível exigir posicionamento isento do fator religioso, como determina a norma constitucional, por parte daquele individuo que se elege, exclusiva e preponderantemente, por este mesmo fator, e o faz prometendo a seus eleitores defender em sua legislatura os preceitos religiosos dos quais deveria manter-se distante. Elucidando ainda mais a questão, coloca: “O equilíbrio de interesses e pacificação social, numa sociedade pluralista, são conceitos que afastam a preponderância das religiões, mormente em situações nas quais os dogmas religiosos confrontam direitos fundamentais.”
Não por acaso o uso de grifos pela autora para as expressões “equilíbrio de interesses” e “sociedade pluralista”, por serem estes amplamente estranhos e antagônicos à grande parte dos religiosos e de seus representantes, igualmente religiosos nas casas legislativas do país. Na luta pela afirmação dos dogmas religiosos, comumente ataca-se e reprime-se a conquista de outros grupos, o que não coaduna com o ideal de pluralidade civil. Por isto, entende Coutinho pela vedação da mescla entre religião e poder legislativo, sob os seguintes argumentos:
Tendo em vista que são identificáveis, por exemplo, uma “bancada evangélica” e um “lobby católico” no Congresso Nacional brasileiro, que há partidos cuja legenda inclui o adjetivo “cristão”, e que frequentemente polêmicas religiosas invadem o cenário eleitoral, como falar-se em separação entre Estado e Igreja, em ausência de relações de dependência e, sobretudo, de aliança entre o Poder Público e as religiões? Não há proibição legal para a eleição de alguém tendo, como plataforma política, seu ativismo religioso ou sua filiação a determinada crença. Assim, a separação entre os negócios do Estado e os da fé ficam seriamente comprometidos, e, destarte, instabiliza-se a própria noção de “Estado laico”. O Poder Legislativo é um dos Poderes da União; se não for o Legislativo laico, como falar-se em Estado laico? (op. cit.)
O raciocínio proposto pela procuradora é cristalino: a existência de partidos políticos que professam nitidamente uma confissão religiosa implica diretamente na possibilidade de eleição de alguns de seus membros, e em sendo eleitos tais representantes, estes necessariamente enxergarão legitimidade para exercer suas funções sob o direcionamento religioso. Haja vista ser o legislativo poder inerente ao Estado, em sendo este poder confessional, passa a ser, necessariamente, também confessional o Estado.
A inexistência de norma que vede a fundação de tais partidos propicia evidentemente sua constituição, o que, para a autora, é reflexo da ineficácia do principio da laicidade, tornando, deste modo, imperiosa a produção normativa no sentido de adequar o exercício da cidadania por estes grupos. Todavia, tomando por lastro as ponderações de Dias (2008): se não é possível esperar manifestação de parte do legislativo em favor das minorias, pelo receio à represália, menos ainda se pode esperar uma postura que vá de encontro aos interesses próprios a esta classe.
Posicionamento tão incisivo quanto o de Coutinho (2011) é aquele defendido por Guedes (2010), quando, ao tratar do assédio religioso no Poder Executivo, na seara escolar, assevera ser o ensino religioso fator determinante para propagação do obscurantismo, racismo e discriminação religiosa na sociedade pela via educacional, forjando as escolas públicas como instrumentos à disposição de determinados credos para esmagamento dos demais. Logo, embora admitindo que a promulgação de lei que venha a inibir tal prática não seja a solução infalível para a questão, será, certamente, um caminho para a diminuição das discrepâncias ora existentes, sendo para a autora imprescindível:
Defender a PEC[46], retirar o ER[47] das escolas públicas e trabalhar muito na sociedade como um todo e na formação de professores, em particular, para a construção de uma educação pública de qualidade, multicultural, crítica e laica.
A preocupação da pesquisadora, bem como seu posicionamento rígido em oposição à manutenção do ensino religioso nas escolas públicas, pode parecer num primeiro momento um exagero, porém encontra força quando confrontado com outros dados, como os veiculados pelo portal O Globo, na seção “educação”, em matéria publicada em 23 de março de 2013, com título “Ensino religioso é obrigatório em 49% de escolas públicas, contra lei”, no qual é informado que, segundo dados disponibilizados pelo Ministério da Educação, em “51% dos colégios há o costume de se fazer orações ou cantar músicas religiosas.” E, embora seja determinado pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB), legislação especial para educação, a faculdade do aluno em participar ou não das aulas de ensino religioso oferecidas pelas instituições, “49% dos diretores entrevistados admitiram que a presença nas aulas dessa disciplina é obrigatória”, e ainda, que “em 79% das escolas não há atividades alternativas para estudantes que não queiram assistir às aulas”. Conforme a reportagem; “na maioria das escolas públicas brasileiras, para passar de ano, os alunos têm que rezar. Literalmente.”
Não deveria, isto posto, causar estranheza a ideia de propositura de Projeto de Emenda à Constituição que venha a vedar, definitivamente, esta prática abusiva.
Este entendimento construído por Guedes é partilhado por Huaco[48], quando assevera:
Quando a escola pública se encarrega da doutrinação religiosa dos educadores, e quando o Estado financia centros educacionais particulares religiosos, torna-se relativo o princípio de laicidade e de diversas liberdades públicas, pois se promove desta maneira uma determinada religião. Pressiona-se os alunos não-católicos a violar seu direito de manter sigilo sobre suas convicções religiosas por terem que pedir exoneração do curso de religião católica ensinado de maneira oficial, consagrando um principio anacrônico: que o Estado é confessional e se permite “tolerar” os cidadãos que não o são, “autorizando-lhes” a exoneração. O ensino religioso do tipo doutrinal resulta em uma clara violação da separação Igreja-Estado. (2008, p.63)
Não resta dúvida de que a presença do ensino religioso nas escolas públicas, em mais da metade destas, no território nacional, desvirtua a figura do Estado laico, tornando-o confessional, como bem destaca o autor.
Em situações como as acima narradas, em que direitos são ameaçados ou lesionados, tem-se como guarida a tutela jurisdicional, que há de proteger os indivíduos dos desmandos que, pela força do arbítrio, possam ocasionar danos à população. Mas o que dizer quando estes atos de arbítrio e violação emanam diretamente do judiciário, em lugar da cobertura esperada, coadunando com o ilícito quando, em lugar disto, deveria combatê-lo. E aqui não há referencia à manutenção de símbolos religiosos nos tribunais e salas pelo país, questão aqui já suscitada, trata-se propriamente de decisões judiciais, sentenças que reforçam o ataque a laicidade e o fomento à discriminação e à intolerância.
Um caso em especial, recente em nossa jurisprudência, ganhou notoriedade nacional e repercutiu o tema da intolerância religiosa pelos mais diversos prismas, revelando o qão espinhosa é a questão, especialmente no tocante à (ainda obscura), epistemologia da liberdade de expressão. Uma Ação Civil Pública, sob nº 0004747-33.2014.4.02.5101, movida pelo Ministério Público Federal em face da empresa Google Brasil Internet Ltda, tinha por objetivo a retirada de determinado número de vídeos, de autoria de membros da Igreja Universal do Reino de Deus, os quais, segundo a argumentação contida na exordial, disseminam a intolerância e a discriminação contra as religiões de matrizes africanas. A questão em si não é efetivamente algo novo em nosso judiciário. O que de fato causou repulsa e comoção nacional foi a decisão interlocutória proferida pelo Magistrado Eugenio Rosa de Araujo, da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, que segundo o membro do parquet federal agredia, no mínimo duplamente, as religiões de matriz africana, ao desqualificá-las como culto religioso e tratar os atos registrados e divulgados nos vídeos como “exercício regular de liberdade de expressão e reunião”. A decisão, reproduzida na integra nesta produção[49], causou não apenas o repúdio do Ministério Público como de diversos setores da sociedade.
No manejo do Agravo de Instrumento, em sede da desafortunada decisão, o Procurador da República Jaime Mitropoulos argumentou magistralmente pela defesa das reais liberdades de expressão e proteção à integridade das religiões de matriz afro, e pela delimitação dos direitos das demais ao arguir a retirada urgente dos vídeos, que a primeira decisão propõe-se a manter, além do pleito pela reforma desta. Em dado momento do recurso, alega o Membro do parquet o verdadeiro teor da decisão:
Tais conteúdos caracterizam o que a doutrina de um modo geral denomina hate speech, discurso do ódio que, no caso dos autos, está baseado essencialmente na intolerância e na discriminação por motivos religiosos. Vale frisar que a comunidade internacional praticamente chegou ao consenso sobre a necessidade de coibir práticas desse tipo, razão pela qual diversos diplomas foram promulgados depois da segunda guerra mundial, mais especificamente a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, de modo a instar os países a criarem e utilizarem instrumentos jurídicos para evitar a repetição de atos tão nefastos para a humanidade.
Quando dos pedidos, aduz o Procurador:
Torna-se imperioso, portanto, evitar que os conteúdos continuem propagando e perpetuando danos à dignidade da pessoa humana, à cidadania e aos direitos à honra e à imagem dos cidadãos e grupos humanos que professam as religiões de matrizes africanas, colocando sob grave ameaça, desse modo, um dos objetivos magnos da República Federativa do Brasil, que é construir uma sociedade livre, justa e solidária. [...] Por fim, o Ministério Público Federal requer o provimento do presente agravo de instrumento, com a reforma da r. decisão interlocutória do MM. Juízo a quo.
Em 20 de maio de 2014, já após a grande repercussão que teve a decisão interlocutória, pronuncia-se o magistrado, nos autos, pela reforma do decisum; porém, para estarrecimento de todos que acompanhavam o caso, modificou o magistrado unicamente a questão relativa ao reconhecimento do culto afro como religião, preservando o que de mais lesivo havia, como se pode observar:
Cumpre esclarecer que a liminar indeferida para a retirada dos vídeos no Google teve como fundamento a liberdade de expressão de uma parte (Igreja Universal) e de reunião e expressão de outra (religiões representadas pelo MPF), tendo sido afirmado que tais vídeos são de mau gosto, como ficou expressamente assentado na decisão recorrida, porém refletem exercício regular da referida liberdade.
Fica visto que tais liberdades fundamentais (expressão e reunião) estão sendo plenamente exercidas como manifestação coletiva dos fiéis dos cultos afro-brasileiros.
Destaco que o forte apoio dado pela mídia e pela sociedade civil, demonstra, por si só, e de forma inquestionável, a crença no culto de tais religiões, daí porque faço a devida adequação argumentativa para registrar a percepção deste Juízo de se tratarem os cultos afro-brasileiros de religiões, eis que suas liturgias, deidade e texto base são elementos que podem se cristalizar, de forma nem sempre homogênea.
A decisão recorrida, ademais é provisória e, de fato, inexiste perigo de perecimento das crenças religiosas afro-brasileiras e a inexistência da fumaça do bom direito diz respeito à liberdade de expressão e não à liberdade de religião ou de culto.
Assim, com acréscimo destes esclarecimentos, mantenho a decisão recorrida em seus demais termos. (grifo nosso)
Afirma o juiz que sua decisão, que reforma estigmas e fortalece preconceitos e intolerância, como perfeitamente fundamenta o Ministério Público, não apresenta quaisquer perigos ao culto, que admite ter sido forçado a reconhecer como religião e, as agressões, registradas no vídeo, são meramente reflexo de um regular exercício de direito.
Quando da leitura, tanto da decisão interlocutória em questão, quando do agravo interposto, resta evidente o discurso de ódio das declarações contidas nos vídeos, e seu apoio pelo magistrado, que ousa valer-se do poder a ele investido para proteger, sob o suposto manto do direito, a capacidade vil de tentativa de extermínio de tudo o que se considera como diferente.
Várias são os argumentos levantados pelo parquet na defesa daqueles direitos, mas aqui não serão expostos, pois o que importa a estas discussões, é o evidente uso da máquina estatal, investida na “canetada” daquele magistrado (como colocou o procurador), o qual, ao decidir, expressa unicamente suas crenças mais indiferentes, mesquinhas e pessoais, num imensurável distanciamento dos preceitos constitucionais.
Enquanto segue a controvérsia e digladiam-se magistrados, advogados, defensores públicos, promotores e procuradores, na defesa de seus pontos de vista, ora se distanciando, ora se aproximando do ideal laico, certo entendimento, proferido no maior Tribunal desta nação, contido em voto que sequer tratava diretamente da matéria, provavelmente reflete o que de mais preciso poderia ser dito e entendido sobre a questão da laicidade do Estado.
Em abril de 2005, foi levado ao plenário do STF a ADPF[50] 54, que versava acerca do aborto de fetos anencéfalos. A ação tinha como relator o Ministro Marco Aurélio, e fora arguida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, contra lesão aos preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, saúde, liberdade, autonomia da vontade e legalidade, perpetrada pela interpretação dos artigos 124, 126 e 128, I e II do Código Penal. A questão central girava em torno da interrupção da gravidez nos casos de feto anencéfalo, o que até então era enquadrado nos artigos acima mencionados, configurando crime para a gestante que procedia de tal forma, e abrangendo também a equipe médica que a auxiliava. O requerimento central da ação era o reconhecimento do direito subjetivo da gestante em proceder a antecipação terapêutica do parto no caso de detectada a anencefalia do feto, sem necessidade de autorização judicial ou de qualquer outra forma de permissão específica do Estado e, obviamente, sem a configuração de ilícito penal.
Grande celeuma se deu em razão do tema, despertando interesse de vários setores da sociedade, em especial dos religiosos, que defendiam o direito à vida do feto, que segundo eles estaria sumariamente ameaçada com a permissão judicial do procedimento e afastamento do ilícito. As dúvidas que se ergueram naquele momento pairavam sobre a real situação do feto anencéfalo, cientifica e jurídica, se para ele havia ou não a efetiva perspectiva de vida com a formação cerebral. Logo, o que deveria ser uma avaliação técnico-cientifica que embasaria uma decisão igualmente técnica, do poder judiciário, sobre a subsunção normativa passou a ser um sem número de questionamentos, indagações e afirmações de cunho religioso, sobretudo cristão, acerca da opinião divina sobre o tema.
O objetivo deste trabalho não é tratar da anencefalia, ou dos desdobramentos da APPF 54, mas um ponto em especial deve ser aqui levantando e este sim, interessa sobremaneira a estes estudos.
O relator, Ministro Marco Aurélio, quando da prolação de seu voto, inicia com uma peculiar citação que faz alusão à qualidade inata das sociedades de estarem continuamente em processo de mudança. A citação em questão seria absolutamente normal, não fosse o fato de ser a voz do Padre Antônio Vieira, utilizada ali como parâmetro para discorrer, logo em seguida, uma das mais coesas explanações sobre a necessária separação entre Estado e Igreja. Parte do discurso[51], que integra seu voto sobre a matéria relativa ao aborto anencéfalo, interessa sobremaneira à este estudo e portanto, aqui será reproduzido para apreciação:
Na mesma linha, andou o Constituinte de 1988, que, sensível à importância do tema, dedicou-lhe os artigos 5º, inciso VI, e 19, inciso I, embora, àquela altura, já estivesse arraigada na tradição brasileira a separação entre Igreja e Estado. Nos debates havidos na Assembleia Nacional Constituinte, o Presidente da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, Antônio Mariz, enfatizou; “o fato de a separação entre Igreja e Estado estar hoje incorporada aos valores comuns à nacionalidade, não é suficiente para eliminar do texto constitucional o princípio que a expressa”. Nesse contexto, a Constituição de 1988 consagra não apenas a liberdade religiosa – inciso VI do artigo 5º –, como também o caráter laico do Estado – inciso I do artigo 19. [...] Pois bem, Senhor Presidente, não obstante tais dispositivos, o preâmbulo da atual Carta alude expressamente à religião cristã. Eis o teor: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” No entender de Pinto Ferreira, “(...) o preâmbulo é parte integrante da Constituição e tem a sua significação política, como uma reprodução altamente clara do conteúdo da Constituição em forma popular”16. Antes, João Barbalho anotara não ser o preâmbulo “(...) uma peça inútil ou de mero ornato na construção dela [Constituição]; as simples palavras que o constituem resumem e proclamam o pensamento primordial e os intuitos dos que a arquitetaram”. A despeito de tais opiniões, essa não foi a posição abraçada por este Supremo quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.076/AC, da relatoria do Ministro Carlos Velloso. Na ocasião, o Tribunal explicitou que a menção a Deus carece de força normativa, conforme se depreende da ementa [...] Naquela assentada, o eminente Ministro Sepúlveda Pertence asseverou que a “locução ‘sob a proteção de Deus’ não é norma jurídica, até porque não se teria a pretensão de criar obrigações para a divindade invocada. Ela é uma afirmação de fato jactanciosa e pretensiosa, talvez – de que a divindade estivesse preocupada com a Constituição do país”. Conclui-se que, a despeito do preâmbulo, destituído de força normativa – e não poderia ser diferente, especialmente no tocante à proteção divina, a qual jamais poderia ser judicialmente exigida –, o Brasil é um Estado secular tolerante, em razão dos artigos 19, inciso I, e 5º, inciso VI, da Constituição da República. Deuses e césares têm espaços apartados. O Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é simplesmente neutro. “Merece observação a temática afeta aos crucifixos e a outros símbolos religiosos nas dependências públicas. A discussão voltou à balha com a recente decisão do Conselho Superior da Magistratura do Estado do Rio Grande do Sul no sentido da retirada dos símbolos religiosos dos espaços públicos dos prédios da Justiça estadual gaúcha. Ao contrário dos tempos imperiais, hoje, reafirmo, a República Federativa do Brasil não é um Estado religioso tolerante com minorias religiosas e com ateus, mas um Estado secular tolerante com as religiões, o que o impede de transmitir a mensagem de que apoia ou reprova qualquer delas.” Há mais. Causa perplexidade a expressão “Deus seja louvado” contida nas cédulas de R$ 2,00, R$ 5,00, R$ 10,00, R$ 20,00, R$ 50,00 e R$ 100,00, inclusive nas notas novas de R$ 50,00 e R$ 100,00, essas últimas em circulação a partir de 13 de dezembro de 2010. Em princípio, poder-se-ia cogitar de resquício da colonização portuguesa, quando era comum a emissão de moedas com legendas religiosas, ou de prática advinda do período imperial. Diligência junto ao Banco Central, no entanto, revelou que o Conselho Monetário Nacional – CMN, ao aprovar as características gerais das cédulas de Cruzados e de Cruzeiros, recomendou, de acordo com orientação da Presidência da República, que nelas fosse inscrita a citada locução. Nas cédulas de Cruzados, começou, então, a ser utilizada inclusive naquelas que tiveram a legenda adaptada: Cz$ 10,00 (Rui Barbosa), Cz$ 50,00 (Oswaldo Cruz) e Cz$ 100,00 (Juscelino Kubitschek) – Voto CMN 166/86, Sessão 468, de 26 de junho de 1986. Quando voltou a vigorar o padrão Cruzeiro (1990), foi suprimida no início, inclusive nas que tiveram a legenda adaptada: Cr$ 100,00 (Cecília Meireles), Cr$ 200,00 (República) e Cr$ 500,00 (Ruschi). Voltou a ser usada a partir da cédula de Cr$ 50.000,00 (Câmara Cascudo), em 1992, com base no Voto CMN 129/91 – Sessão 525, de 31 de julho de 1991. No início do padrão Real, foi retirada, mas retornou, após a emissão de algumas séries, em observância ao pedido do Ministro da Fazenda (Aviso nº 395, de 30 de março de 1994, do Ministério da Fazenda, Voto BCB/221, Sessão 1.577, de 8 de junho de 1994, Comunicado MECIR 4.050, de 20 de julho de 1994). Vê-se, assim, que, olvidada a separação Estado-Igreja, implementou-se algo contrário ao texto constitucional. A toda evidência, o fato discrepa da postura de neutralidade que o Estado deve adotar quanto às questões religiosas. Embora não signifique alusão a uma religião específica, “Deus seja louvado” passa a mensagem clara de que o Estado ao menos apoia um leque de religiões – aquelas que creem na existência de Deus, aliás, um só deus, e o veneram –, o que não se coaduna com a neutralidade que há de ditar os atos estatais, por força dos mencionados artigos 5º, inciso VI, e 19, inciso I, da Constituição da República. Desses dispositivos resulta, entre outras consequências, a proibição de o Estado endossar ou rechaçar qualquer corrente confessional. Consigno, para efeito de documentação, que ao término de 2011, o Ministério Público intercedeu objetivando esclarecimentos sobre a matéria. Porém, não houve, até aqui, desdobramento sob o ângulo da efetiva impugnação. A laicidade estatal, como bem observa Daniel Sarmento, revela-se princípio que atua de modo dúplice: a um só tempo, salvaguarda as diversas confissões religiosas do risco de intervenção abusiva do Estado nas respectivas questões internas – por exemplo, valores e doutrinas professados, a maneira de cultuá-los, a organização institucional, os processos de tomada de decisões, a forma e o critério de seleção dos sacerdotes e membros – e protege o Estado de influências indevidas provenientes da seara religiosa, de modo a afastar a prejudicial confusão entre o poder secular e democrático – no qual estão investidas as autoridades públicas – e qualquer igreja ou culto, inclusive majoritário. Analisando o tema sob o primeiro ângulo, que garante a não intervenção estatal no âmbito religioso, este Tribunal, em meados da década de 50, consignou competir exclusivamente à autoridade eclesiástica resolver sobre normas da confissão religiosa. Nas palavras do relator do Recurso Extraordinário nº 31.179/DF, Ministro Hahnemann Guimarães, então ocupante desta cadeira e Professor da Nacional de Direito: “[A] autoridade temporal não pode decidir questão espiritual, surgida entre autoridade eclesiástica e uma associação religiosa. Esta impossibilidade resulta da completa liberdade espiritual, princípio de política republicana, que conduziu à separação entre a Igreja e o Estado, por memorável influência positivista, de que foi órgão Demétrio Ribeiro, com o projeto apresentado ao Governo Provisório em 9 de Dezembro de 1889”. Se, de um lado, a Constituição, ao consagrar a laicidade, impede que o Estado intervenha em assuntos religiosos, seja como árbitro, seja como censor, seja como defensor, de outro, a garantia do Estado laico obsta que dogmas da fé determinem o conteúdo de atos estatais. Vale dizer: concepções morais religiosas, quer unânimes, quer majoritárias, quer minoritárias, não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada. A crença religiosa e espiritual – ou a ausência dela, o ateísmo – serve precipuamente para ditar a conduta e a vida privada do indivíduo que a possui ou não a possui. Paixões religiosas de toda ordem hão de ser colocadas à parte na condução do Estado. Não podem a fé e as orientações morais dela decorrentes ser impostas a quem quer que seja e por quem quer que seja. Caso contrário, de uma democracia laica com liberdade religiosa não se tratará, ante a ausência de respeito àqueles que não professem o credo inspirador da decisão oficial ou àqueles que um dia desejem rever a posição até então assumida. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510 – na qual se debateu a possibilidade de realização de pesquisas científicas com células-tronco embrionárias –, o Supremo, a uma só voz, primou pela laicidade do Estado sob tal ângulo, assentada em que o decano do Tribunal, Ministro Celso de Mello, enfatizou de forma precisa: “nesta República laica, fundada em bases democráticas, o Direito não se submete à religião, e as autoridades incumbidas de aplicá-lo devem despojar-se de pré-compreensões em matéria confessional, em ordem a não fazer repercutir, sobre o processo de poder, quando no exercício de suas funções (qualquer que seja o domínio de sua incidência), as suas próprias convicções religiosas (grifos no original).” Ao Estado brasileiro é terminantemente vedado promover qualquer religião. Todavia, como se vê, as garantias do Estado secular e da liberdade religiosa não param aí – são mais extensas. Além de impor postura de distanciamento quanto à religião, impedem que o Estado endosse concepções morais religiosas, vindo a coagir, ainda que indiretamente, os cidadãos a observá-las. Não se cuida apenas de ser tolerante com os adeptos de diferentes credos pacíficos e com aqueles que não professam fé alguma. Não se cuida apenas de assegurar a todos a liberdade de frequentar esse ou aquele culto ou seita ou ainda de rejeitar todos eles. A liberdade religiosa e o Estado laico representam mais do que isso. Significam que as religiões não guiarão o tratamento estatal dispensado a outros direitos fundamentais, tais como o direito à autodeterminação, o direito à saúde física e mental, o direito à privacidade, o direito à liberdade de expressão, o direito à liberdade de orientação sexual e o direito à liberdade no campo da reprodução. A questão posta neste processo – inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual configura crime a interrupção de gravidez de feto anencéfalo – não pode ser examinada sob os influxos de orientações morais religiosas. Essa premissa é essencial à análise da controvérsia. Isso não quer dizer, porém, que a oitiva de entidades religiosas tenha sido em vão. Como bem enfatizado no parecer da Procuradoria Geral da República relativamente ao mérito desta arguição de descumprimento de preceito fundamental, “numa democracia, não é legítimo excluir qualquer ator da arena de definição do sentido da Constituição. Contudo, para tornarem-se aceitáveis no debate jurídico, os argumentos provenientes dos grupos religiosos devem ser devidamente ‘traduzidos’ em termos de razões públicas” (folhas 1026 e 1027), ou seja, os argumentos devem ser expostos em termos cuja adesão independa dessa ou daquela crença. (grifo nosso)
A precisa abordagem do relator sobre a laicidade estatal, utilizada como premissa para a discussão sobre o aborto de anencéfalo, merece aqui destaque.
Nove páginas foram utilizadas no voto original para tratar o tema da laicidade, que serve como premissa para a abordagem principal. Inicia tratando da natureza não normativa da citação de “deus” no preâmbulo constitucional, adianta-se para tratar da natureza não laicista do Estado, que, em sendo, corroboraria para agressões contra credos que professem o fator divino, devendo este Estado manter-se neutro, tratando religiosos e não religiosos de igual modo, a partir do prisma de estarem todos manifestando seu direito a livre expressão e crença. Cita, brevemente, sem contudo dar o devido desfecho, as questões, aqui já levantadas, sobre a ostentação de crucifixos nos tribunais[52] seguindo para o uso da expressão “deus seja louvado” nas cédulas monetárias nacionais. Questiona-se se não haveria de ser um resquício do período imperial, mas sana tal dúvida quando menciona decisões do Conselho Monetário Nacional (CMN) que determinaram, já no período democrático brasileiro, a manutenção de tais expressões, o que segundo o relator configura atentado direto à laicidade do Estado. Prossegue citando Sarmento, ao destacar a dúplice incidência do principio da laicidade, tema também já abordado nesta produção, dando necessário destaque para a vedação à presença de conteúdo religioso nos atos estatais, de modo que a moralidade religiosa, mesmo que da maioria da população, deve ser afastada quando do norteamento dos atos estatais, sob pena de estarem comprometidas a democracia laica e as liberdades religiosas.
Finalmente, conclui a assentada acerca da laicidade dizendo que, os argumentos oriundos dos setores religiosos devem ser considerados, mesmo porque dado o caráter democrático não poderia ser diferente. No entanto, para que sejam válidos, precisam obedecer critérios que coadunem com aa razões públicas, que tenham lastro na racionalidade, de modo a serem aceitáveis por quaisquer cidadãos, religiosos ou não, do contrário estar-se-ia diante de argumento puramente religioso e por isso irrelevante à analise jurídica procedida pelo Estado. Conclui assim sua fala, com a exaltação indireta ao caráter secular do Estado.
Naquela ocasião, o Tribunal julgou cabível a ADPF para fins de interpretação conforme a constituição, de texto legal pré-constitucional. Todavia, cabe destacar que o posicionamento do Ministro Marco Aurélio, relator da APPF, sobre os argumentos pertinentes à laicidade não foram unanimemente acatados, e cabe dizer que certos argumentos que recorriam a critérios e moralidade religiosos foram, inclusive, evocados nos votos de outros Ministros.
Vislumbra-se assim inequívoca crise no Estado Democrático, que devendo ser laico, dirige-se cada vez mais nitidamente ao firmamento de alianças, ideológicas e factuais, entre aqueles que representam o Estado no exercício dos Poderes, e indo além, quando embaraçam o exercício de crenças que não lhe sejam simpáticas, impondo o constrangimento e a mitigação de direitos àqueles que não comunguem da mesma posição, crise esta denunciada nos vários exemplos elencados aqui, que revelam uma marcha silenciosa e perigosa de usurpações do Estado por segmentos isolados da sociedade, numa tentativa de instrumentalização em prol de interesses específicos, de controle e manipulação social, sequestrando os indivíduos de seu direito de livre manifestação de crença.
Ari Pedro Oro, Doutor e Professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em seu artigo intitulado “A laicidade na América Latina: uma apreciação antropológica”[53], aponta as ameaças à laicidade como obstáculo ao exercício da democracia, e ao citar Blancarte anuncia a crise do Estado:
Roberto Blancarte, por seu turno, percebe na atualidade, por outro viés, ‘uma re-colonização confessional da esfera pública’, ou uma ‘crise da laicidade’, na medida em que ‘as instituições políticas que em seu conjunto configuram o Estado [...] voltam-se novamente e cada vez mais à religião como elemento de legitimação e de integração social (2008, p.92)
Esta perigosa relação que se constrói entre Estado e religião, intitulada por Blancarte como “re-colonização”, como menciona Oro, é o cerne daquilo que pode-se aceitar como “crise da laicidade”, crise do próprio Estado, vislumbrada pelo autor como uma resistência em aceitar o direito dos diferentes e tentativa em impor esta perspectiva por meio do braço estatal, como aduz Blancarte (2013, p.64):
Pero fue em buena medida una respuesta a una jerarquia religiosa y a sectores muy conservadores de la sociedade, que se negaron, como se niegan todavia, a aceptar una gestíon democrática, basada en la voluntad popular y en particular de las minorias. Son los mismos que pretenden todavia privilégios, pero sobre todo, que aspiran a uma gestíon desde la visíon religiosa, de una perspectiva doctrinal específica, de la cosa pública[54].
Ao tratar da crise, aponta Blancarte, com absoluta propriedade, para um cenário de segmento bastante especifico da sociedade mexicana, sobre a qual se debruça para constituir seu estudo, a qual insiste em buscar no Estado um conjunto de privilégios e uma legitimação para o ataque a minorias e ideias que lhes são contrárias, de modo que, conforme aponta o autor, é imperiosa para a sobrevivência deste Estado uma resposta firme e clara, no sentido de estabelecer os limites do exercício da liberdade religiosa, por parte destes que pretendem macular o exercício Estatal, em prol de interesse próprio.
Esta marcha, esta re-colonização, é observável não apenas no México analisado por Blancarte, mas nitidamente como um fenômeno vivenciado na contemporaneidade em diversos países do mundo ocidental, como uma busca pela reinserção do fator religioso na legitimação da sociedade, o que, fatidicamente, experimenta também o Brasil.
A legitimidade Estatal que deveria fundar-se no interesse democrático, nos ideais comuns a toda a sociedade, passa, gradativa e silenciosamente, a encontrar eco nas vozes religiosas, o que evidentemente não coaduna com o ideal de liberdades e laicidade, como elucida Coutinho (2011):
Num Estado laico, todo poder emana da vontade do ser humano. E não da ideia que se tenha sobre a vontade dos deuses ou dos sacerdotes. Se o poder emana do ser humano, o direito do Estado também dele emana e em seu nome há de ser exercido.
Seguindo a construção de Coutinho e Blancarte, poder-se-ia questionar que espécie de legitimidade haveria de gozar este Estado que aceita silente essa marcha religiosa que lhe afronta diretamente as bases e esmaga tantos direitos. Tal crise institucional[55] é ilustrada pelo sistemático uso da máquina estatal, através de seus três poderes, quando do implemento de condutas que ferem os ideais laicos e democráticos, e que preconizam claramente interesses particulares, confissões religiosas determinadas, numa flagrante postura de assédio religioso, que avança em direção às garantias fundamentais, num gradativo e alarmante processo.
3.5 COSTUME CONTRA LEGEM
A disposição constitucional que separa Estado e Igreja é instituída no ordenamento vigente, mas efetivamente nunca houve um Estado Laico Brasileiro. A herança católica perdurou na cultura na tradição popular, nunca questionada pela igualmente herdada subserviência das minorias, daqueles poucos que embora guardando para si um culto diverso da maioria, e amparados pela lei, não o podiam externar pela opressão certa e insuportável que seguiria daquela maioria. Assim, embora tenha o Estado tentado acompanhar o passo das demais nações que nasciam laicas, separadas e para tanto reconhecendo e instituindo legalmente a separação, não se preocupou muito embora em efetivá-la, mantendo o costume, o privilégio de alguns contra tantos outros que continuavam à margem da sociedade de direitos. Persiste, destarte, a cultura teocrática, e não apenas na sociedade que propaga abertamente atos de discriminação fundados na religião, mas também nos setores estatais, nos tribunais cujas paredes são adornadas pelos símbolos cristãos e as decisões perpassadas pelos dogmas dessa mesma crença, guiando a sociedade e tentando mantê-la sob o julgo de uma moralidade que não assiste a todos, a despeito de tantas outras diretrizes igualmente válidas, por vezes até mais coerentes com os ideais estatais.
No legislativo, tal percepção advém da mora em instituir e regulamentar aqueles direitos “biblicamente desaconselháveis” para aqueles que até os dias de hoje são considerados pelo estado como blasfemos, indignos, heréticos, termos estes replicados com frequência nas tribunas legislativas da nação[56], ou mesmo na peleja das bancadas contra a conquista de direitos de determinadas minorias, como homossexuais e adeptos da cultura e culto afro, numa descarada luta em prol de sua extinção.
É notória a confusão entre interesses privados, que eivam os atos dos agentes que manifestam o agir deste Estado, e o interesse público, que deveria, em tese, materializar a laicidade e assegurar direitos e garantias fundamentais. De fato a laicidade, enquanto norma, enquanto princípio constitucional, nunca foi capaz de produzir efeitos jurídicos no seio social, separando efetivamente o Estado da religião, isto porque o costume que exista antes da instituição desta separação persistiu, arrastou-se pelos séculos e hoje ganha cada vez mais força.
Certamente o costume deve orientar o Direito. Muitas vezes ele mesmo é sua matriz, quando a sociedade, por meio de representantes, legítima e constitucionalmente dirigidos, endossa as práticas sociais reconhecidas pontualmente, tornando-as normas abstratas, cogentes e gerais. Não é o caso do estudo em tela.
Ferraz Jr. ao enfrentar o tema aponta que:
A doutrina discute o costume, procurando estabelecer-lhe a origem dessa força compulsória, falando, em geral, em dois requisitos: o uso continuado e a convicção da obrigatoriedade (opinio necessitatis sive obligationis), com o que quer distinguir o simples uso do costume. (2008, p. 207)
Tratando a questão, aponta o celebrado doutrinador que embora dotado da noção de obrigatoriedade e mesmo sendo notório seu uso continuado, quando contrariando a lei, o costume deve ser rejeitado e combatido pelo sistema jurídico, para que este se imponha e faça valer suas diretrizes. Nesta direção também caminha Maria Helena Diniz:
O costume contra legem é aquele que se forma em sentido contrário ao da lei. Seria o caso do consuetudo abrogatória, implicitamente revogatória das disposições legais, ou da desuetudo, que produz a não aplicação da lei, em virtude de desuso, uma vez que a norma legal passa a ser letra morta. (2010, p.320)
Deveria ser alarmante a ideia de que a laicidade passasse a ser considerada como letra morta, pelo desuso ou pior, por nunca ter sido plenamente eficaz, haja vista os inescusáveis vestígios percebidos e por vezes celebrados, nos três poderes e por toda a sociedade civil, porquanto deve ser combatido. A esse respeito ensina Secco (2007), quando trata desta espécie de costume, determinando que “o costume contra legem, por se opor à lei, não é admitido no direito brasileiro”. Não devem então, as práticas que atentem contra a laicidade ser toleradas em nossa sociedade, especialmente, quando observadas as colocações de Ferraz Jr., sobre o combate a esta modalidade de costume:
A doutrina discute o costume, procurando estabelecer-lhe a origem dessa força compulsória, falando, em geral, em dois requisitos: o uso continuado e a convicção da obrigatoriedade (opinio necessitatis sive obligationis), com o que quer distinguir o simples uso do costume. (2008, p. 207).
Não deve ser desprezada a força e os reflexos que esta prática reiterada opera no corpo social. Não dificilmente pode-se observar os reflexos nocivos do pensamento anti-laico, disseminando ideias e atos que se desdobram nos mais diversos ataques aos indivíduos e grupos que não professam do ideal e a crença da maioria.
Então, o que haveria de ser dito sobre este Estado, que em lugar de estabelecer os marcos para combate deste costume, o replica, propaga e incentiva, ferindo sua própria lei fundamental e obviamente, direitos e garantias, existentes e ainda não regulados, de milhares de cidadãos?
4. ENFRAQUECIMENTO DEMOCRÁTICO ANTE O POSICIONAMENTO ANTILAICO ESTATAL
O atual Estado Brasileiro, edificado por meio da Constituição de 1988, elegeu a democracia como regime de aquisição e manutenção do poder. Isso extrai-se da leitura de seu artigo inaugural, e mais especificamente de seu parágrafo único, in verbis:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição (BRASIL, 1988) (grifo nosso)
Andou muito bem o legislador constituinte ao classificar expressamente o Estado Brasileiro como “Democrático de Direito”, e ao expressar em seu parágrafo único que este poder que o rege emanaria do povo. Nesta senda, para que se fale em estado Democrático é imperioso, antes de mais nada, que todo poder emane efetivamente do povo, de modo a promover a proteção e garantia dos direitos fundamentais. Todavia, não basta a simples disposição normativa para que sejam eficazes as suas disposições, e a mera existência de outras leis que imponham sua observância igualmente fracassam quando não há o mínimo esperado de um Estado cujo regime democrático é efetivo: a atuação popular.
4.1 CONCEITO E FUNÇÃO DA DEMOCRACIA
Assim como o Estado e suas leis não são auto-implementáveis pela mera normatização, não são totalmente claros os conceitos que são imprescindíveis à sua instrumentalização, como o de democracia por exemplo.
Não há um consenso entre pensadores e doutrinadores sobre o que efetivamente venha a ser a democracia e, embora muito se tenha sido dito, desde a antiguidade clássica grega até dias mais recentes, não se pode atestar que um conceito uníssono tenha sido alcançado, restando tão somente as impressões mais lúcidas possíveis.
Segundo Kelsen (2000, p.25) a “democracia é a palavra de ordem que, nos séculos XIX e XX, domina quase universalmente aos espíritos; mas exatamente por isso, ela perde, como qualquer palavra de ordem, o sentido que lhe seria próprio”.
Tem-se em Kelsen a democracia não como um conceito autônomo, mas algo que serve a outros propósitos, tal qual uma “palavra de ordem” que guia determinadas condutas ou ideais em direção à outra coisa; desta forma não se tem, em Kelsen, um conceito independente do que viria a ser este ponto basilar do Estado. Já para Alexandrino e Paulo (2010, p.32) a democracia é propriamente o conteúdo do regime de governo que se é adotado em alguns países do mundo e no Brasil:
O caput do art. 1.°da Constituição afirma que o Brasil "constitui-se em Estado Democrático de Direito". Modernamente, a concepção de "Estado de Direito" é indissociável do conceito de "Estado Democrático", o que faz com que a expressão "Estado Democrático de Direito" traduza a idéia (sic) de um Estado em que todas as pessoas e todos os poderes estão sujeitos ao império da lei e do Direito e no qual os poderes públicos sejam exercidos por representantes do povo visando a assegurar a todos uma igualdade material (condições materiais mínimas necessárias a uma existência digna).
Como muito bem pontuam os autores, atualmente não se pode dissociar a ideia de Estado regido pelas leis, e daí deduz-se a ideia de legitimidade deste Estado, da participação do povo para qual se dirigem tais leis. Disto mesmo extrai-se a ideia de democracia, um tanto quanto próxima ao proposto por Kelsen, ao compreendê-la como método para alcance de um fim, qual seja o de implemento deste Estado.
Bobbio, em sua obra “O futuro da democracia, uma defesa das regras do jogo”, defende aquilo que acredita ser uma definição mínima de democracia, sintetizada nas seguintes palavras:
Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considera-la caracterizada por conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. (1986, p.17)
Defende Bobbio ser a democracia aquele conjunto de regras que esclarece por quem e como será exercido o poder em um determinado agrupamento. Obviamente, segundo o autor, leva-se em conta para extração deste “quem” e “como” todos os indivíduos do agrupamento, de outro modo não se estaria fazendo referencia ao governo de “todos para todos”.
Portanto, embora não se chegando a um único conceito exauriente do termo, pode-se entender a democracia como o regime pelo qual o povo, por meio de regras pré-concebidas, participa das decisões que afetam a todos, sendo a “democracia [...] um meio e não um fim do Estado, [pois] o grande fim do Estado é servir a pessoa humana” (OLIVEIRA, 2009, p. 18). Desta forma, o Estado que deve promover e proteger seus fundamentos (quais sejam a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político), deve fazê-lo por meio de todo o arcabouço legal que emana da Constituição que funda este Estado, e procederá nesse intuito por meio da participação de todo o povo, quando da escolha de seus representantes, que agiram em prol da coletividade.
Nestes termos, serve a democracia não apenas como meio ao Estado para implemento normativo, como também forma eficaz de acompanhamento e controle, a serviço do povo, da forma como procede este Estado na promoção de sua razão primeira, que é a promoção do bem comum, revelada nos termos da Constituição. Assim, a democracia é aquele vetor pelo qual o povo, continuamente, busca a efetivação de todas as promessas esculpidas na Constituição que funda aquele pacto social conhecido como Estado. Por ela, democracia, almeja-se que todos possam de alguma forma, direta ou indiretamente, decidir, participar, conforme as regras do jogo[57] do andamento deste fenômeno que é o próprio Estado.
Ora, se a democracia deve ser encarada como fenômeno social de participação, construção, alteração e manutenção do corpo social pelo próprio corpo social, não pode ser encarada como algo estanque, ou determinada fora do campo de interação dos indivíduos, ou mesmo algo percebido a priori, e que possa ser contemplada concluída, finalizada pro aquele que deseja experimenta-la. Somente se pode falar do fenômeno democrático a posteriori, depois que este se deu e ainda assim não de forma plena, mas tão somente o fragmento que se pôde experimentar, aquela parte do processo que se pôde construir, aqueles estágios já vivenciados, haja vista ser contínua a sua manifestação. Por isso pode-se dizer da democracia como fenômeno social continuado, experimentado por todos os indivíduos que participam este corpo de interações possíveis.
Da afirmação há pouco dita, sabe-se ser apenas uma possibilidade e não uma realidade. Não se pode admitir como realidade pois não se sabe, com precisão, se no futuro que há de vir, participarão todos os indivíduos plenamente do fluxo democrático, por não serem obrigados a isso ou por não saberem efetivamente como fazê-lo.
Logo, a democracia, por não ser obrigatória[58], não dispõe de garantias suficientes para que todos possam efetivamente dela participar[59], e assim sendo, em não havendo a participação e todos, resta flagrante a possibilidade de não ser, essencialmente, democracia aquilo que se manifesta pretensiosamente como tal.
Bobbio (1986, p.86) dedica parte de seu discurso[60] a discutir acerca do que pode ser considerado como fracasso democrático:
Ocupei-me dos “paradoxos” da democracia, isto é, das dificuldades objetivas em que se encontra uma correta aplicação do método democrático exatamente nas sociedades em que continua a crescer a exigência de democracia. Para quem considera a democracia como o ideal do “bom governo” (no sentido clássico da palavra, ou seja, no sentido de que ela está melhor capacitada do que qualquer outro para realizar o bem comum), outro tema objeto de contínuo debate é o que se poderia chamar de os “insucessos” da democracia. Grande parte do que hoje se escreve sobre a democracia pode ser incluído na denuncia, ora amargurada ora triunfante, destes insucessos. (grifo nosso)
Embora dedique-se o autor a tratar sobre diversas questões que julga serem as causas deste fracasso da democracia, dentre elas destaca-se uma que se julga essencial para a abordagem que ora se constrói. Bobbio aponta, como obstáculo à aplicação do método democrático, o próprio desconhecimento, do povo, sobre o fenômeno democrático, suas implicações e formas de integração:
Durante séculos, de Platão a Hegel, a democracia foi condenada como forma de governo má em si mesma, por ser o governo do povo e o povo, degradado a massa, a multidão, a plebe, não estar em condições de governar: o rebanho precisa do pastor, a chusma do timoneiro, o filho pequeno do pai, os órgãos do corpo da cabeça, para recordar algumas das metáforas tradicionais. Desde quando a democracia foi elevada à condição de melhor forma de governo possível (ou da menos má), o ponto de vista a partir do qual os regimes democráticos passaram a ser avaliados é o das promessas não cumpridas. (BOBBIO, 1986, p. 104) (grifos nossos)
Para o autor, fracassa a democracia por não ser apto o povo que deve dirigi-la, delegando a pequenas minorias o poder de decisão. Todavia, quando o todo não integra o rol de cientes do processo, não se tem efetivamente o regime democrático em exercício e sim qualquer outro regime[61], vez que “as democracias carecem de viabilidade se os seus cidadãos não a compreenderem” (SARTORI apud FERREIRA, p.4).
Bobbio (1986) desenvolve com perfeição a ideia do fracasso quando trata do poder invisível que perpassa todo o regime democrático, aproveita-se da não participação, e se beneficia com isso, na tentativa de tentar manter o quadro exatamente como está, chamando-o de plena participação social, democrático, quando na verdade se tem a grande massa alheia aos processos e seus efeitos. Exemplifica com perfeição sua colocação ao usar metáforas como “rebanho e pastor”, “chusma e timoneiro”, “filho e pai”, “órgãos e cabeça”.
A partir destas premissas discorre Bobbio (1986) sobre as promessas não cumpridas da democracia (dentre elas a própria participação de todos), que apontam para o fracasso deste sistema por não prover meios suficientes para assegurar que todos possam livremente, participar do processo de tomada das decisões que afetam a vida dos que integram este Estado.
Estaria, assim fracassado o governo de todos, quando de fato não há participação de todos.
A despeito das sábias colocações do ilustre filósofo e político italiano, não se poderia supor fracassada e impossível de realização a democracia, pelo fato de não ter ainda sido realizada. Tal raciocínio seria tão equivocado quanto deduzir ser inviável a igualdade por restarem ainda manifestas incontáveis situações de desigualdade entre os indivíduos de um mesmo grupo.
Resta evidente um paradoxo conceitual, como perfeitamente coloca Bobbio (1986), porém facilmente superado quando percebida a democracia como fenômeno continuado, que ainda está sendo vivenciado pelos indivíduos, e não como algo previamente construído ou findo, suscetível de uma suposta análise conclusiva.
Quando participa tão somente parcela da população, mesmo quando observado movimento de esmagamento ou mitigação de direitos direcionado a outros grupos, não se vislumbra, concomitantemente, vedada à parcela vitimada, a luta pelo direito violado. Do contrário, propicia a democracia o embate, o que certamente não existe em outros regimes. Padece certamente a democracia pela ignorância de muitos, que integrando o todo deixam de movê-la. no entanto este paradoxo, o da inércia participativa, jamais poderia ser compreendido como causa de seu fim, e sim razão para seu fomento.
4.2 LAICIDADE FICTA
Os resquícios históricos dos outros Brasis, esculpidos nas antigas constituições, persistem em emanar seus efeitos e ranços até os dias atuais, numa cultura religiosa que insiste em criar um Estado à imagem e semelhança de seus ideais.
Mas esta não é a única cultura que resiste ao tempo, oriunda de outros períodos históricos: persiste também a cultura dos cidadãos de segunda, terceira, quarta categorias, daqueles indivíduos que ao terem suas liberdades cerceadas encolhem-se e calam-se, recolhendo-se em suas amputações sociais, como se ainda estivessem a viver no Brasil Império, em que havia a religião oficial e a tolerância de existência a todas as demais. Resiste a ideia de superioridade de determinados credos em detrimento de outros, num flagrante atentado ao direito de liberdade de crença, de liberdade de expressão e de isonomia. Arrastam-se os Brasis de outrora numa afronta à Constituição, quando indivíduos representando o poder público exaltam sua crença acima das demais e constrangem os outros a permanecerem condenados ao silêncio. Certamente o costume, embora contrariando a lei maior, tem-se imposto, por diversas vozes, numa cultura de massacre e opressão que em nada coaduna com o ideal de isonomia ou laicidade.
Há, portanto uma determinação constitucional, clara e inequívoca, para separação do Estado e Igreja, instrução esta que resta ineficaz por ser continuamente ignorada por indivíduos que representam o poder público e por órgãos estatais, evidenciando uma laicidade que jamais fora implementada, haja vista ter permanecido o país, desde a sua fundação, arraigado ao costume do credo como legitimador moral, cultural e legal.
Resta então, ficta, a laicidade do Estado.
4.3 A URGENTE IMPOSIÇÃO DA EFICÁCIA DA LAICIDADE ESTATAL COMO MÉTODO DE PROMOÇÃO DA DEMOCRACIA, LIBERDADE PLENA DE EXPRESSÃO RELIGIOSA E IGUALDADE
Quando falha o Estado, dirigindo-se a privilegiar esta ou aquela manifestação religiosa, por meio de atos eivados de inconstitucionalidade, falha em sua obrigação de equidistanciamento, falha em sua natureza laica, enfraquecendo a democracia ao fomentar o silenciamento daqueles não se enxergam amparados em igualdade de condições e direitos.
No entanto, restam protegidas e asseguradas no texto constitucional as liberdades, daqueles prejudicados, carecendo tão somente de uma ação positiva de defesa, de luta pela eficácia daquilo que se pretende diminuir, pelos atos atentatórios à laicidade.
Quando o ato que atenta contra a liberdade de religião, mitigando-a, emana do próprio Estado, que deveria manter-se neutro e proteger o livre exercício das liberdades, resta flagrante atentando, não somente contra o individuo cujo direito fora violado, mas contra a natureza neutra de que deveria gozar o Estado, numa contradição legal que deve ser sanada unicamente pela compreensão do sistema jurídico:
O estudo do ordenamento jurídico como uma estrutura sistemática coerente é um estudo ainda da lógica jurídica formal, pelo menos no essencial, tal como a análise lógica de um discurso, que procurasse expungi-lo de toda contradição interna” (MACHADO NETO, 1966, p.75)
Tal compressão do sistema jurídico como um discurso uníssono é imprescindível à legitimidade do próprio Estado e da perpetração dos direitos e garantias, porém executável unicamente num cenário democrático, que, como já visto, carece de viabilidade, por restarem demasiadamente distantes aqueles que deveriam batalhar por seus direitos.
Nesse diapasão, convergem os estudiosos acerca de um mesmo fenômeno que entrava e dificulta o florescer democrático, quando trata Bobbio (1986) do poder invisível, quando se dedica Chauí (1994) a abordar o processo ideologizante, e quando argumenta Barroso (2000, p.3), ao nomeá-lo de idealização:
Esta idealização, todavia, precisa ser confrontada com fatores que rompem com a sua unidade esquemática, sujeitando-a a um turbulento processo dialético. Que a constituição e as leis, como criações humanas, são elaboradas por pessoas que não são indiferentes ou neutras, mas, ao revés, diretamente interessadas nas consequências das regras que editam. Numa sociedade dividida, a ordem jurídica espelha a vontade da classe dominante e tende a proteger os valores que lhe atendam aos anseios.
A classe dominante[62] a que se refere Barroso (2000), sedimentada em costumes arraigados na sociedade, persiste na prática que viola direitos e garantias, como se esta fosse permitida pela vontade constitucional, como se legítimas fossem tais condutas, e assim permanecem pelo silêncio dos ofendidos, naquilo que Bobbio chamaria de fracasso democrático. Todavia, como já dito, não pode a democracia ser compreendida como fracassada, especialmente nas questões da laicidade estatal, haja vista ser processo ainda em curso, de per si, carecendo exclusiva e continuamente da participação daqueles que compõem o todo para que seja percebido seu sucesso, o que por certo, não é vedado ou impossível.
Assim, curioso paradoxo é percebido, vez que padece a democracia, quando deixando de ser laico o Estado, porquanto ataca, ele mesmo, determinados indivíduos, silenciando-os, ao violar, pelos atos de seus representantes, as garantias constitucionais de neutralidade religiosa. Todavia apenas pela participação de todos, pela democracia, sobretudo dos ofendidos, pode-se sanar a questão, exaltando as liberdades, a democracia e a laicidade.
A laicidade, embora tivesse condições de ser regulamentada minuciosamente, em regramentos que pudessem determinar sua detalhada eficácia, ainda sim restaria passível de violação, pois a norma jamais pode garantir sua própria aplicação, cabendo exclusivamente àqueles para os quais se dirige a observância e cuidado. Nesse diapasão surge a democracia, como mecanismo eficaz, quando vivenciado, de controle, percepção e aplicação.
Esta democracia, que como dito é em um só tempo alvo de ataque e solução, não obstante gloriosa função social, encontra-se ameaçada, bem como o Estado, sendo o risco tamanho que não se afasta a possibilidade da extinção de ambos, em permanecendo apático o povo, quer pelo costume, quer pela ignorância, quer pela opressão. Devendo este rebelar-se contra o arbítrio, sempre que preciso, no mais cristalino agir democrático, sendo tal rebelião sinônima do cuidado, da preservação contra a proliferação da ignorância, que fomenta o afastamento e o ruir das liberdades. Rebelião que pode ser poeticamente exemplificada e compreendida nas palavras de Poulat, citado na voz de Blancarte (2013, p.61), quando diz que “La libertad es como un jardín. Vuelve rápido al estado salvaje en cuanto cesa de ser cultivada”.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para tangenciar propriamente o tema destes estudos, tratou-se antes de uma inevitável abordagem sobre as origens do Estado Democrático de Direito, para compreensão do caminho sócio evolutivo percorrido, pelos povos, até os dias atuais, e perpassou-se os processos que marcaram o emergir da modernidade, como o proliferar dos movimentos intelectuais europeus, que lançaram as bases para o que hoje entende-se como Estado. Movimentos como o iluminismo, cientificismo e em especial a secularização, aprofundada neste trabalho, e que se propõe a apartar o Estado de suas antigas raízes legitimantes, dotando-o da autenticidade necessária à sua perpetuação, à sua continuidade, legitimidade esta que pudesse assegurar o implemento de outros ideais, igualmente perseguidos àquele momento e hodiernamente, como o ideal Constitucional que buscava positivar, dentro dos ordenamentos jurídicos os direitos e garantias que serviriam como alicerces indispensáveis ao agrupamento social, sendo eles mesmos as diretrizes mais elementares deste fenômeno que se chamaria de Estado.
Na sequência abordou-se diretamente o tema desta produção: a laicidade como elemento integrante de todo aquele processo narrado, e fator determinante de manutenção daquela legitimidade que apartaria o Estado de seus antigos tutores, forjando assim as bases para isonomia e liberdade. Expôs-se naquele ponto a dúplice dimensão, teoricamente admitida, do princípio da laicidade, dirigido a proteger as religiões do assédio estatal e o próprio estado do assédio das religiões.
A partir daquele momento foram elencadas uma série de atos perpetrados pelo próprio Estado, por meio de seus representantes, que direta e claramente atentavam contra a laicidade em flagrantes manifestações confessionais de representantes do Estado. intentou-se evidenciar o flagrante paradoxo entre o mandamento constitucional e a praxis percebida em todos os poderes que integram o Estado, o qual, devendo ser separado, neutro, laico, encontra-se confessional, tendencioso e maculado.
Encaminhando-se para o final desta produção, aponta-se para a natureza manifesta daqueles atos como risco inequívoco às liberdades, como atentado direto a elas e ameaça à própria democracia, quando se é difundida a cultura dos cidadãos de classe inferior, ao serem estes preteridos pelo Estado, devendo permanecer quietos, silentes, tolerados. Entendeu-se que tal mensagem, amplamente difundida em outros tempos da história deste país, jamais poderia ser replicada nos dias atuais, dadas as determinações aqui analisadas. Não é, todavia, o quadro que se observa nesse Estado, dito laico, dito democrático.
Flagrou-se notória ineficácia do principio da laicidade, não apenas neste período contemporâneo como em toda a história Brasileira, haja vista não ter havido nenhum momento sequer em que se pudesse afirmar o Estado totalmente separado de qualquer influencia religiosa em sua operacionalização, embora não faltem tentativas para tanto, evidentemente. Resta clara a contínua afronta ao ideal laico, sustentáculo do próprio Estado de Direito.
Entendeu-se também ser imprescindível que os próprios ofendidos passem a mover o “leviatã” em direção ao reestabelecimento da igualdade ferida pelo assédio religioso, de modo a equilibrar a prestação estatal, obrigando-o a tratar isonomicamente todos aqueles que se encontram sob suas diretrizes, de maneira a prover o real bem comum, de todos, não apenas deste ou daquele grupo. Mesmo que brevemente, restou evidente ser demasiado complexo o implemento de tal movimento democrático, haja vista os processos de alienação e distanciamento, ora fomentados, para que o povo permaneça inerte, ignorante e alheio àquilo que lhe interessa: a defesa de suas liberdades mais elementares. E mais contundente ainda fora a conclusão, fundada no ideário de altíssimos mestres, de que apenas pelo agir dos ofendidos pode-se vislumbrar quadro distinto do concreto, sendo de outro modo impossível a eficácia e preservação da laicidade e das liberdades, por ser inerente à própria democracia a participação de todos. Apenas por este agir, enxergar-se-ia a possível a instrumentalização do Estado em direção à necessária equidistância e neutralidade que exige a laicidade, como único recurso possível de proteção tanto das liberdades diversas quanto, especificamente, da manifestação religiosa, pois somente num Estado não confessional poder-se-ia restar protegido o direito de coexistirem todas as possíveis emanações de credo.
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[1]Conquistas gradativas pois os direitos fundamentais não surgiram simultaneamente, mas em períodos distintos mediante as demandas igualmente distintas de cada época, tendo uma consagração progressiva nos textos constitucionais o que equivale a classificação doutrinária em gerações ou dimensões, sendo os direitos fundamentais de primeira dimensão os ligados ao valor liberdade, são os direitos civis e políticos. Os direitos fundamentais de segunda dimensão são os direitos sociais, econômicos e culturais. Os direitos fundamentais de terceira dimensão são aqueles ligados ao valor fraternidade ou solidariedade, relacionados ao desenvolvimento ou progresso, ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, bem como ao direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e ao direito de comunicação e finalmente os direitos de quarta geração ou dimensão compreendem os direitos à democracia, informação e pluralismo. (grifo nosso)
[2] Bulos aponta, acertadamente, que não se deve confundir o Constitucionalismo atualmente admitido, e por ele explanado em sua obra, com a antiga técnica de tutela das liberdades surgida nos fins do século XVII, que se voltava tão somente para a análise de um ramo jurídico, e não servia como um sistema hermenêutico de tutela, como hoje se espera.
[3] Este novo momento que é experimentado pelo Direito, é para Bulos conceituado como Constitucionalismo contemporâneo, que, ainda segundo o autor, subdivide-se em neoconstitucionalismo e transconstitucionalismo, sendo o neoconstitucionalismo o efetivamente utilizado na abordagem deste estudo.
[4] A duplicidade aqui mencionada será mais adiante abordada com maior profundidade.
[5] Este fenômeno social é também abordado na obra “O que é ideologia” de Chauí (1994) que constrói um atual conceito de ideologia, valendo-se de dados historicamente existentes relativos a lutas de classes e estudos de outros autores sobre o tema. A autora defende ser a ideologia um fluxo contínuo e ininterrupto em que grupos dominantes se sobrepõem continuamente, enublando seus interesses para alcance de seus fins. Sem dúvida este tema é deveras instigante, especialmente quando abordado num viés que relacione os fluxos ideológicos e a construção do Estado, todavia, por não ser esta a abordagem central deste trabalho, é útil tão somente esta breve consideração sobre o conceito apresentado por Marilena Chauí.
[6] Os autores atribuem a Maquiavel, em sua obra “O Príncipe”, o primeiro uso do termo ao descrever um conglomerado de indivíduos sob a ordem de um outro.
[7] Embora possam ser utilizados incontáveis critérios para determinar o estudo dos Estados, acharam prudente o uso do critério cultural religioso os autores mencionados, o que, por sua vez, é relevante para a análise a que se propõe esta produção.
[8] Streck e Morais chegam a comentar com certa ironia uma possível indagação quanto a inutilidade da diferenciação, haja vista poder ser considerado Estado, apenas os processos políticos-sociais posteriores ao termo cunhado por Maquiavel, num entendimento que agruparia todos os formatos sob o único termo “Estado” dispensando assim a divisão entre “pré-moderno” e “moderno”. No entanto a explanação que segue elucida o porque do posicionamento dos autores.
[9] Em sua obra “Ciência Política e Teoria geral do Estado” ao tratarem dos pilares do Estado Liberal e dos teóricos que o elaboraram, Streck e Morais comentam as visões de autores como Adam Smith, que em “A Riqueza das Nações” defendia uma limitação máxima da atuação estatal, como responsável unicamente pela manutenção da ordem e segurança. Citam ainda John Stuart Mill e J.Bentham, que defendiam uma ideia de antiestado, em que seria negativo ou ausente de atuação o Estado, especialmente no sentido de proteção aos indivíduos, o que seria posteriormente chamado de “Estado mínimo”, ou apenas “estado liberal”.
[10] Direito e Democracia: entre facticidade e validade
[11] O movimento conhecido como “Ilustração”, correspondeu ao apogeu das ideias iluministas, que se manifestavam em vários outros movimentos isolados e compreendeu o afastamento da estrutura e do funcionamento do Antigo Regime e o surgimento de novos formatos de sociedade, de homem e de Estado. Esse novo pensamento, cultivado pela França no século XVIII, espalhou-se por toda a Europa.
[12] Nas lições de Streck e Morais é conceituado o Estado de Natureza como uma abstração utilizada para justificar ou legitimar a existência da sociedade política organizada. Comentam os autores que para alguns teóricos tal condição humana em que o homem vivia plenamente na barbárie realmente existiu, como é o caso de Rousseau. Já para outros, o Estado de Natureza é apenas uma construção intelectual utilizada como contraface do Estado Civil.
[13] Termo latim para a expressão “razão de ser”
[14] Restará demonstrado no curso das explanações que, embora o ideal constitucional tenha sido desprezado nas primeiras Constituições nacionais, não se pode alegar que eram elas completamente vazias de teor relativo a defesa de direitos e garantias, como este em análise (da liberdade de crença e separação do Estado da predileção religiosa), que instituído nos primórdios constitucionais brasileiros, perdurou em todas as Constituições supervenientes, sendo por elas replicado.
[15] Por meio da Emenda Constitucional nº 1.
[16] Para alguns seria mais apropriada a expressão Congresso Constituinte, em razão de terem sido responsáveis pela elaboração da Carta Magna os deputados eleitos para o Congresso Nacional em novembro de 1986.
[17] Ontologia jurídica é parte da Filosofia do Direito que tem, dentre outras funções, a de determinar o conteúdo próprio ao Direito, elucidando o objeto de estudo da ciência jurídica.
[18] Não fora discorrido na citação, o sexto dos elementos mínimo-irredutíveis, por se tratar esta ultima dos elementos mínimo-irredutíveis de transição constitucional, que se referem ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que já não estão mais em vigor. Assim, embora possuam importante valor histórico, exatamente por não possuírem mais vigência não são alvo deste estudo.
[19] Nomes como Locke, Tomás More, Jonh Good-Win, dentre outros.
[20] Expressão em inglês para a frase “pelo qual as instituições, ações e consciência religiosas perdem sua importância social”
[21] Legitimidade aqui tratada numa acepção conceitual geral, partindo dos ideais de Estado e Constitucionalismo, como já restou abordado.
[22] Mestre em Ciências da Religião pela Universidad Nacional de San Marcos, publicou diversos ensaios e artigos sobre o tema ora abordado, sendo o pensamento extraído para integrar o presente trabalho, parte do artigo “A laicidade como princípio constitucional do estado de direito”, que integra a publicação “Em defesa das liberdades laicas”.
[23] Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UERJ, autor de diversos trabalhos que versam sobre o tema. Produziu “O crucifixo nos tribunais e a Laicidade do Estado”, texto que integra a obra “Em defesa das liberdades laicas”, do qual se extrai o pensamento defendido nessa produção.
[24] Em sua produção “O crucifixo nos tribunais e a laicidade do Estado” parte integrante da obra "Em defesa das liberdades laicas”.
[25] Op. cit.
[26] Vocábulos em francês que podem significar “Secularismo caráter do que é secular, um personagem secular: a educação secular. Era um tempo onde o secularismo era como uma marca da infâmia. secular: Quem é nem eclesiástico, nem religiosa: juiz secular. "Não deve ser um cidadão, clérigo ou leigo, que está fora do alcance da lei”.
[27] Em sua produção “A laicidade como princípio constitucional do Estado de Direito” parte integrante da obra "Em defesa das liberdades laicas”.
[28] Teoria que foi apresentada e discutida na monumental obra “Espírito das Leis”.
[29] O Bullying pode ser compreendido como agressões intencionais, verbais ou físicas, feitas de maneira repetitiva, por um ou mais alunos contra um ou mais colegas. O termo bullying tem origem na palavra inglesa bully, que significa valentão, brigão. Mesmo sem uma denominação em português, é entendido como ameaça, tirania, opressão, intimidação, humilhação e maltrato.
[30] O fato chegou a ser gravado em um vídeo pelo estudante que disponibilizou o material na internet, como registrado na matéria em questão, embora não esteja mais disponível para acesso público na internet.
[31] A ATEA é uma entidade sem fins lucrativos sediada virtualmente no sítio https://www.atea.org.br, registrada na Receita Federal - Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) sob o número 10.480.171/0001-19 e 1º Oficial de Registro de São Paulo/SP. Segundo os dados da própria instituição, no endereço virtual acima mencionado, sua finalidade é promover esclarecimentos à sociedade sobre o ateísmo e o agnosticismo e proteger o estado laico.
[32] Artigo Publicado no VI ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, realizado de 25 a 27 de maio de 2010 em Salvador, Bahia.
[33] É importante destacar que a Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, estabelece a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena no Ensino Fundamental e Médio da rede pública e privada de todo Brasil.
[34] Embora tenha sido veiculada em diversos canais de comunicação, de grande influencia local, a informação da retirada da estátua, até o momento a escultura permanece no local como na época de sua inauguração.
[35] Citações extraídas das publicações online das revistas Exame e Estadão.
[36] Notícia veiculada no sítio “Notícias Gospel Mais”, em 22 de junho de 2014.
[37] Embora seja função dos três poderes, autônomos entre si, fiscalizarem-se mutuamente no exercício mais perfeito das funções do Estado.
[38] A Bancada da Bola, também conhecida como Frente Parlamentar de Apoio ao Esporte, é composta por congressistas ligados aos clubes e federações de futebol, de onde proveio sua popularidade. Atua há várias legislaturas de forma intensa, mesmo que discretamente, e somente apareceu com mais destaque na mídia e teve sua estrutura exposta quando das duas CPIs paralelas que, em seguida à derrota do Brasil na Copa de Mundo de 1998, se instalaram na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.
[39] Em conformidade com dados disponíveis no sítio Transparência Brasil, a maior parte dos parlamentares que integram a frente parlamentar conhecida como bancada evangélica é alvo de processos judiciais na Justiça Eleitoral e no Supremo Tribunal Federal por diversos crimes, tais como peculato, improbidade administrativa, sonegação de impostos, formação de quadrilha ou bando, abuso do poder econômico em eleições de que participaram, além de diversos casos de reprovação de prestação de contas nos Tribunais de Contas.
[40] O projeto de Lei pretende modificar a redação do artigo 42, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
[41] A resolução proibiu os profissionais em psicologia de realizar qualquer procedimento com vistas a tratamento de orientação sexual, por entender que a homossexualidade é uma variação natural da sexualidade humana.
[42] Publicado pela Livraria do Advogado Editora em 2008.
[43] Notícia veiculada no sítio “Ultima Instância”.
[44] Além de doutrinar sobre direito da família e direitos homoafetivos, Dias é ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família.
[45] Texto integrante da publicação “Em defesa das liberdades laicas”
[46] O Projeto de Emenda Constitucional em questão é apenas sugerido pela pesquisadora, que o faz mediante resultado do vasto material de pesquisa e produção que realizara após anos de dedicação ao tema, e de modo que a menção não diz respeito a nenhuma PEC em tramitação.
[47] Ensino Religioso.
[48] Em sua produção “A laicidade como princípio constitucional do Estado de Direito” parte integrante da obra Em defesa das liberdades laicas”
[49] Às páginas de número 55 e 56.
[50] Arguição de descumprimento de preceito fundamental, que segundo descrição de verbete disponível no Glossário Jurídico do sítio do Supremo Tribunal Federal, é um tipo de ação, ajuizada exclusivamente no STF, que tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Neste caso, diz-se que a ADPF é uma ação autônoma. Entretanto, esse tipo de ação também pode ter natureza equivalente às ADIs, podendo questionar a constitucionalidade de uma norma perante a Constituição Federal, mas tal norma deve ser municipal ou anterior à Constituição vigente (no caso, anterior à de 1988). A ADPF é disciplinada pela Lei Federal 9.882/99. Os legitimados para ajuizá-la são os mesmos da ADI. Não é cabível ADPF quando existir outro tipo de ação que possa ser proposto.
[51] Disponível na íntegra nos arquivos online do sítio do Supremo Tribunal Federal, quando da seção pertinente aos documentos da ADPF 54, difundido na TV Justiça.
[52] Chega a ser irônica tal fala, haja vista, quando da transmissão da leitura do voto do Ministro pela TV Justiça, estar em destaque, ao fundo, a figura de um grande crucifixo cristão.
[53] Parte integrante da obra “Em defesa das liberdades laicas”.
[54] A citação em espanhol equivale à: “Mas lhes foi em grande parte uma resposta a uma hierarquia religiosa e setores muito conservadores da Sociedade, que se recusaram, e ainda se recusam, a aceitar a governança democrática baseada na vontade popular e em particular das minorias. Eles ainda estão procurando os mesmos privilégios, mas especialmente aspirantes a uma gestão do ponto de vista religioso, do ponto de vista doutrinário específico dos assuntos públicos”
[55] O termo institucional, aqui empregado, refere-se ao uso indevido dos poderes, quais sejam instituições maiores do Estado, utilizadas indiscriminadamente em favor de interesses particulares, que ao se confundirem com os interesses públicos, ferem princípios, direitos e garantias gerais.
[56] Um exemplo do uso criminoso das tribunas legislativas, para a disseminação de ódio e preconceito de cunho religioso, ocorreu em maio de 2011 e fora noticiada pelo portal R7 de noticias. Durante uma sessão em que se debatia o projeto que criminaliza a homofobia (PL 122/06), na Comissão de Direitos Humanos do Senado, o deputado Jair Bolsonaro discutiu com a senadora Marinor Brito, agredindo-a por sua luta em defesa dos direitos daquela minoria, e em razão dos insultos fora instaurado processo disciplinar contra o deputado por quebra de decoro parlamentar. Outro incidente vergonhoso foi noticiado no portal de noticias G1, que tratou da produção do documentário “Out there”, veiculado pela BBC, quando o mesmo deputado fora entrevistado e, falando em nome de todo o povo brasileiro, anunciou que o país não reconhecia a legitimidade dos homossexuais para buscarem quaisquer direitos, além de considera-los como cidadãos de menor escalão.
[57] Como bem coloca Bobbio em todo o curso de sua obra “O futuro da democracia, uma defesa das regras do jogo”
[58] E, se o fosse, não seria em si mesma democrática
[59] Embora existam diversas situações em que a participação popular é manifesta sobre a forma de dever, e por isso mesmo obrigatória, como no caso do exercício da cidadania pelo voto obrigatório, tantas outras restam com a natureza facultativa do direito desprovido de qualquer ônus, o que por vezes ocasiona um distanciamento popular do gerenciamento de ações ligadas a tais direitos o que compromete por certo o conceito de “governo de todos” quando o “todos” não integra o rol de participantes.
[60] Integrante da obra “O futuro da democracia, uma defesa das regras do jogo”.
[61] Discorre muito bem sobre isso Bobbio, na obra há pouco mencionada, ao tratar das questões paradoxais entre democracia, autocracia e tecnocracia.
[62] A classe dominante, diferentemente de Chauí e Bobbio, em Barroso é aquela para quem se destina predominantemente o sistema jurídico, de modo que seja possível visualiza-la com mais clareza. Assim, não há plena correlação entre os conceitos deste pensador e dos outros dois, haja vista tratarem Bobbio e Chauí sobre o aspecto de dominação, de um processo de enublação que oculta da maioria da população os verdadeiros motivos das decisões gerais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREIRE, Phablo. A [in]eficácia do princípio da laicidade em face de atos estatais atentatórios à garantia constitucional de equidistância a todas as manifestações religiosas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jun 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46848/a-in-eficacia-do-principio-da-laicidade-em-face-de-atos-estatais-atentatorios-a-garantia-constitucional-de-equidistancia-a-todas-as-manifestacoes-religiosas. Acesso em: 22 nov 2024.
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